Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9832/2008-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: LEGITIMIDADE
LITISCONSÓRCIO
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. O autor (ou reconvinte) chamar a intervir na acção determinada pessoa sem a qual o mesmo autor ou o demandado (réu) seja parte ilegítima na demanda.
II. E pode usar desta faculdade em qualquer momento, desde a propositura da acção até ao trigésimo dia posterior ao trânsito do despacho que pôs termo ao processo, julgando alguma das partes ilegítimas por não estar em juízo determinada pessoa, ao lado do autor ou ao lado do réu.

III. Se tal se verificar antes do trânsito do aludido despacho verificar-se-á a regularização da instância com o normal prosseguimento do processo. Mas se ocorrer depois do trânsito do despacho em causa estaremos perante uma renovação da instância que se havia por extinta.

IV. A lei não estabelece uma ordem de chamamento, visto que a sua intenção é que seja chamado quem estiver em falta na lide: seja o praticante dos factos, seja quem assumiu a responsabilidade de indemnizar. E ao chamar-se o faltoso, seja ele quem for, sana-se a ilegitimidade.

(PR).

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.
No Tribunal Judicial da Comarca de Benavente, João intentou acção de condenação, com processo ordinário, contra … Companhia de Seguros S.A., alegando que no dia 10 de Outubro de 2004, pelas 9h 30m, na Companhia das Lezírias, lugar do Infantado do concelho de Benavente, o A. enquanto caçava, conjuntamente com outros caçadores, foi vítima de um acidente de caça, dado que, após um disparo, efectuado pelo seu colega caçador, José, na direcção de um coelho, foi atingido, no olho esquerdo, um projéctil/chumbo, que fez ricochete, dando-se assim o acidente, de que lhe resultaram lesões, com danos, pelos quais pede a condenação da ré, para a qual estava transferida a responsabilidade emergente do acidente.
A ré contestou e prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido despacho saneador-sentença, do seguinte teor:
“A presente acção emerge de um acidente que não de viação, na qual é pedida uma indemnização pela prática de um facto ilícito. Alega-se ainda que o autor dos factos transmitiu a responsabilidade civil decorrente da actividade de caça que estava a exercer e durante a qual praticou o acto, para a R., … Companhia de Seguros.
Desta forma, o A. alega fundamentos de facto decorrentes da responsabilidade civil extracontratual (em relação ao autor dos factos - o lesante) e responsabilidade contratual (em relação à R. Companhia de Seguros, por força do contrato de seguro, que o lesante celebrou com o autor dos factos).
Constitui a ilegitimidade uma excepção dilatória sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal (art.°s 494, al.a e) e 495 do CPC) e a mesma é aferida, quanto ao réu, pela titularidade do interesse em contradizer relevante face à relação controvertida delineada pelo autor (art.s 26º, n°s 1 e 3 do CPC).
Ora interesse em contradizer esta acção tem o lesante e não a Companhia de Seguros. Por outro lado, o autor é um terceiro estranho à relação contratual que se estabeleceu entre o lesante e a Companhia de Seguros.
E só nos casos especialmente previstos na lei é que se pode demandar directamente e a título principal a Companhia de Seguros, i.e., gozando esta de legitimidade passiva -v.g. legitimidade exclusiva da seguradora no caso previsto no art. 29º n° 1, al.a) do DL n° 522/85 de 31/12 e nas acções para cobrança de dívidas hospitalares, nos termos do disposto no art.° 6° do DL 218/99.
Deste modo, deveria a presente acção ser proposta contra o autor dos factos, uma vez que é o mesmo que tem interesse em contradizer, e isto independentemente da companhia de Seguros ter admitido que aceita indemnizar o autor, dado que nessa parte a relação controvertida não lhe diz respeito.
É contra o autor do facto que, antes de mais deverá ser proposta acção, e nunca só contra a Companhia de Seguros, pois a responsabilidade da mesma deriva de um contrato, em relação ao segurado, lesante, que neste caso não é parte na acção. Deste nenhum vínculo contratual ou extracontratual a mesma tem com o autor.
Quando muito a intervenção da Companhia de Seguros será a título acessório, na qualidade de interveniente, a fim de em relação à mesma ser assegurado o caso julgado numa eventual condenação do lesante, possibilitando que este depois possa exercer o direito de regresso sobre a Companhia de Seguros.
Pelo exposto, julgo verificada a excepção de ilegitimidade passiva da R. …Companhia de Seguros, S.A., e em consequência absolvo esta da instância…”
Notificado desta decisão, requereu o Autor o chamamento à intervenção do autor da lesão José e indeferido este chamamento com o fundamento de que a acção deveria ser intentada contar o autor dos factos e de que a intervenção da seguradora é que poderia ser a título acessório, veio o A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
A - Em 10/OUT/2004 o ora agravante foi vítima de um acidente de caça provocado pelo caçador José que transferira para a agravada Companhia de Seguros a sua responsabilidade pelos danos provocados no exercício da caça, através da apólice n.° 505211/80.
B - Para ressarcimento dos danos e prejuízos advenientes daquele acidente de caça o ora agravante interpôs, em 03/OUT/2007, a presente acção de condenação com processo ordinário contra a agravada Companhia de Seguros S.A., conforme p.i. que aqui se dá por integralmente reproduzida.
C - A fls. 31 veio a agravada contestar dizendo que aceitava indemnizar o agravante, mas apenas quanto aos prejuízos efectivamente sofridos, conforme melhor se alcança da douta contestação que aqui se dá por integralmente reproduzida.
D - Após a douta contestação a MMa Juiz a quo entendeu proferir de imediato a sentença onde julgou verificada a excepção de ilegitimidade passiva da R. Companhia de Seguros, S.A., e em consequência absolve-a da instância (art.° 288° n.° 1, ai. e), 493°, n.° 1 e 2, 499°. al, e), todos do C.P.C.
E - Perante tal circunstância, em 26/MAR/2008 a fls 23, o ora agravante, a fim de os autos retomarem a sua tramitação normal, requereu nos termos do art.° 325° do C.P.C., ex vi do art.° 269° do C.P.C, a intervenção provocada do lesante José, conforme se alcança do teor do requerimento que aqui se dá por integralmente reproduzido.
F - Não obstante tal facto, o MM° Juiz a quo indefere a intervenção provocada de José.
G - Deste entendimento discorda o ora agravante, pois que,
H - O n.° 1 do artigo 325° do C.P.C, refere que "Qualquer das partes pode chamar a juízo  o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária."
I - Quanto à oportunidade do chamamento, estipula o n.° 1 do artigo 326° do C.P.C. que "O chamamento para intervenção só pode ser requerido, em articulado da causa ou em requerimento autónomo, até ao momento em que podia deduzir-se a intervenção espontânea em articulado próprio, sem prejuízo do disposto no artigo 269°, no n.° 1 do artigo 329° e no n.° 2 do artigo 869°."
J - Lavrando, por seu turno, o n.° 1 do artigo 269° do C.P.C, que "Até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, pode o autor ou reconvinte chamar essa pessoa a intervir, nos termos dos artigos 325° e seguintes."
L - Acrescentando o n.° 2 daquele mesmo artigo que "Quando a decisão prevista no número anterior tiver posto termo ao processo, o chamamento pode ter lugar nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado; admitido o chamamento, a instância extinta considera-se renovada, recaindo sobre o autor ou reconvinte o encargo do pagamento das custas em que tiver sido condenado. "
M - Assim, o ora agravante após ter sido notificado da sentença, ainda antes de a mesma ter transitado em julgado, veio, a f.ls 63, nos termos do previsto nos artigos 325° e seguintes, em 26 MAR 08, requerer a intervenção provocada de José, autor dos factos com a sua responsabilidade, por acidentes de caça, transferida para a agravada.
N - Tendo, por conseguinte, observado na íntegra o previsto no artigo 269°, do C.P.C., para a modificação subjectiva da instância para intervenção de uma nova parte, bem como o estatuído nos artigos 325° e seguintes do mesmo diploma.
O - Por outro lado refere o douto despacho recorrido que "a acção deveria ser intentada contra o autor dos factos e a intervenção da Companhia de Seguros é que poderia ser a título acessório e não o contrário."
P - E esta seria a "ordem das coisas”. Não se admitindo qualquer outra.
Q - Todavia nos termos do art. 269° n.° 1 do C.P.C. "Até ao transito em julgado" da decisão que julgue ilegítima alguma das partes pode o autor chamar essa pessoa. E nos termos do n° 2 do mesmo preceito " quando a decisão (...) tiver posto termo ao processo o chamamento pode ter lugar nos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado. Sendo esta última situação exactamente a dos autos.
R - Assim por não estar em juízo "determinada pessoa" pode o autor "chamar essa pessoa" a intervir.
S - E reza o art. 325° n.° 1 do C.P.C, que qualquer das partes pode chamar ajuízo o interessado com direito a intervir na causa (...)''
T - Nem um nem o outro dos artigos citados refere que a acção deveria ser interposta contra o praticante dos factos e este, ou o autor, poderão chamar um terceiro para quem foi transmitida a responsabilidade de indemnizar,
U - Nenhuma daquelas prescrições legais estabelece uma ordem de chamamento. Pois que a intenção da lei é que seja chamado quem estiver em falta na lide: seja o praticante dos factos, seja quem assumiu a responsabilidade de indemnizar.
V - E ao chamar-se o faltoso, seja ele quem for, sana-se a ilegitimidade.
X - Daí que quando a lei não fez distinção, na ordem das coisas, não pode o interprete estabelecê-la.
Z - E ao querer estabelecer uma ordem, que não é nem a natural nem a imposta pela lei, a Ma Magistrada a quo violou aqueles dispositivos.
AA - E por aqui também deve o despacho em crise ser revogado.
AB - Razões pelas quais o douto tribunal a quo mal andou quando não admitiu a intervenção provocada requerida pelo ora agravante, violando por isso o disposto nos artigos 269° e 325° do C.P.C, .
AC - E assim sendo, deverá o douto despacho ora posto em crise ser substituído por outro que admita a intervenção provocada de José.
Não houve contra-alegação.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do agravo, cumpre decidir.
A questão a resolver é a de saber se o chamamento à intervenção era de admitir.
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II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
Os factos a tomar em consideração para conhecimento do agravo são os que decorrem do relatório acima inscrito.
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III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
O art. 269º do CPC diz que, até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, pode o autor, ou reconvinte, chamar essa pessoa a intervir, sendo que tal chamamento pode ainda ter lugar até 30 dias após o trânsito em julgado se a decisão tiver posto termo ao processo. E o dito chamamento será processado nos termos dos artigos 325º e seguintes do mesmo CPC.
Reporta-se o normativo em apreço a uma modificação subjectiva da instância, ainda que não substancial, por determinada pessoa não ser substituída por outra, mas por ter de estar acompanhada de outra pessoa, a fim de a primeira poder ter legitimidade para intervir.
A hipótese em presença diz respeito a uma situação de litisconsórcio necessário, pois que apenas nessa situação se pode verificar a ilegitimidade de alguma das partes por em juízo não estar acompanhada de determinada pessoa.
O que o preceito em análise previne é, pois e apenas, o caso de o autor (ou reconvinte) chamar a intervir determinada pessoa sem a qual o mesmo autor ou o demandado (réu) seja parte ilegítima na acção.
Note-se que a lei apenas fixa o limite máximo do tempo até ao qual pode o autor usar da faculdade do art. 269.° - até 30 dias a contar do trânsito em julgado do despacho a pôr termo ao processo.
Deste modo, pode o autor usar desta faculdade desde a propositura da acção, ou seja, durante a fase dos articulados, em qualquer momento até ao trigésimo dia posterior ao trânsito do despacho que pôs termo ao processo, julgando alguma das partes ilegítimas por não estar em juízo determinada pessoa, ao lado do autor ou ao lado do réu.
Se tal se verificar antes do trânsito do aludido despacho verificar-se-á a regularização da instância com o normal prosseguimento do processo. Mas se ocorrer depois do trânsito do despacho em causa estaremos perante uma renovação da instância que se havia extinto. Num caso e no outro no pressuposto da intervenção ter sido admitida.
Para melhor ilustração do que se deixa expendido, veja-se o que a propósito diz Rodrigues Bastos:
“Se durante a fase dos articulados alguma das partes se aperceber de que não está em juízo um interessado com direito a intervir, pode chamá-lo pelo meio que lhe faculta o art. 323.°, n.º 1. Se o não faz, o juiz profere despacho declarando essa falta e absolvendo o réu ou reconvinte da instância. É para essa situação que foi redigido este preceito, que obvia aos inconvenientes daquela absolvição ao permitir ao autor ou reconvinte que provoque aquele chamamento até que o despacho absolutório transite em julgado. É um caso de modificação subjectiva da instância, consentida pela lei por evidente razão de economia processual. Aliás aqui não se trata de modificação que produza o aparecimento de uma nova relação jurídico-processual, justificativa da invocação da exceptio mutati libelli; o que acontece é ter-se verificado que essa relação processual foi irregularmente constituída, irregularidade que não permite ao juiz pronunciar-se sobre a demanda. Quer dizer, a modificação não surge como um acto dispositivo da parte, mas como um remédio para fazer convalescer a instância.
A faculdade conferida por este artigo pode ser exercida até trinta dias após o trânsito do despacho que declarou a ilegitimidade. Há que distinguir: se a intervenção foi requerida antes do trânsito em julgado e o chamamento for admitido, a instância não chega a extinguir-se, como que se reanima; se, porém, o poder reconhecido à parte por este preceito vier a ser exercido nos trinta dias imediatos ao trânsito, a instância, que se extinguiu, renova-se ou ressurge.
A instância renovada não é nova instância; mantêm-se, pois, os efeitos da proposição da acção a que se refere o art. 267°”[1].
Note-se ainda que nos termos do art. 265º/2 do CPC, o juiz deverá providenciar oficiosamente por convidar a parte a proceder à regularização da instância quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da mesma.
No caso vertente entendeu-se no despacho recorrido que se verificava a excepção de ilegitimidade passiva da R. Companhia de Seguros, S.A., por esta não estar em juízo acompanhada do autor da lesão e, em consequência, absolveu-se a mesma da instância.
E nesta parte bem se decidiu. Porém, tendo o autor, ora agravante, após ter sido notificado da sentença, ainda antes de a mesma ter transitado em julgado, requerido a intervenção de José, autor dos factos com a sua responsabilidade, por acidente de caça, transferida para a agravada companhia de seguros, era esta intervenção de admitir ao abrigo do normativo acima objecto de apreciação.
No douto despacho recorrido refere-se que "a acção deveria ser intentada contra o autor dos factos e a intervenção da Companhia de Seguros é que poderia ser a título acessório e não o contrário."
Ora, como bem refere o agravante, a lei não estabelece uma ordem de chamamento, visto que a sua intenção é que seja chamado quem estiver em falta na lide: seja o praticante dos factos, seja quem assumiu a responsabilidade de indemnizar. E ao chamar-se o faltoso, seja ele quem for, sana-se a ilegitimidade.
Sem necessidade de outros considerandos se conclui que o chamamento à intervenção é de admitir, pelo que deverá o douto despacho ora posto em crise ser substituído por outro que admita a intervenção provocada de José.
Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de alterar a decisão recorrida.
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IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento ao agravo e revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra a admitir a intervenção requerida pelo agravante.
Sem Custas.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2008. 
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela Gomes
Olindo Santos Geraldes
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[1] In Notas ao Código do Processo Civil, Vol. II, 3.ª ed. pg. 22.