Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6502/13.1TBCSC-B.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: EXECUÇÃO
FALECIMENTO DO EXECUTADO
HABILITAÇÃO
PENHORA DE QUINHÃO HEREDITÁRIO
LEVANTAMENTO DA PENHORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Em processo de execução movido contra devedor, entretanto falecido, o sucessor habilitado ocupa a posição que aquele tinha no processo, substituindo-o, de modo a que o processo prossiga os ulteriores termos processuais tendo em vista a satisfação do interesse do credor, não assumindo, não obstante, a posição de executado.
2. As dívidas do executado primitivo passam a constituir dívidas da herança, e, por conseguinte, até à efetivação da partilha, são os bens da herança que respondem pela liquidação daquelas (arts. 2068º e 2097º do CC).
3. Consequentemente, em sede de oposição à penhora, procede o pedido de levantamento da penhora que incidiu sobre o quinhão hereditário do sucessor habilitado na execução destinada à cobrança coerciva de dívida da responsabilidade da herança indivisa do primitivo devedor/executado
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
L…, veio deduzir oposição à penhora por apenso aos autos de execução que correm termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Execução de Oeiras – Juiz 1, movidos por “O…., S.A.”, contra o primitivo executado, L.M., entretanto falecido, alegando, para tanto, em síntese, que:
- A dívida exequenda constitui dívida contraída por L.M. e emerge de incumprimento do contrato de concessão de crédito celebrado entre aquele e a exequente;
- Estão atualmente habilitados como seus herdeiros, o opoente e o seu irmão H…;
- Encontra-se pendente inventário judicial para partilha das heranças abertas por óbito de L.M. e de M…., no qual são interessados o oponente e seu irmão;
- No processo de inventário estão relacionados os bens da herança cujo valor líquido ascende, pelo menos, a € 419.619,29, correspondendo o quinhão hereditário do ora oponente a € 209.809,64;
- Estando a herança por partilhar, o oponente ainda não recebeu dela quaisquer bens;
- Faz parte do património hereditário um veículo automóvel ligeiro de passageiros, a que atribui o valor de € 10.000,00 (verba nº 10 da relação de bens);
- Na execução foi penhorado o quinhão hereditário do oponente (e, bem assim, do co-herdeiro, H…), na herança aberta por óbito de L.M., “nomeadamente a quota parte [do herdeiro] dos saldos bancários das contas … e …., existentes na entidade bancária CGD, S.A., nos termos do art.º 781 do C. P. Civil”.
- A quantia exequenda foi fixada em € 7.720,06, sem prejuízo de posterior revisão”.
- De acordo com o disposto no art. 744º, nº 1, do CPC, “na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que tenha recebido do autor da herança”;
- Acrescendo que sendo a herança aceita a benefício de inventário, só respondem pelos encargos respetivos os bens inventariados, como dispõe o nº 1 do art. 2071º da Lei Civil.
- A dívida exequenda é uma dívida do falecido, pelo que, mantendo-se a sua herança indivisa, só os bens desta podem responder pelo seu pagamento;
- O quinhão hereditário do herdeiro constitui um direito seu, que integra a esfera jurídica patrimonial do herdeiro, não se confundindo com os bens da herança;
- O valor do direito penhorado é muito superior ao valor a garantir com a penhora, o que constitui uma grosseira violação do princípio da proporcionalidade, expressamente consagrado no art. 735º, nº 3, do CPC, sendo certo que existem bens da própria herança suficientes para satisfação do crédito exequendo.
- Conclui, deste modo:
- pela impenhorabilidade, decorrente da lei processual, do quinhão hereditário, por violação do princípio da proporcionalidade: é inadmissível a penhora com a extensão com que foi realizada;
- pela impenhorabilidade objetiva e substantiva do quinhão hereditário penhorado.
Termina, pedindo seja a oposição julgada procedente, com o consequente levantamento da penhora.
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A exequente foi notificada para, querendo deduzir oposição, o que fez atempadamente.
Diz, em síntese, que inexiste pretensão de penhora de bens próprios do executado/oponente, mas apenas dos bens que lhe advenham de eventual partilha da herança.
Ademais, o ressarcimento do crédito exequendo deverá sempre ser assegurado em primeiro lugar em relação aos herdeiros inventariados;
Relativamente ao veículo, que integra o acervo a herança, desconhece o seu valor real e não existe garantia que seja suficiente para suportar o pagamento da dívida, tando mais que sendo vendido em hasta pública, sempre seria vendido por cerca de 80% do valor de mercado ou menos.
Termina, assim, pedindo seja julgada improcedente, por não provada, a presente oposição, com a prossecução da execução e a manutenção da penhora já efetuada.
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Foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição à execução, com custas a cargo do opoente.
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O executado/opoente não se conformou com a decisão e dela vem recorrer, tendo culminado as suas alegações recursivas com as seguintes conclusões:
“1º As questões jurídicas essenciais a apreciar no presente recurso são a de saber:
a) se pode ser penhorado o quinhão hereditário de um herdeiro habilitado para prosseguir a execução instaurada originariamente contra seu pai, por dívida deste, mantendo-se a sua herança indivisa e, portanto, não tendo o herdeiro recebido bens dessa herança;
b) subsidiariamente – para a hipótese, que só por cautela de patrocínio se admite, de ser positiva a resposta à questão antecedente -, se in casu ocorreu violação do princípio da proporcionalidade por ter sido penhorado um bem – rectius, um direito, o quinhão hereditário -, de valor desmesuradamente superior ao da dívida exequenda.
2º O apelante não questiona a pertinência da matéria de facto dada como provada na primeira instância, que aqui se dá por reproduzida, mas deve ser-lhe aditado um nº 7, com o seguinte teor:
«7. O valor líquido das heranças a que alude o nº 4 dos factos provados é, pelo menos, de € 419.619,29 (diferença entre o activo, € 467.391,71, e o passivo, € 47.772,42), pelo que o valor do quinhão hereditário do oponente será, pelo menos, de € 209.809,64.»
3º Como ponto de partida da nossa análise, tenha-se presente que
. A dívida exequenda não é uma dívida do apelante,
. A dívida exequenda era do de cujus, é uma dívida da herança.
4º A sentença recorrida resolveu a questão que lhe foi colocada ignorando as normas substantivas aplicáveis e interpretando e aplicando de forma errada as normas adjectivas que invocou.
5º De acordo com o art. 601º do Código Civil, “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes
especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios”: é o caso da
herança, que constitui um património autónomo ou património separado.
6º No âmbito do regime especialmente estabelecido para os encargos da herança, o art. 2068º da Lei Civil dispõe que é a herança que responde pelo pagamento das dívidas do falecido.
7º Decorre também dos nºs 1 e 2 do art. 2071º do C.C. que pelos encargos da herança só respondem os bens da herança.
8º O art. 2097º do Código Civil dispõe ainda que “os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos”.
9º O nº 1 do art. 735º do CPC estabelece que “estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda”: ora, de acordo com a lei substantiva, os bens que respondem pelas dívidas da herança, enquanto esta se encontra indivisa, são os bens da herança.
10º Decorre do art. 743º, nº 1, do CPC, a contrario sensu, que em execução movida contra todos os herdeiros, é admissível a penhora de bens concretos da herança.
11º Preceitua o nº 1 do art. 744º do CPC que “na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que tenha recebido do autor da herança”, o que corresponde à aplicação do disposto nos arts. 601º, 2068º e 2071º do Código Civil.
12º A aplicação de todo o art. 744º do CPC, e não apenas do seu nº 1, pressupõe que a herança haja sido partilhada e que o herdeiro tenha recebido bens da herança; se houve partilha e, portanto, o executado/habilitado recebeu bens do autor da herança, mas a penhora recai sobre outros bens do herdeiro, que não lhe advieram por via dessa partilha, então tem aplicação o nº 2 desse artigo.
13º Se não ocorreu a partilha, ainda se encontrando pendente inventário para o efeito, e, por conseguinte, o executado/habilitado não recebeu qualquer bem da herança, o art. 744º pura e simplesmente não é aplicável.
14º A dívida exequenda é uma dívida do falecido, pelo que, mantendo-se a sua herança indivisa, só os bens desta podem responder pelo seu pagamento; não é admissível a penhora de bens próprios do executado/habilitado, como é o caso do seu quinhão hereditário: “na execução movida contra os herdeiros do autor da herança, por dívida também da responsabilidade deste, podem ser penhorados bens concretos e individualizados da herança e não as quotas ideais dos herdeiros” (Ac. da Relação de Coimbra de 25-10-2005).
15º O quinhão hereditário é do herdeiro; o direito a uma quota ou fracção ideal do acervo hereditário constitui um direito do herdeiro, que integra a sua esfera jurídica patrimonial própria e não se confunde com os bens da herança: o quinhão hereditário não é um bem recebido do autor da herança, é um direito que nasce com a abertura da sucessão.
16º O quinhão hereditário seria penhorável se se tratasse de uma execução instaurada contra o apelante por dívida sua, própria, e não por dívida hereditária. Não é o caso dos autos.
17º Conclui-se pela impenhorabilidade objectiva e substantiva do quinhão hereditário penhorado: este não responde, nos termos do direito substantivo, pela dívida
exequenda, o que constitui fundamento de oposição à penhora, nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 784º do CPC, e deve levar ao seu levantamento.
18º Ao decidir de forma diversa, a sentença recorrida não fez correcta aplicação da lei, violando os artigos 601º, 2068º, 2071º e 2097º do Código Civil e os arts. 735º, nº 1, e 744º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que
19º De acordo com o nº 3 do art. 735º do CPC, “a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução”.
20º Como decorre da matéria de facto provada, com o aditamento que se propugna (nºs 6 e 7), “o valor da quantia exequenda é de € 6.392,55, acrescida de juros e de despesas e honorários de A.E.” e «o valor do quinhão hereditário do oponente será, pelo menos, de € 209.809,64.»
21º Assim (mesmo considerando o valor de € 7.720,06 constante da notificação da penhora), o valor do direito penhorado corresponde a mais de 27 vezes o valor a garantir com a penhora - na verdade, mais de 54 vezes, uma vez que foi igualmente penhorado o quinhão do outro herdeiro -, o que constitui uma grosseira violação do princípio da proporcionalidade, dado que existem bens da própria herança suficientes para satisfação do crédito exequendo.
22º Deste modo, ainda que não procedesse a argumentação exposta nas conclusões 3º a 18º – o que só por cautela de patrocínio se admite -, sempre seria de concluir pela impenhorabilidade, decorrente da lei processual, do quinhão hereditário, por violação do
princípio da proporcionalidade: é inadmissível a penhora com a extensão com que foi realizada, o que constitui fundamento de oposição à mesma, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 784º do CPC, também conducente ao seu levantamento.
23º Assim, a sentença recorrida violou ainda o nº 3 do art. 735º do CPC.
Termos em que, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser dado provimento à presente apelação, sendo revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgando procedente à oposição à penhora deduzida, determine o levantamento da penhora do quinhão hereditário do apelante nas heranças de seus pais, como é de DIREITO e de JUSTIÇA!”.
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O exequente não respondeu ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões a decidir são as seguintes:
a) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto, materializada no pedido de aditamento do seguinte facto ao rol dos que foram julgados como provados: «7. O valor líquido das heranças a que alude o nº 4 dos factos provados é, pelo menos, de € 419.619,29 (diferença entre o activo, € 467.391,71, e o passivo, € 47.772,42), pelo que o valor do quinhão hereditário do oponente será, pelo menos, de € 209.809,64.»
b) Se pode ser penhorado o quinhão hereditário de um sucessor habilitado em processo de execução, para nele ocupar a posição do primitivo executado, por dívida deste, mantendo-se a herança em situação de indivisão;
c) Em caso afirmativo, saber se tal penhora ofende o princípio da proporcionalidade.
Fundamentação de Facto
Em 1ª instância foram julgados como provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida nos autos de execução, o opoente foi habilitado como herdeiro do primitivo executado L.M.
2. Por sentença proferida no apenso A, o opoente foi habilitado como herdeiro da executada/habilitada M...
3. No âmbito do processo executivo de que estes autos constituem um apenso foi penhorado, em 19-12-2022, o «o quinhão hereditário na herança nif:…., nomeadamente a quota parte dos saldos bancários das contas …. e ….., existentes na entidade bancária CGD, S.A., nos termos do art.º 781 do C.P.Civil, pertencente ao(s) executado(s): - L.., nif …. Para garantia do pagamento da quantia exequenda, acrescida de juros, custas e honorários e despesas do Solicitador de execução se fixa em 7720,06 Euros, sem prejuízo de posterior revisão.».
4. As heranças do primitivo executado e da executada/habilitada M… estão impartilhadas.
5. Corre termos pelo Juízo Local Cível de Cascais – Juiz 3 o processo de inventário por morte do primitivo executado e da executada/habilitada M…., no qual o opoente é interessado.
6. O valor da quantia exequenda é € 6.392,55, acrescida de juros e de despesas e honorários de A.E.
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Foi considerado inexistirem factos não provados.
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a) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
O recorrente pede que seja julgado como provado o seguinte facto, alegado no requerimento inicial: “O valor líquido das heranças a que alude o nº 4 dos factos provados é, pelo menos, de € 419.619,29 (diferença entre o activo, € 467.391,71, e o passivo, € 47.772,42), pelo que o valor do quinhão hereditário do oponente será, pelo menos, de € 209.809,64.
Diz, para tanto, que se trata de matéria alegada no art. 6º do requerimento de oposição à penhora; que está provada pela relação de bens apresentada no processo de inventário identificado nos autos (documentos nºs 4 e 5 juntos apresentados com aquele requerimento e, bem assim, pelos elementos juntos com a certidão extraída do processo de inventário e apresentada com o requerimento de 19-06-2023); e que revela interesse para a apreciação da questão relacionada com a violação do princípio da proporcionalidade no âmbito da penhora efetuada no processo de execução.
Ora, analisada a relação de bens apresentada pelo opoente e cabeça de casal no processo de inventário, bem como o teor do requerimento que a antecede, o único facto que pode ter-se por demonstrado é o seguinte:
- No Processo de Inventário que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível de Cascais – Juiz 3, por óbito de L.M. e de M.., o ora opoente e ali cabeça de casal, L., apresentou relação de bens, cujo ativo (segundo valores por si indicados) ascende a € 467.397,71; ascendendo o valor do passivo, também por si indicado, a € 47.772,42.
Deste modo, e podendo ter interesse para a discussão, adita-se ao rol dos factos provados, aquele que ora se deixou enunciado.
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Em face do exposto, os factos a tomar em consideração para a decisão de mérito, são os que constam do relatório, bem como os apurados em 1ª instância, com o aditamento ora decidido.
Fundamentação de Direito
Emerge da factualidade apurada nos autos que o ora opoente (tal como o seu irmão) foi habilitado como sucessor do executado falecido e único devedor, L.M., e como sucessor de M., anteriormente habilitada como sucessora daquele.
A herança é integrada pelas situações jurídicas que se encontravam na titularidade do de cujus e que pela sua natureza não devam extinguir-se por efeito da morte; por força da lei; ou por efeito de renúncia de direito a que o mesmo tenha validamente renunciado (cf. arts. 2024º e 2025º, do Código Civil)[1],[2].
As dívidas do de cujus passam, por conseguinte, a ser dívidas da herança.
Constituem encargos da herança, além do mais, e nos termos do art. 2068º, do CC, o pagamento das dívidas do falecido.
Estatui o art. 2097º, do CC, que “Os bens da herança indivisa respondem coletivamente pela satisfação dos respetivos encargos.”, o que significa que até ao momento da partilha a responsabilidade pela liquidação dos encargos da herança é dos bens da herança indivisa.
“Antes de partilha, e depois de satisfeitas as despesas relacionadas com o próprio fenómeno sucessório (as despesas com o funeral e os sufrágios do seu autor, os encargos com a administração e liquidação da herança), são os bem constitutivos da herança  que, no seu conjunto, respondem pelo verdadeiro passivo da herança, formado por seu turno, quer pelas dívidas do de cuius, inerentes ao património hereditário, quer pelos legados, nascidos das derradeiras liberalidades do testador à custa do mesmo património.”[3]
 Havendo processo de inventário, será no âmbito dele que se processa e liquida a responsabilidade da herança pelas dívidas respetivas (cf. art. 1106º, do CPC).
No caso, e como se provou, encontra-se pendente processo de inventário para partilha dos bens deixados por óbito de L.M. e também, cumulativamente, de M., mas mantém-se em curso a presente execução para pagamento do sobredito crédito do exequente.
Estamos perante uma herança indivisa, aceite pelos herdeiros a benefício de inventário (art. 2053º do CC).[4]
A herança é um património autónomo.
Como afirma Lopes Cardoso[5], a “…herança é uma universalidade jurídica de bens, pelo que cada interessado não tem uma quota-parte em cada um de todos esses bens mas uma quota referida àquela universalidade, ao conjunto de todos os bens, só pela partilha se determinando aqueles em que se concretiza a quota-parte ou quinhão de cada interessado”.
É através da partilha – que pode ser feita judicial ou extrajudicialmente – que são adjudicados os bens a cada um dos herdeiros, que assim verão preenchida a sua quota na herança, sendo que só depois dessa adjudicação poderá cada um deles reclamar aquilo que lhe foi concretamente atribuído (cf. arts. 2119º e 2120º, nº 1, do Código Civil).
“Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário»[6].
O quinhão de cada interessado só se preenche com a efetivação da partilha -– com efeitos retrativos à data da abertura da herança (cf. arts. 2031º e 2032º CC) -. Até lá, existe apenas um direito, a expetativa do preenchimento do quinhão com bens pertencentes à herança. Só depois da efetivação da partilha é que cada um dos herdeiros obtém a qualidade de sucessor dos concretos bens que lhe foram atribuídos e que os fica a conhecer.
Concluindo, enquanto não for feita a partilha, os herdeiros são apenas titulares de um direito à ação e à herança, a uma parte ideal dessa herança. Ora, sendo o património de uma pessoa constituído por todos os direitos de natureza patrimonial de que seja titular, faz parte integrante desse património o direito a uma herança indivisa, razão pela qual pode esse mesmo direito responder pelas suas próprias dívidas, podendo neste caso, ser efetivada penhora sobre o “… quinhão em património autónomo, ou seja, sobre uma quota ideal numa comunhão (como, por exemplo, a meação nos bens comuns ou uma herança indivisa (…).
No caso de a penhora recair sobre quinhão em património autónomo (…), o direito do executado na comunhão (…) fica à ordem do agente de execução desde a data da primeira notificação efetuada (art. 781º, nº 1, in fine). (…)”[7] 
O ora opoente foi habilitado como sucessor do primitivo executado/devedor, tendo por via dessa habilitação passado a ocupar a posição que o falecido ocupava na execução, com a consequente prossecução dos ulteriores termos processuais com vista à satisfação do interesse do credor.
“….a habilitação do sucessor duma parte falecida ou extinta serve para, na causa principal substituir esta por aquele. Por conseguinte, o primeiro efeito da procedência do incidente é (….), pôr fim à suspensão, da referida causa principal, que o falecimento ou extinção determinara.
(…) a sentença de habilitação não legitima os habilitados como partes da causa principal mas, tão somente, como substitutos da pessoa falecida ou extinta (…)”.[8]
Em consequência do exposto, o sucessor habilitado numa execução não passa, ele próprio, a ser executado.
Por conseguinte, o ora opoente não é executado na presente execução e o seu património pessoal – no qual está integrado o direito à ação e à herança por óbito do primito executado e único devedor – não pode responder pela dívida exequenda, mas antes, e tão só, os bens da herança daquele, em conformidade com o já citado art. 2068º, do CPC.
Na sentença recorrida considerou-se o seguinte:
“Nos termos do art. 744º, 1, do Cód. Proc. Civil, na execução movida contra o herdeiro só podem ser penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança.
Esta disposição legal pressupõe, logicamente, que o herdeiro já haja recebido bens do autor da herança, ou seja, que a herança já tenha sido, de alguma forma, partilhada.
Não tendo a herança sido partilhada e, consequentemente, não tendo o herdeiro recebido quaisquer bens da herança, não poderá aplicar-se o disposto na citada disposição legal.
Prescreve o nº 2 do mencionado art. 744º do Cód. Proc. Civil que «Quando a penhora recaia sobre outros bens, o executado, indicando os bens da herança que tem em seu poder, pode requerer ao agente de execução, o levantamento daquela
(…).».
Daqui decorre claramente que podem ser penhorados bens próprios do executado/habilitado, como é o caso do seu quinhão hereditário.
No caso dos autos, provou-se que as heranças não foram partilhadas, correndo processo de inventário para o efeito, no qual o opoente é interessado.
Nestes termos e pelo exposto, não tendo ainda o opoente recebido qualquer bem dos autores das heranças, poderão penhorar-se bens dele, como decorre claramente do disposto no art. 744º, nºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, designadamente o seu quinhão hereditário.”
Não podemos sustentar este entendimento.
Sob a epígrafe, “Bens a penhorar na execução contra o herdeiro”, dispõe o art. 744º, do CPC:
“1 - Na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança.
2 - Quando a penhora recaia sobre outros bens, o executado, indicando os bens da herança que tem em seu poder, pode requerer ao agente de execução o levantamento daquela, sendo o pedido atendido se, ouvido o exequente, este não se opuser.
3 - Opondo-se o exequente ao levantamento da penhora, o executado só pode obtê-lo, tendo a herança sido aceite pura e simplesmente, desde que alegue e prove perante o juiz:
a) Que os bens penhorados não provieram da herança;
b) Que não recebeu da herança mais bens do que aqueles que indicou ou, se recebeu mais, que os outros foram todos aplicados em solver encargos dela.”
Do nº 1 deste preceito extraem-se, desde logo, duas conclusões:
1ª – Que a execução de que ali se trata tem como parte passiva (originária) o próprio herdeiro “Na execução movida contra o herdeiro…”, o que não é manifestamente o caso dos autos, como já vimos;
2ª – E que se reporta a execução proposta depois de efetivada a partilha e de terem sido adjudicados ao herdeiro os bens da herança que em concreto preencheram o seu quinhão hereditário, e assim entraram no seu domínio e posse:  “ ..só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança”. Situação igualmente distinta da que tratam os autos.
Os nºs 2 e 3 do mesmo preceito legal têm de ser lidos em estrita conexão com aquilo que é estipulado no seu nº 1, tendo aplicação sempre, e apenas, aos casos em que a herança foi objeto de partilha (logo, não podem ser chamados à colação no caso em apreço), mas que, e não obstante a partilha efetiva da herança, sejam penhorados bens que o herdeiro e executado não tenha recebido do autor da herança, estando as ditas previsões relacionadas com a aceitação da herança a benefício de inventário ou com a sua aceitação pura e simples.
“1. Segundo a regra do nº1, pelas dívidas da herança respondem os bens que o herdeiro recebeu da mesma (cf. art. 2068º), de modo que na respetiva esfera patrimonial podem coexistir duas massas de bens: uma que suportará os encargos da herança e a outra que, em regra, só responde pelas dívidas próprias do herdeiro.
2. O herdeiro pode aceitar a herança a benefício de inventário ou por aceitação pura e simples. A aceitação a benefício de inventário “significa que o herdeiro declara que aceita a herança mas reserva o direito de só receber o valor líquido da herança, depois de pagos os encargos, e com isso o herdeiro obtém , além da inventariação dos bens e da liquidação e partilha, uma separação face aos credores da herança, dos bens desta relativamente ao seu património pessoal” (…) A realização do inventário cria a presunção de que a herança não compreende outros bens além dos inventariados, cabendo aos credores demonstrar a sua existência (…). Assim, perante a penhora de outros bens, o executado/herdeiro, indicando os bens da herança que tem em seu poder, pode requerer ao agente de execução o levantamento da penhora, sendo o pedido atendido se, ouvido o exequente, este não se opuser (nº 2); se o exequente se opuser, cabe-lhe a prova da existência de outros bens (art. 2071, nº 1, in fine, do CC).”[9]  
Já se a herança tiver sido aceite pura e simplesmente, opondo-se o exequente ao levantamento da penhora, é o herdeiro/executado que fica onerado com o ónus da prova de cada uma das situações previstas nas alíneas a), e b), do nº 3, do mesmo preceito legal.
Decorre do exposto, que a norma em causa, contrariamente ao entendimento perfilhado em 1ª instância não tem aplicação no caso concreto.
Concluindo, pela dívida exequenda respondem os bens da herança do executado primitivo, ainda em estado de indivisão, não podendo ser penhorado, por ilegal, o direito à ação e herança (quinhão hereditário) do sucessor habilitado do executado, por dívidas deste, por aquele bem integrar o património próprio do sucessor e este não ter a qualidade de devedor/executado nos autos.
Destarte, fica prejudicado o conhecimento do terceiro ponto do objeto do recurso acima assinalado.

Decisão
Pelo exposto e por referência ao quadro factual e legal que se deixaram enunciados, acordam as Juízas desta 8ª Secção Civil, do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, e assim, e revogando a decisão recorrida, determinar a procedência da oposição à penhora deduzida por L. e o consequente levantamento da penhora do seu quinhão hereditário.
Custas do incidente, em 1ª instância, pela exequente (art. 527º, nº 1, CPC). 
Custas da apelação, também pela exequente, que ficou vencida, pese embora não tenha respondido ao recurso (art. 527º, nº 2, CPC).
Notifique as partes e o agente de execução.

Lisboa, 6 de junho de 2024
Cristina Lourenço
Carla Figueiredo
Carla Matos
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[1] José de Oliveira Ascensão – Direito Civil – Sucessões – Coimbra Editora, 1987, pág. 36.
[2] João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, Livraria Almedina, 1990, págs. 9-10.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 159.
[4] Ao aceitar a herança a benefício de inventário, o herdeiro pretende chamar a si o saldo já líquido dos encargos transmitidos com a herança, beneficiando, ainda, do regime previsto no nº 1, do art. 2071º, nº 1, do CC, por contraposição ao previsto no nº 2, do mesmo normativo, para os casos em que a herança é aceite pura e simplesmente.
[5] “Partilhas Judiciais”, Vol. II, 4.ª ed., p. 596.
[6] Rabindranath Capelo de Sousa, “Lições de Direito das sucessões, pag. 185).
[7] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, 2022.
[8] Eurico Lopes Cardoso, “Manual dos Incidentes da Instância em processo Civil, Livraria Ptrony, 1992, págs. 313 e 315.
[9] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, 2021, pág. 120.