Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA PAULA BOULAROT | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CIVIL PRESCRIÇÃO MENORES | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/27/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA PARCIALMENTE | ||
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Sumário: | a) Inexiste nulidade da sentença, mas antes incorrecta aplicação do direito aos factos, se o Autor integra a sua causa de pedir em sede de responsabilidade extra contratual, cujos elementos se provam, e o Tribunal os subsume na responsabilidade contratual b) Sendo o lesado um menor, o prazo de prescrição suspende-se, e a prescrição não se completará, mesmo que já esteja decurso o seu prazo, antes do final do ano subsequente à sua maioridade, artigo 320º, nº1, segunda parte do CCivil. c) Tendo ocorrido alguma circunstância interruptiva da prescrição no decurso da sobredita suspensão, cujo termo «a quo» faça ultrapassar aquele prazo, é a partir da mesma que se contará o prazo de três anos aludido no artigo 498º, nº1, do CCivil para a propositura da acção. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I P. M., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra a "COMPANHIA DE SEGUROS, S.A." e "T, E.P.", pedindo a condenação das Rés no pagamento da quantia de Esc. 50.000.000$00 - 249398,95 €, acrescida de juros de mora desde a data da citação. Alega, para o efeito e em síntese que: - No dia 30 de Marco de 1983, sofreu um grave acidente no cais de embarque dos barcos da "T" que fazem o transporte de passageiros entre Almada a Lisboa, sendo que, quando aguardava de mão dada com sua avó, para entrar no barco, sofreu um entalão no pé esquerdo, causado pela passadeira movediça do referido barco; - Tal acidente provocou-lhe danos físicos no valor de Esc. 30.000.000$00 e danos morais no montante de Esc. 20.000.000$00. As Rés apresentaram contestação, tendo ambas deduzido a excepção da prescrição e no mais, impugnaram os factos articulados na p.i., tendo a Ré Seguradora alegado que a culpa foi do Autor e que foi por mera solidariedade que lhe pagou despesas efectuadas e por conta do capital seguro, no montante de 783.120$00, mostrando-se o mesmo reduzido à quantidade 726. 880$00. Na réplica, o Autor defende que o prazo prescricional não se terá iniciado antes de 28.02.1995, porquanto desde a data do acidente que as Rés reconheceram a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos, assumindo o tratamento do Autor, sendo que só após a alta clinica é que se iniciou o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 498°, n° 1, do Código Civil. A final veio a ser produzida sentença a julgar a excepção de prescrição improcedente, uma vez que se entendeu ser aplicável o prazo geral de prescrição, porque se está perante uma situação de responsabilidade contratual, tendo-se em consequência condenado a Ré Fidelidade no pagamento ao Autor da quantia de 7.481, 97 Euros e a Ré Transtejo no pagamento da quantia de 52.373, 78 Euros, acrescidas dos juros às taxas legais desde a citação, a titulo de danos patrimoniais e morais, tendo-se absolvido as Rés do restante pedido. Inconformadas as Rés vieram recorrer, apresentando, em síntese as seguintes conclusões: Apelação da Ré T: - A acção tem como causa de pedir a responsabilidade civil por actos ilícitos, sendo que a mesma prescreve no prazo de três anos, artigos 483º e 498º do Ccivil. - O acidente ocorreu no dia 30 de Março de 1983, sendo o Autor então de menor idade, tendo atingido a sua capacidade jurídica plena em 5 de Agosto de 1994 e a acção só foi intentada em 21 de Outubro de 1996, pelo que nessa data o prazo prescricional já se mostrava decorrido. - A sentença recorrida entendeu que no caso se aplicaria a responsabilidade contratual, ao abrigo de um contrato de transporte, alegadamente celebrado entre o Autor e a Apelante, tendo feito aplicar o prazo geral da prescrição aludido no artigo 309º do Ccivil. -Ora, tal contrato nunca foi alegado, sendo a sentença nula por alteração da causa de pedir, nos termos dos artigos 268º, 273º e 668º, nº1, alínea d) do Ccivil. Apelação da Ré SEGURADORA: Para além de nos mesmos termos que a co-Ré, se ter insurgido contra a aplicação do prazo geral de prescrição, acrescentou o seguinte: - Caso assim não se entenda, tendo a Apelante satisfeito já ao Autor a quantia de 3906, 18 Euros e sendo o limite do capital seguro de 7418, 97 Euros, só poderá ser responsabilizada pelo remanescente, isto é pela quantia de 3575, 78 Euros. Nas contra alegações o Autor pugna pela manutenção do julgado. II Põe-se como problemas a resolver no presente recurso: a) nulidade da sentença, por ter conhecido da questão da responsabilidade contratual quando a mesma não foi alegada; b) saber se decorreu ou não o prazo prescricional para a propositura da acção, se esta se enquadrar no âmbito da responsabilidade civil; c) saber se a responsabilidade da Ré Seguradora se confina ao remanescente do capital seguro. A sentença sob recurso deu como assentes os seguintes factos: - No dia 30 de Março de 1983, em Almada, no Cais de Embarque dos Barcos da T, que fazem o transporte de passageiros entre Almada e Lisboa, e Autor sofreu um acidente (alínea A). - O Autor estava acompanhado por S, preparando-se para apanharem o barco com destino a Lisboa (alínea B). - A Ré "T E.P." transferiu a sua responsabilidade para a Ré "Companhia de Seguros, S.A.", através da apólice n°…, junta a fls. 31 dos autos, garantindo esta, nomeadamente, o pagamento das indemnizações legalmente imputáveis à segurada por danos corporais e/ou materiais causados aos passageiros transportados em embarcações da 1ª Ré, até ao limite de Esc. 1.500.000$00 por vitima (alínea C)). - A Re "Companhia de Seguros, S.A." pagou ao Autor despesas no montante global de Esc. 783.120$00 (alínea D)). - Consta de fls. 9 uma certidão do Hospital de São José, datada de 29 de Junho de 1995, onde se lê o seguinte: "(...) do boletim clinico número quatrocentos e sessenta e três mil novecentos e trinta e cinco, consta que P M,de seis anos de idade (...) esteve internado no Serviço de Neurocirurgia deste Hospital, de trinta de Março a catorze de Junho de mil novecentos e oitenta e três. "Mais certifico que no respectivo boletim clinico foi exarado o diagnóstico "Esfacelo do pé esquerdo; Amputações do 4° e 5° dedos e fractura múltipla do tarso e metatarso. Tendo sido operado em trinta de Março, em vinte e três de Abril e em nove de Maio de mil novecentos e oitenta e três" (alínea E)). - O Autor aguardava de mão dada com S a sua vez de entrar no barco (resposta ao quesito 2°). - Devido a forte ondulação que então se registava, o barco, que era do tipo "ferry-boat", apesar de amarrado ao cais ora se encostava ao pontão do cais, ora se desencostava do mesmo (resposta ao quesito 3°). - No preciso momento em que o Autor ía a entrar no barco - através da passadeira movediça destinada, em principio, exclusivamente ao acesso de veículos automóveis ao interior do mesmo mas efectivamente também utilizada, com a complacência da Re "T, pela generalidade dos passageiros peões, para acederem ao interior do barco, sobretudo nas ocasiões de grande afluxo de passageiros em que a passadeira reservada a entrada de peões se mostra insuficiente, pela exiguidade das suas dimensões, para possibilitar a entrada no barco, em tempo útil, a todas as pessoas candidatas a embarcar -, aquela passadeira movediça oscilou, devido ao facto de, imediatamente antes, por ela ter entrado no barco um veículo automóvel e, em consequência dessa oscilação, o pé esquerdo do Autor ficou entalado entre a referida passadeira e a caixa do pontão (respostas aos quesitos 4°, 5° a 6°). - Apesar de a acompanhante do Autor, S, ainda ter tentado afastar o Autor, recuando bruscamente, não conseguiu evitar o entalão do pé esquerdo do Autor entre a aludida passadeira movediça do barco e a caixa do pontão e o consequente esmagamento do pé do Autor (respostas aos quesitos 7°, 8° a 9°). - O entalão do pé esquerdo do Autor entre a aludida passadeira movediça do barco e a caixa do pontão teve como consequências directas e necessárias o esfacelo do referido pé esquerdo do Autor, a amputação do 4° a do 5° dedos desse pé a fractura múltipla do tarso e metatarso do mesmo pé (resposta ao quesito 10°). - Na sequência do sinistro, o Autor foi conduzido para o Hospital de Almada, e deste, no mesmo dia, foi transferido para o Hospital de São José de Lisboa, onde ficou internado no Serviço de Neurocirurgia até ao dia 14 de Junho de 1983 (resposta ao quesito 11°). - No Hospital de São José, e de acordo com o respectivo Boletim Clinico, foi-lhe feito o diagnóstico de "Esfacelato do pé esquerdo, com amputações dos 4° a 5° dedos a fractura múltipla do tarso e metatarso" (resposta ao quesito 12°). - Para tratamento das lesões mencionadas, o Autor foi submetido a várias intervenções cirúrgicas no Hospital de São José, nomeadamente em 30 de Março, 23 de Abril e 9 de Maio do ano de 1983 (resposta ao quesito 13°). - Após ter tido alta do Hospital de São José, o Autor começou a ser assistido nos serviços clínicos da "Companhia de Seguros, S.A.", ora Ré, a qual, desde a data do sinistro, providenciou pelo seu tratamento, tendo também custeado as despesas de outros tratamentos ministrados ao Autor por diferentes estabelecimentos hospitalares e diversas despesas de transporte do Autor para receber tratamentos nos serviços clínicos daquela seguradora, bem como dois pares de botas ortopédicas destinadas ao Autor (resposta ao quesito 14°). - Também nos serviços clínicos da "Companhia de Seguros, S.A.", o Autor foi submetido a várias intervenções cirúrgicas até 28 de Fevereiro de 1995, data em que foi considerado curado com desvalorização (resposta ao quesito 15°). - As lesões referidas na resposta ao quesito 10º determinaram para o Autor as seguintes incapacidades: a) Incapacidade Geral Temporária Total (IGTT), desde 30.03.1983 ate 30.10.1983; b) Incapacidade Geral Temporária Parcial de 50%, desde 31.10.1983 ate 31.10.1994; c) Incapacidade Geral Temporária Parcial de 40%, desde 1.11.1994 ate 28.02.1995 (resposta ao quesito 16°). - Actualmente, o Autor a portador de sequelas anatomo-funcionais que lhe determinaram uma Incapacidade Geral Permanente Parcial de 34% (resposta ao quesito 17º). - À data do acidente o Autor gozava de boa saúde e não apresentava qualquer defeito físico (respostas aos quesitos 18° a 19°). - Acontece que, devido ao acidente, quer durante o período de tempo em que esteve internado nos Hospitais de São José a da "Companhia de Seguros, S.A." onde foi submetido a varias intervenções cirúrgicas a outros tratamentos, o Autor sofreu muitas dores (resposta ao quesito 20°). - No entanto, mesmo actualmente, o Autor continua a sofrer dores, que se tornam insuportáveis, quando permanece de pé mais de 2 horas ou se desloca a pé mais do que algumas centenas de metros (resposta ao quesito 21°). - Designadamente quando o Autor tem de permanecer de pé durante muito tempo, ou deslocar-se a pé a grande distância, as feridas do seu pé reabrem, e o mesmo fica em "carne viva", necessitando consequentemente de fazer curativos e ficar alguns dias em repouso (resposta ao quesito 22°). - O que impede o Autor de ter uma vida normal (resposta ao quesito 23º). - A incapacidade física do Autor levou-o a desinteressar-se pelo convívio social na escola, onde se sentia inferiorizado em relação aos colegas (resposta ao quesito 24°). - Tendo tido ao longo da sua vida, ainda jovem, e desde o acidente, problemas de relacionamento social, o que lhe provocou a provoca sofrimento (resposta ao quesito 25°). - Designadamente, durante a sua infância, não era capaz de estabelecer relações de amizade duradoura com os seus colegas de escola, pois permanecia internado no Hospital durante largos períodos de tempo (resposta ao quesito 26°). - Por outro lado, não podia integrar-se nas brincadeiras dos colegas, pois, devido à sua deficiência, não podia fazer esforços, correr, saltar, etc, como fazem habitualmente as crianças e os jovens nas suas brincadeiras (resposta ao quesito 27°). - Mais velho, e mesmo actualmente, como tem dificuldades em movimentar-se e permanecer de pé, não pode acompanhar os amigos nas idas ao futebol ou à discoteca, e outras actividades fora de casa (resposta ao quesito 29°). - O que causa ao Autor grande sofrimento, tendo desenvolvido uma depressão, que o obriga a acompanhamento psicoterapêutico (resposta ao quesito 30°). - Em toda a sua juventude o Autor sofreu angústias por estar internado num Hospital, longe da família, dos seus brinquedos e lugares familiares (resposta ao quesito 30°). - Além da incerteza quanto às sequelas permanentes e "quantum" da desvalorização permanente (resposta ao quesito 31°). - O Autor desistiu de se candidatar ao ensino superior, tendo-se ficado pelo 12° ano de escolaridade (resposta ao quesito 33°). - Apesar de gostar de estudar e de sempre ter sonhado em frequentar a Universidade (resposta ao quesito 34°). - O facto de não possuir uma licenciatura diminui-lhe as possibilidades de auferir um rendimento de trabalho condizente com as habilitações literárias e a qualificação profissional dum licenciado (resposta ao quesito 35°). Dá-se ainda como provado que: - O Autor nasceu a 5 de Agosto de 1976, teor de fls 140. 1. Da causa de pedir na acção. Dispõe o normativo inserto no artigo 483º, nº1 do CCivil que « Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.». O Autor, na sua Petição Inicial configurou a sua causa de pedir, na ocorrência de um sinistro, o esmagamento do seu pé, causado pela passadeira movediça de um barco pertencente à Ré T e quando procedia à entrada no mesmo, o qual só ocorreu por culpa exclusiva dos trabalhadores desta, uma vez que não amarraram convenientemente o barco ao cais de embarque, o que veio a possibilitar que o mesmo se movimentasse e que a plataforma o colhesse, e em consequência, veio a sofrer várias lesões de ordem física e psicológica, cfr artigos 2º a 40º da Petição Inicial. Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela, cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I Vol., 1986, pgs. 477/478, cabendo às partes, em obediência ao principio do dispositivo inserto no artigo 264º, nº1 do CPCivil alegar os factos que constituem a sua causa de pedir. Ora, foi com base nestes requisitos gerais da responsabilidade civil que a acção foi proposta, sendo que os mesmos vieram a apurar-se em sede de respostas aos quesitos, veja-se além do mais a matéria dada como provada nos quesitos 2º a 10º. A sentença recorrida, após fazer uma exegese exaustiva e brilhante da responsabilidade aquiliana e contratual, conclui a determinado passo nos seguintes termos: (…) «Relativamente a teoria da opção, ou seja, deixar-se ao lesado a escolha de uma acção baseada no ilícito contratual ou no ilícito extracontratual, esta não tem cabimento, pois os dois regimes têm campos de aplicação próprios. Aliás, no nosso Direito Processual Civil, o Tribunal encontra-se circunscrito aos fundamentos alegados pelas partes (artigos 660°, n° 2, 2ª parte e 664°, 21 parte do Código de Processo Civil), mas já lhe pertence a qualificação jurídica dos factos por aquelas carreados para os autos, atendendo para tanto às mais diversas regras de Direito, tenham ou não sido invocadas nos articulados. Perante uma imputação contratual ou uma imputação aquiliana, o juiz tem o poder e o dever de rectificar o erro de qualificação ou de se pronunciar sobre a natureza da responsabilidade. ….. É de registar que a responsabilidade aquiliana tem-se assumido como a matriz da responsabilidade civil e, sob o ponto de vista do Direito positivo, tem servido de repositório de regras ou princípios gerais, que, afinal, são comuns a toda a responsabilidade civil. ……. Volvendo ao caso dos autos, ficou provado que, no dia 30 de Março de 1983, em Almada, no Cais de Embarque dos Barcos da "", que fazem o transporte de passageiros entre Almada a Lisboa, o Autor sofreu um acidente (alínea A) da Especificação). O Autor estava acompanhado por S, preparando-se para apanharem o barco com destino a Lisboa (alínea B) da Especificação). Esta factualidade permite inferir - e não foi colocado em crise pelas partes - que foi celebrado um contrato de transporte, nos termos do qual a Ré "Transtejo" se teria obrigado a transportar o Autor de Almada para Lisboa. "Pelo contrato de transporte (um dos contratos de prestação de serviço que não tem regulamentação especial no Código Civil), obriga-se uma das partes a deslocar de um lugar para outro pessoas ou coisas, por terra, por água ou pelo ar" (Ferreira de Almeida, in O Contrato de transporte no Código Civil", publicado na Revista dos Tribunais, ano 87°, pg. 147 (apud. Pires de Lima-Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., 1997, pg. 784). A obrigação nuclear e caracterizadora do contrato de transporte situa-se no campo das obrigações de resultado: o transportador obriga-se a proporcionar um concreto resultado que satisfaz o interesse creditório final ou primário, a saber, a entrega da mercadoria transportada ao destinatário, ou a chegada do passageiro (e suas bagagens) incólume ao destino. …….. O Autor aguardava de mão dada com Suzantina Marques a sua vez de entrar no barco (resposta ao quesito 2°). Devido à forte ondulação que então se registava, o barco, que era do tipo "ferry-boat", apesar de amarrado ao cais, ora se encostava ao pontão do cais, ora se desencostava do mesmo (resposta ao quesito 3°). No preciso momento em que o Autor ía a entrar no barco - através da passadeira movediça destinada, em princípio, exclusivamente ao acesso de veículos automóveis ao interior do mesmo mas efectivamente também utilizada, com a complacência da Ré "T", pela generalidade dos passageiros peões, para acederem ao interior do barco, sobretudo nas ocasiões de grande afluxo de passageiros em que a passadeira reservada à entrada de peões se mostra insuficiente, pela exiguidade das suas dimensões, para possibilitar a entrada no barco, em tempo útil, a todas as pessoas candidatas a embarcar -, aquela passadeira movediça oscilou, devido ao facto de, imediatamente antes, por ela ter entrado no barco um veiculo automóvel e, em consequência dessa oscilação, o pé esquerdo do Autor ficou entalado entre a referida passadeira e a caixa do pontão (respostas aos quesitos 4°, 5° a 6°). Apesar de a acompanhante do Autor, S, ainda ter tentado afastar o Autor, recuando bruscamente, não conseguiu. evitar o entalão do pé esquerdo do Autor entre a aludida passadeira movediça do barco e a caixa do pontão e o consequente esmagamento do pé do Autor (respostas aos quesitos 7°, 8° a 9°). Decorre para nós com nitidez, da factualidade apurada, que estamos perante um caso em que a responsabilidade contratual “consome" a responsabilidade aquiliana. Trata-se de indagar se a "Transtejo", através de seus agentes, cumpriu os deveres acessórios de transporte que lhe compete, designadamente o dever de zelar pela segurança e protecção dos transportados. (…)». De todo o raciocínio exposto, cumpre-nos dizer que concordamos com o mesmo em dois pontos: O primeiro é que de facto o Tribunal se encontra adstrito aos fundamentos alegados pelas partes, tendo todavia a liberdade de os qualificar juridicamente, nos termos dos artigos 660º, nº2, segunda parte e 664º, constituindo aqueles dois normativos a afirmação do princípio do dispositivo atrás aludido (e ao mesmo tempo o da auto responsabilização das partes e o da preclusão): «O juiz …Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.» e «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264º.» (respectivamente). O segundo é que, de facto, na responsabilidade civil cabe tanto a responsabilidade contratual como a responsabilidade extracontratual, cfr Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado 4ª edição, vol I/470. Mas, já não podemos concordar com as ilações que a sentença retirou destes dois pontos. Se não. No que tange ao principio do dispositivo que igualmente envolve os princípios da auto responsabilização das partes e o da preclusão, como já referimos, o Tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelos sujeitos processuais na sua análise jurídica, sem prejuízo da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e julgamento, sendo estes os probatórios e os acessórios que auxiliam o tribunal a chegar a uma conclusão sobre os factos principais, cfr Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol I/466. E, neste conspectu, acrescente-se, também poderão ser considerados os factos essenciais (nº3 do aludido artigo 264º do CPCivil) desde que os mesmos sejam complemento ou concretização de factos principais já alegados pelas partes nos articulados e a parte interessada deles se queira aproveitar desde que manifeste tal intenção e seja facultada à parte contrária o contraditório, em obediência ao princípio consignado no artigo 3º, nº3 do mesmo compêndio normativo, Lebre de Freitas, ibidem, 467. Todavia, o Tribunal fez retirar, da matéria alegada pelo Autor, que entre ele e a Transtejo teria havido um contrato de transporte, quando da matéria alegada por aquele nada resulta que nos possa levar a tal asserção, nem sequer através de uma presunção judicial, nos termos do artigo 349º do CCivil. Queremos nós dizer, o Tribunal face à matéria dada como provada nunca poderia presumir que o facto de o Autor estar, no momento do sinistro, a entrar no barco da Apelante Transtejo que efectuava o transporte de passageiros entre Almada e Lisboa, que entre ambos já estivesse estabelecido um contrato de transporte, porque este pressupõe a existência de outros elementos, maxime um titulo válido, que de per si, conjugado com outros elementos, nos pudesse concluir pela obrigação assumida pela Apelante Transtejo a efectuar o transporte do Autor. Aqui, neste particular, apenas podemos efectuar a afirmação que o Autor se preparava para entrar no barco pela mão de sua avó e que tal barco era o que efectuava o transporte de passageiros na travessia Almada-Lisboa, nada mais. Deste facto conhecido, nunca poderia o Tribunal retirar, à la diable, a ilação de um facto desconhecido – o contrato de transporte- para vir a afirmar, como o fez, a sua existência, mormente que estivesse já constituída qualquer obrigação entre a Apelante Transtejo e o Autor, no sentido daquela proceder ao transporte deste de Almada para Lisboa. Por outra banda, na enunciação dos factos consubstanciadores da sua causa de pedir, o Autor nunca alegou a existência de um tal contrato, que seria, in casu, um facto essencial, cujo ónus de alegação sobre si impendia nos termos do artigo 467º, nº1, alínea c) do CPCivil, o qual é insusceptível de suprimento pelo Tribunal. Todavia, daqui não decorre, tout court, a nulidade da sentença, mas apenas que foi feita uma incorrecta consubstanciação dos factos apurados ao direito aplicável. É que, tendo a acção sido proposta com base na responsabilidade civil extracontratual, e tendo sido apurados todos os factos que a integram, dúvidas não podem subsistir, que não obstante a diversa integração jurídica dos factos, os mesmos poderiam e deveriam integrar os pressupostos aludidos no artigo 483º, nº1 do CPCivil, já que se verificam todos os requisitos daquela. Não se trata assim de uma consunção, mas antes da aferição, in casu, que se está efectivamente perante uma questão de responsabilidade extracontratual onde, em termos fácticos, apurados ficaram os seus pressupostos. As conclusões das Apelantes, neste particular, terão assim de proceder. 2. Do prazo prescricional. A sentença sob recurso, ao integrar o caso dos autos na responsabilidade contratual por via de um contrato de transporte, que não foi alegado, fez aplicar o regime geral do prazo prescricional, contra o qual ambas as Apelantes se insurgem, porque tendo a acção como causa de pedir a responsabilidade civil por actos ilícitos, a mesma prescreve no prazo de três anos, artigos 483º e 498º do CCivil e tendo o acidente ocorrido no dia 30 de Março de 1983, sendo o Autor então de menor idade, tendo atingido a sua capacidade jurídica plena em 5 de Agosto de 1994 e intentada a acção em 21 de Outubro de 1996, nessa data o prazo prescricional já se mostrava decorrido. Quid inde? Dispõe o normativo inserto no artigo 498º, nº1 do CCivil, no que à economia do processo concerne, que «O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete…». Todavia, no que aos menores concerne, a Lei substantiva contem uma norma especial, a inserta no artigo 320º, nº1, segunda parte do CCivil, qual é a de que a a prescrição não começa nem corre, nem se completa, antes de ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade (trata-se de um caso de suspensão da prescrição a favor dos menores, além do mais). O Autor era menor na data do acidente, tendo nascido a 5 de Agosto de 1976. Assim, in casu, aplicando-se o citado normativo, o prazo prescricional teria ocorrido, não nos três anos após a data do sinistro, mas antes um ano e um dia após o Autor ter atingido a maioridade, isto é, o direito a intentar a presente acção, ter-se-ia precludido, pelo menos, no dia 6 de Agosto de 1995. Todavia, assim não aconteceu, porque por banda das Apelantes houve o reconhecimento expressamente manifestado perante o Autor/Apelado, da existência do seu direito, através dos vários tratamentos que lhe foram ministrados através da Apelante Fidelidade (enquanto seguradora da Apelante Transtejo), ao longo do tempo, tendo aquelas feito interromper a prescrição motu próprio. Vejam-se as respostas que foram dadas aos quesitos 14º e 15º: «Após ter tido alta do Hospital de São José, o Autor começou a ser assistido nos serviços clínicos da "Companhia de Seguros, S.A.", ora Ré, a qual, desde a data do sinistro, providenciou pelo seu tratamento, tendo também custeado as despesas de outros tratamentos ministrados ao Autor por diferentes estabelecimentos hospitalares e diversas despesas de transporte do Autor para receber tratamentos nos serviços clínicos daquela seguradora, bem como dois pares de botas ortopédicas destinadas ao Autor.» (resposta ao quesito 14°); «Também nos serviços clínicos da "Companhia de Seguros, S.A.", o Autor foi submetido a várias intervenções cirúrgicas até 28 de Fevereiro de 1995, data em que foi considerado curado com desvalorização.» (resposta ao quesito 15°). Ora, todas estas manifestações da Ré/Apelante Companhia de Seguros para com o Autor, assumindo ao longo dos anos os seus tratamentos, bem como o pagamento de despesas várias, ao abrigo do contrato de seguro havido com a Ré/Apelante T, interromperam o prazo prescricional, nos termos do artigo 325º do CCivil uma vez que «A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra o direito pode ser exercido.», sendo que «A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo…», artigo 326º, nº1 do mesmo diploma. Ora, in casu, para além de estarmos perante um caso excepcional de suspensão da prescrição até à obtenção da maioridade, de onde o prazo de três anos a que alude o normativo inserto no artigo 498º, nº1, não se poder iniciar durante a incapacidade do Apelado (sendo que aquele preceito visa proteger os menores quanto a uma eventual incúria dos seus representantes legais), estamos igualmente perante uma situação em que, mesmo que tal prazo se tivesse iniciado, o mesmo teria estado interrompido até ao dia 28 de Fevereiro de 1995. Poder-se-à perguntar, como é que um prazo que se encontra suspenso, o qual por via do instituto da suspensão, não se inicia nem completa, pode ser interrompido: isto é, poder-se-á interromper um prazo que nem sequer se encontra a correr, não será um absurdo? Não nos parece. Se não. Paralelamente a tal prazo de suspensão, a lei ficciona um prazo de prescrição, salvaguardando assim os casos em que o prazo prescricional já se mostre decurso por qualquer via, o qual só se completará um ano após a maioridade do menor: «…ainda que o menor tenha representante legal ou quem administre os seus bens, a prescrição contra ele não se completa sem ter decorrido um ano a partir do termo da incapacidade.», cfr segunda parte do nº1 do artigo 320º do CCivil e o Ac STJ de 17 de Novembro de 1994, CJ/STJ, 1994, tomo III/140. Ora, tendo ocorrido factos interruptivos do prazo prescricional geral a que alude o normativo inserto no artigo 498º, nº1 do CCivil, óbvio se torna, que tais factos vêm a ter plena operância após a cessação do prazo de suspensão em curso, sob pena de o menor poder ser prejudicado, caso se entendesse que aquele prazo de um ano após a sua maioridade é um prazo prescricional imperativo, pois se se tratasse de um maior, teria três anos para intentar a acção após o facto interruptivo, sendo menor, e estando o prazo suspenso, qualquer circunstância interruptiva, nunca poderia ter eficácia. Temos a firme convicção de não ter sido esta a intenção do legislador, nem o sistema permite uma tal asserção. Assim sendo, o prazo prescricional da presente acção, não se esgotou na data da obtenção da maioridade do Autor (termo final mínimo, cfr neste sentido Ac STJ de 11 de Maio de 1993, Relator Cons Cardona Ferreira, in www,dgsi.pt), mas antes teria o seu terminus em 28 de Fevereiro de 1998 e tendo sido a acção proposta em 26 de Outubro de 1996 é óbvio que o foi em tempo. As conclusões improcedem assim quanto a este particular. 3. Do limite do capital seguro. Insurge-se ainda a Apelante Companhia de Seguros, contra a sentença recorrida uma vez que tendo satisfeito já ao Autor a quantia de 3906, 18 Euros e sendo o limite do capital seguro de 7418, 97 Euros, só poderá ser responsabilizada pelo remanescente, isto é pela quantia de 3575, 78 Euros. Tem razão a Apelante, pois a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos está limitada ao capital seguro que in casu é de 7418, 97 Euros (alínea c) da especificação) e tendo-se provado que a mesma já satisfez a quantia de 783.120$00 (alínea d) da especificação), o que corresponde a 3906, 18 Euros, apenas poderia ter sido condenada pelo remanescente nos termos dos artigos 426º, nº6 do CComercial, isto é pela quantia de 3575, 78 Euros e não pela quantia de 7481, 97 Euros. Procedem neste ponto as conclusões de recurso da Apelante Companhia de Seguros. III Destarte, julga-se improcedente a Apelação da Ré T e parcialmente procedente a Apelação da Ré Companhia de Seguros, e em consequência, revoga-se parcialmente a sentença recorrida, condenado-se a Ré Companhia de Seguros no pagamento ao Autor da quantia de 3575, 78 Euros, mantendo-se no mais a sentença recorrida, embora com fundamentação diversa. Custas pelas Apelantes e pelo Apelado na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário que a este foi atribuído. Lisboa, 27 de Janeiro de 2005 (Ana Paula Boularot) (Lúcia de Sousa) (Luciano Farinha Alves) |