Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
74/05.8TBSLX.L1-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
INEPTIDÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1 - A união de facto considera-se dissolvida, nomeadamente, mediante acto jurídico que se consubstancia na mera vontade de um dos seus membros.
2 - Cada um pode romper a relação quando quiser sem que o outro possa pedir qualquer indemnização, mas o direito à utilização da casa de morada de família, em caso de dissolução da união de facto, encontra-se protegido.
3 - Quer a casa seja um bem próprio de um dos ex – companheiros, quer seja um bem comum ou de outrem (arrendada), qualquer um dos ex – companheiros tem o direito de solicitar ao Tribunal que lhe atribua o direito à utilização de casa (habitação) que foi a morada de família, quando ainda unida.
4 - A dissolução da união de facto, nomeadamente por vontade de um dos seus membros, terá de ser judicialmente declarada, quando se pretendam fazer valer direitos da mesma dependentes, a proferir na acção onde os direitos reclamados são exercidos, ou em acção que siga o regime processual das acções de estado.
5 - A lei impõe que o tribunal profira tal declaração mas não impõe que o interessado deduza tal pedido como se estivéssemos face a uma cumulação real de pedidos.
6 – Assim, pretendendo a autora que lhe seja atribuído o direito à utilização da casa de morada de família, a declaração da dissolução da união de facto é um pressuposto do reconhecimento desse direito, uma vez que se trata de fazer valer os direitos que a lei confere à autora, enquanto ex – companheira de uma união de facto já dissolvida (artigo 3º, alínea a), nada impedindo que o tribunal declare tal dissolução, não obstante a mesma não ter sido peticionada.
7 - Se a crise da pretensão deduzida em juízo reside, não na falta de correspondência lógica – normativa entre o facto concreto alegado pelo autor e a providência jurisdicional, mas na simples falta real de um pressuposto (seja de facto, seja de direito) da concessão desta providência, a situação é de improcedência da acção e não de contradição entre o pedido e a causa de pedir.
8 - Portanto, ainda que faltasse um pressuposto de direito da concessão da providência, não haveria fundamento para a absolvição do réu de instância, dado não existir contradição entre o pedido e a causa de pedir.
(G.F.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
[E] intentou acção especial de atribuição da casa de morada de família contra [C], alegando, no essencial, que viveu com o réu, em união de facto, cerca de doze anos, numa casa que era propriedade dela, da qual foi obrigada a sair, por ser alvo de maus tratos por parte do réu.
Passou, por isso, a viver em casa arrendada com os dois filhos, não dispondo, porém, de condições económicas que lhe permitam manter a situação, já que além da renda que suporta, é ela que continua a pagar a amortização do empréstimo que contraiu para aquisição da casa onde actualmente o réu vive, necessitando dela para residir com os filhos.
Conclui, pedindo que lhe seja atribuído o direito à utilização da casa de morada de família.

Entretanto, por despacho de fls. 112/113, foi julgada inepta a petição inicial, tendo o réu sido absolvido da instância.

A autora recorreu, formulando as seguintes conclusões:
1ª – A requerente alegou todos os factos necessários de forma a poder ser reconhecido o direito que a mesma tem à utilização da casa de morada de família.
2ª – O espírito da lei é que o pedido de atribuição de casa de morada de família pode ser efectuado quando a casa é um bem próprio da requerente/agravante que, no momento, se vê impedida de usar do seu direito de utilização da casa de morada de família previsto na lei, até porque quem pode o mais, pode o menos.
3ª – Atenta a factualidade descrita na petição inicial, o que está em causa não é a posse jurídica, mas sim o direito à utilização da casa de morada de família, direito esse que a recorrente pretende que lhe venha a ser judicialmente reconhecido.
4ª – O imóvel que constitui casa de morada de família é um bem próprio da recorrente ocupado pelo ex – companheiro da mesma, a quem a lei confere o direito de utilização da casa de morada de família da mesma forma que o confere à recorrente que, no entanto, está coarctada desse direito por aquele.
5ª – Ao ter julgado inepta a petição inicial e absolvido o réu da instância, o Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto nos artigos 1º, nº 1, 3º, alínea a) e 4º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio e artigos 1413º, n.º 1, do CPC e artigo 1793º do Código Civil.

Não houve contra – alegações.

Cumpre decidir:
2.
A questão a decidir consiste em saber se o pedido de atribuição de casa de morada de família, feito por um ex – membro de união facto relativamente a casa que seja um bem próprio seu, constitui fundamento para que seja declarada a ineptidão da petição inicial.
3.
Com interesse para a decisão interessam os seguintes factos que a autora alegou:
1º - A autora viveu em união de facto com o agravado cerca de doze anos.
2º - Da união de ambos nasceram dois filhos menores.
3º – A autora e o réu viviam com os filhos menores de ambos, na casa sita na (...), Costa da Caparica.
4º - A referida casa é uma fracção autónoma destinada à habitação, propriedade exclusiva da autora.
5º - No dia 14 de Junho de 2003, a autora teve de sair de casa com os filhos menores e ir viver para uma instituição pela circunstância do réu ser uma pessoa bastante violenta, física e psicologicamente, com aquela.
6º - Para a autora é financeiramente incomportável continuar a suportar os encargos de outra habitação.
7º - Apesar de ter sido várias vezes instado para sair da casa de morada de família, o agravado recusa-se a sair, alegando que tem direito de lá morar, pelo facto de ter vivido com a autora em união de facto.
8º - A autora encontra-se, face ao exposto, impedida de utilizar a casa de morada de família.
9º - Sendo que a autora custeia todas as despesas do imóvel que constitui casa de morada de família, designadamente a amortização mensal do empréstimo bancário para aquisição do imóvel, e, bem assim, de outro imóvel que, entretanto, teve de arrendar para poder viver com os filhos em segurança.
10º - O réu não paga nenhuma daquelas despesas.
11º - A autora não tem condições económicas que lhe permitam comprar ou arrendar outra casa.
4.
A Lei 7/2001 regula a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos.
A lei considera a união de facto dissolvida, nomeadamente, mediante acto jurídico que se consubstancia na mera vontade de um dos seus membros (artigo 8º, n.º 1, alínea b).

Cada um pode romper a relação quando quiser sem que o outro possa pedir qualquer indemnização, mas o direito à utilização da casa de morada de família, em caso de dissolução da união de facto, encontra-se protegido.

Quer a casa seja um bem próprio de um dos ex – companheiros, quer seja um bem comum ou de outrem (arrendada), qualquer um dos ex – companheiros tem o direito de solicitar ao Tribunal que lhe atribua o direito à utilização de casa (habitação) que foi a morada de família, quando ainda unida.

Casa de morada de família é aquela que constitua ou tenha constituído a residência permanente dos cônjuges, ou companheiros de união de facto, a sua residência principal e que um dos mesmos seja titular do direito que lhe confira o direito à utilização da mesma.

“A casa de morada de família manterá esta qualificação se for e enquanto for a “residência da família”, fixada nos termos do artigo 1673º CC. Assim, a casa de morada de família só deixará de o ser se os cônjuges (ou companheiros) acordarem, expressa ou tacitamente, na alteração da sua residência, ou se o tribunal fixar uma nova residência a requerimento de qualquer dos cônjuges. Também é óbvio o desaparecimento da casa de morada de família na hipótese de separação de pessoas e de bens[1]”, ou de dissolução da união de facto.

Resulta, pois, do exposto que esta dissolução da união de facto, nomeadamente por vontade de um dos seus membros, apenas terá de ser judicialmente declarada, quando se pretendam fazer valer direitos da mesma dependentes, a proferir na acção onde os direitos reclamados são exercidos, ou em acção que siga o regime processual das acções de estado (artigo 8º, n.º 2).

Assim, se um dos ex – companheiros da união de facto dissolvida pretender exercer direitos que dela dependam, como é o caso do direito à atribuição da casa de morada de família, impõe-se ao tribunal, constatada a união de facto e a sua dissolução, que assim o declare.
Tal declaração constitui um pressuposto do reconhecimento do direito à casa de morada de família e residência comum, impondo-se que seja proferida apenas quando se trate de fazer valer os direitos que a lei confere aos ex – companheiros de uma união de facto já dissolvida.
A lei impõe que o tribunal profira tal declaração mas não impõe que o interessado deduza tal pedido como se estivéssemos face a uma cumulação real de pedidos.
Acresce que, em sede de jurisdição voluntária, será admissível a decisão mais conveniente e oportuna que o tribunal entenda dever proferir, ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu.

E o processo de atribuição de casa de morada de família é um processo de jurisdição voluntária, regulamentado no artigo 1413º CPC.

Assim, “a declaração de dissolução da união de facto não tem autonomia em relação ao pedido que o companheiro da união de facto já dissolvida haja deduzido. Por isso, estando nós perante uma cumulação aparente, o tribunal não desrespeita o princípio do pedido quando conhece o pedido que foi deduzido (o de atribuição da casa de morada de família), declarando o pressuposto de que o pedido depende, ou seja, declarando dissolvida a união de facto[2]”.

In casu, a autora alegou, na petição inicial, que viveu em união de facto com o réu, cerca de doze anos, numa casa que era propriedade dela.
Dadas as sucessivas agressões de que era vítima, a autora teve de sair dessa casa, que era a casa de morada da família, (constituída pela autora, pelo réu e por dois filhos menores nascidos desta união), quando, no dia 14/06/2003, voltou a ser barbaramente agredida e expulsa da casa, tendo passado a viver noutra habitação com os filhos.

Considerando ser seu propósito não voltar a viver com o réu, a união de facto encontra-se dissolvida.

A autora está, porém, financeiramente impossibilitada de continuar a comportar os encargos de outra habitação, tanto mais que ainda continua a suportar os encargos com a casa, onde agora habita o réu, e que este se recusa a deixar, com fundamento de que era a casa de morada de família.

Neste circunstancialismo, pretendendo a autora que lhe seja atribuído o direito à utilização da casa de morada de família, a declaração da dissolução da união de facto é um pressuposto do reconhecimento desse direito, uma vez que se trata de fazer valer os direitos que a lei confere à autora, enquanto ex – companheira de uma união de facto já dissolvida (artigo 3º, alínea a), nada impedindo que o tribunal declare tal dissolução, não obstante a mesma não ter sido peticionada.

No despacho recorrido, o tribunal a quo, abandonando a tese aflorada no despacho que declarou a incompetência do Tribunal a quo, veio declarar que a petição inicial era inepta. Defendeu esta decisão com o fundamento de que apenas o réu poderia vir intentar a presente acção.

Com efeito, segundo o Tribunal a quo, se é certo que o pedido de atribuição de casa de morada de família pode ser feito por um dos ex – membros da união de facto (artigo 4º, n.º 4), não é menos certo que tal pedido apenas pode ser feito relativamente a casa que seja comum ou própria do outro.

Ora, não sendo a habitação em causa comum da autora e réu, nem tão pouco bem próprio do réu, sendo antes a autora, e apenas ela, a titular do respectivo direito de propriedade, está-lhe vedado o direito de vir intentar a presente acção. Esta a conclusão retirada pelo Tribunal a quo.
O despacho recorrido faz uma interpretação restritiva do artigo 1793º do Código Civil.
Segundo tal normativo, o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum, quer própria do outro e isto porque não faria sentido o arrendamento de uma casa própria.

Mas, in casu, a autora não pede que lhe seja atribuído o direito ao arrendamento sobre aquela casa. A autora pede sim que lhe seja atribuído o direito à utilização da casa que foi a casa da morada de família.

Na verdade, de acordo com os factos explanados na petição inicial, o que está em causa não é a posse jurídica, nem a atribuição do direito ao arrendamento, mas sim o direito à utilização da casa de morada de família.
Ora, em nosso entender, quer a casa seja um bem próprio de um dos cônjuges, quer seja um bem comum ou de outrem (casa arrendada), qualquer um dos ex – companheiros tem o direito de solicitar ao tribunal que lhe atribua o direito à habitação da casa que foi a morada de família, quando ainda unida.

O espírito da lei é que o pedido de atribuição de casa de morada de família também possa ser efectuado, quando a casa é um bem próprio da requerente que, no momento, se vê impedida de usar do seu direito de utilização da casa de morada de família previsto na lei.

Como se referiu, a autora não pode utilizar o bem porque o réu não deixa, alegando que, por ter vivido com a autora durante doze anos em união de facto, tem o direito de utilizar a casa de morada de família.
Uma vez que ambos, recorrente e recorrido, lutam pelo mesmo direito, deverá ser o Tribunal a decidir a qual dos dois deve ser atribuída a casa de morada de família, atendendo, designadamente, às circunstâncias do caso sub judice, ao interesse dos filhos e possibilidades económicas dos progenitores.

Finalmente, importa referir que não existe contradição entre pedido e causa de pedir, como defendeu o despacho recorrido, não havendo, por isso, fundamento para declarar a ineptidão da petição inicial e, consequentemente, a absolvição do réu da instância.

A causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e o significado de uma conclusão: a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão[3].

É no sentido da incompatibilidade lógica entre o facto real, concreto, invocado pelo autor como base da sua pretensão (causa de pedir) e o efeito jurídico por ele requerido (pedido) através da acção judicial, que a doutrina e a jurisprudência interpretam e aplicam a contradição prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 193º CPC.
Se a crise da pretensão deduzida em juízo reside, não na falta de correspondência lógica – normativa entre o facto concreto alegado pelo autor e a providência jurisdicional, mas na simples falta real de um pressuposto (seja de facto, seja de direito) da concessão desta providência, a situação é de improcedência da acção e não de contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Portanto, ainda que faltasse um pressuposto de direito da concessão da providência, não haveria fundamento para a absolvição do réu de instância, dado não existir contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Tanto bastaria para que a decisão do Tribunal a quo não pudesse ser aceite.

Concluindo:
1 - A união de facto considera-se dissolvida, nomeadamente, mediante acto jurídico que se consubstancia na mera vontade de um dos seus membros.
2 - Cada um pode romper a relação quando quiser sem que o outro possa pedir qualquer indemnização, mas o direito à utilização da casa de morada de família, em caso de dissolução da união de facto, encontra-se protegido.
3 - Quer a casa seja um bem próprio de um dos ex – companheiros, quer seja um bem comum ou de outrem (arrendada), qualquer um dos ex – companheiros tem o direito de solicitar ao Tribunal que lhe atribua o direito à utilização de casa (habitação) que foi a morada de família, quando ainda unida.
4 - A dissolução da união de facto, nomeadamente por vontade de um dos seus membros, terá de ser judicialmente declarada, quando se pretendam fazer valer direitos da mesma dependentes, a proferir na acção onde os direitos reclamados são exercidos, ou em acção que siga o regime processual das acções de estado.
5 - A lei impõe que o tribunal profira tal declaração mas não impõe que o interessado deduza tal pedido como se estivéssemos face a uma cumulação real de pedidos.
6 – Assim, pretendendo a autora que lhe seja atribuído o direito à utilização da casa de morada de família, a declaração da dissolução da união de facto é um pressuposto do reconhecimento desse direito, uma vez que se trata de fazer valer os direitos que a lei confere à autora, enquanto ex – companheira de uma união de facto já dissolvida (artigo 3º, alínea a), nada impedindo que o tribunal declare tal dissolução, não obstante a mesma não ter sido peticionada.
7 - Se a crise da pretensão deduzida em juízo reside, não na falta de correspondência lógica – normativa entre o facto concreto alegado pelo autor e a providência jurisdicional, mas na simples falta real de um pressuposto (seja de facto, seja de direito) da concessão desta providência, a situação é de improcedência da acção e não de contradição entre o pedido e a causa de pedir.
8 - Portanto, ainda que faltasse um pressuposto de direito da concessão da providência, não haveria fundamento para a absolvição do réu de instância, dado não existir contradição entre o pedido e a causa de pedir.

5.
Pelo exposto, concedendo provimento ao agravo, revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento dos autos, com a inquirição das testemunhas, com vista a poder ser apreciado o pedido da autora.
Sem custas.
Lisboa, 5 de Março de 2009
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela dos Santos Gomes
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[1] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume I, 2ª edição, 394.
[2] Acórdão da Relação de Lisboa, de 3 de Julho de 2008, CJ, Ano XXXIII, Tomo III, 121.
[3] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, III, 381.