Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10516/2006-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: DESISTÊNCIA DA QUEIXA
PEDIDO CÍVEL
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
CUSTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O demandante civil que não seja, simultaneamente, assistente não pode ser condenado nas custas criminais quando desista da queixa apresentada.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO

1 – No dia 29 de Setembro de 2006, o sr. juiz que se encontrava colocado na 2ª secção do 4º Juízo Criminal de Lisboa proferiu, no âmbito do processo n.º 3061/03.7TDPRT, instaurado com base numa queixa apresentada pela sociedade “M., S.A.” contra A., o despacho que, na parte relevante, se transcreve:

«Nos presentes autos é imputado à arguida A. a prática, como autora material de um crime de emissão de cheque sem provisão p. e p. pelo artigo 11° n.º1 al. a) do D.L. n.º 454/91 de 28.12 na redacção introduzida pelo D.L. n.º 316/97 de 19.11.
A fls.56 dos autos veio a demandante M.SA deduzir pedido de indemnização civil contra a arguida, o qual foi liminarmente admitido.
A fls. 110 dos autos veio a demandante desistir da queixa e do pedido de indemnização civil apresentados contra a arguida.
A arguida não deduziu oposição à desistência.
Os autos foram com vista ao M°P° que se pronunciou pela homologação da desistência atenta a natureza semi-pública do crime.
Assim, atenta a sua tempestividade, a natureza semi-pública do crime em questão, a legitimidade da desistente e a não oposição da arguida, julgo válida e eficaz a desistência de queixa constante de fls. 110, a qual homologo, por sentença, declarando, em consequência, extinto o procedimento criminal instaurado nestes autos contra a arguida A. (artigos 113° n.º 1, 116° n.º 2 do Código Penal, 11°-A do D.L. n.º 454/91 de 28.12, na redacção introduzida pelo D.L. n.º 316/97 de 19.11, artigo 49°, 50° e 51° do Código de Processo Penal).
Custas a cargo da desistente nos termos do preceituado nos artigos 520° al. a) do Código de Processo Penal e 451° n.º 1 do Código de Processo Civil.
Atribuem honorários à defensora da arguida em conformidade com a tabela em vigor.
Notifique e deposite.

*
Atenta a legitimidade e a capacidade da demandante e a natureza disponível do direito seu objecto, julgo válida e relevante a desistência de pedido de indemnização civil, formulada a fls. 110 dos autos, a qual homologo por sentença, declarando consequentemente, extinto o direito que aquela pretendia fazer valer nos autos contra a demandada A..
Sem custas atento o preceituado no artigo 66° n.º 1 da Lei n.º 60-A/2005 de 30.12.
Notifique».

2 – A demandante “M, S.A.” interpôs recurso da 1ª parte desse despacho (1).

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

a) «A recorrente desistiu da queixa no processo em apreço porque desistiu do pedido de indemnização civil ao abrigo, e no uso da faculdade, do artigo 66° da Lei 60-A/2005 (Lei do Orçamento de 2006);
b) A instância, em face disto, proferiu um despacho no qual homologou essa desistência e tributou em custas criminais a requerente, que in casu é ofendida, mas não assistente;
c) O despacho em causa estriba-se nos artigos 520° a) do CPP e 451°/1 do CPC;
d) De todo o modo sempre se dirá que os artigos 520° a) do CPP e 451°/1 do CPC não relevam no caso em apreço;
e) De todo seria irrazoável premiar quem foi vítima de um crime (não sendo assistente) com as custas respectivas quando da queixa (ou se dela) desistisse.
f) O Neste domínio há que decidir com base na lei e não em opiniões originais que pudessem ser levadas em conta porventura “de jure constituendo”, e, mesmo aí, com todas as dúvidas que uma decisão sem a bondade desta nos fazem despertar;
g) Ao arrepio das normas processuais respectivas, foi, pois, o decidido quanto a custas criminais, por isso a merecer o despacho em crise reprovação e retoque correctivo nesta sede;
h) As instâncias, no contexto que aqui se discute, têm decidido no sentido de não condenarem os ofendidos nas custas criminais, não por benesse que se lhes atribua, mas por o quadro legal a tanto (a essa condenação) não conduzir;
i) De um lado, a desistente não é assistente e não pode dizer-se que tenha dado causa às custas de acordo com as regras processuais civis; do outro, o artigo 451°/1, do CPC, aplicar-se-á apenas quando o autor desiste da acção civil, o que no caso até se verificou com o PIC enxertado, mas com dispensa das custas ao abrigo, e no uso da faculdade, do artigo 66° da Lei 60-A/2005 (Lei do Orçamento de 2006).
j) Não fora esta faculdade e certo é que não teria havido desistência da queixa, como se colhe (ou infere) do que consignado ficou no requerimento de desistência apresentado.
k) E se tivesse havido oposição do arguido a tal desistência, é certo que o feito na vertente criminal, que o integra, haveria de prosseguir termos por imposição legal.
l) Estando aqui em causa um crime semi-público, há inevitavelmente (até pela natureza da expressão) interesse público a defender e a realizar pelo direito criminal, só que mitigado com interesses de outra espécie, mormente do ofendido e até do próprio infractor, não sendo adequado eleger-se a punição do desistente em custas como uma espécie de compensação partindo da ideia de que o tribunal esteve a exercer unicamente funções para conhecimento de um seu interesse privado, como já foi defendido pelo MP junto da Ia instância noutros (semelhantes) recursos.
m) Por outro lado, não tem qualquer cabimento sufragar-se que a recorrente tem que pagar as custas criminais porque é simultaneamente parte civil, mas se o não fosse já não lhe competia arcar com esse ónus.
n) Ora, nada na lei impõe essa solução, solução essa que, de resto, sempre se haveria de ter como inconstitucional por violar o princípio do artigo 13° da Lei Fundamental, pois casos idênticos merecem tratamento jurídico idêntico. E o que cumpre apurar aqui é das custas criminais apenas, importando aferir se quem desiste da queixa-crime é assistente ou não, sendo irrelevante para esse fim, por inócuo, saber se quem desiste de tal queixa é parte civil ou não.
o) Ora, certo é que desistente, neste caso, é o ofendido, nada mais que isso, e a essa luz tem que ser analisada a sua intervenção nesta parte do pleito.
p) E portanto a questão a dilucidar é a de saber se a um ofendido em processo desta natureza e no contexto em que formula a desistência da queixa - isto é logo após a constatada desistência do pedido de indemnização civil ao abrigo, e no uso da faculdade, do artigo 66° da Lei 60-A/2005 (Lei do Orçamento de 2006) - será exigível imputar o ónus do pagamento das custas criminais, sendo até de equacionar se em tal cenário haverá lugar a custas crime.
q) Correram pela Relação de Lisboa já diversos outros recursos apresentados por esta e outras sociedades do mesmo grupo económico, sendo que na sua grande maioria as decisões foram no sentido do provimento dos recursos apresentados como, por todos, bem o ilustra o acórdão de 11 de Outubro de 2005, publicado na CJ - Tomo IV, 2005, pág. 145.
r) No contexto do que se vem de expender, e uma vez que as normas legais invocadas no despacho sob censura, em arrimo do que este proferiu em domínio das custas criminais, não se aplicam, é de concluir que a decisão na parcela atinente à condenação nas faladas custas violou os artigos 515° (a contrario), 520° do CPP, e os arts. 446° e 451 do CPC. s) devendo, por isso, ser revogada nessa parte».

3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 148.



4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 153 a 160).

5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 165 a 172 no qual defende a procedência do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO

6 – A demandante civil “M., S.A.” limitou o recurso interposto à parte da decisão que a condenou nas custas criminais por ter desistido da queixa oportunamente apresentada contra a arguida A. pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão.

E, diga-se desde já, tem a recorrente inteira razão.

Senão vejamos.

O Código de Processo Penal prevê, na alínea d) do n.º 1 do seu artigo 515º, que o assistente pague taxa de justiça quando «fizer terminar o processo por desistência», estabelecendo a alínea e) do n.º 3 do artigo 85º do Código das Custas Judiciais, na redacção aplicável a estes autos (2), que tal taxa varie entre ¼ de UC e 5 UCs.

Ora, não tendo a recorrente a qualidade de assistente, não se compreenderia que tivesse que suportar a taxa de justiça com que a lei onera aqueles que têm a qualidade de sujeitos do processo.

Mas, ainda menos se compreenderia que tivesse de suportar as custas do processo na sua globalidade, que compreendem a taxa de justiça e os encargos (artigo 74º, n.º 1, do Código das Custas Judiciais), quando o assistente, nessa situação, não tem de pagar os encargos a que a sua actividade tenha dado lugar já que o procedimento criminal pelo crime de cheque sem provisão não depende de acusação particular (artigo 518º do Código de Processo Penal).

E ainda menos se compreenderia que o demandante tivesse de suportar uma despesa por ter posto termo a um processo desistindo da queixa apresentada, quando, se nada fizesse, nada teria a pagar. Seria um completo contra-senso e um clamoroso erro político-criminal.

Tal solução não é minimamente contrariada pelo facto de o legislador de 1998 ter dado uma nova redacção ao artigo 523º do Código de Processo Penal, passando o mesmo a regular a responsabilidade pelas custas relativas ao pedido de indemnização civil, que antes estava prevista na alínea a) do artigo 520º do mesmo diploma, disposição cuja redacção, salvo quanto ao seu corpo, que para aqui não é relevante, manteve inalterada.

De facto, mesmo que não se considere que tal disposição não tem hoje qualquer campo de aplicação, só se poderá entender que ela abrange os incidentes que as partes civis provoquem, se neles vierem a decair.

Mas, ainda que assim se não entenda, uma coisa parece, porém, certa. Pelos motivos antes indicados, a alínea a) do artigo 520º do Código de Processo Penal não prevê a responsabilização do demandante civil não assistente pelas custas do processo criminal quando ele tiver desistido da queixa apresentada.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pela sociedade “M., S.A.” revogando a decisão recorrida na parte em que a condenou nas custas criminais.

Sem custas.


Lisboa, 20 de Dezembro de 2006

(Carlos Rodrigues de Almeida)

(Horácio Telo Lucas)

(Pedro Mourão)





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1.-E não “sentença” uma vez que, pelo menos nesta parte, não conheceu a final do objecto do processo (artigo 97º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal).

2.-Que é a anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Novembro.