Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3940/06.0TVLSB-C.L1-8
Relator: BRUTO DA COSTA
Descritores: ARRESTO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
LEGITIMIDADE PASSIVA
CREDOR
HIPOTECA
BANCO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Existe jurisprudência no sentido de quando o arresto visar acautelar efeitos da impugnação, designadamente a pauliana, a legitimidade passiva para o respectivo processo deva coincidir com a legitimidade passiva para a acção de impugnação.
2. Note-se, todavia, em todos os arestos apontando no sentido do litisconsórcio necessário, os litisconsortes são os adquirentes ou os promitentes compradores dos imóveis que são objecto do arresto.
3. Diferente é o caso de o putativo litisconsorte ser um Banco cuja relação com o negócio é o mero facto de ter financiado o adquirente do prédio com garantia hipotecária, i.e., com a constituição de hipoteca a seu favor sobre os prédios comprados/vendidos e cujo arresto está pedido.
4. O efeito útil normal da decisão de um arresto é a colocação de certos bens do devedor na situação de indisponibilidade – os bens arrestados deixam de ser livremente disponíveis e alienáveis pelo seu dono e passam a constituir-se como garantia de que o seu proprietário liquidará as suas dívidas aos seus credores, designadamente ao requerente do arresto.
5. Tal efeito útil normal será alcançado se o Banco credor hipotecário não for chamado à providência como litisconsorte, e por isso não estão reunidos os pressupostos do litisconsórcio necessário.
(sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I - Relatório.

E
Intentou providência cautelar de arresto contra
F,
D, e
H,
Alegando que construiu dois hotéis em empreitada onde foram donas da obra as duas primeiras requeridas e que no âmbito dessa empreitada as requeridas deixaram de pagar à requerente diversas facturas que, a preços de 2000, totalizavam uma soma superior a 13 milhões de euros, mais concretamente 13.229.174 €.
Em 30.6.2006 as duas primeiras requeridas venderam à terceira requerida os dois hotéis, o que mereceu a oposição da requerente, que em tempo deduziu acção de impugnação pauliana relativa a tal negócio.
Paralelamente a requerente deduziu a presente providência cautelar  pedindo o arresto de todas as quantias depositadas nas contas bancárias das duas primeiras requeridas e bem assim dos imóveis transmitidos à terceira requerida, alegando a dívida e o seu não pagamento, bem como o desconhecimento de as requeridos possuírem outros bens capazes de responder pela mesma dívida.
A providência foi decretada.
Depois, já na Vara Cível de Lisboa, para onde o processo foi remetido, veio a ser reavaliada a pedido das requeridas, e acabou por ser  levantada por se entender que se verificava a ilegitimidade passiva (por preterição de litisconsórcio necessário).
É dessa decisão que vem interposto o presente recurso de agravo.
Nas suas alegações a agravante formula as seguintes conclusões:
1.
A recorrente apresentou um primeiro requerimento de recurso e, seguidamente, dentro do prazo de dez dias, prolongado pela possibilidade de praticar o acto, desde que pagando uma multa, apresentou um segundo requerimento de interposição de recurso, com o qual complementou o primeiro.
2.
O tribunal não considerou o segundo requerimento, por considerar que este era ilegal. Esta decisão violou o n° 5 do artigo 145° do Código de Processo Civil, porque a mesma não condiciona o exercício do direito nela definido ao facto do acto processual ter sido, ou não, praticado, anteriormente. Nem o condiciona à existência, ou inexistência e de qualquer resposta da parte contrária.
3.
A recorrente nada tem que ver com a resposta da recorrida H, se ela apresentou uma resposta, antes de ser notificada para esse efeito e antes do termo do prazo para a interposição do recurso por parte da recorrente foi por-que quis e assim decidiu.
4.
Esse facto jamais pode limitar o direito da recorrente a, dentro do prazo legal, apresentar o seu requerimento de interposição de recurso, nos termos que melhor entender. Ou então, o n° 5 do artigo 145° do Código de Processo Civil, não existe e não está em vigor.
5.
A circunstância de um interveniente processual praticar os actos a que tem direito, dentro do prazo legal, não torna o processo caótico, mesmo que repita a prática do acto. Ele tem o direito de praticar o acto processual dentro de um determinado prazo, mais os três dias, com multa.
6.
Porque apresentado em tempo e porque a multa foi paga e porque o requerimento de folhas 2.437 se limita a reiterar e complementar o conteúdo do requerimento de folhas 2.422, deveria ter sido considerado o requerimento de inter-posição de recurso de folhas 2.437, que foi ignorado.
7.
O recurso devia ter sido admitido, por força do previsto no n° 1 alínea a) do citado artigo 738° do Código de Processo Civil, porque o despacho praticado foi um despacho liminar e não o despacho decisório, equiparável a uma sentença.
8.
Neste arresto, depois do mesmo provisoriamente decretado e após a apresentação das oposições, o tribunal não marcou data para a audiência final, tendo perguntado às partes se admitiam que a matéria das excepções fosse decidida, antes da produção de prova, na audiência final, dando para isso um prazo à requerente, a fim da mesma exercer o contraditório.
9.
O tribunal, com o acordo das partes, alterou o formalismo processual, não tendo dado cumprimento ao previsto no artigo 386° do CPC. Não tendo, por isso, entrado na fase processual da audiência final, a única que lhe permitiria produzir o despacho final, sobre a manutenção ou o levantamento do arresto. Permaneceu-se, assim, por decisão do tribunal, aceite pelas partes, numa fase preliminar da providência cautelar. Logo, a decisão recorrida consubstancia uma decisão preliminar.
10.
Além disso, é um despacho preliminar que tem como consequência directa da sua prolacção o levantamento da providência que tinha sido decretada, o que tem o mesmo efeito da decisão de não ordenar a providência, pelo que, também por aí, o mesmo devia ter subido, imediatamente, nos próprios autos e no efeito suspensivo, de acordo com a alínea a) do n° 1 do artigo 738° do CPC.
11.
O tribunal não pode desconhecer que, quando o legislador redigiu o n° 2 do artigo 738° do Código de Processo Civil, o mesmo não podia prever, nem pre-viu, que o despacho que ordena o levantamento da providência cautelar, seria produzido, antes da audiência final de produção de prova.
12.
Na decisão recorrida escreveu-se que: "não pode ser considerado para os efeitos a que tendia, até porque a requerente nem desistiu do primeiro, como podia e devia. "Não existe norma, no Código de Processo Civil, que tutele esta decisão. Por isso, a mesma é ilegal.
13.
O despacho recorrido ignora todas as questões que foram colocadas pelo requerimento constante de folhas 2.437, tendo todas ficado órfãs de decisão, em manifesta e clara omissão de pronúncia.
14.
Nesse requerimento, requereu-se que o recurso subisse no efeito suspensivo, porque: a providência cautelar está sujeita a registo, tendo sido registada, pelo que se o agravo vier a ser levantado, a requerida H fica habilitada a levar tal facto ao registo, o que determinará o cancelamento do mesmo.
15.
Logo, nos termos da alínea c) do n° 2 do artigo 740° do CPC, o agravo teria de subir no efeito suspensivo. O tribunal não ordenou o cancelamento de qualquer registo, mas proferiu uma decisão da qual decorre o cancelamento do registo do arresto, se a parte interessada o requerer, como sempre sucede com os actos sujeitos a registo, devido ao princípio da instância. Também por isso o recurso devia subir no efeito suspensivo, nos termos da alínea d) do artigo 740° do CPC.
16.
Esta decisão não é compatível com o previsto no n° 2 do artigo 2° do Código de Processo Civil que viola.
17.
O tribunal, porém, não se pronunciou sobre esta questão, limitando-se a referi-la, de passagem à guisa de comentário, por isso, existe uma manifesta omissão de pronúncia, que determina a nulidade do despacho recorrido, por força do previsto na alínea d) do n° 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil.
18.
Subindo o recurso no efeito devolutivo, a recorrida, H, irá ficar livre para, querendo, transmitir a propriedade dos imóveis a um terceiro dito de boa-fé, inutilizando os efeitos da impugnação pauliana. O que, por sua vez, terá como consequência que a cobrança do crédito da requerente se torna impossível, dado que as sociedades vendedoras dos edifícios do Hotel, comprovadamente, não têm meios para pagar o crédito da requerente.
19.
E a cobrança desse crédito, superior a dez milhões de Euros, irá ficar incobrável, porque, como consta dos autos, as quantias em dinheiro arrestadas, nas contas bancárias das requeridas D e F são irrisórias, sendo ridiculamente residuais.
20.
O capital social dessas mesmas sociedades é de cinco mil Euros.
21.
As sociedades devedoras da requerente e aqui requeridas, agora absolvidas da instância, estão completamente descapitalizadas, não tendo qualquer património com o qual possam pagar coisa alguma à requerente credora.
22.
Logo, a não atribuição do efeito suspensivo ao presente recurso, irá determinar a venda imediata a um terceiro "dito" de boa-fé dos prédios dos hotéis, o que não será difícil de encontrar, no meio da vasta gama de sociedades controla-das pelo grupo económico no qual a H, assim se tornando definitiva-mente impossível para a requerente recuperar o valor do seu crédito sobre as sociedades requeridas, D e F.
23.
O tribunal poderia atribuir ao recurso efeito suspensivo, mediante a prestação de caução, nos termos do n° 4 do já citado artigo 740° do Código de Processo Civil, tendo-se oferecido a recorrente para prestar a caução que o tribunal vies-se a determinar, no prazo que para tal fosse fixado, caso fosse essa a decisão do tribunal, se não aplicasse ao recurso a alínea a) do n° 1 do artigo 738° do Código de Processo Civil.
24.
Tudo o que foi requerido foi ignorado pela decisão recorrida, não se pronunciando o tribunal sobre o que foi requerido em manifesta omissão de pronúncia, que determina a nulidade do despacho recorrido, por força do previsto na alínea d) do n° 1 do artigo 668° do Código de Processo Civil.
25.
Os efeitos do arresto são, única e exclusivamente, os previstos no artigo 622° do Código Civil e no artigo 406° do Código de Processo Civil, limitando-se a determinar a ineficácia dos actos de disposição dos bens das sociedades F e D a favor da sociedade H, de acordo com as regras próprias da penhora ".
26.
Neste universo, o Banco não é ouvido nem achado, para coisa alguma, porque o arresto não põe em causa o acervo de garantias que lhe são concedidas pela hipoteca e pelo seu registo. Uma apreensão judicial de bens não põe em causa qualquer dos interesses do Banco, garantidos pela hipoteca voluntária; pois, o banco continua, se o desejar, a ser livre de executar a hipoteca que detém sobre os imóveis, promovendo, se tiver fundamento legal para isso.
27.
A impugnação pauliana, se vier a ter vencimento, após o seu trânsito em julgado, será outra coisa; mas essa é uma acção com processo ordinário, não é uma providência cautelar, não se confunde com ela, apesar da instrumentalidade que existe entre providência cautelar e acção principal. E mesmo essa instrumentalidade não projecta os efeitos do pedido na acção principal sobre a providência cautelar. Os efeitos do pedido na acção principal, produzem-se na acção. Os efeitos do arresto são, somente, já citados.
28.
O conceito de legitimidade é definido no artigo 26° do Código de Processo Civil, e, segundo a definição legal, só é parte legítima quem tem interesse em demandar ou em se opor à demanda. Ora, como resulta do que são os efeitos do arresto, o Banco não tem qualquer interesse em se opor ao arresto porque os efeitos do mesmo em nada o lesam na sua relação com a H, nos seus interesses e direitos.
29.
Neste caso de providência cautelar de arresto, nos termos do artigo 28° do Código de Processo Civil, a existir um litisconsórcio necessário, o mesmo reporta-se exclusivamente ao credor, aos vendedores dos bens (que garantiam o credor) e ao adquirente dos bens vendidos. Nunca envolvendo a entidade financiadora, mutuante, beneficiária de uma garantia do cumprimento da obrigação. A lei não exige a presença do financiador do adquirente, na providência cautelar de arresto, mesmo quando este é titular de uma hipoteca.
30.
O arresto é uma providência cautelar que não pode ser requerida contra tudo e todos, de acordo com o n° 1 do artigo 406 do Código de Processo Civil, o arresto é requerido pelo "credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito" contra o devedor. O arresto desenvolve-se, obrigatoriamente, no primeiro patamar da relação material subjacente. Não passa ao segundo, ao patamar da relação entre o adquirente dos bens do devedor e o mutuante de valores aplicados nessa aquisição, garantido por uma hipoteca.
31.
O despacho recorrido viola os artigos 601° e 619° do Código Civil e 406 do Código de Processo Civil, baseando-se no que qualificou de instrumentalidade do arresto à impugnação pauliana.
32.
Não existe base legal para afirmar que "a legitimidade passiva para o arresto terá que coincidir com a legitimidade passiva para a acção principal, devido aquelas características supra referidas de instrumentalidade da providência e dependência face à acção onde se discute o direito subjectivo".
33.
O intérprete não pode, por sua iniciativa, adicionar ao conceito de devedor o conceito de "credor hipotecário", simples financiador do adquirente, sob pena do conteúdo da interpretação deixar de ter correspondência com a letra do texto legal objectivamente escrito.
34.
O intérprete não pode afastar a realidade segundo a qual, "Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios." Estes e somente este bens, nos termos do artigo 601° do Código Civil.
35.
O n° 2 do artigo 619° do Código Civil ao alargar a possibilidade de requerer o arresto contra adquirente dos bens do devedor, se tiver sido judicialmente impugnada a transmissão", não inclui a figura do financiador do adquirente, mesmo que garantido por uma hipoteca, e nada permite afirmar que terá sido essa a intenção ou desejo do legislador. Sendo certo que tal solução não tem o mínimo apoio na letra do preceito, como, obrigatoriamente, teria de ter.
36.
Não é possível, integrar no conceito de adquirente, a noção de financiador, ou mutuante garantido com uma hipoteca. Sobre pena das palavras perderem todo o seu sentido e da letra da lei passar a ser um romance de ficção científica, totalmente alheio à realidade.
37.
O número 2 do artigo 619° do Código Civil tem natureza de norma excepcional, de lei especial, pelo que não pode ser interpretado de tal modo que os conceitos que dela constem sejam alargados, ampliados a outras realidades.
38.
O arresto pode ser pedido contra o devedor e, em determinadas condições, também, contra o adquirente dos bens, não podendo ser pedido contra qual-quer outra entidade, designadamente contra o mutuante do adquirente.
39.
Proclamar o contrário, como se proclamou no despacho recorrido, significa usar a posição de intérprete da lei, para tomar a posição de legislador e colocar na lei um sentido que o legislador não lhe deu e não lhe quis dar.
40.
Tal conclusão é imposta pelo artigo 9° do Código Civil, ao qual o intérprete está sujeito e obrigado. Se o legislador, que teve o cuidado de acrescentar ao pre-visto no n° 1 do artigo 619° do Código Civil, o estatuído no n° 2, tivesse querido adicionar aos possíveis requeridos numa providência de arresto, ainda, os eventuais mutuários do adquirente dos bens do devedor primário, teria tomado essa iniciativa, redigindo-o, expressamente, até porque conhecia a possibilidade dos mesmos existirem, quando redigiu o preceito.
41.
Não é possível defender que o legislador dos dois códigos não conhecia a realidade de credor hipotecário do adquirente dos bens. Tal como não é possível defender que conhecia, mas não quis explicitar esse conhecimento, para, depois, os tribunais terem a possibilidade de, como intérpretes, na actividade de "reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada" lá colocarem o que lá não está escrito.
42.
Interpretar o 619° n° 2 do Código Civil, de modo a incluir no mesmo, além do adquirente dos bens do devedor, os eventuais mutuantes desse adquirente, consiste numa interpretação da lei, que além de alterar o texto legal, no seu conteúdo expresso, só pode ser feita partindo do pressuposto que o legislador não soube consagrar na letra da lei o seu pensamento, em manifesta violação do princípio imposto ao intérprete no supra transcrito n° 3 do artigo 9° do Código Civil, bem como em manifesta violação do estatuído no artigo 11° do mesmo código. Nunca estando a "reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada"
43.
Não se pode pedir às partes que interpretem o vocábulo "adquirente", como nele cabendo, também, o mutuante do adquirente, garantido com uma hipoteca sobre o bem, apesar da impugnação pauliana poder determinar a ineficácia dessa hipoteca, porque tal exigência vem trair a interpretação normal do preceito, de acordo com a gramática da sua redacção. Se há erro é do intérprete, não é e não pode ser do legislador.
44.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que serviu de matriz à decisão proferida nos autos, o raciocínio desenvolvido, no mesmo, reporta-se a um caso em que estão presentes, no arresto e na impugnação pauliana, todos os adquirentes. A conclusão do mesmo foi escrita aplicando-a a um caso em que estavam em causa o alienante dos bens e todos os adquirentes dos mesmos. Não estava em causa qualquer credor hipotecário.
45.
A dita coincidência passiva das partes, entre a impugnação pauliana e o arresto terá de existir, como se escreveu no acórdão, mas, sempre e só, limitada aos adquirentes de direitos reais, maiores ou menores, independentemente do que esses adjectivos possam querer significar, quando aplicados aos direi-tos reais.
46.
Não se ignora que o período "Uma vez que, no caso do citado n° 2 do art. 619°, o arresto visa acautelar os efeitos da impugnação, designadamente a pauliana, a legitimidade passiva para o respectivo processo terá que coincidir com a legitimidade passiva para a acção de impugnação. É o que decorre da instrumentalidade substantiva da providência face ao direito subjectivo a proteger e da dependência do procedimento cautelar face à acção onde ele é discutido. ", aparentemente, tem um fôlego mais amplo, sugerindo uma grande generalização. Contudo, este texto foi escrito a pensar num caso em que se anulou uma decisão da primeira instância e da relação de Lisboa, exactamente, porque as instâncias tinham decidido que os adquirentes dos imóveis em causa não eram parte legítima, no arresto, por não serem devedores do requerente do mesmo.
47.
E foi aí, nesse quadro, que o Supremo veio escrever que todos os adquirentes eram parte legítima, o que parece ser indiscutível, perante o artigo 619° n° 2 do Código Civil.
48.
Existe, porém, uma grande diferença entre o caso do acórdão e o presente arresto: naquele, entre os requeridos, não se encontrava um mero credor do adquirente, garantido, por uma hipoteca.
49.
O banco não é adquirente de qualquer direito real, nem mesmo um direito real dito menor; é um mero credor hipotecário, ou seja, é um titular de um direito obrigacional (não direito real) embora garantido por uma hipoteca. O banco é titular de um direito de garantia, o que é substancialmente diferente de um direito real, mesmo menor, como o usufruto, o uso e a habitação.
50.
Logo, a doutrina do acórdão é irrepreensível, enquanto a mesma se limitar, como sucedeu, a ser aplicada a partes adquirentes de direitos reais, porque cumpre-se o previsto no n° 2 do artigo 619° do Código Civil e não se aplica ao caso dos autos.
51.
Quando se utiliza essa doutrina como alavanca para incluir no termo adquirente um mero financiador, mutuante do adquirente, sob o pretexto de se interpretar a lei, inova-se e acrescenta-se matéria ao que foi legislado, em manifesta e clara violação da própria lei.
52.
A hipoteca é defendida pelo artigo 686°, 692° e outros do Código Civil, que não foram revogados pela providência de arresto.
53.
Note-se, em reforço da demonstração que os direitos do banco não são lesa-dos pela sua não presença na providência de arresto, que a própria lei substantiva concede ao devedor o direito de vender ou onerar os bens objecto de uma hipoteca, contra a vontade do próprio credor hipotecário, como resulta do artigo 695° do Código Civil.
54[1].

55.
Os efeitos da simples providência cautelar de arresto não podem ser confundi-dos e misturados com os futuros efeitos da acção de impugnação pauliana, depois de transitada em julgado, se tiver merecimento.
56.
A decisão recorrida interpretou e aplicou mal o n° 2 do artigo 613° do Código Civil, porque esta disposição, ao ser aplicada, tem de respeitar a regulamentação especial da outra figura de direito, que é o arresto, regulada entre outras, no artigo 619 do Código Civil, cumprindo e acatando o que aí se prevê. A mesma não pode ser usada para incluir no artigo 619° n° 1 e 2 do Código Civil, mais do lá está escrito, dando-lhe outro alcance, como fez o despacho recorri-do.
57.
O n° 2 do 613° do Código Civil limita-se a complementar o alcance do seu nº 1 e nada mais.
58.
O legislador veio esclarecer que a impugnação pauliana procede também contra "(...) a constituição de direitos sobre os bens transmitidos em beneficio de terceiro" e aqui cabe a figura do credor garantido por uma hipoteca, mas é, nesta norma especial do Código Civil, a qual não pode ser interpretada extensivamente e não pode ser usada para fazer doutrina geral. E, além disso, não altera os limites pré-definidos para a apresentação da providência cautelar de arresto.
59.
O direito de garantia não é, nem pode ser mais que uma simples garantia do cumprimento de uma obrigação, embora, nos casos em que existe hipoteca, essa garantia seja real. Mas, o ser uma garantia real, não lhe tira a natureza de direito de garantia, inserido no direito das obrigações e nunca no direito real.
60.
Os direitos reais, por força da norma do n° 1 do artigo 1306° do Código Civil, estão sujeitos à tipicidade, não podendo ser aumentados e ampliados pelo intérprete, mesmo que os qualifique de menores. O tribunal não pode decretar que um direito de garantia é um direito real.
61.
Os direitos reais estão envolvidos por uma tipologia legal taxativa (na qual não cabe a hipoteca, prevista e criada como garantia geral das obrigações) que não pode ser ampliada pelo intérprete, por isso o despacho recorrido, também aqui viola a lei.
62.
É pacífico que no n° 2 do artigo 619 do Código Civil cabem: (...) direitos reais que não seja o de propriedade mas aqueles outros que alguns denominam de direitos reais menores, por contraposição ao direito de propriedade, como os usufrutos ou as servidões prediais" Mas já não é pacifico que, no mesmo caiba a hipoteca, garantia do cumprimento da obrigação e não direito real.
63.
O despacho recorrido aplicou mal o direito e violou todas as normas legais já citadas e transcritas, reguladoras do arresto, quer no Código Civil, quer no Código de Processo Civil. O despacho recorrido não desenvolveu a actividade de "reconstituir o pensamento legislativo nele directamente expresso", mas procedeu a "uma interpretação extensiva, ou no mínimo analógica, do estatuído no n° 2 do artigo 619 do Código Civil, em manifesta violação das regras que limitam a actividade do intérprete ao interpretar a lei e, mais do que isso, indo muito mais longe, tomou para si a função do legislador e legislou. Legislou de tal modo que, onde o legislador escreveu que só cabe o devedor e o adquirente, o despacho recorrido veio decidir que cabe também o financiador, ou seja, o credor hipotecário do adquirente.
64.
Com a sua solução, o despacho recorrido consegue, em violação da regra da tipicidade dos direitos reais, acrescentar ao livro III do Código Civil, um novo direito real. A hipoteca, prevista no Livro II, no título I, no capítulo VI, Na secção V, nos artigos 686° a 732° do direito das obrigações.

Termos em que, com o imprescindível e douto suprimento, revogando o despacho recorrido e substituindo-o por outro que declare a improcedência da excepção de ilegitimidade passiva das Rés, se fará: Justiça.  
 
A agravada formulou douta contra-alegação, concluindo da seguinte forma:
Quanto ao efeito do recurso:

1. Deve ser mantido ao recurso o efeito devolutivo decidido no despacho que o admitiu, nos termos do artigo 738, n.° 2, do CPC.

Quanto à decisão recorrida:

2. A decisão recorrida absolveu as requeridas da instância por entender que existe nos autos preterição de litisconsórcio necessário passivo, o que gera ilegitimidade, decisão que aplica devidamente o direito.

3. A hipoteca "segue" a coisa e não o devedor, dizendo-se que goza de inerência; e a hipoteca prevalece sobre direitos de terceiro que não tenham garantias sobre a mesma coisa. Estas duas características da hipoteca – a inerência/sequela e a prevalência – impõem a sua qualificação como direito real.

4. 0 princípio da tipicidade é apenas um limite à autonomia privada. Ele não limita o intérprete na qualificação de um direito como real, quando nele concorram as características da realidade, o que sucede quanto à hipoteca.

5. Para se impugnar paulianamente uma transmissão de um bem é necessária a presença em juízo de todos os titulares de direitos sobre esse bem, pois a todos afectará a decisão.

6. Pelo que para, com base nessa impugnação, se poder arrestar esse bem, é igualmente necessário que sejam requeridos todos esses mesmos sujeitos - que a lei qualifica, correctamente, de adquirentes do bem, por terem adquirido direitos sobre ele - só assim podendo a decisão produzir o seu efeito útil normal.

7. 0 credor hipotecário é titular de um direito sobre os bens, direito incompativel com a pretensão de o credor arrestante ser satisfeito pelo produto da venda desses bens, o que é suficiente para o legitimar à acção, sendo a sua falta causa de ilegitimidade d Ds demais, conforme decidido.

Quanto à subsidiária ampliação do recurso — Preterição de contraditório:

8. Existe preterição ilegal de contraditório, uma vez que a ratio que justifica a norma excepcional de não existência de contraditório no arresto não tem aplicação no presente caso.

9. Essa ratio é a de não avisar previamente o devedor de que os seus bens irão ser arrestados, pois um tal aviso, na generalidade dos casos, teria por consequência que o devedor corresse a dissimular o seu património antes de ser decretada a providência. O efeito surpresa pretendido pelo legislador nunca se poderia alcançar em relação ao presente arresto, pois há muito que os alegados devedores estão cientes de que a E tenta arrestar os seus bens.

10. Não podendo alcançar os seus efeitos de surpresa, deixa de existir sustenta;ão para a preterição do princípio do contraditório, princípio esse fundamental ao ordenamento jurídico.

11. Neste caso, é manifesto que o contraditório não deveria ser dispensado pois o tribunal, conhecendo os antecedentes do caso, sabe bem que o réu na acção principal contesta a própria existência da dívida, antes se arrogando credor.

12. A decisão recorrida, na parte em que decidiu não ter existido preterição ilegal do contraditório, violou o artigo 3.° do CPC., e também o artigo 20.°, n.° 4, da Constituição.

13. É inconstitucional, por violar o artigo 20.°, n.° 4, da Constituição, a interpretação do artigo 408.° do CPC no sentido de se poder decretar o arresto sem audição da parta contrária quando essa parte já tenha tido, por vicissitudes processuais anteriores, conhecimento de ter esse arresto sido requerido, uma vez que deixa de existir o fundamento (o efeito surpresa) que justifica o afastamento excepcional da observância do princípio do contraditório, princípio fundamental do processo equitativo constitucionalmente garantido.

Quanto à subsidiária ampliação do recurso — Ofensa a caso julgado:

14. Existe ofensa a caso julgado, uma vez que já o mesmo pretenso direito de crédito da E sobre as Recorridas foi fundamento de providência cautelar de arresto, a-resto esse que foi levantado por ter sido julgada procedente a oposição a ele movida.

15. Essa oposição foi fundada em questões de mérito, nomeadamente na não verificação dos pressupostos substantivos de que depende a concessão da providência, pois rem sequer existia — como não existe ainda — fumus boni furls. Em concreto, foi alegado na oposição que o crédito que a E se arroga não existe, antes sendo a E devedora das Requeridas pelos danos que a sua actuação lhes causou.

16. Tendo sido proferida decisão de mérito quanto ao arresto, essa decisão terá efeito de caso julgado material, pelo que não pode existir novo arresto para garantia do mesmo alegado crédito.

17. Estes efeitos de caso julgado material não deixam de se produzir quando o novo arresto seja requerido por apenso a uma outra acção principal.

18. E não deixam de se produzir mesmo que essa outra acção principal e esse mesmo arresto não tenham os mesmos sujeitos passivos por entretanto ter existido transmissão dos bens arrestados, pois essa transmissão em nada pode afectar a decisão anteriormente proferida de inexistência de furnus boni juris. A não se enterder assim, estava aberto caminho para nunca se poder invocar a existência de caso jugado, pois bastaria que a nova acção fosse proposta, por uma qualquer razão real ou imaginária, contra um novo reu.

19. A decisão recorrida, na parte em que decidiu não existir caso julgado, violou os artigos 497.° e 498.° do CPC.

Face ao exposto, não deve o presente recurso merecer provimento, mantendo-se a decisão recorrida nos seus exactos termos.

Subsidiariamente, deve substituir-se a decisão recorrida por decisão que julgue procedentes as excepções de ofensa do caso julgado e de preterição do contraditório.

O Exmo. Juiz manteve o seu despacho.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
A questão a resolver consiste em apurar se houve ou não preterição de litisconsórcio necessário passivo, com todas as lógicas consequências dessa asserção.
 
II - Fundamentos.

Relativamente ao efeito do recurso e ao seu regime legal (conclusões 1ª a 24ª da agravante e 1ª da agravada), já se decidiu e deliberou antes.
No tocante ao pedido de ampliação do âmbito do recurso formulado pelas recorridas, entendemos que, salvo o devido respeito, ele não tem cabimento no caso aqui em apreço.
Na verdade, a lei permite que no caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conheça do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação; pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas (artº 684ºA, do Código de Processo Civil).
Ora os recorridos não decaíram nas questões invocadas (falta de contraditório das requeridas e ofensa do caso julgado).
O que se passou foi que o Tribunal de 1ª instância, dando por provada a preterição de litisconsórcio necessário, logo ali absolveu as requeridas da instância, não se pronunciando sobre as referidas questões da falta de contraditório e ofensa do caso julgado.
O Tribunal de recurso não pode pronunciar-se sobre questões que não foram decididas no Tribunal a quo.
Ora tais questões não podem ser alegadas ex novo perante o Tribunal de recurso: não pode ser objecto de recurso numa questão nova, pois os recursos destinam-se a reapreciar questões já decididas; o recurso é um meio processual que tem por finalidade a reapreciação de questões já julgadas e não a apreciação de questões novas – neste sentido vejam-se, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.2.93 (Roger Lopes) e de 17.6.98 (Costa Soares), ambos sumariados na base de dados do mesmo, acessíveis via Internet, alojadas no endereço www.dgsi.pt/ .
Esta conclusão decorre desde logo das disposições gerais do Código de Processo Civil sobre recursos: “As decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recurso” – artº 676º, nº 1, do diploma.
Não se toma portanto, posição, sobre a matéria das conclusões das agravadas atinentes à matéria da ampliação do âmbito do recurso.

Relativamente à questão principal:
Sobre a questão do litisconsórcio no sentido de quando o arresto visar acautelar efeitos da impugnação, designadamente a pauliana, a legitimidade passiva para o respectivo processo deva coincidir com a legitimidade passiva para a acção de impugnação, pronunciou-se o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.2.2001[2] (Relator: Ribeiro Coelho) – note-se, todavia, que neste como nos outros arestos apontando no sentido do litisconsórcio necessário, os litisconsortes são os adquirentes ou os promitentes compradores dos imóveis que são objecto do arresto, ao contrário do caso sub judice, em que o putativo litisconsorte é um Banco cuja relação com o negócio é o mero facto de ter financiado o adquirente do prédio com garantia hipotecária, i.e., com a constituição de hipoteca a seu favor sobre os prédios comprados/vendidos e cujo arresto está pedido.
Pronunciando-se sobre a questão mas sempre circunscrevendo o litisconsórcio necessário aos adquirentes, podem ainda ver-se os doutos acórdãos do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 30.6.98 (Relator: Torres Paulo) e de 26.2.91 (Relator: Meneres Pimentel) e o douto acórdão desta Relação de 23.11.2006 (Relatora: Fátima Galante), todos alcançáveis via Internet nas bases de dados dos respectivos Tribunais alojadas no endereço www.dgsi.pt/.
Na verdade, não há nenhuma disposição legal expressa que consagre o litisconsórcio necessário a que vimos fazendo referência.
Existe litisconsórcio necessário quando a lei ou o negócio exigir a intervenção  de vários interessados na relação jurídica controvertida (artº 28º, nº 1, do Código de Processo Civil) ou quando é necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão produza o seu efeito útil normal - a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (nº 2 do mesmo artigo).
O efeito útil normal da decisão de um arresto é a colocação de certos bens do devedor na situação de indisponibilidade – os bens arrestados deixam de ser livremente disponíveis e alienáveis pelo seu dono e passam a constituir-se como garantia de que o seu proprietário liquidará as suas dívidas aos seus credores, designadamente ao requerente do arresto.
Dispõe o artº 619º do Código Civil que o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor e que esse mesmo credor tem o direito de requerer o arresto contra o adquirente dos bens do devedor, se tiver sido judicialmente impugnada a transmissão.
Ora o presente arresto foi proposto também contra o adquirente dos bens, mas não já contra o Banco financiador da aquisição dos bens arrestados garantido por hipoteca sobre os mesmos – que não pode ser equiparado ao adquirente, sendo apenas o financiador deste, garantido por hipoteca.
Não vemos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que a decisão que decrete o arresto não tenha garantido o seu efeito útil normal no caso de o credor hipotecário do comprador dos bens arrestados não ser chamado à lide na providência cautelar.
O credor hipotecário terá os seus interesses sempre defendidos pela hipoteca, uma vez que esta confere ao credor o direito de ser pago pelo valor dos imóveis hipotecados com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artº 686º, nº 1, do Código Civil).
Não estão, por isso, e sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, reunidos os pressupostos que determinam o litisconsórcio necessário passivo a que vimos aludindo.
Assim, o agravo obtém provimento.

III - Decisão.

De harmonia com o exposto, nos termos das citadas disposições, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, anulando a douta decisão do Tribunal a quo e determinando que em sua substituição seja proferida decisão no sentido de não ter sido preterido litisconsórcio necessário passivo, seguindo-se os demais trâmites.
Custas pelas agravadas.
 
Lisboa e Tribunal da Relação, 11 de Fevereiro de 2010

Os Juízes Desembargadores,
Francisco Bruto da Costa
Catarina Arelo Manso
Ana Luísa Geraldes
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[1]  Este número ficou em branco na douta alegação.
[2]  Alcançável via Internet no endereço www.dgsi.pt/.