Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4858/2004-9
Relator: FRANCISCO CARAMELO
Descritores: PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
REVOGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
I - RELATÓRIO


1 - O arguido, (L), foi julgado no 2° Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras – P9 247/01-2PATVD – e aí condenado, por sentença de 16/05/2002, como autor material da prática de um crime de furto qualificado, p.p. pelos ares. 203 n° 1 e 204 n° 2 – e), ambos do C.Penal, na pena de 1 – Um – Ano de prisão, que lhe foi substituída por 380 horas de trabalho a favor da comunidade.
Veio a ser notificado dos termos desta decisão em 29/11/2002.
Tendo iniciado o trabalho na entidade beneficiária ( SCUT de Torres Vedras ) apenas aos sábados, em 27 de Março de 2003, o I.R.S. informou o tribunal da falta de cumprimento daquela regra de conduta imposta.
Em consequência disso, no dia 28 de Maio de 2003 foi ouvido em declarações nos termos do art° 492 n° 2 do C.P.Penal. ( conf. Fls. 14 ). Após a audição do arguido foi solenemente advertido de que " em caso de incumprimento futuro, sem motivo ponderoso que o justifique, será automaticamente revogada a pena de prestação a favor da comunidade, determinando-se a execução da pena de prisão de um ano que lhe foi imposta ".
Pese embora esta solene advertência, em Junho de 2003, o I.R.S. informou de novo o tribunal dando conta da existência de anomalias quanto ao cumprimento daquela medida da pena, já que aquele apenas voltou a cumprir 8 horas de trabalho, tendo atingido até então, 125 horas de um total de 380 horas.
Não obstante a oportunidade que lhe foi dada, o arguido reiterou o comportamento violador da regra de conduta imposta.
Por este facto o digno M°.P9. junto do tribunal " a quo " promoveu, então a revogação da pena aplicada e, em consequência o seu cumprimento em reclusão, no que concerne ao remanescente da mesma, não cumprida. Em 15/01/2004, foi proferido o despacho recorrido, o qual, considerando ter o arguido reiteradamente infringido os deveres decorrentes da prestação de trabalho a favor da comunidade, ordenou ao abrigo do disposto no ar? 59 n° 2 – b) do C.Penal a revogação da pena aplicada, e, deduzindo o tempo de trabalho já cumprido – 125 – horas, ordenou o cumprimento, em reclusão, do remanescente da pena, que quantificou em 8 – oito – meses.
2 - Inconformado, recorreu o arguido, concluindo a sua motivação com as seguintes ( transcritas) conclusões:

- O arguido não se conforma com a revogação da pena de trabalho a favor da comunidade que lhe foi aplicada.
- Para que a mesma seja revogada, o arguido tem de se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado.
O arguido, com efeito, cumpriu de modo irregular a referida pena, mas tinha um motivo para esta sua conduta.
- Estava em causa a sua sobrevivência.
- Com efeito, o arguido, encontrava-se à época desempregado e vivia muitas vezes da boa vontade dos amigos.
- Embora procura-se emprego, não lograva obtê-lo, pelo que, aproveitava todos os -biscates" que lhe iam surgindo, Biscates esses, que eram realizados, na sua maioria ao fim de semana.
- O arguido, não comunicou tal facto ao IRS, coma era seu dever, isto porque, dada a sua idade, considerou, que como ia prestando o trabalho quando podia e pretendia prestá-lo na integra, que não era necessário comunicar continuamente tais ausências ao IRS.
- Cremos, assim, ter havido uma incorrecta aplicação do disposto no artigo 59.° n 1 al. a), sendo nosso entender que o arguido deveria ter sido ouvido.
- O arguido, encontra-se, actualmente, a trabalhar, possuindo condições para organizar a sua vida pessoal.
- O objectivo das penas, é a integração do agente na sociedade e a sua regeneração,
- Cremos, salvo o devido respeito e melhor opinião, que a revogação da medida de trabalho a favor da comunidade e o consequente cumprimento de uma pena de prisão, em nada vem ajudar o arguido, que está, por si, a tentar levar uma vida regrada, longe dos devaneios próprios da juventude,
- Face ao exposto, requer-se, a V. Exa., seja revogado o douto despacho do Tribunal a quo e determine-se a continuação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.

3 - Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 43, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

4 - O Ministério Público respondeu à motivação apresentada sustentando a improcedência do recurso.

5 - Neste Tribunal o Ex.Mo. Procurador-Geral-Adjunto, emitiu parecer no sentido da manutenção do despacho recorrido.

II FUNDAMENTAÇÃO

Importa pois conhecer o objecto do recurso.
A lei penal não define o que deve entender-se por violação grosseira dos deveres, deixando ao critério do seu aplicador a fixação dos seus contornos.( art's. 56 n° 1 – a) e 59 n° 2 – b), ambos do C.Penal. Em consequência, socorrendo-nos do conceito de negligência grosseira, este corresponde à figura da culpa temerária ou esquecimento de deveres.
Assim, ao lado do elemento objectivo da violação do dever, a lei penal toma dependente a concorrência de um elemento subjectivo, traduzido na culpa, enquanto infracção grosseira ou repetida dos deveres impostos na decisão condenatória. Isto é, optou-se por um regime mais exigente que só determina a revogação da pena quando se conclui que as finalidades subjacentes à aplicação daquela não podem, por meio dela, ser atingidas.
Embora a lei não defina o que deva entender-se por violação grosseira dos deveres, deixando ao critério do julgador a fixação dos seus contornos, nem por isso se poderão esquecer os ensinamentos sobre o que constitui negligência grosseira: a culpa temerária; o esquecimento dos deveres gerais de observância; a demissão pelo agente dos mais elementares deveres que não escapam ao comum dos cidadãos; uma inobservância absolutamente incomum- Cuello Callon, Derecho Penal, 1, págs. 450/1; Jescheck, Tratado, II, 783; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1, 457, nota 2 e CJ, 1993, V, 260-0
A violação grosseira de que se fala, há-de ser uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorre não merecendo ser tolerada, indesculpada.
Escreveu-se no Acórdão da Relação de Coimbra, de 13 de Março de 1985, CJ, Ano X, Tomo 11, pág. 72, que a apreciação desta " violação grosseira " deve ser feita de forma criteriosa e cuidadosa.
Também a jurisprudência tem entendido que, a infracção dos deveres impostos não opera automaticamente como causa da revogação da pena, como medida extrema que é, não devendo o tribunal atender ao aspecto meramente formal daquela violação, mas, prevalentemente, ao desejo firme e incontroverso de cumprimento das obrigações.
Só a inconciabilidade do incumprimento da pena deve conduzir à sua revogação.
No caso dos autos temos o elemento objectivo da violação da regra de conduta imposta ao arguido: compelido e advertido solenemente para as consequência do seu incumprimento – continuação da prestação de trabalho a favor da comunidade –o arguido só parcialmente o fez – tendo cumprido 125 horas de um total de 380 horas e tendo em declarações referido que o referido incumprimento se deveu ao facto de ter arranjado emprego. (facto que veio posteriormente a revelar-se não verdadeiro, como reconhece nas motivações apresentadas, onde refere que se encontrava desempregado e fazia uns "biscates" aos fins de semana).
Constituirá essa conduta omissiva, infracção grosseira ao dever imposto?
Vejamos:
Dos termos da sentença resulta que o arguido, beneficiando do regime especial aplicável a jovens adultos, foi condenado na pena especialmente atenuada de 1 ano de prisão, que lhe foi substituída por 380 horas de trabalho a favor da comunidade.
Pese embora o incumprimento parcial da obrigação imposta e a solene advertência para o futuro cumprimento, o arguido voltou a eximir-se a essa obrigação, sem justificação, tanto mais que se encontrava desempregado e podia perfeitamente cumprir o ordenado.
Por outro lado, se atentarmos ao conteúdo do último relatório do I.R.S. verifica-se que o arguido tem mantido um alheamento completo e uma ausência de colaboração para o cumprimento dos deveres impostos. Também, o seu posterior comportamento com cinco inquéritos pendentes no mesmo tribunal, conforme resulta de fls. 54 a 63 e salvaguardando sempre a sua inocência quanto aos factos aí indiciados, não deixa de ser revelador de que o arguido não harmoniza a sua vivência de acordo com as normas societárias impostas.
Ao deixar de cumprir a pena imposta da forma como o fez, ou seja culposamente, e tendo o tribunal cumprido todas as obrigações processuais exigíveis, tendentes a evitar a decidida revogação, tal não foi possível já que o arguido sempre se eximiu ao seu cumprimento.
Outra alternativa, face à indesculpável actuação do arguido, não restaria ao tribunal, senão decidir da forma como o fez.
Em consequência, entendemos que não assiste a mínima razão ao recorrente.

DECISÃO:
1 -Por todo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso.

2- Custas a cargo do recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC's com 1/3 de procuradoria e legal acréscimo.

Lisboa, 4/11/04

Francisco Caramelo
Fernando Estrela
Goes Pinheiro