Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PEREIRA RODRIGUES | ||
Descritores: | POSSE INVERSÃO DE TÍTULO USUCAPIÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/09/2008 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | I. A inversão do título da posse, a designada “interversio possessionis”, verifica-se quando se substitui uma posse precária (em nome de outrem) por uma posse em nome próprio, como o caso, de verificação corrente, do arrendatário que, a partir de certo momento, se recusa a pagar a renda, invocando que o prédio lhe passou a pertencer. II. Mas para poder operar a usucapião, torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome se possuía e o detentor há-de tornar directamente conhecida dessa pessoa - quer judicial quer extrajudicialmente - a sua intenção de actuar como titular do direito. III. Se após o falecimento do arrendatário, os herdeiros deste deixaram de pagar a renda, procederam à partilha do prédio e passaram a amanhar o mesmo prédio, a plantar árvores, a cultivar e semear a terra e a colher os respectivos frutos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, de forma contínua até ao presente e com a convicção de serem donos do prédio em discussão, tais factos, fornecem clara indicação da existência do “animus possidendi” por parte daqueles, ou seja, da intenção de terem a posse do prédio, agindo como verdadeiros proprietários do mesmo, tanto mais verificando-se a situação há longos anos. IV. Assim, tendo a posse dos autores iniciado em 27/07/1983 e continuando, ininterruptamente, até à data da entrada em juízo da acção (13/03/2003), aqueles eram possuidores há mais de 19 anos, de forma pública, contínua, pacífica e de boa fé, pelo que estão reunidos todos os pressupostos que conduzem à aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa por usucapião. V. E o direito dos autores subsiste, apesar de a ré ter outorgado escritura de justificação, a invocar o direito à propriedade do prédio, se se desinteressou não só da posse efectiva do bem, como da sua utilidade económica, concedendo aos autores continuar a usufruí-lo como até então, deixando o tempo passar e o prazo produzir efeitos. VI. Com efeito, a base de toda a nossa ordem imobiliária assenta, não no registo, mas na usucapião, que em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais, valendo inteiramente por si, de modo que havendo um conflito entre direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio, valerão as regras substantivas. (PR). | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA: I. OBJECTO DO RECURSO. No Tribunal Judicial da Comarca de Rio Maior, A e marido e B e mulher intentaram a presente acção, sob a forma de processo comum ordinário, contra a CÂMARA MUNICIPAL, formulando o seguinte pedido: a) Declarar-se por sentença que os autores adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio rústico composto de terra de semeadura com trinta tanchas, sito no lugar de Carrascal, Asseiceira, inscrito na matriz sob o artigo …, omisso na Conservatória do Registo Predial; b) Ser a ré condenada a reconhecer o direito de propriedade que aos autores assiste e em consequência, a não turbar seja de que forma for, a propriedade e posse dos autores sobre o mesmo prédio; c) Ser considerada nula e sem nenhum efeito a escritura de aquisição - por usucapião - a favor da ré, do referido prédio; d) Ser ordenado o cancelamento de todos os registos em vigor que incidem sobre o prédio, designadamente o registo de aquisição a favor da ré. Alegaram em síntese que os pais da primeira autora e do segundo autor entraram na posse do dito prédio antes do ano de 1950, considerando-se donos e legítimos possuidores desde então, e por todos assim foram considerados, plantando, cultivando, semeando e amanhando a terra, à vista de toda a gente, sem interrupção e sem oposição de ninguém, convencidos de que exerciam um direito próprio. Mais alegaram que, por escritura de partilha dos bens, por óbito de Francisco o referido prédio foi adjudicado aos autores na proporção de 3/16, e adjudicado à viúva 5/8, que por sua vez doou 5/16 à autora A e 5/16 ao autor B. Ficando os autores únicos proprietários do prédio, continuando a colher frutos, cultivar e amanhar a terra, à vista de toda a gente, continuamente, sem oposição de quem quer que fosse, como seus proprietários e no convencimento de que exerciam um direito próprio, tendo assim os autores por si, e, antes deles, seus pais, amanhado, zelado e cuidado do prédio mais de 50 anos. Alegaram igualmente que a ré outorgou escritura de justificação de direitos sobre o prédio e procedeu ao respectivo registo na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior, sendo que tal aquisição registada a favor da ré foi feita quando o prédio ainda pertencia aos autores que sobre ele exerciam a posse, situação que se mantém até hoje. A ré foi regularmente citada, tendo apresentado contestação/reconvenção, onde se defendeu por excepção, alegando que o procedimento adequado para a impugnação do direito justificado era o mecanismo do artigo 101.° do Código do Notariado. Alegou ainda a ré que o prédio em questão se encontra-se inscrito a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior, sob o n.° …, pela inscrição G-1, aquisição feita através de escritura de justificação de direitos celebrada em 27 de Maio de 1993, pelo Notário Privativo da Câmara Municipal. Alegou também que, por escritura de arrendamento e na sequência de deliberação camarária, o prédio foi dado de arrendamento a Francisco, em 28/06/1949, e que o mesmo integra o património imobiliário municipal, detendo a ré a posse sobre o prédio de boa fé, com conhecimento de toda a gente, sem interrupção e oposição de quem quer que fosse. Em reconvenção pediu que a escritura de partilha e doação outorgada pelos autores fosse declarada parcialmente nula quanto ao prédio em questão, e que fossem os autores condenados a entregar o prédio livre e desocupado à ré. Os autores apresentaram réplica, onde em resposta às excepções invocadas, alegaram que o disposto no artigo 101.° do Código do Notariado se aplica à impugnação do direito justificado somente nos casos em que tal ocorre nos 30 dias posteriores à publicação do extracto, o que não aconteceu. Alegaram ainda que o prédio foi dado de arrendamento ao pai dos autores no ano de 1949 pela R., que aquele pagou renda até ao ano de 1977, daí em diante, e porque a ré lho confirmou, passou a ser proprietário, assim agindo, conjuntamente com sua mulher. Além do que a ré nunca praticou actos de posse sobre o prédio, nem se opôs a que os pais dos autores e posteriormente estes, assim o fizessem, nem solicitou o pagamento de rendas. Em contestação ao pedido reconvencional alegaram, em síntese, que o pai dos autores agiu como proprietário desde o ano de 1977 até à data da sua morte, ocorrida no ano de 1982, e que desde essa data assim agiram os seus filhos, ora autores, pelo que procederam à partilha do bem por escritura pública. Ainda que assim não fosse, os autores adquiriram o prédio por usucapião, uma vez que estão na sua posse há mais de 15 anos, de boa fé, pública e pacificamente. Pugnaram assim os autores reconvindos pela improcedência da excepção invocada e pela validade da escritura de partilha e doação. Foi proferido despacho saneador, onde foi julgada a excepção inominada invocada pela ré improcedente por não provada, admitido o pedido reconvencional e onde foram ainda seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória. Teve lugar a audiência de discussão e julgamento. Finda a produção de prova, respondeu-se aos quesitos, resposta esta que não foi objecto de qualquer reclamação. As partes não prescindiram da discussão por escrito do aspecto jurídico da causa, sendo que findo o respectivo prazo nenhuma delas apresentou alegações de direito por escrito. Prosseguindo os autos os seus trâmites, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção procedente e a reconvenção parcialmente procedente. Inconformado com a decisão, veio a R. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES: 1. Do que se pode colher do que é audível da gravação da prova, é que os autores continuaram a amanhar o prédio após a morte do arrendatário; 2. Não fornecem os autos quaisquer elementos quanto ao modo como o fizeram e designadamente se o fizeram a título de titulares de um direito de propriedade sobre o mesmo; 3. Não podia pois, o Tribunal, dar como provada a matéria relativa aos quesitos 17° e 18°, havendo, portanto, erro de julgamento, impondo-se que os mesmos sejam dados como não provados; 4. Por outro lado, não está provado nos autos qualquer comportamento dos AA que permitisse percepcionar uma inversão do título por parte destes; 5. Com efeito, a falta de pagamento das rendas não constitui inversão de título, e não ficou demonstrado qualquer comportamento externo concludente dessa inversão de título, na medida em que os AA continuaram a amanhar o prédio, como antes o fizera o anterior arrendatário; 6. Não constitui inversão de título relevante a outorga de escritura de partilha com inclusão do prédio em causa, na medida em que a mesma não constitui acto eficaz de oposição ao R. porque não praticado na sua presença ou com o seu conhecimento, porque oculto; 7. Pelo contrário, a escritura de justificação outorgada pelo Município, é um acto público de reiteração dos direitos do R. sobre o prédio, a que é conferida publicidade; 8. Ao dar provimento à acção, a douta sentença violou os artigos 1263° al. d) e 1265° do C.C.; 9. Deve ser substituída por outra que, reconhecendo-o, absolva o R. do pedido. Não houve contra-alegação. Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir. As questões a resolver são as de saber: - Se a matéria de facto deve ser alterada; - Se houve, ou não, inversão do título. | II. FUNDAMENTOS DE FACTO. A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos: 1. Encontra-se inscrita em favor da Câmara Municipal … o prédio rústico denominado "Curralada", sito no lugar do .., freguesia e concelho de .., composto de olival e solo subjacente de cultura arvense de olival, com a área de 2.920 m2, que confronta do norte …. (A). 2. Tal aquisição encontra-se registada sob a inscrição AP. 02/940228 (B). 3. A autora A e o autor B são filhos de Francisco e de Alexandrina (C). 4. Francisco faleceu em 29/04/1982 (D). 5. Por morte de Francisco, foi instaurado o processo de imposto sucessório n.º .. que correu termos na Repartição de Finanças … (E). 6. O referido processo integrava a relação de bens do falecido da qual constava o seguinte prédio: - Prédio rústico denominado "Curralada", sito no lugar do Carrascal, …, …, composto de terra de semeadura com trinta tanchas, que confronta do norte … (F). 7. Em 27 de Julho de 1983, no Cartório Notarial de Rio Maior, procedeu-se à escritura de partilha dos bens que ficaram por falecimento de Francisco … (G). 8. Na aludida partilha o prédio identificado em 6) veio a ser adjudicado aos autores A e marido e B na proporção de 3/16 indivisos respectivamente (H). 9. Foi adjudicado à viúva 5/8 indivisos do referido prédio, a qual na mesma escritura doou 5/16 indivisos à filha A e 5/16 indivisos a B (I). 10. Por escritura de justificação de direitos celebrada em 27/05/1993 foi celebrada escritura de justificação de direitos relativa ao prédio rústico identificado em 1), pelo notário privativo da Câmara Municipal … (J). 11. Tal escritura foi objecto de rectificação em 17/09/1993 (L). 12. Na sequência de deliberação camarária, a Câmara Municipal … deu o prédio de arrendamento a Francisco em 28/06/1949, mediante a renda inicial de 60 escudos (M). 13. Em Dezembro dos anos de 1976 e 1977 Francisco pagou renda no valor de 75 escudos (N). 14. O prédio identificado em 6) corresponde ao prédio que se identifica em 1) (1.º). 15. Desde 1949 Francisco e mulher passaram a amanhar o prédio (2.°). 16. Procederam à plantação de árvores (3.°). 17. Cultivaram e semearam a terra (4.°). 18. O que se refere anteriormente foi feito à vista de toda a gente (5.°). 19. Sem oposição de quem quer que seja (6.°). 20. E de forma contínua (8.°). 21. Após o falecimento de Francisco, os autores passaram a amanhar o prédio (10.°). 22. A plantar árvores (11.°). 23. A cultivar e semear a terra (12.°). 24. E a colher os respectivos frutos (13.°). 25. O que se refere anteriormente é feito à vista de toda a gente (15.°). 26. Sem oposição de quem quer que seja (16.°). 27. Com a convicção de serem donos do prédio pelo menos desde a data em que foi realizada a escritura de partilha dos bens referida em 7) (17.°). 28. E de forma contínua até ao presente (18.°). | III. FUNDAMENTOS DE DIREITO. Quanto à alteração da matéria de facto: Alega a Recorrente que do pouco que se consegue colher das gravações dos depoimentos das testemunhas é que os AA continuaram a amanhar o prédio após a morte do arrendatário, mas nada se conseguiu colher acerca do "animus", pois que faziam-no como sucessores do rendeiro, constituindo-se como rendeiros incumpridores, que não pagavam a renda. Acrescentam que, por outro lado, não evidenciam os autos (mais uma vez no que é perceptível na audição das gravações e também na motivação da matéria de facto), que os AA tenham exteriorizado ou demonstrado de forma inequívoca, um comportamento através do qual um qualquer observador (no caso, o Município) pudesse depreender a intenção de apropriação dos AA, ou seja, não ficou objectivamente provado nos autos um "comportamento concludente" dos AA que permitisse ao R. Município percepcionar um eventual "animus sibi habendi" por parte daqueles em relação ao prédio. Concluem, assim, que a decisão recorrida não podia, apenas a partir dos factos dados como provados nos quesitos 10° a 13°, 15° e 16° e da inclusão do prédio na partilha (significativamente foi o único que foi adjudicado em comum), dar como provada a matéria dos quesitos 17° e 18°. Note-se que a matéria que a Recorrente entende que não deve ser considerada provada é a de que tendo os autores, após o falecimento de Francisco, passado a amanhar o prédio, o tivessem feito “com a convicção de serem donos do prédio pelo menos desde a data em que foi realizada a escritura de partilha dos bens referida nos autos e de forma contínua até ao presente”. Ora, como é sabido, a decisão sobre a matéria de facto, pode ser alterada pelo Tribunal da Relação, nos casos excepcionais, previstos no art. 712º do CPC, designadamente de constarem do processo todos os elementos de prova, que serviram de base às respostas, ou de ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados e ter sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, isto é, de o recorrente ter especificado os factos que considera incorrectamente julgados e de ter indicado meios probatórios para o efeito. Assim, em princípio, nada obstaria à reapreciação da matéria em questão. Sucede que a Recorrente se bate pela inexistência de prova da transcrita facticidade, que o tribunal recorrido considerou assente com base no depoimento das testemunhas e da escritura de partilhas, como decorre da respectiva fundamentação. É necessário não olvidar que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (art. 655º do C. P. C.), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido. Acresce que a livre apreciação da prova pressupõe ainda a observância dos princípios da imediação, oralidade e concentração, por dever ter lugar em contacto mais directo possível com as pessoas e coisas que servem de fontes de informação e por a produção dos meios de prova pessoal se dever fazer oralmente e de forma continuada no tempo. Atentos tais princípios tem de se aceitar que o sistema de registo de prova com a gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, apesar da sua utilidade, pode, todavia, revelar-se insuficiente para aferir de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do Juiz perante quem são prestados. Na verdade, estando em causa o pedido de alteração de uma decisão anterior, que foi fundada na livre convicção de quem a proferiu, o que aconteceu com a vantagem indiscutível de ter acompanhado e dirigido a produção de prova, numa relação de imediação que a gravação sonora ou a sua transcrição não transmite, uma tal alteração só deverá ocorrer se houver elementos objectivos que a imponham sem hesitação. Não bastando que a apreciação da prova disponível, ou a que é oferecida para exame, possibilite, ou até sugira, respostas diferentes, como decorre das alíneas b) e c), do n.° 1 do art. 712°, do C.P.Civil, em que apenas se faculta a modificação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância em face da existência de elementos que, por si só, imponham decisão diversa da proferida. No caso vertente em face da fundamentação doutamente aduzida, por recurso ao depoimento das testemunhas e à prova documental, não se vê motivo para contrariar a livre apreciação feita pelo tribunal recorrido, que estava em melhor condição para aferir da veracidade da facticidade dada por assente, ou seja, a de que tendo os autores, após o falecimento de Francisco, passado a amanhar o prédio, o fizeram “com a convicção de serem donos do prédio pelo menos desde a data em que foi realizada a escritura de partilha dos bens referida nos autos e de forma contínua até ao presente”. Aliás, a Apelante limita-se a aduzir uma argumentação com vista a colocar em crise esta facticidade que, com o devido respeito, não parece convencer. Com efeito, a existência do animus possidendi por parte dos AA obtém indicação não negligenciável no facto de aqueles não procederem ao pagamento de qualquer renda e mais ainda de terem incluído o prédio em escritura de partilhas. E o mesmo facto do não pagamento das rendas, facto que a Recorrente reconhece, também não podia deixar de constituir aviso para esta da intenção de os AA agirem como verdadeiros proprietários do prédio, tanto mais verificando-se a situação há longos anos. De resto, sem que a Apelante mostre sequer ter alguma vez reclamado o pagamento das ditas rendas. Acrescendo a estes elementos objectivos a prova testemunhal, que o tribunal recorrido, decidiu valorar no sentido em que decidiu fixar os factos, tudo leva a convencer que a decisão foi acertada, não possuindo, pois, este tribunal elementos que aconselhem qualquer alteração. Deste modo considera-se definitivamente assente a matéria de facto fixada pela 1.ª instância. | Quanto à matéria de direito: Impõe-se antes de mais deixar já claro que as questões essenciais que se colocavam na acção, em face da matéria de facto relevante dada por assente, foi oferecida resposta de forma acertada e categórica na sentença recorrida, que na análise das questões em apreço invocou com rigor a lei aplicável, interpretando-a de acordo com o melhor entendimento da doutrina e da jurisprudência, adrede chamadas à colação, e efectuou uma ponderação judiciosa da facticidade dada por assente, para concluir, convincentemente, nos termos que acima ficaram descritos. Mostrando-se a sentença sindicada correctamente estruturada e ampla e devidamente fundamentada, este Tribunal considera dever seguir a fundamentação doutamente deduzida pelo Mmo juiz recorrido, sem necessidade de reproduzir todos raciocínios ou explanar mais convincentes argumentos, pelo que, nos termos do art. 713º, n.º 5 do C. P. C., se remete, pois, para os fundamentos da decisão impugnada, que, no essencial, se acolhem. Aliás, o Apelante vem produzir uma douta alegação, a apresentar o seu dissentimento em relação à decisão recorrida, batendo-se por uma solução diferente da seguida na sentença, construída sobre uma invocada realidade que não é a que decorre da discussão da causa, e embora sindicando com afinco a bem gizada fundamentação da decisão recorrida não consegue comprovar que a decisão, de facto e de direito, deva ser alterada, sendo que não é pelo facto de se insistir num mesmo idealizado ponto de vista que se tem razão e no caso a razão, salvo o devido respeito, não está pelo seu lado em qualquer das questões colocadas na acção e no recurso. A sentença recorrida vale por si, pois que, repete-se, todas as questões que se colocavam por via da acção foram nela ponderadas e resolvidas da forma que este tribunal de recurso considera correctas, e aliás muito bem tratadas, tornando-se desnecessário reproduzir o que na decisão recorrida se encontra exarado, mas, de forma abreviada e por respeito pela alegação produzida pelo Apelante, que em todo o caso representa algum esforço argumentativo, se anotam as considerações que seguem. Alega, no essencial, o Apelante que a sentença recorrida não podia dar provimento à acção, pela simples razão de que, ainda que provados os quesitos 17° e 18°, não foram alegados e provados factos que consubstanciem uma oposição eficaz, ou comportamento concludente por parte dos AA em relação à Recorrente, pois que essa oposição tem de traduzir-se em "actos positivos inequívocos e praticados na presença ou com o conhecimento daqueles a quem os actos se opõem”. E é necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor através de actos que traduzam o exercício do direito. Alega mais que o que se pode colher dos autos é que o Município em 27/05/1993 fez outorgar escritura de justificação onde se arrogava proprietário, escritura que é publicitada e que revela bem o "repúdio" do Município relativamente a qualquer acto que, ainda que não público pudesse ter sido praticado. Ora, não parece que à Recorrente assista razão, apesar da pertinência da sua alegação. Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse, sendo que neste caso o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título (art. 1290º). Como detentores ou possuidores precários são havidos: os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular e os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem (art. 1253º). Encontram-se nestas condições todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, sobre a mesma não exercem poderes de facto com “animus” de exercer o direito real correspondente, como sucede com o locatário, o depositário e o comodatário. No concernente à inversão do título da posse – a substituição da posse precária por posse em nome próprio - esta pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (art. 1265º). Saliente-se que a inversão do título da posse, a designada “interversio possessionis”, verifica-se quando se substitui uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, ou seja, a uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as suas consequências legais. O caso de verificação mais corrente é, precisamente, o do arrendatário que, a partir de certo momento, se recusa a pagar as rendas, invocando como razão que o prédio lhe passou a pertencer. Para poder operar a usucapião, torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o oponente possuía e o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía - quer judicial quer extrajudicialmente - a sua intenção de actuar como titular do direito[1]. Ora, no caso vertente, está provado que após o falecimento, em 29/04/1982, de Francisco, arrendatário do prédio, foi, por morte deste, instaurado o processo de imposto sucessório n.º … que correu termos na Repartição de Finanças e o referido processo integrava a relação de bens do falecido da qual constava o aludido prédio, que veio a ser partilhado pelos herdeiros em 27 de Julho de 1983, no Cartório Notarial, onde se procedeu à escritura de partilha dos bens que ficaram por falecimento de F. E pelo menos desde a última data - 27 de Julho de 1983 - os autores passaram a amanhar o mesmo prédio, a plantar árvores, a cultivar e semear a terra e a colher os respectivos frutos. O que foi feito à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, de forma contínua até ao presente e com a convicção de serem donos do prédio em discussão. Os factos descritos e ainda o facto de os AA não procederem ao pagamento de qualquer renda, como a Recorrente reconhece, fornecem clara indicação da existência do “animus possidendi” por parte dos AA, ou seja, da intenção de os AA terem a posse do prédio, agindo como verdadeiros proprietários do mesmo, tanto mais verificando-se a situação há longos anos. A posse do prédio com tais características não podia deixar de ser do conhecimento da Recorrente, por ter lugar à vista de toda gente e a Recorrente não poder ignorar que havia deixado de receber as rendas há muito tempo, não havendo sequer prova de os AA terem efectuado qualquer pagamento, pois que o último pagamento de que há testemunho remonta a Dezembro do ano de 1977 e foi ainda efectuado pelo primitivo arrendatário F, que pagou então 75 escudos. Daí quer se esteja de acordo com a conclusão tirada na sentença do seguinte modo: “Por todo o exposto, dúvidas não restam que a posse dos autores sobre o prédio rústico em causa nos autos, ocorre desde 27 de Julho de 1983, é uma posse titulada, pacífica, pública e de boa fé. Assim, quanto ao lapso temporal que a lei exige para a usucapião, aplica-se ao caso o previsto no já referido artigo 1296.° do Código Civil, ou seja, a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio só poderá dar-se ao fim de quinze anos. Tendo a posse dos autores se iniciado em 27/07/1983 e continuando, ininterruptamente, até à data da entrada em juízo da presente acção (13/03/2003), aqueles eram possuidores há mais de 19 anos, de forma pública, contínua, pacífica e de boa fé, pelo que estão reunidos todos os pressupostos que conduzem à aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa por usucapião (artigos 1251.°, 1263.°, alínea d), 1287.°, 1296.° e 1316.°, todos do Código Civil). Assim, por força do artigo 1317.°, alínea c) do Código Civil, a aquisição do direito de propriedade deu-se a 27 de Julho de 1983 (reportando-se ao início da posse)”. É certo que resulta também dos factos provados que em 27/05/1993 foi outorgada escritura de justificação de direitos, relativa ao prédio em disputa, pelo notário privativo da Câmara Municipal, encontrando-se registada sob a inscrição AP. 02/940228, em favor desta Câmara Municipal. E no dizer da Recorrente, o que se pode colher dos autos é que o Município ao outorgar escritura de justificação onde se arrogava proprietário, escritura que é publicitada, revela bem o "repúdio" do Município relativamente a qualquer acto que, ainda que não público pudesse ter sido praticado. Sucede, porém, que não obstante a aludida escritura de justificação e o facto levado ao registo, o certo é que os AA continuaram, pacífica e publicamente, na posse efectiva do prédio, sem serem minimamente perturbados no gozo do bem. E, como é sabido, a usucapião tem por suporte uma situação de posse efectiva, traduzida no aproveitamento da coisa na perspectiva da sua utilidade económica. Este conceito era claro na letra do art. 531º do Código de Seabra, ao reportar a figura ao exercício necessário para “o gozo normal e completo daquilo para que, conforme a sua natureza a cousa prestava”. Como bem assinala Menezes Cordeiro, “em termos materiais, a usucapião, assente na excelência duma posse qualificada e com prazos alongados, surge como fonte legitimadora do domínio. O possuidor mostrou merecer ser proprietário. Paralelamente, qualquer outro pretendente veio a colocar-se, pelo seu desinteresse, na posição inversa de mais não merecer a titularidade que, de facto, enjeitou. Em suma: a usucapião realiza a velha aspiração histórico-social de reconhecer o domínio a quem, de facto, trabalhe os bens disponíveis e lhes dê utilidade pessoal e social»[2]. No caso em apreço, a Recorrente, apesar de ter outorgado a aludida escritura de justificação, desinteressou-se não só da posse efectiva do bem, como da sua utilidade económica, concedendo aos AA continuar a usufruí-lo como até então, deixando o tempo passar e o prazo produzir efeitos. A Recorrente pela outorga da escritura citada e inscrição no registo predial do direito declarado passou a beneficiar da presunção prevista no artigo 7.° do Código de Registo Predial. Mas tendo os autores provado nos autos que adquiriram o direito de propriedade por usucapião, tal aquisição faz ilidir a presunção que decorria do registo a favor da Recorrente. Com efeito, a base de toda a nossa ordem imobiliária assenta, não no registo, mas na usucapião, que em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais, valendo inteiramente por si, de modo que havendo um conflito entre direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio, valerão as regras substantivas. O que significa que o registo favorece quem o possui a seu favor, embora funcione limitadamente, porque afinal apenas vale contra quem não tiver registo nem beneficie de usucapião. Nos termos expostos, entende-se que na sentença recorrida se proferiu decisão acertada e para ela se remete no mais que se poderia acrescentar. Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida. | IV. DECISÃO: Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento à apelação e confirma-se a decisão recorrida. Sem Custas dada isenção da Recorrente. Lisboa, 9 de Dezembro de 2008. Fernando Pereira Rodrigues Olindo Santos Geraldes Maria Manuela Gomes (vencida: entendo que houve inversão do título de posse a partir da escritura de justificação e do subseuqente registo na C.R.P., não tendo so AA. logrado fazer prova de factos contrários) ______________________ [1] Vd. Pires de Lima e Antunes Varela, in Cod. Civ. Anotado, vol III, 2.ª de. Pg. 30-31. [2] A. Menezes Cordeiro, in ROA, n.º 53, 1993, pg. 38 |