Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
138/06.0TCFUN.L1-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: REMISSÃO
DÍVIDA
NEGÓCIO JURÍDICO
CONSENTIMENTO
CONTRATO
PROVA
DOCUMENTO ESCRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I - A remissão é um negócio jurídico bilateral, na medida em que a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação é feita com a aquiescência da contraparte, tendo como efeito imediato a perda definitiva do crédito, de um lado, e a liberação do débito, pelo outro, por isso que se trata de uma causa de extinção das obrigações em que não chega a haver prestação.

II - O que significa que a extinção do vínculo obrigacional envolve, por um lado, uma perda definitiva do poder de exigir conferido ao credor, e, por outro, um enriquecimento do devedor, traduzido na supressão dum elemento negativo que onerava o seu património. Daí que a renúncia do credor não possa ser imposta ao titular passivo da relação creditória, antes se exigindo o acordo entre os dois titulares dessa relação. Aliás, o real ou aparente devedor pode ter interesse em afirmar a inexistência da dívida e em obter a declaração judicial desse facto.

III - A lei não exige que o consentimento do devedor seja manifestado por forma expressa, estando, pois, sujeito às regras gerais sobre declarações negociais (cfr. os arts.217º, 218º e 234º, do C.Civil). Por seu turno, a vontade de remitir por parte do credor pode resultar também de uma manifestação tácita de vontade, embora deva ter uma significação inequívoca. Por último, para prova do contrato que serve de base à remissão, não se exige o documento escrito.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.
Nas Varas de Competência Mista, «F, Ld.ª» intentou acção ordinária contra M e G, alegando que, no exercício da sua actividade, em 3/9/02 e em 31/1/03, vendeu ao réu M diverso material, designadamente, armas de caça, no valor total de € 10.762,66.
Mais alega que, em 13/8/02 e em 31/1/03, vendeu ao réu G diverso material, designadamente, armas de caça, no valor total de € 17.405,41.
Alega, ainda, que os réus não pagaram as referidas quantias, apesar das várias insistências da autora.
Conclui, assim, que devem os réus ser condenados a pagar à autora as mencionadas quantias, acrescidas de juros vencidos, no montante de € 1.372,66, relativamente ao réu M, e de € 2.167,88, em relação ao réu G, e, ainda, dos vincendos até definitivo e integral pagamento.
Os réus contestaram, alegando que eram, na altura, juntamente com D, os três únicos sócios da autora, e também de outras duas sociedades, sendo que, todos eles adquiriram material de caça no estabelecimento daquela, mas que, como também contribuíram com suprimentos para a sociedade autora, era seu entendimento contabilizar os créditos da sociedade respeitantes às mercadorias por eles adquiridas e os seus suprimentos, compensando-os contabilisticamente.
Mais alegam que, entretanto, os sócios se desentenderam, tendo, então, feito um acordo global, mediante o qual o sócio D se tornou, em 13/2/03, o único sócio da autora, tendo reconhecido que, com a formalização daquele acordo, não são credores ou devedores, reciprocamente.
Em sede de reconvenção, alegam que a autora não lhes entregou os livretes das referidas armas, o que os tem impedido de as utilizar no exercício da caça.
Concluem, deste modo, pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção, devendo a autora ser condenada a entregar-lhes os livretes das armas adquiridas e a pagar-lhes uma indemnização pelos incómodos e prejuízos que têm tido, a liquidar em execução de sentença.
A autora respondeu, concluindo pela improcedência das reconvenções.
Seguidamente, foi proferido despacho saneador, tendo-se seleccionado a matéria de facto relevante considerada assente e a que passou a constituir a base instrutória da causa.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, após decisão da matéria de facto, proferida sentença, julgando as reconvenções improcedentes e procedente a acção, tendo os réus sido condenados a pagar à autora as quantias de € 12.135,32 e de € 19.573,29, respectivamente, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, até integral e efectivo pagamento.
Inconformados, os réus interpuseram recursos de apelação daquela sentença.
Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Fundamentos.
2.1. Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
> A autora dedica-se ao comércio de armas e exportação e ao comércio de artigos desportivos, organização de actividades cinegéticas, de pesca desportiva e tiro.
> No exercício dessa actividade, no dia 03/09/2002, a autora vendeu ao réu M o material constante da factura junta a fls.11 e 12, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado, no valor de € 4.059,98.
> Esse material corresponde, no essencial, à venda de diversas rações, cartuchos e aparelhos de pontaria, tudo conforme descriminado nessa factura.
> Para além disso, no dia 31/03/2003, também ao réu M, a autora vendeu o material constante da factura junta a fls. 13 e 14, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado, no montante de € 6.702,68.
> Esse material corresponde, no essencial, à venda quatro armas de caça e dois pedidos de cartuxos, tudo conforme descriminado nessa factura.
> No dia 13/08/2002, a autora forneceu ao réu G a mercadoria constante da factura junta a fls. 13, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado, no montante de € 3.963,47.
> Esse material corresponde, no essencial, à venda de uma arma de caça, uma pistola, um coldre, uma arma e diversas quantidades de ração, tudo conforme descriminado nessa factura.
> Para além disso, no dia 31/01/2003, a autora forneceu ao réu G o a mercadoria constante da factura junta a fls. 16 e 17, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado, no montante de € 13.441,94.
> Essa mercadoria corresponde, no essencial, à venda de cinco armas 5 porções de ração e duas encomendas de cartuchos, tudo conforme descriminado nessa factura.
> A autora constituiu-se com o capital social de € 5.100,00, repartido por três quotas iguais de 1.700,00, pertencentes cada uma delas aos três sócios, o réu G, o réu M e D.
> Os três sócios da autora realizavam ou contribuíam com suprimentos para esta sociedade, como resulta do extracto de conta da autora de 01/01/2003 até 31/12/2003, junto a fls. 44 dos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado.
> Por acordo celebrado a 4 de Fevereiro de 2003 o sócio D prometeu ceder aos ora réus, como veio a ceder, as quotas que detinha no capital social das sociedades "B- I, L.da" e "B- C, L.da" e os réus, por sua vez, prometeram ceder-lhe, como vieram a ceder, as quotas que detinham no capital social da autora.
> Os réus prometeram ainda transmitir ao sócio D , como transmitiram, um apartamento tipo T3, a que atribuíram o valor de € 139.000,00, assim como lhe pagaram a quantia de € 69.831,71.
> No acordo entre eles firmado, ficou a constar que:
o Os segundos outorgantes (os ora réus), procederam nesta data à entrega ao primeiro outorgante (D ) de um inventário das existências da loja da propriedade da sociedade "F, L.da", e "relação de créditos e débitos", que vai assinada por todos os outorgantes e anexa a este contrato, e comprometem-se a entregar ao primeiro outorgante iguais documentos actualizados por ocasião da celebração das escrituras, sem embargo de c primeiro outorgante ter a faculdade de conferir o movimento comercial da mesma loja (cláusula 8a).
o O primeiro e os segundos outorgantes reconhecem que, com a formalização do agora acordado, não são entre si nem em relação às identificadas sociedades, credores ou devedores, reciprocamente (cláusula 10a),
o Mais reconhecem o primeiro e os segundos outorgantes serem todos responsáveis pelas decisões e pelas contabilidades da referida sociedade, aceitando-as (cláusula 11a).
> As escrituras que formalizaram as aludidas cessões de quotas ocorreram a 13 de Fevereiro de 2003.
> Para que dúvidas não subsistissem em relação ao acordado no contrato promessa, todos os seus outorgantes, na mesma data, (13/02/2003), nele subscreveram a seguinte declaração "Nesta data, os outorgantes dão por cumpridas as cláusulas uma a dez e quinze deste contrato".
2.2. O recorrente M remata as suas alegações com as seguintes conclusões:
l.- Quanto à matéria de direito, respeitante ao pedido da A. (ora recorrida), provou-se que as facturas em causa são anteriores ao contrato-promessa, de 4 de Fevereiro de 2003, e cessão de quotas, de 13/02/2003, tendo sido acordado, (o que documentalmente se acha assente), isto é, que, com base contratual, foram remidas as invocadas dívidas.
2.- Não se entendendo assim na sentença esta violou o
disposto no Art.863º, do C. Civil.
3.- Consequentemente, acertado seria absolver-se o R. M (assim como o R. G) do pedido formulado pela A..
4.- No tocante à matéria de facto, respeitante ao pedido reconvencional, a prova documental dos autos, (docs. de fls.86 a 97), com as informações prestadas pela P.S.P., (docs. de fls. 253 a 258), assim como da prova testemunhal referida, como ainda do que decorre da própria lei, designadamente do Art.º 38º. §5, do D.L. Nº37.313, de 21 de Fevereiro de 1949, é notório o incumprimento do A. no procedimento de entrega dos livretes aos RR., que assim ficaram impedidos de usarem as respectivas armas nas caçadas a que se dedicavam, como seu passatempo, além dos incómodos tidos com a regularização das respectivas situações.
5.- Ou seja, as respostas aos quesitos 17º, 18º, 19º e 21º, tidas por negativas, deviam, em respeito pela prova produzida, serem tidas por afirmativas.
6.- A A. constitui-se, pelo ilícito praticado, na responsabilidade prevista no Art.483º, do C.Civil.
7.- Consequentemente, devia julgar-se improcedente, por não provado o pedido da A. e procedentes, por provados, os pedidos dos RR., revogando-se a douta sentença e decidindo-se em conformidade com o exposto.
2.3. O recorrente G remata as suas alegações com as seguintes conclusões:
Quanto à matéria de direito:
A) Os fornecimentos efectuados pela sociedade F, LDA. ao Apelante, titulados pelas facturas dos autos, ocorreram em datas anteriores à celebração do identificado contrato de 04 de Fevereiro de 2003 e das três escrituras de cessões de quotas de 13 de Fevereiro de 2003, data em que foram remidas todas as peticionadas dívidas.
B) Face à existência nos autos de prova documental assente, a douta sentença recorrida, ao condenar o Apelante no pedido, não fez uma correcta interpretação da Lei, violando o disposto no art. 863° do Código Civil e art. 659°, n° 3 do Código do Processo Civil.
C) Devendo, assim, o ora Apelante G ser absolvido do petitório.
Quanto à matéria de facto:
D) Os factos alegados pelo Apelante como fundamento da sua reconvenção ficaram provados, quer por prova documental - Ofício da Policia de Segurança Pública de fls. 312 dos autos -, quer por prova testemunhal - inquirição supra referenciada das testemunhas J, S e S -, consequentemente provada ficou também a matéria constante dos quesitos 34° a 38° e o incumprimento voluntário da Apelada F, LDA., ao não proceder à entrega aos livretes das respectivas armas, impedindo assim a utilização das mesmas aos seus proprietários, violando o disposto no art. 38°, § 5° do Decreto-Lei n° 37313, de 21 de Fevereiro de 1949.
E) Ao persistir naquele comportamento ilegítimo, violando o direito do Apelante, a Apelada constitui-se na responsabilidade de indemnizá-lo - art. 483°, n0 l do Código Civil.
F) Em consequência, a douta sentença recorrida deveria ter condenado a sociedade Apelada no pedido reconvencional formulado pelo Apelante.
Deve, portanto, ser concedido provimento ao presente recurso nos termos supra formulados, revogando-se a douta sentença em apreciação, com as inerentes consequências.
2.4. A recorrida contra-alegou, concluindo que deve ser negado provimento aos recursos.
2.5. Em ambos os recursos vêm colocadas as seguintes questões:
1ª – saber se a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, no sentido pretendido pelos recorrentes;
2ª – saber se, face à matéria de facto apurada, é de concluir que a autora remitiu as dívidas invocadas na petição inicial.
2.5.1. Dir-se-á, antes do mais, que o recorrente não invoca, nas suas alegações de recurso, qualquer das als.a), b) ou c), do nº1, do art.712º, do C.P.C., onde se encontram previstos os casos em que a decisão de facto pode ser modificada pela Relação. Todavia, a situação em análise apenas poderá ser enquadrada no âmbito da 2ª parte, da al.a), ou na al.b), já que, o recorrente não apresentou documento novo superveniente (cfr. a al.c)) e do processo não constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão (cfr. a 1ª parte, da al.a)). É certo que ocorreu gravação dos depoimentos prestados, mas isso significa, precisamente, que tais depoimentos não estão materialmente incorporados nos autos. Daí que, na 2ª parte, daquela al.a), se preveja expressamente essa situação, permitindo-se a alteração da decisão de facto, no caso de gravação, desde que tenha sido impugnada, nos termos do art.690º-A, a decisão proferida com base nesses depoimentos.
Por outro lado, tem sido entendimento dos nossos Tribunais Superiores que a reapreciação da matéria de facto pela Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo art.712º, do C.P.C., não pode confundir-se com um novo julgamento, antes se destinando, essencialmente, à sanação de manifestos erros de julgamento e de falhas, mais ou menos evidentes, na apreciação da prova (cfr., entre outros, o Acórdão do STJ, de 14/3/06, C.J., Ano XIV, tomo I, 130). É também o que resulta do preâmbulo do citado DL nº39/95, onde se refere que «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento ...». E, ainda, que « ... o objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)».
No caso dos autos, tendo os recorrentes especificado os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo e da gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, cumpre reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações dos recorrentes e da recorrida (cfr. o art.712º, nº2), bem como, o entendimento atrás expresso.
Refira-se, no entanto, e desde já, que estamos no domínio da convicção probatória, sendo que, o art.396º, do C.Civil, consagra o princípio da liberdade de apreciação da força probatória dos depoimentos das testemunhas. O que significa que o tribunal julga segundo a sua consciência ou segundo a convicção que formou, através da influência que no seu espírito exerceram as provas produzidas, avaliadas segundo o seu juízo e a sua experiência (cfr. o art.655º).
No que respeita ao recurso interposto pelo réu M, refere-se aí que as respostas aos quesitos 17º, 18º, 19º e 21º, tidas por negativas, deviam, em respeito pela prova produzida, ser tidas por afirmativas.
São as seguintes as interrogações colocadas naqueles pontos da matéria de facto:
- Ponto 17º (art.26º da contestação do réu M): «A presente acção tem como único objectivo obstacularizar, impedir ou retardar a entrega ao A. dos livretes das armas, com a menção da sua titularidade a favor do ora R. M?»;
- Ponto 18º (art.27º da mesma contestação): «Assim, no que respeita às armas B M e F, com livretes emitidos em nome da A. ou ao que se julga já em nome do R. M, a ora A. não os entregou ao R., seu titular?»;
- Ponto 19º (art.28º da mesma contestação): «Quanto às armas usadas, da marca BS, MM e BB que a A. havia adquirido, respectivamente, a N, a F e l, estava e está a A. legalmente obrigada a providenciar pela actualização dos titulares dos respectivos livretes, primeiro para a A. e, depois, para o R. M?»;
- Ponto 21º (art.31º da mesma contestação): «O qual comportamento da A., em todo o caso, tem impedido o R. de as utilizar e servir-se delas nas ocasiões em que se dedica à caça, pois ainda não tem em seu poder os respectivos livretes?».
No despacho de fundamentação referiu-se que:
«O Tribunal fundamentou a sua convicção fundamentalmente com recurso à prova testemunhal, conjugada com a documentação junta os autos.
No que respeita à matéria de facto constante dos art.° 1° a 10° o Tribunal considerou-a como provada, face aos testemunhos isentos e convincentes de J e G, ambos vendedores da loja da A., os quais confirmaram as vendas efectuadas aos Réus, suportadas nas facturas juntas aos autos, a fls.ll a 17 e tendo em especial atenção o testemunho de L, contabilista da A., o qual afirmou que na contabilidade da A. estão lançadas as facturas em discussão nos presentes autos e que estas continuam em dívida, de acordo com aquela contabilidade.
No que respeita à restante matéria de facto constante da base instrutória não foi feita prova suficiente e convincente sobre a sua verificação, pelo que, se considerou a mesma como não provada».
Segundo o recorrente, resulta da prova documental dos autos (docs. de fls.86 a 97), das informações prestadas pela PSP (docs. de fls.253 a 258), assim como da prova testemunhal (testemunhas J, S e B), que é notório o incumprimento da autora no procedimento de entrega dos livretes aos réus, que assim ficaram impedidos de usarem as respectivas armas e sofreram incómodos com a regularização das suas situações.
Esta matéria de facto foi alegada pelo réu M em sede de reconvenção, onde formulou o pedido de condenação da autora a entregar-lhe os livretes das armas adquiridas e a pagar-lhe uma indemnização pelos incómodos e prejuízos que tem tido e irá ter, por não poder utilizar as referidas armas, a liquidar em execução de sentença.
Todavia, por um lado, dos aludidos documentos não resulta, só por si, que os livretes em questão lhe não tenham sido entregues, já que daqueles apenas se inferem as características das armas, os números dos respectivos livretes e as datas em que foram emitidos, bem como, a identificação dos proprietários (cfr. fls.86, 253 e 254, quanto à arma B, fls.87, 88, 253 e 255, quanto à arma F, fls.89, 90, 91, 253 e 256, quanto à arma B, fls.92, 93, 94, 253 e 257, quanto à arma M, e fls.95, 96, 97, 253 v.º e 258, quanto à arma B. Por outro lado, as testemunhas indicadas pelo recorrente, nomeadamente, as testemunhas J e S, que trabalharam por conta da autora, nada referiram de substancial no que respeita à não entrega dos livretes ao recorrente, limitando-se a aludir aos procedimentos que costumam ser adoptados quando se vendem armas novas e em segunda mão. Quanto à testemunha B, nada disse de relevante quanto à questão ora em análise.
Não se detecta, pois, qualquer manifesto erro de julgamento na apreciação da prova produzida, pelo que, as respostas aos pontos 17º, 18º, 19º e 21º da base instrutória não têm que ser alteradas. Aliás, rigorosamente, até se poderia dizer que as respostas aos pontos 17º e 19º se deviam ter por não escritas, por conterem, respectivamente, matéria conclusiva e matéria de direito (cfr. o art.646º, nº4, do C.P.C.).
No que respeita ao recurso interposto pelo réu G, refere-se aí que a matéria constante dos quesitos 34º a 38º devia considerar-se provada, quer por via da prova documental – ofício da PSP de fls.312 – quer por via dos depoimentos das testemunhas J, S e B.
O que consta dos aludidos pontos da matéria de facto é o seguinte:
- Ponto 34º: «Com a presente acção a A. pretende apenas impedir ou retardar a entrega ao réu G dos livretes das cinco armas adquiridas?»;
- Ponto 35º: «A A. ainda não procedeu à entrega dos livretes em nome do réu G respeitante à armas "Z, "P e "F?»;
- Ponto 36º: «A A. não procedeu à entrega dos livretes emitidos em nome dos filhos do réu G respeitantes às armas "B" e "P?»;
- Ponto 37º: «A conduta da A. vem provocando prejuízos ao réu G, obrigando-o a várias deslocações à P.S.P. para esclarecimento da situação?»;
- Ponto 38º: «A conduta da A. tem impedido o réu G de utilizar aquelas armas?».
Quanto ao ofício da PSP, de fls.312, o mesmo é do seguinte teor:
«De harmonia com o solicitado informo Vexa do seguinte:
1 -A arma B calibre marca "P" a que corresponde o livrete n°., encontra-se registada em nome da E F;
2 - A arma n° calibre marca "P" a que corresponde o livrete n°., encontra-se registada em nome da E F;
3 - A arma nº. calibre marca "B"a que corresponde o livrete , encontra-se registada em nome de "A";
4 - A arma n°. calibre marca "F", a que corresponde o livrete n". , encontra-se registada em nome de "G” ;
5 - A arma nº. calibre marca "Z", a que corresponde o livrete n°., encontra-se registada em nome de "G".
Assim informo que apesar de existirem armas em nome de particulares todos os livretes foram remetidos à data à F - E, Ldª, procedimento este então em uso.
Mais no que respeita as armas supracitadas ainda em nome de F B, Ld.ª, é necessário que para registo do novo proprietário, nos sejam remetidas as respectivas notas de venda, bem como pagos os emolumentos devidos.
Em qualquer dos casos é sempre possível a emissão de 2a vias dos livretes se solicitados».
Trata-se, pois, de uma informação prestada pela PSP ao tribunal, onde se faz referência às características das armas a que se reportam os pontos 35º e 36º da base instrutória, aos números dos respectivos livretes e à identificação das pessoas em nome de quem se encontram registadas. Isto é, do teor dessa informação não se pode, sem mais, retirar a ilação de que a autora não procedeu à entrega dos livretes das referidas armas.
Quanto à prova testemunhal invocada, dir-se-á o mesmo que já se referiu a propósito de idêntica prova indicada pelo recorrente M. são depoimentos que não esclarecem o que se passou em concreto com os recorrentes, relativamente aos livretes das armas que adquiriram à autora, pelo que, não são susceptíveis de contribuir para a formação de uma convicção no sentido pretendido por aqueles. Note-se que os ora recorrentes, quando adquiriram as armas à autora, ainda eram sócios desta, pelo que, muito facilmente teriam acesso à documentação necessária à legalização e utilização dessas mesmas armas.
O que vale por dizer que, neste recurso, também não se detecta qualquer falha na apreciação da prova que justifique a pretendida alteração das respostas aos pontos 34º a 38º da base instrutória. O que significa que os concretos meios probatórios constantes do processo e da gravação nele realizada, não impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Dir-se-á, por último, que os elementos fornecidos pelo processo não impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, como seria o caso de o tribunal de 1ª instância ter desprezado a força probatória de documento que fizesse prova plena de determinado facto e na sentença se tivesse admitido facto oposto, caso em que incumbiria à Relação fazer prevalecer a força probatória do documento (cfr. o art.712º, nº1, al.b)).
Haverá, assim, que concluir que, no caso, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto não pode ser alterada pela Relação, nos termos do art.712º, nº1, do C.P.C., por não se verificar qualquer dos requisitos a que aludem as als.a), b) e c), daquele nº1.
2.5.2. Defendem os recorrentes, em sede de alegações de recurso, que os fornecimentos que lhes foram efectuados pela autora, titulados pelas facturas juntas aos autos, ocorreram em datas anteriores à celebração do contrato-promessa de 4/2/03 e à cessão de quotas de 13/2/03, pelo que, atento o acordo global que conduziu àqueles negócios, há que entender que foram remidas as peticionadas dívidas.
Refira-se, no entanto, que os ora recorrentes, quando apresentaram as suas contestações, não invocaram expressamente a remissão das dívidas, não obstante terem aludido ao referido acordo global e aos mencionados negócios, antes tendo alegado que era entendimento dos três sócios contabilizar os créditos da sociedade respeitantes às mercadorias por eles adquiridas e também os seus suprimentos ou créditos em relação à sociedade, compensando-os contabilisticamente (cfr. os arts.26º e 15º das contestações do réu M e do réu G, respectivamente). Só que, tendo esse facto sido levado ao ponto 17º da base instrutória, foi considerado não provado. Isto é, não lograram os recorrentes demonstrar terem convencionado compensar os aludidos créditos. Que o mesmo é dizer, não fizeram prova da compensação voluntária ou contratual, que está sujeita à disciplina geral dos contratos e não à da compensação a que se refere o art.847º, do C.Civil, a chamada compensação legal (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.II, 2ª ed., pág.119).
De todo o modo, nada impede que ora se alegue a remissão das dívidas, na medida em que se entenda terem sido alegados os respectivos factos integradores dessa causa de extinção das obrigações.
Dir-se-á, antes do mais, que, na verdade, os fornecimentos efectuados pela autora aos réus ocorreram em datas anteriores à celebração, quer do contrato-promessa, quer da cessão de quotas, atrás referidos, já que, na sentença recorrida, ao transcreverem-se os factos considerados provados, no que respeita ao ponto 3º da base instrutória, se escreveu «31/03/2003», quando se terá pretendido escrever «31/01/2003», como consta do art.4º da petição inicial, para onde remete o referido ponto 3º, o qual foi dado como provado. Ou seja, foi cometido um erro de escrita devido a lapso manifesto, nada impedindo que o mesmo seja agora rectificado (cfr. o art.667º, do C.P.C.), pelo que, na sentença de fls.327 e segs., onde se escreveu «31/03/2003», na linha 1, a fls.330, deve considerar-se escrito «31/01/2003».
Nos termos do nº1, do art.863º, do C.Civil, o credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor. A remissão é, pois, um negócio jurídico bilateral, na medida em que a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação é feita com a aquiescência da contraparte (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., pág.135, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol.II, 7ª ed., pág.244). Trata-se de uma causa de extinção das obrigações em que não chega a haver prestação, já que a remissão tem como efeito imediato a perda definitiva do crédito, de um lado, e a liberação do débito, pelo outro. O que significa que a extinção do vínculo obrigacional envolve, por um lado, uma perda definitiva do poder de exigir conferido ao credor, e, por outro, um enriquecimento do devedor, traduzido na supressão dum elemento negativo que onerava o seu património. Daí que a renúncia do credor não possa ser imposta ao titular passivo da relação creditória, antes se exigindo o acordo entre os dois titulares dessa relação. Aliás, o real ou aparente devedor pode ter interesse em afirmar a inexistência da dívida e em obter a declaração judicial desse facto.
A lei não exige que o consentimento do devedor seja manifestado por forma expressa, estando, pois, sujeito às regras gerais sobre declarações negociais (cfr. os arts.217º, 218º e 234º, do C.Civil). Por seu turno, a vontade de remitir por parte do credor pode resultar também de uma manifestação tácita de vontade, embora deva ter uma significação inequívoca. Por último, para prova do contrato que serve de base à remissão, não se exige o documento escrito.
No caso dos autos, entendem os recorrentes que o acordo celebrado a 4/2/03, entre os três sócios M, G e D, pôs termos ao litígio existente entre eles, e implicou, não só mas também, a renúncia ao poder de exigir as prestações pecuniárias em causa. Em tal acordo, o sócio D prometeu ceder aos sócios M e G (ora réus-recorrentes), como veio a ceder, as quotas que detinha no capital social das sociedades «B– I, Ld.ª» e «B– C, Ld.ª», e os réus, por sua vez, prometeram ceder-lhe, como vieram a ceder, as quotas que detinham no capital social da autora. Tais cessões concretizaram-se em 13/2/03, tendo o sócio D ficado como único sócio da autora e os réus como únicos sócios das outras duas sociedades. Além disso, os réus prometeram, ainda, transmitir ao sócio D, como transmitiram, um apartamento tipo T3, a que atribuíram o valor de € 139.000,00, assim como lhe pagaram a quantia de € 69.831,71. Os três outorgantes reconheceram que, com a formalização definitiva do acordado, não são entre si, nem em relação às identificadas sociedades, credores ou devedores, reciprocamente (cfr. a cláusula 10ª). Para que dúvidas não subsistissem em relação ao acordado no contrato-promessa, todos os seus outorgantes, na mesma data em que concretizaram as cessões de quotas – 13/2/03 – subscreveram nele a seguinte declaração «Nesta data, os outorgantes dão por cumpridas as cláusulas uma a dez e quinze deste contrato».
Todos estes factos foram dados como provados e constam das als.D a H da matéria de facto assente. No entanto, na sentença recorrida não se tomou posição quanto a eles, apenas se dizendo que os réus não pagaram à autora o preço devido pelas mercadorias adquiridas, nem na data acordada, nem posteriormente. Só que, além do cumprimento, existem outras causas de extinção das obrigações, reguladas nos arts.837º e segs., do C.Civil, entre as quais se encontra a remissão. Mas será que dos aludidos factos resulta, como pretendem os recorrentes, a renúncia, por parte da autora, ao poder de exigir as prestações pecuniárias em causa?
A nosso ver, a resposta é afirmativa. Na verdade, o que resulta do acordo estabelecido entre os três sócios é que o sócio D, por um lado, e os sócios M e G, por outro, pretenderam pôr termo às relações societárias que mantinham nas três sociedades, ficando o primeiro como único sócio da sociedade autora e os dois últimos como únicos sócios das outras duas sociedades. Para o efeito, houve que proceder a acertos de contas, que foram expressamente previstos no acordo em questão, onde também ficou consignada a cláusula 10ª, por via da qual os outorgantes reconheceram que, com a efectivação de tais acertos, deixavam de ser credores ou devedores, quer entre si, quer em relação às sociedades, reciprocamente. No fundo, o que todos pretenderam foi pôr fim aos litígios existentes entre eles. De tal modo que, se bem se atentar no acordo que celebraram, constante do documento de fls.45 e segs., facilmente se verifica que o mesmo é bastante abrangente, regulando variadíssimos aspectos, que vão desde a obrigação assumida pelo outorgante D de pagar a dívida, que reconhece existir, ao seu irmão G (cfr. a cláusula 5ª), até à obrigação, igualmente assumida pelo mesmo outorgante D, de desistir da providência cautelar que requereu no 1º Juízo Cível da Comarca (cfr. a cláusula 12ª), e passando pelo compromisso de todos eles desistirem das queixas que tenham apresentado, passíveis de desistência ou perdão (cfr. a cláusula 13ª). O que tudo inculca a ideia de que pretenderam resolver em definitivo os problemas que os dividiam e que eram fonte de conflitos vários.
Por outro lado, como consta da cláusula 8ª, os outorgantes G e M procederam à entrega ao outorgante D de um inventário das existências da loja propriedade da sociedade «F, Ld.ª», bem como, de uma relação de créditos e débitos (cfr. fls.47 e segs.). Na posse desses documentos, desde 4/2/03, bem podia o outorgante D diligenciar no sentido de apurar a existência de eventuais dívidas dos outorgantes M e G, relativas aos preços de mercadorias adquiridas na F. Mas o que é certo é que, em 13/2/03, o 1º e os 2ºs outorgantes deram por cumpridas as cláusulas uma a dez e quinze do contrato. Isto é, reconheceram, agora em definitivo, que não são entre si, nem em relação às sociedades, credores ou devedores, reciprocamente. Reconhecimento este que, segundo cremos, não pode deixar de abranger as dívidas ora reclamadas na presente acção, apesar de da relação de débitos entregue ao outorgante D não constarem os nomes, nem as dívidas, dos outorgantes M e G. É que as mesmas foram contraídas em datas anteriores ao acordo global celebrado e nada impedia, ou, pelo menos, nada se provou que impedisse o outorgante D, antes de subscrever a declaração datada de 13/2/03, de averiguar se os demais outorgantes eram ou não devedores de quaisquer quantias à F, designadamente, através da contabilidade desta. Logo, tendo subscrito aquela declaração, não pode agora o outorgante D invocar eventual desconhecimento da existência daquelas dívidas, facto esse que, aliás, não demonstrou.
É certo que o aludido acordo foi estabelecido entre os três sócios, agindo nessa qualidade e não na qualidade de representantes das sociedades, designadamente, da autora, sendo que, era a esta que competia renunciar ao direito de exigir as prestações aos réus devedores, referidas na petição inicial. De todo o modo, uma vez que a sociedade autora ficou a contar apenas com um único sócio, o outorgante D, parece que nada impedia que a vontade do mesmo fosse suficiente para a sociedade se considerar vinculada.
Assim, apesar de da mencionada cláusula 10ª não constar, expressamente, uma declaração de renúncia de exigir as prestações ora em causa, entendemos que aquela cláusula contem uma manifestação tácita de vontade por parte do credor, a qual tem, a nosso ver, uma significação inequívoca, na medida em que mal se compreenderia que, atenta a intenção que presidiu ao acordo global celebrado, ficassem de fora desse acordo as dívidas ora reclamadas, mantendo-se uma litigiosidade que precisamente se procurou evitar.
Haverá, deste modo, que concluir que da matéria de facto apurada resulta que a autora remitiu as dívidas invocadas na petição inicial.
Lograram, pois, os réus fazer prova do facto extintivo do direito alegado pela autora, como lhes competia (cfr. o art.342º, nº2, do C.Civil), pelo que, havia que decretar a sua absolvição do pedido. Na verdade, o contrato de remissão constitui excepção peremptória que conduz àquela absolvição.
Relativamente às reconvenções que deduziram, a sua pretensão não podia deixar de ser rejeitada, dada a falta de prova dos factos constitutivos do direito que alegaram (cfr. o nº1, do citado art.342º).
Procedem, destarte, parcialmente as conclusões das alegações dos recorrentes.
3 – Decisão.
Pelo exposto, concede-se parcial provimento aos recursos e, em consequência, revoga-se a sentença apelada, na parte em que julgou a acção procedente, que ora se julga totalmente improcedente, absolvendo-se os réus do pedido, e mantém-se aquela sentença, na parte em que absolveu a autora dos pedidos reconvencionais.
Custas da acção pela autora-apelada e das reconvenções pelos réus-apelantes, em ambas as instâncias.
Lisboa, 22 de Setembro de 2009
Roque Nogueira
Abrantes Geraldes
Tomé Gomes