Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ILÍDIO SACARRÃO MARTINS | ||
Descritores: | PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS RESOLUÇÃO DO CONTRATO DENÚNCIA DE CONTRATO JUSTA CAUSA CLÁUSULA PENAL MATÉRIA DE FACTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/08/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ALTERADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | I - Para que a resolução do contrato de prestação de serviços por parte da autora seja feita com justa causa, torna-se necessário alegar e provar factos que consubstanciem suficientemente um comportamento grave por parte da ré e que ponham em crise a continuidade do contrato. II - A denúncia de um contrato traduz uma declaração de vontade unilateral receptícia de um dos contraentes no sentido de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou celebrado por tempo indeterminado. III- A carta enviada pela autora à ré em 21 de Maio de 2007, corresponde, não ao perfil jurídico-negocial da figura da denúncia, mas sim da resolução, contendo uma declaração de vontade motivada por incumprimento ou alteração anormal da base negocial que atingiu o equilíbrio das prestações. IV - Ora, tendo as partes fixado uma cláusula penal para a denúncia, não podemos concluir na aplicação da mesma pena para a resolução infundada. (Sumário do Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO M- intentou sumária contra F Ldª, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe, a título de serviços por esta prestados e não pagos, a quantia de € 15.720,30, acrescida de juros de mora, à taxa legal, no montante de € 381,62, bem como dos juros vincendos, à taxa legal, até integral pagamento. Em síntese, alegou que, no âmbito de um contrato de prestação de serviços celebrado com a ré, em regime de exclusividade, prestou vários serviços à ré como profissional de manequim, cujos honorários esta lhe deixou de pagar, o que levou a autora a fazer cessar o contrato por carta registada com aviso de recepção, invocando justa causa. Contestou a ré, pugnando pela absolvição do pedido, e deduziu ainda reconvenção, pedindo a condenação da autora no pagamento da quantia de € 13.058,90, acrescida de juros à taxa legal, desde a data do vencimento até integral pagamento. Alegou, em suma, que se deve operar um encontro de contas, com a liquidação por parte da autora à ré da indemnização devida pela cessação do contrato de prestação de serviços sem aviso prévio, no montante referido, em conformidade com o estipulado na cláusula sétima do mesmo contrato, assumindo a ré que a autora detém um saldo credor no montante de € 14 220,30, que havia sido colocado à disposição da própria autora. A autora rescindiu o contrato, mas sem justa causa. A autora respondeu, pugnando pela improcedência da reconvenção deduzida, por entender que resolveu o contrato com justa causa. Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e a reconvenção totalmente procedente, por totalmente provada, condenando a ré a pagar à autora, a título de serviços por esta prestados e não pagos, a quantia de € 14 220,30, absolvendo-a do mais peticionado. Mais condenou a autora reconvinda a pagar à ré reconvinte a quantia de € 13 058,90, por aplicação da cláusula (penal) sétima do contrato junto com a petição inicial. Operada a compensação legal dos mencionados créditos, ao abrigo do disposto nos artigos 847º e seguintes do Código Civil, condenou a ré/reconvinte a pagar à autora/reconvinda o resultado final de € 1.161,40, acrescido de juros de mora calculados à taxa anual de 4 %, desde 30.05.2007 até integral pagamento. Julgou ainda improcedente a excepção peremptória da resolução do dito contrato com fundamento em justa causa, deduzida pela reconvinda. Não se conformando com a douta sentença, dela recorreu a autora, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES: 1ª - Da prova produzida, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo não pode resultar que a demonstrada falta de pontualidade no pagamento dos honorários por parte da apelada seja imputável à apelante, que sempre se disponibilizou para os receber. 2ª – O julgamento da matéria de facto a esse propósito, designadamente as respostas dadas aos pontos 3º, 8º e 18º da base instrutória assentou, essencialmente em ilações retiradas da produção de prova testemunhal e em inscrições manuscritas numa agenda da apelada, referente a alegadas ausências da apelante. 3ª – Do confronto do depoimento da testemunha G--- (gravação 9.16 a 46.16), onde se funda o julgamento da matéria de facto, com o depoimento da testemunha C (5.08 a 26.08), evidenciado na acareação requerida (1.00 a 14.33), decorre o erro de julgamento nas respostas dadas aos pontos 3º, 8º e 18º da base instrutória. 4ª - Impõe-se a reapreciação dos depoimentos das testemunhas C--- e G--- bem como a reapreciação da acareação realizada, entre ambas, por referência às respostas dadas aos pontos 3º, 8º e 18º da base instrutória, devendo em conformidade dar-se como não provada a factualidade vertida em 8º e como provada a factualidade vertida em 3º e 18º. 5ª – O valor probatório atribuído à agenda da ré para a formação da convicção do tribunal quanto à matéria de facto vertida nos pontos 3º, 8º e 18º da base instrutória, assente numa errada apreciação dos depoimentos produzidos a propósitos da mesma agenda. 6ª – Do depoimento das testemunhas R --- (2.58 a 10.12), P --- (1.28 a 7.30) e G --- (4.25 a 17.53) resulta, no mínimo, que o tribunal não podia valorar a agenda como meio de prova quanto à ausência da autora e muito menos quanto à impossibilidade física para a ré efectuar os pagamentos devidos. 7ª – Ainda que a apelante não se tivesse deslocado aos escritórios da apelada, o pagamento dos honorários poderia ter sido efectuado por transferência bancária, o que comprovadamente sucedeu pelo menos em quatro situações. Salvo o devido respeito, só por erro o tribunal a quo concluiu que a ré não pode efectuar o pagamento da primeira prestação da “S” na data devida, por impossibilidade física da autora. 8ª – Face à prova produzida nos autos, não podia o tribunal concluir que a falta de pontualidade dos honorários se deve à “impossibilidade física” da apelante e que como tal não existia justa causa para a resolução. 9ª – Ainda que assim se não entenda, o que não se concebe nem concede, a ausência de justa causa não permitia a procedência do pedido reconvencional formulado, porquanto a cláusula penal contratualmente estabelecida entre as partes não é aplicável à resolução sem justa causa e como tal, a reconvinda não poderia ser condenada a indemnizar a reconvinte pelo valor fixado. 10ª – Ao contrário do entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, a ausência de justa causa não torna a resolução numa figura inócua. A resolução ainda que sem justa causa é extintiva da relação contratual e constitutiva da obrigação de indemnizar. A ausência de justa causa confere à actuação da parte uma natureza ilícita, cujas consequências se encontram consagradas na lei, designadamente no artº 562º do Código Civil. 11ª – Não tendo as partes fixado uma cláusula penal para a resolução, importa concluir que as mesmas não pretenderam socorrer-se de tal instrumento legal, deixando que a determinação do montante indemnizatório ficasse, então, dependente da alegação e prova dos danos e respectivo nexo causal. 12ª – O tribunal a quo mesmo tendo considerado que não existiu justa causa para a resolução, o que não se concebe nem se concede, deveria ter condenado a apelada ao pagamentos dos honorários em dívida à apelante, i.é, € 14.220,30, por se ter demonstrado que é esta a quantia em dívida. Termina pedindo que seja alterada a matéria de facto e reconhecendo-se a existência de justa causa para a resolução do contrato. Ainda que assim se não entenda, deverá ser julgado improcedente o pedido reconvencional, condenando-se a apelada ao pagamento de honorários em dívida à apelante de € 14.220,30. Não houve contra-alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO A- Fundamentação de facto Mostra-se assente a seguinte matéria de facto: 1º - A autora é manequim profissional e, no exercício da sua profissão, participa em passagens de modelos, desfiles de moda, filmes publicitários ou promocionais, entre outras actividades – (A). 2º - No dia 21 de Fevereiro de 2005, a autora celebrou com a sociedade ré um contrato de prestação de serviços, em regime de exclusividade, para o exercício da sua actividade profissional – (B). 3º - Tal contrato foi celebrado por um ano, renovando-se sucessivamente por períodos iguais, excepto se qualquer das partes o denunciasse mediante envio de carta registada com aviso de recepção, com 90 dias de antecedência relativamente ao termo inicial ou de cada período de renovação (cláusula sexta, nº 2) – (C). 4º - Como prática habitual na área da moda, a ré, após contactada pelos seus clientes para efectuar determinados trabalhos, seleccionava a autora para prestar os seus serviços aos referidos clientes, negociando a ré com os clientes os honorários da autora – (D). 5º - Após os serviços prestados pela autora, os clientes pagavam directamente à ré e, só depois de esta receber dos clientes o pagamento decorrente dos serviços prestados pela autora, é que então procedia ao pagamento dos honorários à autora – (E). 6º -Nestes termos, ficou a ré vinculada a desenvolver todos os esforços no sentido da rápida e eficiente cobrança dos créditos da autora, procedendo ao respectivo pagamento no período de 30 dias após a respectiva cobrança, conforme o estipulado no nº 3 da cláusula quinta do aludido contrato (“Honorários”) – (F). 7º - Em cumprimento do acordado, a autora efectuou um conjunto de trabalhos de acordo com as instruções da ré – (G). 8º - No mês de Setembro de 2006, a autora efectuou um trabalho para a “S”, que esta cliente veio a pagar à ré em duas prestações, a primeira no dia 22 de Dezembro de 2006 e a segunda, no dia 14 de Maio de 2007- (H). 9º - No mês de Abril de 2007, a ré pagou à autora a quantia relativa a essa primeira prestação; até à presente data, a segunda prestação do trabalho efectuado para a “S” não foi paga à autora – (I). 10º - No dia 24 de Fevereiro de 2007, a autora efectuou um trabalho para a empresa “L”, que esta cliente veio a pagar à ré em 26 de Março de 2007; até à presente data, o trabalho efectuado para a “L” não foi pago à autora – (J). 11º - Por carta registada com aviso de recepção, datada de 21 de Maio de 2007, a autora fez cessar o referido contrato de prestação de serviços, com efeitos imediatos, invocando, não só a falta de pagamento pontual dos seus honorários, como a quebra da relação de confiança com a ré – (L). 12º - Na sequência da cessação do contrato, por carta registada com aviso de recepção, datada de 30 de Maio de 2007, a ré reconheceu dever à autora € 14 220,30 (catorze mil, duzentos e vinte euros e trinta cêntimos), decorrente dos trabalhos que esta efectuou - (M). 13º - Autora e ré estipularam, na cláusula sétima e sob a epígrafe “Cláusula Penal”, o seguinte: “A denúncia, em contravenção do disposto no n.º 2 da Cláusula anterior, implica o pagamento, por parte do denunciante, de uma pena equivalente a 50 % do saldo médio recebido pelo MANEQUIM, por força deste Contrato, no último ano” – (N). 14º - No último ano de vigência do referido contrato, a autora prestou serviços por intermédio da ré no montante total de € 26 117,80 – (O). 15º - A ré jamais informou a autora do pagamento efectuado pela empresa “L” – (2º). 16º - A autora manteve-se disponível para realizar os trabalhos agendados até à data da cessação do contrato – (4º). 17º - A ré foi interpelada para o respectivo pagamento, por carta registada com aviso de recepção, datada de 25 de Julho de 2007, tendo-lhe sido concedido o prazo de cinco dias – (5º). 18º - Foram utilizadas fotografias da autora na republicação da capa e artigos da revista “Q” – (6º). 19º - Tal ocorreu em Setembro de 2007 – (7º). 20º -A ré não pôde efectuar o pagamento da primeira prestação da “S” na data devida, por impossibilidade física da autora, que se encontrava no estrangeiro, e pelo facto de esta ter indicado como meio preferencial de pagamento a entrega de cheque em mão à sua pessoa, contra o competente recibo de quitação – (8º). 21º - Em 15 de Março de 2007, momento em que a autora se deslocou às instalações da ré para receber pagamentos já liquidados por clientes, onde se incluía o pagamento da “S”, solicitou que este último lhe fosse pago em momento posterior e só após um telefonema da sua parte a confirmar a data – (9º). 22º - (…) O que teve a ver com problemas fiscais da autora, que seriam resolvidos com a alteração do código de actividade de Manequim para Actriz – (10º). 23º - (…) Razão pela qual a ré aguardou que a autora resolvesse o seu problema e indicasse o momento mais conveniente para efectuar tal pagamento – (11º). 24º - Nas datas de pagamento, 15 e 30 de Maio de 2007, a autora não se apresentou nos escritórios da ré, como era hábito e regra, a fim de receber os pagamentos em falta – (12º). 25º - Quanto ao trabalho para a “L”, apenas não foi pago à autora porque esta, desde 19 de Abril de 2007, deixou de contactar os serviços de contabilidade da ré, como era hábito e regra, a fim de receber esta e outras quantias – (13º). 26º -A produção de efeitos da cessação do contrato estava condicionada à realização dos trabalhos já contratados e agendados – (14º). 27º - A quantia mencionada em M) foi de imediato colocada à disposição da autora – (15º). 28º - O pagamento de honorários à autora foi efectuado, em quatro ocasiões, através de transferência bancária para a conta da autora – (16º). B- Fundamentação de direito Delimitado que está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações da recorrente, podemos concluir que está em causa, no âmbito do recurso, apenas o conhecimento das seguintes questões: 1ª – Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto; 2ª – Verificação de justa causa na resolução do contrato; 3ª – A cláusula penal e a procedência da reconvenção. IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO. A apelante impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto constante dos pontos nºs 3º, 8º e 18º da base instrutória, fundando-se nos depoimentos de C --- e G---. No seu entender, deve dar-se como não provada a factualidade vertida em 8º e como provada a referida em 3º e 18º. O quesito 3º. Este quesito, retirado do contexto dos artigos 32º e 33º da petição inicial, tinha a seguinte redacção: “ Mais do que uma vez a autora contactou a ré para proceder ao pagamento dos aludidos trabalhos, alegando a ré o não recebimento destes”? A matéria constante do quesito obteve resposta negativa. E, para justificar esta reposta, o tribunal baseou-se, além do mais, no depoimento de C --, referindo que o mesmo “ entroncou o seu depoimento, essencialmente, nos contactos mantidos com a autora e no que esta lhe disse, no âmbito de uma relação de amizade. Pese embora se tratasse de uma pessoa ligada à legal representante da ré, como assistente até Junho de 2007, o certo é que … também não deixou de afirmar que os pagamentos não estavam na área da sua função profissional e não explicou com clareza o motivo pelo qual a ré recusaria os pagamentos à autora”. O quesito 8º. Pretende a apelante que este quesito seja considerado como não provado. Este quesito, que reproduz os artigos 14º e 15º da contestação, tinha a seguinte redacção: “A ré não pôde efectuar o pagamento da primeira prestação da “S” na data devida, por impossibilidade física da autora, que se encontrava no estrangeiro, e pelo facto de esta só ter indicado como meio de pagamento a entrega de cheque em mão à sua pessoa, contra o competente recibo de quitação”? O tribunal respondeu nos seguintes termos: “ Provado apenas que a ré não pôde efectuar o pagamento da primeira prestação da “S” na data devida, por impossibilidade física da autora, que se encontrava no estrangeiro, e pelo facto de esta ter indicado como meio preferencial de pagamento a entrega de cheque em mão à sua pessoa, contra o competente recibo de quitação”. A resposta restritiva do artigo 8º da base instrutória mostra-se abundantemente fundamentada conforme melhor se vê de fls. 271, decorrendo, essencialmente, dos depoimentos das testemunhas da ré P ---, G ---e GV--- e dos documentos certificados de fls 190 a 227 (cópias certificadas da agenda da ré). O quesito 18º. Este quesito, retirado do artigo 14º da resposta à contestação, foi considerado como “não provado” e tinha a seguinte redacção: “ E contactou a ré nesse dia 13 para que esta procedesse ao pagamento dos honorários em falta”? A matéria constante do quesito obteve resposta negativa. E, para justificar esta reposta, o tribunal baseou-se, além do mais, no “ modo algo perfunctório com que as testemunhas da autora se referiram a tal matéria, não sabendo concretizar, ao certo, as datas precisas em que a autora, supostamente, teria contactado a agência da ré para que procedesse ao pagamentos dos honorários. A realidade é que as aludidas cópias certificadas da agenda vêm sustentar que a autora esteve fora de Portugal de 12 de Janeiro a 15 de Fevereiro de 2007, nos termos sobreditos, pelo que não se vislumbra que, no dia 13 de Janeiro de 2007, aquela tivesse entrado em contacto com a ré ou tivesse permanecido em Portugal durante quatro dias consecutivos”. Preliminarmente, importa referir que o juiz não é uma “mera caixa receptora” de tudo o que a testemunha diz ou não diz ou de tudo o que resulta de um documento. A sua apreciação fundar-se-á numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, da experiência e dos conhecimentos científicos, enformada pela convicção pessoal. Por isso, só em casos excepcionais, ante uma valoração da prova feita incorrecta e objectivamente, ao tribunal de recurso é possível contrariar a convicção alcançada pelo tribunal “a quo”, pois que é aí, no contacto directo e imediato com as provas, que o verdadeiro julgamento da matéria de facto ainda continua a ser feito. Além do explanado, sempre se impõe acrescentar o seguinte, designadamente no que tange à maior ou menor credibilidade que o tribunal deu ou deveria ter dado a esta ou àquela testemunha e à convicção com que ficou: A apreciação da prova na Relação envolve "risco de valoração" de grau mais "elevado" que na 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade. Quando o juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe: em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos. Conforme ensina, a propósito da imediação, o Prof. Antunes Varela[1]: "Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar". No domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas – artº 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto – artº 655º nº1 - sem embargo, naturalmente, do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida – artº 653º nº 2 do CPC. Portanto, é nosso entendimento que a Relação só deverá alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, reapreciada a mesma, for evidente a grosseira apreciação e valoração que foi feita na instância recorrida, isto pelo facto de o julgador da 1ª instância dispor de um universo de elementos (não apreensíveis na mera gravação áudio dos depoimentos ou na transcrição dos depoimentos) que são decisivos para o processo íntimo de formação da convicção, que se não satisfaz com a insípida audição daquela gravação, não tendo a 2ª instância possibilidade de intuir ou de apreciar para lá daquilo que se mostra gravado, o que é deveras redutor no processo de formação da convicção. Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional de 3.10.2001[2]"A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e factores que não são racionalmente demonstráveis", de tal modo que a função do Tribunal da 2ª Instância deverá circunscrever-se a "apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1º grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos". Dito de outra forma, o tribunal de 2ª instância não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Ora, lendo a decisão da 1ª instância sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto (fls. 270 a 274), verificamos que a mesma, quase de forma exaustiva, analisou criticamente as provas, especificou, de forma racional, coerente e lógica e com respeito pela prova testemunhal -- que, igualmente, analisámos atentamente - e documental produzida, os fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção. Designadamente, aí se explica a razão porque se entendeu dar as respostas aos quesitos que a apelante põe em crise. A apelante, por sua iniciativa, procedeu à transcrição, entre outros, dos depoimentos das testemunhas C ---e G ---, assim como a acareação entre ambas, em conformidade com o disposto no artigo 685º-B nº 2 do Código de Processo Civil, aditado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto. Assim, apesar das dúvidas supra salientadas, não cremos que, mesmo até só das palavras nuas das testemunhas (que, repete-se, ponderámos com atenção), houvesse elementos bastantes para alterar as aludidas respostas. Duma coisa não temos dúvidas: não vislumbramos que tenha havido grosseira apreciação e valoração da prova na instância recorrida. Pelo contrário, a prova foi apreciada com o cuidado e atenção devidos, dando o tribunal credibilidade ao que merecia e refutando o que considerou - e bem - espúrio ou sem interesse para a decisão de facto. Podemos, pois, concluir pela manutenção das respostas dadas à matéria constante dos pontos nºs 3º, 8º e 18º da base instrutória, não vendo razões sérias para alterar a convicção que firmou o Mmº Juiz a quo. Mantida a matéria de facto, analisemos os restantes temas em destaque. VERIFICAÇÃO DE JUSTA CAUSA NA RESOLUÇÃO DO CONTRATO. A autora resolveu o contrato, invocando a ocorrência de justa causa para o efeito. A douta sentença recorrida entendeu que “ não se descortina que a autora tivesse motivos consistentes para fazer cessar o contrato que a ligava à ré, com efeitos imediatos, nem se vislumbra que tivesse havido falta de pontualidade da sociedade ré no pagamento dos honorários e/ou destruição da relação de confiança, por actuação desta”. E mais adiante: “ temos que a autora manifestou a intenção clara de resolver o contrato, mas fê-lo sem justa causa (perante a factualidade que a defesa logrou sustentar). É contra este entendimento que se insurge a apelante. Vejamos. Como se sabe, de acordo com o princípio da liberdade contratual, as partes têm o direito de, dentro dos limites da lei, contratar e fixar livremente o conteúdo dos contratos (artigo 405º do Código Civil). Em causa está o princípio da liberdade de celebração e de estipulação, fixação e modelação do contrato. Uma vez celebrado, o contrato passa a ter força vinculativa (pacta sunt servanda), devendo ser pontualmente cumprido. Consequência do princípio da liberdade contratual é o da liberdade de extinção contratual, consagrado no nº 1 do artº 406º, através do contrato extintivo e, quando assim acontece, ocorre o mútuo dissenso, distrate, revogação bilateral ou contrarius consensus. Nos termos do artigo 432º nº 1 do Código Civil “ é admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção”. A resolução é a destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato. A resolução assenta num poder vinculado, obrigando-se o autor a alegar e provar o fundamento previsto na convenção das partes ou na lei que justifica a destruição unilateral do contrato. Mas nada impede que a resolução seja confiada ao poder discricionário do contraente[3]. Admite este artigo a resolução convencional, facultando às partes, de acordo com o princípio da autonomia da vontade, o poder de atribuir a ambas, ou a uma delas, o direito de resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto. Verificado o facto previsto como fundamento da resolução, a parte adimplente pode, por um simples acto de vontade (mediante declaração, escrita ou oral, à outra parte, sem necessidade de intervenção do juiz, e sem ter de recorrer ao artº 808º nº 1 do CC.) produzir a resolução que inelutavelmente se impõe à contraparte. A resolução opera, assim, imediatamente, de pleno direito, no momento em que essa declaração chega ao poder da parte inadimplente, ou é dela conhecida (artº 224º nº 1). A declaração de resolução de contrato, fundada na lei ou em convenção, não se traduz em declaração negocial mas em simples acto jurídico e não está sujeita a forma especial, podendo ser feita verbalmente (artº 436º nº 1 do Código Civil)[4]. Eventual intervenção judicial, que venha a ocorrer posteriormente, apenas terá a natureza de sentença de simples apreciação, pela qual o juiz verifica os pressupostos e declara a existência de uma resolução, nos termos da lei. No caso dos autos, as partes acordaram entre si, nos termos do nº 3 da cláusula sexta do contrato de prestação de serviços em regime de exclusividade, que “qualquer das PARTES pode, a todo o tempo, resolver o presente contrato com fundamento em justa causa” - (fls. 15). E, conforme decorre da matéria de facto, foi esta justamente a opção da autora. De facto, as partes introduziram no contrato uma cláusula resolutiva expressa, motivada, identificando a justa causa como sendo o fundamento da resolução. Aceitamos a tese de que o inadimplemento só possibilita a resolução do contrato se for suficientemente grave para pôr em crise o programa negocial e é “ o interesse do credor que deve servir como ponto de referência para o efeito de apreciação da gravidade ou importância do inadimplemento capaz de fundamentar o direito de resolução”[5]. Neste particular, tem a maior importância para o instituto da resolução a conexão desta com o princípio geral da boa fé (artº 762º nº 2 do CC), quer na sua expressão de lealdade, de correcção, quer no da cooperação. No caso dos autos é patente que, atenta a factualidade apurada, (designadamente tendo em conta a natureza e extensão do incumprimento e o comportamento dos contraentes), feita a ponderação dos interesses em causa, o princípio geral da boa fé e mesmo o instituto do abuso do direito (artº 334º), impunham-se como limites normativos ao exercício do direito de resolução por parte da autora[6], condicionando a manifestação declarativa da resolução por parte daquela. E porquê? Além do mais que aqui é irrelevante, provou-se que a autora, mediante carta registada com aviso de recepção datada de 21 de Maio de 2007, fez cessar o vínculo contratual que a ligava à ré, com efeitos imediatos, invocando, não só a falta de pagamento pontual dos seus honorários, como a quebra da relação de confiança com a ré – (11º). A ré não pôde efectuar o pagamento da primeira prestação da “S” na data devida, por impossibilidade física da autora, que se encontrava no estrangeiro, e pelo facto de esta ter indicado como meio preferencial de pagamento a entrega de cheque em mão à sua pessoa, contra o competente recibo de quitação – (20º). Em 15 de Março de 2007, momento em que a autora se deslocou às instalações da ré para receber pagamentos já liquidados por clientes, onde se incluía o pagamento da “S”, solicitou que este último lhe fosse pago em momento posterior e só após um telefonema da sua parte a confirmar a data – (21º). O que teve a ver com problemas fiscais da autora, que seriam resolvidos com a alteração do código de actividade de Manequim para Actriz – (22º). Razão pela qual a ré aguardou que a autora resolvesse o seu problema e indicasse o momento mais conveniente para efectuar tal pagamento – (23º). Nas datas de pagamento, 15 e 30 de Maio de 2007, a autora não se apresentou nos escritórios da ré, como era hábito e regra, a fim de receber os pagamentos em falta – (24º). Quanto ao trabalho para a “L”, apenas não foi pago à autora porque esta, desde 19 de Abril de 2007, deixou de contactar os serviços de contabilidade da ré, como era hábito e regra, a fim de receber esta e outras quantias – (25º). O pagamento de honorários à autora foi efectuado, em quatro ocasiões, através de transferência bancária para a conta da autora – (28º). Todavia, todo o circunstancialismo factual acima descrito aponta claramente para a preferência da autora em receber o dinheiro por meio de cheque e em mão, contra o competente recibo de quitação. Não se apresentando a autora na agência da ré, fosse por se encontrar no estrangeiro de 12 de Janeiro a 15 de Fevereiro de 2007, fosse por outros quaisquer motivos (eventualmente, problemas a resolver com o fisco), a realidade é que a ré terá sido alheia a essa opção da autora, dispondo-se a pagar, reconhecendo-lhe dever a quantia de € 14.220,30, decorrente dos trabalhos que esta efectuou – (12º). Por isso, tal como consta da douta sentença “ não se descortina que a autora tivesse motivos consistentes para fazer cessar o contrato que a ligava à ré, com efeitos imediatos, nem se vislumbra que tivesse havido falta de pontualidade da sociedade ré no pagamento dos honorários e/ou a destruição da relação de confiança, por actuação desta”. Resta-nos, assim, concluir que a resolução do contrato por parte da autora foi feita sem justa causa, pois não foram provados factos que consubstanciassem suficientemente um comportamento grave por parte da ré e que pusessem em crise a continuidade do contrato. A CLÁUSULA PENAL E A PROCEDÊNCIA DA RECONVENÇÃO. A ré deduziu reconvenção propondo-se obter a compensação nos termos do artigo 847º e seguintes do Código Civil, reconhecendo dever à autora a quantia de € 14. 220,30 e arrogando-se credora da mesma no montante de € 13.058,90, conforme consta da carta que enviou à autora em e datada de 30 de Maio de 2007 - (nº 12). A apelante defende que a ausência de justa não permitia a procedência do pedido reconvencional. Cumpre decidir. No contrato de prestação de serviços celebrado entre a autora e a ré em 21.02.2005, ficou estipulado, na cláusula sétima e sob a epígrafe “Cláusula Penal”, o seguinte: “A denúncia, em contravenção do disposto no n.º 2 da Cláusula anterior, implica o pagamento, por parte do denunciante, de uma pena equivalente a 50 % do saldo médio recebido pelo MANEQUIM, por força deste Contrato, no último ano”. E o no nº 2 da cláusula sexta refere que: “ a denúncia só pode ser efectuada por qualquer das PARTES, mediante antecedência relativamente ao termo inicial ou de cada período de renovação”. O contrato foi celebrado por um ano, renovando-se sucessivamente por períodos iguais, excepto em caso de denúncia – nº 1 da cláusula sexta. Provou-se que a autora, mediante carta registada com aviso de recepção datada de 21 de Maio de 2007, fez cessar o vínculo contratual que a ligava à ré, com efeitos imediatos, invocando, não só a falta de pagamento pontual dos seus honorários, como a quebra da relação de confiança com a Ré – (nº 11º). Quando a autora remeteu à ré a carta registada com aviso de recepção, datada de 21 de Maio de 2007, para fazer cessar o contrato com efeitos imediatos, decorria a segunda renovação do vínculo contratual - período compreendido entre 21.02.2007 e 20.02.2008 - , ou seja, fê-lo nove meses antes do que seria o começo da terceira renovação. Apurou-se que no último ano de vigência do contrato, a autora prestou serviços por intermédio da ré no montante total de € 26 117,80 – (nº 14). As partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível; é o que se chama cláusula penal – artº 810º nº 1 do Código Civil. Diz-se cláusula penal a convenção através da qual as partes fixam o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual inexecução do contrato. Trata-se de liquidação convencional dos prejuízos. A liquidação da indemnização é feita “à forfait” visto não se saber ainda o real valor dos prejuízos nem mesmo se eles virão a suceder[7]. Todavia, para que a cláusula penal possa ser accionada pela ré, é necessário que haja contravenção por parte da autora ao nº 2 da cláusula sexta, ou seja, que a autora denuncie o contrato fora da previsão daquele nº 2. A decisão de resolução do contrato por parte da autora, não configura, no caso concreto, uma denúncia, conforme vem prevista nos nºs 1 e 2 da cláusula sexta. A resolução distingue-se da denúncia; esta apenas impede a continuação do contrato para o futuro, no sentido da sua renovação. Já deixamos dito que a resolução do contrato por parte da autora foi feita sem justa causa. A vontade das partes plasmada nos nºs 1 e 2 da cláusula sexta e na cláusula sétima foi, essencialmente, o de fixar uma pena para o incumprimento das partes, ou seja, se alguma delas denunciar o contrato em contravenção ao disposto no nº 2 da cláusula sexta. Se isso acontecer, haverá lugar ao “ pagamento, por parte do denunciante, de uma pena equivalente a 50% do saldo médio recebido pelo manequim, por força deste contrato, no último ano”. Ora, nada permite interpretar a vontade das partes no sentido de que aceitariam a mesma pena para o caso de resolução sem justa causa. Se assim fosse, as partes teriam feito expressa alusão ao nº 3 da cláusula sexta, na aludida cláusula sétima, segundo o qual “qualquer das partes pode, a todo o tempo, resolver o presente contrato com fundamento em justa causa”. No caso sub judice, resulta que a cláusula penal se reporta apenas às situações de cessação do contrato através de denúncia, e não por resolução. A denúncia de um contrato traduz uma declaração de vontade unilateral receptícia de um dos contraentes no sentido de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou celebrado por tempo indeterminado. Revestindo a natureza de declaração negocial jurídico-potestativa, a denúncia impõe-se inevitavelmente à contraparte no exercício do correspondente direito potestativo extintivo da relação contratual duradoura. A carta enviada pela autora à ré em 21 de Maio de 2007, corresponde, não ao perfil jurídico-negocial da figura da denúncia, mas sim da resolução, contendo uma declaração de vontade motivada por incumprimento ou alteração anormal da base negocial que atingiu o equilíbrio das prestações. Ora, tendo as partes fixado uma cláusula penal para a denúncia, não podemos concluir na aplicação da mesma pena para a resolução infundada. CONCLUSÕES: I - Para que a resolução do contrato de prestação de serviços por parte da autora seja feita com justa causa, torna-se necessário alegar e provar factos que consubstanciem suficientemente um comportamento grave por parte da ré e que ponham em crise a continuidade do contrato. II - A denúncia de um contrato traduz uma declaração de vontade unilateral receptícia de um dos contraentes no sentido de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou celebrado por tempo indeterminado. III- A carta enviada pela autora à ré em 21 de Maio de 2007, corresponde, não ao perfil jurídico-negocial da figura da denúncia, mas sim da resolução, contendo uma declaração de vontade motivada por incumprimento ou alteração anormal da base negocial que atingiu o equilíbrio das prestações. IV - Ora, tendo as partes fixado uma cláusula penal para a denúncia, não podemos concluir na aplicação da mesma pena para a resolução infundada. III - DECISÃO Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente, revogando-se a douta sentença e, em consequência, mantém-se a condenação da ré a pagar à autora, a título de serviços por esta prestados e não pagos, a quantia de € 14.220,30, absolvendo-se a autora do pedido reconvencional. Custas da reconvenção pela ré e custas da acção e da apelação por autora e ré na proporção do vencimento. Lisboa, 8 de Outubro de 2009 Ilídio Sacarrão Martins Teresa Prazeres Pais Carla Mendes |