Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2399/2003-2
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CONSENTIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – Carece do consentimento do cônjuge, nos termos do art.º 1682-A, n.º1, do C. Civil, a atribuição do direito pessoal de gozo consubstanciado na autorização inserida em contrato promessa pelo proprietário do imóvel para o promitente comprador passar a usar e fruir o prédio prometido vender.
II – Não tendo ocorrido tal consentimento (por apenas constar do contrato a assinatura do marido), pode o cônjuge do promitente vendedor requerer a anulação do acto, no prazo de seis meses desde o respectivo conhecimento, nos termos do art.º 1687, n.º2, do C. Civil e até ao limite de três anos após a celebração do contrato.
III – Decorrido o prazo limite estabelecido na lei, caduca o direito de anulação, sanando-se a invalidade que enferma o acto.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – Relatório
1. (J) e (V) propuseram acção declarativa com processo sumário contra (L) e (M), formulando os seguintes pedidos:
- ser declarado que o prédio rústico sito na Bica de Pau inscrito a seu favor na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º 98.871 é sua propriedade
- serem declarados falsos o contrato de promessa e a declaração de atribuição de posse do terreno aos Réus
- serem os Réus condenados a reconhecer a propriedade dos Autores sobre o referido imóvel, bem como a demolirem tudo o que nele edificaram, restituindo-o com a respectiva configuração inicial e a absterem-se de todo ou qualquer acto que perturbe ou inviabilize a posse sobre o prédio.
Fundamentaram a acção alegando que os Réus, aproveitando o estado de embriaguês crónico do Autor, dele obtiveram a assinatura de um contrato de promessa, nos termos do qual consta a declaração de venda da área de 405 m2 do imóvel em referência que haviam adquirido, por compra, em 05.09.77.
Referindo que a Autora nunca procedeu à assinatura do referido contrato (sendo por isso falsa a que consta do mesmo e a ela atribuída), concluem pela ilegalidade da posse do imóvel por parte dos Réus e, nessa medida, pela procedência da acção.
2. Citados, os Réus contestaram a acção defendendo a validade do contrato promessa celebrado.
3. Foi proferido saneador e elaborada especificação e questionário.
4. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, declarando que o prédio em referência é propriedade dos autores e condenando os Réus a reconhecerem tal direito de propriedade, absolvendo estes do mais que estava pedido.
5. Inconformados os Autores apelaram da sentença concluindo nas suas alegações:
a) Sendo julgado procedente o pedido de reconhecimento da propriedade, deve ser julgado no mesmo sentido o pedido de restituição da coisa;
b) Tendo sido celebrado um contrato – promessa de compra e venda, supostamente entre AA e RR, relativamente à área de terreno detida por estes, apurou-se não ser da A. a assinatura constante do mesmo, já que a mesma é analfabeta e não sabe assinar o seu nome, sendo por isso nulo tal contrato;
c) Constando do mesmo um autorização para os RR entrarem na posse do terreno, sendo nulo o contrato-promessa, é de igual modo nula a referida autorização;
d) Mas, mesmo que se entendesse que o contrato era válido em relação ao A marido, a autorização de ocupação dependia sempre de autorização da consorte, pelo que o contrato seria sempre nulo no que respeita à referida cláusula;
e) Os RR não demonstraram a existência de qualquer título que legitime a sua posse sobre o terreno;
f) Por ser nulo o contrato-promessa, contrato este que a A obviamente não aceita, deverá considerar-se também nula e inexistente a detenção dos RR conferida ao abrigo do mesmo;
g) Não subsistindo razões que legitimem a posse dos RR sobre o terreno, deverá o mesmo ser devolvido aos AA, como se requer na petição inicial;
h) A douta decisão recorrida, pelo que ficou dito, violou o disposto nos art.ºs 286, 389, 410, n.º2, 1259, 1260, 1311 e 1682-A, do Cod. Civil e als. C) e d) do art.º 668, do C.P.C.

6. Em contra-alegações os RR defendem a improcedência do recurso e a consequente manutenção da sentença.
7. Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
II – Enquadramento fáctico
O factualismo dado como provado na sentença não foi posto em causa no recurso e não ocorrendo qualquer motivo para se proceder à sua alteração, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Na escritura pública celebrada no dia 5/9/77 os Autores declararam comprar o prédio rústico, com suas benfeitorias, no Sítio da Bica de Pau, freguesia de são Gonçalo, concelho do Funchal, que confronta pelo norte com herdeiros de M. Clemente, sul e oeste com o Ribeiro e leste com V. Teixiera e outros, inscrito na matriz sob os artigos 479 e 481 e é formado pelos descritos na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob os n.ºs 46246, a fls. 173v do livro 135 e 24.053, a fls. 144v, do livro B-65 (alínea A).
2. O identificado prédio está inscrito na mesma Conservatória a favor dos Autores, sob o n.º 98.871, a fls. 68 verso, do livro G-154 (alínea B).
3. Por contrato escrito, datado de 02.08.82, o Autor marido prometeu vender e o Réu prometeu comprar uma porção do prédio supra identificado, com suas benfeitorias, na sua extremidade sudeste, com a área de 405 m2 pelo preço de 120.000$00. Pelo mesmo o Autor marido declarou autorizar o Réu a entrar na posse da dita parcela, administrando e usufruindo dela (alínea C).
4. Os Réus entraram na posse da área de terreno referida no contrato a que alude a alínea anterior (alínea D).
5. Nesse local iniciaram a construção de uma casa (alínea E).
6. Os Réus apresentaram na Câmara Municipal do Funchal para efeitos de lhes ser concedida licença de construção, uma declaração cuja autoria atribuíram aos Autores e na qual consta que estes autorizam o Réu marido a proceder a obras de construção de uma moradia na parcela em causa (alínea F).
7. Por volta de 1982, os Réus abordaram os Autores no sentido de estes lhe venderem uma parte do referido prédio (resposta ao quesito 1º).
8. O Autor marido apôs a sua assinatura no documento que constitui fls. 15 dos autos (resposta ao quesito 2º).
9. A Autora mulher não assinou o contrato-promessa em causa sendo analfabeta e não sabe assinar o seu nome (resposta ao quesito 3º).
10. Não é do punho da Autora a assinatura constante do documento que constitui fls. 16 dos autos e a que alude a alínea f) (resposta ao quesito 6º).
11. Aquando da assinatura do contrato-promessa o Autor marido recebeu por conta do preço a quantia de 60.000$00 (resposta ao quesito 10º).
12. Foi o Réu marido quem forneceu os elementos identificadores do objecto do contrato em causa para efeitos da sua redacção (resposta ao quesito 11º).
13. O documento referido na alínea f) foi elaborado pelo contabilista da empresa onde o Réu trabalha (resposta ao quesito 13º).

III – Enquadramento jurídico
Delimitadas pelas conclusões da apelação, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste tribunal:
ü Nulidade do contrato promessa de compra e venda por falta de assinatura da Autora
ü Nulidade da autorização concedida aos Réus de entrarem na posse do terreno prometido vender por falta de autorização da Autora para o efeito
ü inexistência de título que legitime a posse dos Réus quanto ao terreno reivindicado

1. nulidade do contrato promessa
Insurgem-se os Recorrentes contra a sentença na parte em que julgou improcedente o pedido de restituição do imóvel com a sua configuração inicial, não obstante a mesma ter julgado procedente o pedido de reconhecimento do Autores como proprietários do prédio reivindicado nos autos.
Consideram os Apelantes que, demonstrado no processo que o contrato promessa apenas foi assinado pelo Autor, encontra-se o mesmo ferido de nulidade por falta de assinatura da Autora.
Na sentença foi entendido que a falta de assinatura por parte da Autora no contrato promessa em causa, em violação do disposto no art.º 1682-A, do CC, feria o acto de invalidade, na modalidade de anulabilidade atento ao preceituado no art.º 1687, do C. Civil, sendo que, no caso dos autos, o direito à anulação do negócio deixou de poder ser exercido porque ultrapassado o limite temporal estabelecido na lei – seis meses subsequentes ao conhecimento do acto e nunca decorridos três anos sobre a sua celebração.

1.1 Na situação sub judice e conforme decorre da matéria de facto provada, está em causa um contrato promessa de compra e venda de imóvel em que apenas interveio o Autor marido, na qualidade de promitente-vendedor, uma vez que a assinatura aposta no mesmo como referente à Autora não é do punho desta.
Resulta ainda do processo que com a celebração do contrato ocorreu a tradição do imóvel para o promitente-comprador, constando do mesmo cláusula de autorização de uso e fruição do prédio Cláusula Quinta nos termos da qual Os primeiros de nós declaram autorizar, desde já, o segundo de nós, a entrar na posse da parcela, ora prometida vender administrando-a e usufruindo como lhe aprover. .
Não oferece dúvidas quer à doutrina quer à jurisprudência o posicionamento que considera não ser aplicável aos contratos promessa a incapacidade conjugal (ilegitimidade) prevista no art.º 1682-A, do C. Civil, nos termos do qual carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns uma vez que do contrato promessa de compra e venda só derivam obrigações, isto é, o cônjuge promitente apenas se obriga a prestar um facto – celebrar o contrato prometido O contrato promessa constitui mera convenção de prestação de facto, sem efeito constitutivo ou translativo da coisa e antes de natureza obrigacional. O contrato-promessa celebrado pelo marido sem consentimento da mulher é, pois, válido – Abel Pereira Delgado, do Contrato-Promessa, Lisboa 1978, Libraria Petrony, pág. 76 .
Reportando para a situação dos autos, dado que o marido não carece da outorga da mulher para contrair obrigações, não é nulo nem anulável o contrato promessa de compra e venda concluído pelo Autor sem a assinatura da Autora Independentemente das consequências da falta de consentimento da mulher se a mesma se recusar a intervir no contrato prometido. Com efeito, em caso de recusa na outorga por parte do cônjuge que não interveio no contrato promessa, o promitente comprador apenas terá direito à indemnização devida por incumprimento – art.º 442, n.º2 e 4, do Código Civil..
Improcedem pois, nesta parte, as conclusões dos Apelantes.
1.2 Verifica-se porém que, no caso, com a celebração do contrato promessa ocorreu a tradição do imóvel tendo o promitente comprador (Réu), com autorização do proprietário, passado a usar e fruir do terreno prometido vender nele iniciando a construção de uma casa – pontos 4 e 5 da matéria de facto provada.
Independentemente do entendimento assumido quanto à questão de saber se o promitente comprador a quem foi entregue a coisa objecto do prometido contrato tem sobre ele uma posse legítima ou uma posse precária Não é pacífico quer na doutrina quer na jurisprudência o entendimento relativo à natureza jurídica da posse decorrente da tradição antecipada da coisa objecto do contrato-promessa. Na verdade, enquanto que uns recusam a existência do animus possidendi ao promitente comprador (cfr. Acórdão do STJ de 06.03.1997, BMJ 465, pág. 570), outros defendem que o promitente comprador tem sobre a coisa entregue objecto do contrato promessa uma posse legítima (possa causal nos termos do contrato-promessa). Neste sentido cfr. Acórdão do STJ de 16.05.89, BMJ n.º 387, pág. 579. Esta posição, posterior ao DL 236/80 foi particularmente influenciada pela doutrina defendida por Menezes Cordeiro, em Novo Regime do Contrato-Promessa, BMJ n.º 306, pág. 27 e ss. Verifica-se ainda uma outra orientação que se caracteriza por um posicionamento intermédio para quem a existência ou não de posse depende, em cada caso, da verificação do animus por parte do promitente comprador - Calvão da Silva, Contrato-promessa, Análise para reformulação do Decreto-Lei n.º 236/80, BMJ n.º 349, Acórdão do STJ de 31.03.1993, CJSTJ, tomo II, pág. 44. , o certo é que, nestas circunstâncias, o mesmo goza, para além da detenção precária derivada do direito de retenção que possui sobre o terreno (art.º 755, al. f), do C. Civil), de um direito pessoal de gozo.
Na verdade e conforme foi referido no Acórdão de 05.07.2000, desta Relação, quando essa coisa é entregue àquele promitente, com a permissão de a disfrutar – como é o caso comum, em que se configura como que uma antecipação do gozo derivado do direito de propriedade -, coexiste ao lado do direito de retenção uma outra situação jurídica. O promitente comprador (...) passa também a ser o detentor precário daquilo que foi prometido vender, pelo facto de a usar como dono. Tem, em ambos os casos, o corpus possessório (...). Esta “Segunda” detenção precária não pode ser equiparada a uma mera tolerância do domo , nos termos do art.º 1253º, alínea b) do CC. Tem uma causa. Resulta de um negócio bilateral oneroso. É um direito pessoal de gozo. CJ Ano IV, pág. 86.
Estando em causa um direito pessoal de gozo atribuído pela concessão do uso e fruição do imóvel consubstanciado na autorização inserida no contrato promessa impunha-se, tão só para tal efeito, a intervenção da Autora, isto é, a validade da autorização concedida pelo Autor carecia do consentimento da Autora, conforme impõe o art.º 1682-A, n.º1 do C. Civil.
Não tendo ocorrido tal consentimento a lei, atento o disposto no art.º 1687, n.º1, do mesmo Código, prevê a anulação do acto a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento. Consta-se pois que, contrariamente ao pugnado pelos Apelantes, não é a nulidade, mas a anulabilidade a sanção legalmente prevista para tais situações.
De acordo com o n.º2 do citado art.º 1687, é de seis meses o prazo para arguir a anulabilidade do acto, prazo que se inicia com o conhecimento do acto por parte do cônjuge lesado. Porém, a lei limita este direito de anulação já que o mesmo não poderá ser exercido depois de decorridos três anos sobre a sua celebração.
Decorrido o prazo limite estabelecido na lei, caduca o direito de arguir a anulabilidade pelo que a invalidade que o enferma sana-se face à impossibilidade de exercício do direito de anular o acto Cfr. Acórdão do STJ de 08.06.99, acedido por http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0, onde se pode ler no respectivo sumário Tendo o promitente-vendedor autorizado que o promitente-comprador incorporasse no terreno prometido vender uma construção, a falta de autorização do cônjuge daquele apenas determina a anulabilidade, invocável só pelo cônjuge que não deu o seu consentimento e caduca se não for oposta no prazo estabelecido pelo art. 1687 CC. .
Na situação dos autos, tendo em conta a data da celebração do contrato promessa (onde consta a autorização para o uso e fruição da fracção prometida vender) - 2 de Agosto de 1982, verifica-se que já há muito A acção foi proposta a 16 de Agosto de 1995. que se operou a sanação da invalidade do acto por decurso do prazo de três anos para o exercício do direito de anulação por parte da aqui Autora.
Ainda quanto a esta parte improcedem, por isso, as conclusões dos Apelantes.

2. inexistência de título que legitime a posse dos Réus quanto ao terreno reivindicado
Consideram os Recorrentes que os Réus não demonstraram a posse do imóvel em nome próprio e que não subsistem quaisquer razões que legitimem a ocupação que os mesmos vêm fazendo da fracção reivindicada.
Relativamente a esta questão desde já se adianta que falecem, na sua totalidade, os argumentos aduzidos pelos Apelantes.
Na verdade, permanecendo válido o contrato-promessa, ainda que se considere que promitente comprador apenas detém sobre a coisa que lhe foi entregue um direito pessoal de gozo insusceptível de posse Os actos materiais exercidos sobre o imóvel decorrentes da tradição da coisa não resultam de um acto de alienação do direito de propriedade, mas antes de um acto destinado a proporcionar um direito pessoal de gozo da coisa, tendo em vista a futura alienação, a realizar aquando da feitura da escritura. – Antunes Varela RLG Ano 128, pág. 146. , enquanto o contrato promessa vigorar e se não mostrar incumprido, é legítima por parte dos Réus, a recusa em entregar o imóvel reivindicado opondo aos Autores proprietários a respectiva posse (ainda que precária), porque titulada pelo contrato promessa Conforme decidido no Acórdão do STJ de 21.11.85, BMJ 351, pág. 332, o contrato-promessa de compra e venda, com tradição da coisa para o promitente comprador, confere a este a posse da coisa, pelo que o promitente vendedor, para obter a entrega da coisa objecto do contrato, tem de pedir a resolução do contrato ou a declaração do seu incumprimento por culpa do promitente comprador, não lhe bastando o pedido de reivindicação com suporte no direito de propriedade. .
Não há lugar, por isso e neste âmbito, à pretendida restituição do imóvel.

IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juizes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.

Lisboa, 3 de Julho de 2003
Graça Amaral
Ezaguy Martins
Maria José Mouro