Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8169/2008-7
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: ARRENDAMENTO
APLICAÇÃO DA LEI
OBRAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Nos termos do nº 3 do artigo 59º da Lei nº 6/2006, de 27-2, as normas supletivas contidas no Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor daquela lei (28-6-2006), quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente à data da celebração do contrato, caso em que será aplicável esta norma.
2. O disposto na 2ª parte do nº 2 do artigo 1111º do CC, na redacção dada pelo Lei nº 6/2006, de 27-2, contém uma norma supletiva que não é aplicável aos contratos de arrendamento para comércio e indústria celebrados sob a vigência do CC de 1966, na sua redacção originária, porquanto a norma supletiva era então a da exigência do consentimento escrito do senhorio, mormente quanto à realização das obras a que se referia a alínea d) do nº 1 do artigo 1093º daquele Código.
3. Não obstante isso, é aplicável aos contratos de arrendamento urbano pretéritos o quadro normativo dos fundamentos da resolução constante do artigo 1083º do CC, na redacção dada pela Lei nº 6/2006.
4. Embora não conste da tipologia enunciativa do actual nº 2 do artigo 1083º do CC, como causa de resolução do contrato pelo senhorio, a realização de obras ilícitas por parte do arrendatário, daí não pode extrair-se sem mais a sua irrelevância, já que a realização de tais obras pode consistir em violação contratual, nos termos da cláusula geral ali prevista, a ponderar em cada caso, em função da respectiva gravidade e consequências, quando torne inexigível ao senhorio manter o arrendamento.
5. A realização pelo locatário de obras, em estabelecimento comercial, que importem uma significativa alteração da disposição interna do locado mediante a aplicação de materiais e estruturas inamovíveis, sem consentimento do senhorio, quando este era exigível, constitui fundamento de resolução do contrato, nos termos do nº 2 do artigo 1083º do CC;
6. Na hipótese prevista na 2ª parte do nº 2 do artigo 1111º do CC, salvo convenção em contrário, o arrendatário só não carece de autorização do senhorio para realizar obras de conservação ordinária ou extraordinária exigidas por lei ou requeridas pelo fim do contrato.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

                     I – Relatório

1. M… e E… intentaram acção de despejo imediato, sob a forma de processo sumário, contra A…, Ldª, alegando, em resumo, que :

            - há cerca de 40 anos, os antepossuidores dos A.A. deram de arrendamento a G… o rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua…, em…, para que o explorasse como café e restaurante, arrendamento esse que acabou por ser cedido à ora R.;

            - em 1991 e 1994, a R. realizou obras de ampliação no locado que alteraram toda a disposição e a planificação interna das respectivas divisões, bem como o miolo do edifício e a parte exterior do prédio, o que fez sem conhecimento e consentimento dos A.A.

            - tais factos constituem violação grave das obrigações da locatária e são fundamento de resolução do arrendamento, nos termos do nº 2 do artigo 1083º do CC.

            Concluíram pedindo que se declare resolvido o contrato de arrendamento e se condene a R. a restituir aos A.A. o locado livre de pessoas e bens com a configuração que tinha quando o recebeu.

            2. Citada regularmente por carta registada com aviso de recepção, a R. não contestou.

            3. Seguidamente, foi proferida sentença final, dando como provados todos os factos alegados na petição inicial, mas a julgar a acção improcedente, por se considerar não verificado o fundamento legal invocado, absolvendo a R. do pedido.

            4. Inconformados com essa decisão, os A.A. apelaram dela, formulando as seguintes conclusões:

1ª O nº 2 do artigo 1111º do CC deve ser lido em conjugação com o disposto no artigo 1074º do mesmo Código;

2ª – Assim, ficou consideravelmente alargado o fundamento de resolução do contrato de arrendamento consistente em realização de obras e deteriorações no prédio, já que todas as que não sejam permitidas pelos artigos 1043º, 1073º e 1074º, nº 2, do CC, passaram a constituir fundamento de resolução do contrato, por violação deste;

3ª - Mas ainda que se veja isoladamente o nº 2 do artigo 1111º do CC, tal normativo apenas consente ao arrendatário a autorização de obras exigidas por lei ou requeridas pelo fim do contrato;

4ª - Dos factos assentes não há um só que nos permita concluir que tais obras eram exigidas por lei;

5ª - Tais obras constituem autênticas inovações que alteram profundamente a estrutura do prédio dos A.A. e que vão manifestamente para além de obras de adaptação do mesmo para o fim do contrato e nem sequer está demonstrado que fossem necessárias;

6ª – Não há qualquer elemento no processo que permita concluir que as obras realizadas pela R. foram impostas por autoridade administrativa, tanto mais que elas tiveram origem num pedido de licenciamento da iniciativa da R. como ressalta dos documentos juntos aos autos;    

7ª – A decisão recorrida violou os artigos 1111º, nº 2, 1043º, 1074º, nº 2, e 1083º, nº 2, do CC, que devem ser interpretados nos termos expostos.

            Pede que seja revogada a sentença recorrida e julgada procedente a acção.

            5. Não foram apresentadas contra-alegações.

            Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

            II – Delimitação do objecto do recurso

            Face ao teor das conclusões dos apelantes, com base nas quais se traça o objecto do recurso, a questão a resolver consiste apenas em saber se a factualidade dada como assente, relativamente às obras realizadas pela R. no arrendado constituem fundamento legal de resolução do ajuizado contrato de arrendamento.

            III – Fundamentação

1. Factualidade dada como provada    

            Uma vez que a R. não contestou a acção, tendo sido pessoal e regularmente citada, e que estamos no domínio de direitos disponíveis, tem-se como assente, por força do preceituado no nº 1 do artigo 484º do CPC, no que aqui releva, a seguinte factualidade :

1.1. Os A.A. são donos do prédio urbano sito na Rua Teófilo Braga nº 71, composto de edifício de rés-do-chão, destinado a café, com duas dependências e logradouro, com 143 metros quadrados de área coberta, 84,90 metros quadrados de superfície descoberta e 77 metros quadrados de logradouro, inscrito sob o artigo … da matriz predial e descrito sob o nº …da Conservatória do Registo Predial de…, com a inscrição nº …da sua aquisição, por partilhas de heranças, a favor dos A.A., conforme documento de fls. 13;

            1.2. Há mais de 40 anos, os antepossuidores dos A.A. deram de arrendamento a G… o referido prédio para o explorar como café e restaurante;

            1.3. Vinte anos mais tarde, por cedência de G…, D… passou a explorar o estabelecimento café e restaurante do referido prédio até 1985;

            1.4. Nesse ano, D… cedeu o referido estabelecimento à sociedade “Ar…, Ldª”, sendo a renda de 37.000$00, hoje equivalente a  € 270,00;

            1.5. Em 1989, aquela sociedade passou a denominar-se “A…, Ldª”, sedeada no referido prédio; 

            1.6. Em 1991 e 1994, a R., por sua iniciativa, realizou obras no arrendado em resultado das quais o prédio passou a ter : duas salas de refeições; uma sala para café e pastelaria; uma copa; sanitários para homens e senhoras; uma cozinha; uma zona de apoio; uma esplanada com cobertura ligeira; uma sala típica; vestiário do pessoal com casa de banho privativa.

            1.7. Na realização dessas obras, a R. :

   a) - procedeu à demolição da cobertura e das paredes da cozinha, da abertura de um vão da segunda sala de refeições com zona de serviços;

   b) - procedeu à movimentação de terras para abertura de fundações das paredes a construir; 

   c) - fez fundações em betão ciclópico;

   d) - e construiu o seguinte: a estrutura geral em betão armado, tendo em conta as zonas a ampliar ou alterar; lajes de cobertura, vigas, pilares e estrutura anti-sísmica; paredes novas em alvenaria de blocos de betão assentes em argamassa de cimento e areia; a cobertura em laje; o pavimento constituído por uma camada de pedra de enroscamento e uma 2ª camada de massame de betão, devidamente afagado para receber o revestimento final em mosaico cerâmico; os tectos pintados sob a laje de betão armado; nova rede de águas de consumo e pluviais; nova rede de esgotos; nova rede de electricidade; chaminés de ventilação;    

1.8. A R. procedeu às obras acima descritas sem consentimento nem o conhecimento dos A.A., o que estes acabaram por saber na altura da propositura da acção.

            2. Do mérito do recurso

            A sentença recorrida considerou que o factualismo em referência não constituía fundamento para a resolução do contrato, nos termos do nº 2 do artigo 1083º do CC, porquanto, tratando-se de um arrendamento não habitacional, o nº 2 do artigo 1111º do mesmo Código autoriza o arrendatário a realizar, no arrendado, as obras exigidas por lei e requeridas pelo fim do contrato e que tal não constituía novidade, na medida em que já o nº 2 do artigo 120º do RAU dispunha que “a realização de obras determinadas pelas autoridades administrativas em função do fim específico do contrato, quando devam ser suportadas pelo arrendatário, não carece de autorização do senhorio”.

            Todavia os apelantes sustentam tese contrária conforme decorre das conclusões acima sumariadas.

            Vejamos.

            Em primeiro lugar, convém observar que, no âmbito deste recurso, não está minimamente questionada a validade da relação arrendatícia, tal como vem figurada pelos próprios A.A., não havendo elementos nos autos para pôr em causa tal validade, pese embora não se encontrar suportada em documentos juntos ao processo.         

Incidindo agora sobre a questão da pretendida resolução do contrato, importa antes de mais determinar qual a lei aplicável ao caso sub judice.

Ora, estamos perante um contrato de arrendamento comercial celebrado pelo menos há 40 anos, caindo assim no domínio de vigência do CC de 1966, na sua redacção original.

Sucede, nos termos dos artigos 59º, nº 1, 65º, nº 2, da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, vigente desde 28 de Junho de 2006, o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) aplica-se às relações contratuais constituídas que subsistam à data da entrada em vigor da nova lei, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias especiais.

Todavia, o nº 3 do citado artigo 59º dispõe que as normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam ao contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que será esta a norma aplicável.

Acontece que, no domínio do CC de 1966, na versão anterior ao RAU, aprovado pelo Dec.-Lei nº 321-B/90, de 15-10, em matéria de realização de obras no arrendado pelo arrendatário, a norma supletiva era a da exigência de consentimento escrito pelo senhorio, mormente quando se tratasse de obras que alterassem substancialmente a estrutura externa ou a disposição interna das suas divisões, ou de quaisquer actos que nele causassem deteriorações consideráveis, igualmente não consentidas e que não pudessem justificar-se nos termos dos artigos 1043º ou 1092º, tal como decorria do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 1093º daquele Código.

Nesse particular, o regime manteve-se na versão primitiva do RAU, só sendo alterado com a introdução do artigo 120º daquele regime, operada pelo Dec.-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro, que veio, em sede de arrendamento para comércio ou indústria, além do mais, no seu nº 2, dispensar a autorização do senhorio, quando se tratasse de realização de obras determinadas pelas autoridades administrativas em função do fim específico constante do contrato. Só que este regime não é aplicável aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, como ressalva expressamente o artigo 6º do mencionado Dec.-Lei.        

Hoje, o artigo 1111º do CC, na redacção dada pela Lei nº 6/2006, no âmbito dos arrendamentos não habitacionais, em que se incluem os anteriormente designados arrendamentos para comércio ou indústria, vem dispor o seguinte:

1 - As regras relativas à responsabilidade pela realização das obras de conservação ordinária e extraordinária, requeridas por lei ou pelo fim do contrato, são livremente estabelecidas pelas partes.

2 – Se as partes nada convencionarem, cabe ao senhorio executar as obras de conservação, considerando-se o arrendatário autorizado a realizar as obras exigidas por lei ou requeridas pelo fim do contrato.   

            Deste modo, em matéria de responsabilidade pela realização de obras de conservação ordinária ou extraordinária, na esfera dos arrendamentos não habitacionais, estabelece-se, em primeira linha, o princípio da liberdade contratual (nº 1), para, seguidamente, se editar uma norma supletiva (nº 2), a qual, no que aqui releva, outorga ao arrendatário autorização para realizar as ditas obras de conservação (subentende-se) que sejam exigidas por lei ou requeridas pelo fim do contrato.

            Nessa medida, a norma supletiva actualmente em vigor mostra-se de sentido oposto ao da norma supletiva, sobre a mesma matéria, que decorria da já citada alínea d) do nº 1 do artigo 1093º do CC, na respectiva versão originária, em vigor à data da celebração do contrato, pelo que será esta a norma aplicável ao caso, em virtude da ressalva feita no nº 3 do artigo 59º da Lei nº 6/2006. Daí que a realização das referidas obras pelo arrendatário careciam de consentimento escrito do senhorio.    

            Já quanto ao fundamento da resolução invocado, rege o novo regime constante do artigo 1083º do CC, na redacção dada pela Lei nº 6/2006, por força do disposto no nº 1 do artigo 59º desta lei.

            Ora, dispõe o nº 2 do referido normativo que “é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento …”.

            Ao invés do que se verificava no domínio da legislação pretérita, fosse no quadro da versão originária do artigo 1093º do CC de 1996, fosse no domínio do artigo 64º do RAU, sucedâneo daquele, em que se previa uma tipologia taxativa de causas de resolução do contrato de arrendamento urbano pelo senhorio, entre as quais figurava a realização de determinada espécie de obras pelo arrendatário sem consentimento escrito daquele, o actual artigo 1083º do CC vem desenhar o fundamento da resolução por qualquer das partes através de uma base técnica bem diferente.

            Assim, o nº 2 do sobredito artigo começa por editar uma cláusula geral que estabelece como fundamento de resolução “o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento …”, cláusula esta que depois, quanto à resolução pelo senhorio, é complementada por uma tipologia meramente enunciativa ou exemplificativa de várias causas, nas quais não figura agora a realização de obras ilícitas pelo arrendatário.

            Porém, daí não se pode extrair que a realização ilícita de obras no arrendado, por parte do locatário, não possa relevar como fundamento da resolução, já que essa realização pode traduzir-se em violação contratual nos termos da referida cláusula geral. Tudo estará pois em apurar, caso a caso, em que medida é que a realização de obras pelo arrendatário se reconduz a violação do contrato que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.

Para tal efeito, importa ter presente o quadro de obrigações contratuais típicas do contrato de arrendamento, em particular, quanto à realização de obras no arrendado.

            Ora, desde logo, recai sobre o senhorio a obrigação de assegurar ao arrendatário o gozo do arrendado para os fins a que se destina, como prescreve a alínea b) do artigo 1031º do CC. No desenvolvimento dessa obrigação, o nº 1 do artigo 1074º do mesmo Código estabelece que “cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinária ou extraordinária, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário”. E, mais especificamente no âmbito dos arrendamentos não habitacionais, o já citado artigo 1111º, nº 2, faz igualmente recair sobre o senhorio tal obrigação, salvo convenção em contrário.

Por seu lado, a alínea d) do artigo 1038º do CC estabelece como uma das obrigações do locatário não fazer utilização imprudente do arrendado e o nº 1 do artigo 1043º prescreve, na falta de convenção em contrário, a obrigação do locatário de manter e restituir a coisa no estado em que a receber, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.

A par disso, segundo o artigo 1073º do CC, é lícito ao arrendatário realizar pequenas deteriorações no prédio arrendado quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade, embora deva reparar tais deteriorações antes de restituir a coisa, salvo estipulação em contrário. E o nº 2 do artigo 1074º do mesmo diploma consigna que o arrendatário só pode executar quaisquer obras quando o contrato o faculte ou quando seja autorizado, por escrito, pelo senhorio, sem prejuízo dos casos urgentes em que o locador se encontre em mora relativamente à obrigação respectiva de fazer reparações ou outras despesas, nos termos do artigo 1036º.

Porém, de acordo com o regime actual, no domínio dos arrendamentos não habitacionais, como sucede no presente caso, prevalece a norma especial contida no nº 2 do artigo 1111º do CC, segundo a qual o arrendatário não carece de autorização do senhorio para realizar obras de conservação ordinária ou extraordinária exigidas por lei ou requeridas pelo fim do contrato. Só que, como já foi dito, esta norma supletiva não é aplicável ao caso dos autos, mas sim a norma supletiva da necessidade de consentimento escrito do senhorio que deflui do inciso contido na alínea d) do nº 1 do artigo 1093º do CC, na redacção primitiva.             

Sucede que a lei actual, apesar de se referir a obras de conservação ordinária ou extraordinária, não nos dá uma definição categorial das mesmas e nem sequer designa as obras de outro tipo, como claramente constava dos artigos 11º e 13º do RAU, em que se fazia a distinção entre obras de conservação ordinária e extraordinária e se lhes contrapunham as obras de beneficiação.

De todo o modo, sempre se pode recorrer à categorização das benfeitorias constante do artigo 216º do CC para, com base nela, considerar como obras de conservação ou benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa e como obras de beneficiação ou benfeitorias úteis as obras que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, lhe aumentam o valor.

Do que fica dito, torna-se claro que as obras de conservação ordinária ou extraordinária podem ser realizadas pelo senhorio ou pelo arrendatário nas condições e termos estabelecidos no contrato e na lei. Porém, as obras de beneficiação não são facultadas sequer ao arrendatário, o que bem se compreende, uma vez que ele, gozando apenas do desfrute do arrendado, só muito restritamente tem direito a transformá-lo[1].

 Retomando aqui o caso vertente, constata-se que a R. realizou no arrendado obras que importam, no limite, uma significativa alteração da sua disposição interna, ao acrescentar às duas dependências anteriores novas divisões, instalação de sanitários, cozinha, copa, vestiário, conforme resulta do confronto dos factos descritos nos pontos 1.1 e 1.6 da factualidade assente; e que tais obras foram efectuadas mediante a utilização de estruturas e material de ligação consistente e não amovível, como se alcança da descrição vertida no ponto 1.7 da mesma factualidade. Não é, no entanto, claro, se tais obras implicaram alteração substancial da estrutura externa do prédio, nomeadamente das suas linhas arquitecturais ou estéticas.

De qualquer modo, as referidas obras não se assumem como necessárias para evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa. E, no espectro do factualismo provado, não se vislumbra que fossem necessárias à realização do fim contratual, tanto mais que o arrendado funcionou como café e restaurante, desde há mais de 40 anos até pelo menos 1991. Nem consta dos autos que as obras tenham sido impostas ou determinadas pela autoridade administrativa, bem pelo contrário, está assente que a sua realização partiu da iniciativa da própria R. (ponto 1.6 da factualidade assente). 

Não se ignora que, com a evolução dos tempos, um café-restaurante dos finais da década de sessenta se tornará porventura desajustado face às exigências de funcionamento requeridas nos anos noventa. Mas trata-se de uma consideração genérica que não deve ser, sem mais, transposta para o julgamento de determinado caso, o qual envolve uma apreciação das circunstâncias concretamente existentes. Com efeito, tanto podemos estar perante obras ainda indispensáveis à realização do fim contratual, entendendo este numa perspectiva aberta, dinâmica e actualista, como poderemos estar já face a obras de beneficiação não exigidas pelo escopo do contrato e que portanto não poderão ser impostas ao senhorio.               

Assim sendo, para caracterizar o eventual incumprimento contratual do arrendatário por realização de obras ilícitas, incumbe ao senhorio que pretenda a resolução do arrendamento alegar e provar a realização de obras, por parte do arrendatário, que, não lhe sendo permitidas ou consentidas, extravasem do âmbito das reparações de deteriorações lícitas definido no artigo 1073º do CC. Por seu turno, recairá sobre o arrendatário o ónus de alegar e provar, a título de facto impeditivo do direito de resolução, que as obras realizadas por ele fora daquele âmbito se mostram requeridas pelo fim contratual ou exigidas por entidade pública. E, no caso presente, dado não existir o então devido consentimento do senhorio, ao arrendatário incumbia ainda provar que aquele teria injustificadamente recusado a realização das obras necessárias, a ponto de o exercício do direito de resolução se traduzir em abuso de direito.       

No caso em foco, os A.A. alegaram a realização de obras pela R. que, pela sua natureza e dimensão, não só excedem claramente o âmbito das deteriorações lícitas previsto no artigo 1073º do CC, como se traduzem numa alteração consolidada da estrutura interna do arrendado, que não se mostra ser exigível os A.A. suportarem. Alegaram ainda os A.A. que tais obras não foram do conhecimento nem consentidas por eles, donde resulta implícita a alegação da necessidade desse consentimento, conforme a norma supletiva em vigor à data da celebração do contrato.

Sucede que a R. nem tão pouco contestou a acção, o que tornou assentes, por confissão ficta, os factos alegados pelos A.A., nos termos do nº 1 do artigo 484º do CPC. Acresce que a falta de contestação da R. prejudica, por si só, qualquer consideração oficiosa, a título de factos impeditivos, sobre eventuais exigências requeridas pelo fim contratual ou legalmente impostas por autoridade pública.

E mesmo que se considerasse aplicável o disposto no nº 2 do artigo 1111º do CC, na redacção dada pela Lei nº 6/2006, ainda assim se impunha concluir que as obras realizadas não se afiguram como obras de conservação ordinária ou extraordinária exigidas pela lei ou pelo fim contratual, mas, quando muito, como benfeitorias úteis ou obras de beneficiação que a lei não autoriza, supletivamente, o arrendatário a realizar sem consentimento do senhorio.

Pode parecer de algum modo perturbador que, tendo as obras sido realizadas no período de 1991 a 1994, só em 2008 os A.A. venham intentar a presente acção. Mas o que é certo é que a excepção de caducidade do direito de resolução do contrato de arrendamento prevista no artigo 1085º do CC depende de invocação do réu, nos termos do artigo 303º ex vi do nº 2 do artigo 333º do mesmo Código, por se encontrar estabelecida em matéria de direitos disponíveis, invocação essa que não ocorre no presente caso.

Além disso, os A.A., no artigo 6º da petição inicial, alegaram que, à data da propositura da acção, acabaram de saber da realização daquelas obras, o que constitui, face à revelia operante da R., facto assente, que obsta a que se possa considerar como não verificada a inexigibilidade da manutenção do arrendamento pelo senhorio, nos termos do nº 1 do artigo 1083º do CC.

            Posto isto, conclui-se que a realização no arrendado das obras acima descritas, por parte da R., sem autorização do senhorio consubstanciam incumprimento do contrato de arrendamento, imputável à mesma R., a título de culpa presumida, nos termos do nº 1 do artigo 799º do CC. Tal incumprimento não pode deixar de ser qualificado de grave, dada a natureza e dimensão das referidas obras, que tornam inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento, constituindo assim fundamento de resolução, nos termos do nº 1 do artigo 1083º do mesmo diploma.

            Consequentemente, além da resolução do contrato, impende sobre a R. a obrigação de restituir o locado aos A.A. no estado em que o mesmo foi entregue aquando a celebração do arrendamento, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato, nos termos estatuídos no nº 1 do artigo 1043º do CC.

            Termos em que procede a apelação, impondo-se revogar a sentença recorrida, substituindo-a por decisão que julgue inteiramente procedente a acção.

            IV – Decisão

            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e, em sua substituição, julgar inteiramente procedente a acção, decidindo :

   a) – declarar resolvido o contrato de arrendamento em causa;

               b) – condenar a R. a entregar aos A.A. o locado identificado no ponto 1.1 da factualidade assente, livre de pessoas e bens, no estado em que o mesmo foi entregue aquando da celebração do contrato, ressalvadas as deteriorações inerentes à prudente utilização do mesmo em consonância com o fim do arrendamento.

            Custas da acção e do recurso a cargo da R.

Lisboa, 21 de Outubro de 2008

Manuel Tomé Soares Gomes

Maria do Rosário Oliveira Morgado

Rosa Maria Ribeiro Coelho

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[1] A este propósito, vide Prof. Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, Almedina, 3ª Edição, pag. 103.