Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10583/2003-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
ABSOLVIÇÃO
REENVIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário: A omissão do direito de audição e de defesa do arguido consignados no artº 32º, nº 10 da CRP constitui nulidade insanável (cfr. artº 41º, nº 1 e 50º do DL 433/82). Assim, deve ser revogada a sentença que, por constatar a existência dessa nulidade insanável absolveu o acoimado e ser substituída por outra que determine a anulação da decisão da autoridade administrativa e reenvie os autos à autoridade administrativa para suprir essa omissão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. No processo de recurso de contra-ordenação n .º 5513 do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa foi proferido despacho que, no âmbito do recurso interposto pelo arguido (A) da decisão da DGV que lhe aplicara uma coima de €180,00 euros e a sanção acessória de inibição de conduzir por 30 dias pela prática da contra-ordenação p.p. no art.º 27º n.ºs 1 e 2 do CE, decidiu absolver o arguido da contra-ordenação por que vinha acusado, face à nulidade insanável de falta de notificação ao arguido nos termos do art.º 50 º DL 433/82 de 27.10.

Inconformado com esta decisão, o MºPº interpôs recurso que motivou concluindo em síntese:
- A decisão recorrida foi proferida nos termos do art.º 64º, n.º1 DL 433/82, sem que tenha sido dada a oportunidade de o MºPº ou o arguido se oporem ou não a tal decisão proferida nesses moldes, como impõe o n.º2 do art.º 64º;
- A omissão do direito de audição e de defesa do arguido consignados no art.º 32º, n.º10 da CRP constitui a nulidade insanável a que alude o art.º 119º. N.º1 al. c) CPP aplicada por força do art.º 41º, n.º1 DL 433/82 de 27.10 e as consequências da declaração de tal nulidade estão previstas no art.º 122º CPP, pelo que deveria o tribunal ter determinado a anulação da decisão administrativa com o reenvio à autoridade administrativa para que fosse suprida a omissão do art.º 50º DL 433/82;
- Ao absolver o recorrente, o despacho violou o disposto nos art.ºs 64º, n.º2 DL 433/82 e o art.º 122º, n.ºs 1 e 3 CPP pelo que deve ser substituída por outra que determine a anulação da decisão administrativa e o reenvio à mesma para que seja suprida a omissão referida aproveitando-se o auto de notícia de fls. 1.

Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, respondeu o arguido pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
Neste Tribunal, o Exm.º Sr. Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto.
Colhidos os vistos legais procedeu-se a audiência.
2. O objecto de recurso reporta-se à apreciação dos vícios apontados à decisão judicial que foi proferida sem precedência do cumprimento do art.º 64º, n.º 2 RGCOC aprovado pelo DL 433/82 de 27.10 e sem o acordo das partes aí prevista e que decidiu a absolvição do arguido, como efeito da nulidade insanável detectada, quando deveria ter determinado a anulação da decisão administrativa e o reenvio dos autos à DGV para suprimento da omissão do art.º 50º RGCOC.
3.
Embora o recurso de impugnação judicial tenha sido decidido por mero despacho sem realização de audiência, apesar de não ter sido precedido da anuência dos intervenientes processuais, não se oferecerão dúvidas acerca da recorribilidade do mesmo, nos termos do disposto no art.º 73º RGCOC que prevê se possa recorrer da sentença ou do despacho proferido nos termos do art.º 64º, se o tribunal tiver decidido por despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal, uma vez que, no caso, os intervenientes não tiveram a possibilidade de se pronunciar acerca dessa possibilidade.
A decisão administrativa é que irá definir o objecto do processo, para efeitos de eventual e futuro recurso de impugnação judicial. E remetidos a juízo o recurso e os autos, a decisão administrativa passa a valer como acusação. Recebido o recurso, o juiz poderá decidir do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
Para que o juiz possa decidir por despacho haverá que considerar desnecessária a audiência de julgamento e deverão o MºPº e o arguido a isso não se oporem ( art.º 64º, n.º s 1 e 2 do R.G.C.O.C.).
Deverá decidir-se por despacho sempre que apenas se levantem questões de direito, desde que não exista oposição do arguido ou do MºPº.
O legislador atribui ao arguido e ao MºPº o direito de submeter a acusação pública a audiência de julgamento, assegurando todas as garantias de defesa, face à estrutura acusatória do processo. Todos os actos estão subordinados ao princípio do contraditório, sendo assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa (art.º 32º, n.ºs 1,5 e 8 CRP).
A previsão de realização da audiência é uma das formas de garantir esses direitos, sendo uma diligência essencial para a descoberta da verdade, derrogável apenas pela renúncia inequívoca das partes.
O despacho recorrido conheceu o recurso interposto decidindo sem a prévia concordância do MºPº e do arguido.
De todo o modo, a apreciação dos efeitos da nulidade cometida no processo administrativo constituía objecto do recurso interposto da decisão administrativa para o tribunal de comarca uma vez que, não obstante a falta de conclusões que têm por fim definir o objecto do recurso e deveria ter conduzido ao convite para o seu aperfeiçoamento, o recorrente invocava a falta de notificação do auto de notícia o que impossibilitou o pagamento voluntário da coima.
E não se diga que a decisão judicial de fls. 19 e ss. se trata de mera decisão de questão prévia que por pôr fim ao processo sem v conhecer do recurso interposto poderia ter outra forma que não o previsto por lei para as decisões judiciais proferidas em sede de recurso de impugnação judicial.
O RGCOC apenas prevê a rejeição do recurso (art.º 63º) ou a sua apreciação mediante sentença ou através de despacho desde que verificado o condicionalismo do art.º 64º . E é precisamente para casos como o de existir mera questão de direito que não implique produção de prova ou de apreciação de outra qualquer questão prévia ou incidental que obste à apreciação do mérito que o legislador previu a possibilidade de decisão do recurso por despacho.
O despacho recorrido, uma vez que foi proferido sem prévio cumprimento da audição das partes a que alude o art.º 64º, n.º2 RGCOC, embora apenas tenha apreciado questão de direito, questão que constituía já objecto do recurso interposto pelo recorrente, enferma de nulidade insanável p.p. pelo art.º 119º, al. c) do CPP, aplicável ex vi do art.º 41º RGCOC.
O ARL de 13.3.90, BMJ 395,650, concluiu pela nulidade insanável, prevista no art.º 119º, al. f) e d) CPP, ao julgar que a decisão que venha a ser proferida por simples despacho sem prévia audição dos referidos intervenientes processuais, está abrangida por nulidade insanável.
Já o A.R.E de 20.5.97, CJ 97, III, 283, decidiu pela nulidade insanável da decisão proferida sem precedência da audição das partes.
Neste acórdão se diz “...nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência – art.º 32º, n.º8 CRP e de acordo com o art.º 50º do DL 433/82 de 27.10 não é permitida a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado a possibilidade de o arguido se pronunciar sobre a mesma. Ora se ao direito de audiência é conferível dignidade constitucional, a postergação de tal direito só tem protecção adequada se tal omissão se considerar nulidade insanável, tal como sucede com a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência – art.º 119º, al. c) CPP”.
Deste modo verifica-se a nulidade insanável do art.º 119º al. c) e a nulidade do art.º 120º, n.º2 al. d), o que torna inválida a decisão proferida (art.º 122º, n.º1 CPP).
Porém, deve o recurso, tanto quanto possível, apreciar o maior número de questões que afectem a decisão ou que invalidem o processo com vista a evitar a a prática de actos inúteis. A invalidade da decisão judicial apenas afectaria esta com o consequente cumprimento do disposto no art.º 64º, n.º2 RGCOC. A decisão que viesse a ser proferida poderia porém vir a sofrer do mesmo vício de que padecia a actual e cujos efeitos de declaração de nulidade nela atribuídos são mais extensos do que os que a lei determina.
Porque esta apreciou a nulidade que afectaria a própria decisão administrativa, haverá que verificar qual o efeito da nulidade apontada pelo recorrente à omissão cometida no processo administrativo já que os eventuais efeitos desta invalidade serão necessariamente mais abrangentes do que os que afectam a própria decisão judicial.
Nos termos do art.º 50º RGCOC “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
Da análise do processo administrativo não se pode concluir que a autoridade administrativa tenha notificado o recorrente para se pronunciar acerca do auto de notícia formulado pela autoridade administrativa e junta a fls. 1 e ss. Deste auto constam os factos integradores do comportamento que, de acordo com a acção de fiscalização efectuada pela DGV, é susceptível de constituir a contra-ordenação que lhe é imputada e as sanções que correspondem a tal contra-ordenação.
Essa falta de notificação inviabilizou o direito de defesa e audição do arguido no processo administrativo, que se traduz na possibilidade de este se pronunciar acerca das imputações que lhe são feitas, exercendo assim o seu direito de defesa e invocando ou fornecendo os elementos de que decorre, nomeadamente o reconhecimento do comportamento que lhe é imputado e das circunstâncias susceptíveis de definirem a culpa do agente ou o conhecimento da ilicitude ou a intenção que presidiu à sua actuação ou a ausência da mesma.
A referida comunicação destina-se a garantir-lhe um direito de audição, por forma a que ele possa fornecer elementos úteis à definição da situação e à aplicação da sanção, mas não constitui uma acusação nem a lei lhe atribui tal significado, não sendo aqui aplicáveis, na fase administrativa, as normas que regem a acusação em processo penal.
A omissão verificada configura uma nulidade principal e insanável que consiste na falta de audição do arguido e que determina a invalidade do acto e de todos os dele dependentes e que forem afectados pela mesma.
Conforme resulta do teor do acórdão da Relação de Évora atrás citado e a que se adere em jurisprudência que se vem seguindo, pelo menos desde o acórdão por nós relatado no recurso 715/99 dessa mesma Relação, não publicado, a falta de notificação ao arguido para se pronunciar acerca da contra-ordenação que lhe é imputada, conforme determina o art.º 50º RGCOC, tal como a falta de audição do arguido ou dos demais sujeitos processuais para se porem ou não à decisão do recurso de impugnação judicial por mero despacho e sem necessidade de realização de audiência, conforme determina o art.º 64º, n,º2 RGCOC, configuram a nulidade insanável equiparável a ausência do arguido nos casos em que a lei exigiu a sua comparência, prevendo tal nulidade “ não só a ausência física da pessoa dos arguidos mas também a ausência processual destas por não terem sido notificados como deviam ter sido em vista à tomada de posição sobre factos que originaram o processo de contra-ordenação...”.
No caso, a omissão do cumprimento do art.º 50º RGCOC constitui a nulidade do art.º 119º, al. c) CPP aplicável por força do art.º 41º, n,º1 RGCOC que afecta a decisão administrativa proferida tal como a falta de cumprimento do art.º 64º, n.º2 RGCOC e todos os actos posteriores determinaria a invalidade da decisão judicial recorrida caso esta não decorresse já da nulidade anteriormente declarada e cujos efeitos se definiu.
Porém, tal como defende o recorrente a declaração de nulidade não afecta todo o processo mas apenas os que dependerem do acto nulo e a nulidade em causa não pode conduzir a uma decisão de mérito de absolvição mas apenas a uma decisão prévia e formal de declaração de nulidade da decisão administrativa que foi proferida sem o prévio cumprimento do art.º 50º RGCOC e os actos posteriores afectados por tal nulidade mas sem afectar o auto de notícia que deu origem ao processo (art.º 122º, n.ºs 1 e 3 CPP).
4.
Pelo exposto, acordam os juízes em julgar procedente o recurso e em revogar a decisão recorrida que se substitui por outra que, determinando a nulidade da decisão administrativa, determine o reenvio do processo à autoridade administrativa para que esta dê cumprimento ao disposto no art.º 50º RGCOC antes de proferir eventual decisão de aplicação de uma coima.
Sem tributação.

Lisboa.27/01/2004
( Filomena Lima)
( Ana Sebastião)
( Pereira da Rocha)