Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10938/2008-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
EXCESSO DE VELOCIDADE
CULPA
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/31/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Sumário: I – O atravessamento de um veiculo à frente de um outro, ocupando o espaço que antes era livre e visível para o condutor deste, traduz-se no surgimento de um obstáculo antes inexistente, não envolvendo, para este condutor, a violação da obrigação de regular a velocidade de maneira a poder imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

II – A culpa de um condutor por não ter usado o espaço livre à sua esquerda só pode ser afirmada se se tiver provado que tal espaço estava, de facto, livre e desocupado.

                                                        (Sumário da Relatora)

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I - Hospital …, S.A., intentou contra A – Companhia de Seguros, S.A., a presente acção declarativa com processo sumário, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 9.095,21, acrescida de juros de mora já vencidos no montante de € 29,90 e dos vincendos à taxa legal, correspondendo a primeira das ditas quantias ao preço, ainda não pago, da assistência que prestou ao condutor e ao ocupante de um motociclo para tratamento das lesões que sofreram por virtude de um acidente de viação ocorrido com um veículo coberto por seguro de responsabilidade civil contratado com a ré e devido exclusivamente a culpa do condutor deste último veículo.
A ré contestou, imputando a produção do acidente à culpa exclusiva do condutor do motociclo e pedindo, com base nisso, a sua absolvição do pedido.
Com fundamento na simplicidade da causa, não se procedeu à selecção da matéria de facto e, realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido por se haver atribuído o acidente em causa a culpa exclusiva do condutor do motociclo.
Inconformado, apelou o autor, tendo apresentado alegações onde pede a substituição da sentença por decisão que condene a ré no pedido e formula as seguintes conclusões:
1 – O condutor e segurado na ré efectuou uma manobra de mudança de direcção para a esquerda, deixando um rasto de travagem de 0,70 metros antes de ter ocorrido o embate.
2 – O condutor do motociclo antes do embate deixou um rasto de travagem de 12,50 metros, totalmente na mão de trânsito que lhe competia.
3 – Não se provou que o condutor do motociclo circulasse com as luzes apagadas, completamente descontrolado, ora numa via, ora noutra, com a roda da frente no ar e a ultrapassar o traço contínuo.
4 – Provou-se que o condutor e segurado na ré conduzia o veículo automóvel com uma taxa de alcoolemia de 0,98 g/l.
5 – O condutor do veículo automóvel poderia e deveria ter-se apercebido que o sinistrado circulava pela faixa de rodagem para onde pretendia mudar de direcção.
6 – Até porque no local a estrada forma uma recta com boa visibilidade.
7 – O condutor do veículo automóvel, contrariamente ao que se decidiu, não tomou as devidas precauções ao efectuar a manobra de mudança de direcção para a esquerda.
8 – Contribuiu assim, e exclusivamente, com o seu comportamento para a produção do acidente.
9 – Sendo por isso totalmente culpado.
10 – A sentença recorrida violou desta forma o disposto no artigo 44º nº 1 e 2 do Código da Estrada.
Em contra-alegações apresentadas, a ré sustentou a improcedência da apelação, com a manutenção da sentença.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pela recorrente nas suas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso.

II - Ao contrário do que preceitua o nº 3 do art. 791º do CPC – diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência -, a decisão proferida sobre a matéria de facto consta da própria sentença, onde foram descritos, com a respectiva fundamentação, os factos julgados como provados e como não provados, uns e outros do seguinte teor:
PROVADOS:
I – No dia 17 de Março de 2005, cerca das 19h00, ocorreu um acidente de viação na E.M. 567, na localidade de R.. comarca de C.. em que foram intervenientes: o motociclo com o nº de matrícula SR…., conduzido pelo seu proprietário B, e o veículo ligeiro de passageiros com o nº de matrícula EE …, conduzido pelo seu proprietário C...
II – O motociclo com o nº de matrícula SR …. circulava por aquela estrada, na sua mão de trânsito, no sentido de trânsito R…/C...
III – O veículo ligeiro de passageiros com o nº de matrícula EE… provinha do concelho de C… e, naquele momento, efectuava uma manobra de mudança de direcção à esquerda a fim de seguir para o lugar de Z….
IV – O condutor do veículo EE.. , ao aproximar-se do entroncamento para o Z…, chegou-se ao eixo da via e assinalou com o pisca a sua intenção de mudar de direcção à esquerda.
V – O condutor do veículo EE.. tendo verificado que podia seguir, visto não haver nenhum veículo em sentido contrário, avançou e, quando já tinha ultrapassado o eixo da via, foi embatido na roda traseira direita pelo motociclo .
VI – Em consequência do embate, o EE.. foi arrastado e atirado para fora da estrada, ficando paralelo a esta com a frente virada para a R...
VII – No momento do acidente o motociclo SR… transportava, para além do condutor, outro ocupante.
VIII – No momento do acidente o motociclo SR… não possuía seguro de responsabilidade civil.
IX – Efectuado o teste de despistagem de alcoolémia ao condutor do veículo EE…, este acusou uma TAS de 0,98 g/l.
X – Do acidente resultaram ferimentos no condutor do motociclo SR… e respectivo ocupante, M.., os quais foram de imediato transportados até aos serviços de urgência da autora para aí receberem os tratamentos médicos adequados, onde voltaram posteriormente para continuar os tratamentos, tendo inclusive ficado internados por alguns dias.
XI – Desses tratamentos médicos efectuados aos sinistrados, resultou um saldo a favor da autora no valor de € 9.095,21 (nove mil e noventa e cinco euros e vinte e um cêntimos).
XII – À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo EE… encontrava-se transferida para a ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice nº …..
NÃO PROVADOS:
- que o veículo EE… efectuou a manobra de mudança de direcção à esquerda sem se certificar de que a podia realizar sem perigo de colidir com o tráfego que na ocasião ali circulava.
- que o veículo EE… embateu com a sua parte lateral esquerda na parte da frente do motociclo, veículo este que circulava na sua mão de trânsito.
- que o motociclo SR.. circulava de luzes apagadas, completamente descontrolado, ora pela via da direita ora pela via da esquerda, com a roda da frente no ar, a fazer “cavalinho” ultrapassando o traço contínuo ali existente.

III - Para formular contra o condutor do motociclo SR o juízo de culpa exclusiva a que acima se aludiu foram destacados na sentença os primeiros seis factos acima enunciados e ponderou-se, depois, o seguinte:
- “Se bem que não se tenha apurado, de forma inequívoca, a que velocidade em concreto circulava o condutor do SR ou se ia distraído, porém era-lhe desde logo exigível que adequasse a velocidade de forma a parar no espaço livre e visível à sua frente, nos termos do artº 24º, nº 1 do Código da Estrada, o que não logrou conseguir indo embater contra o rodado traseiro do lado direito do veículo EE.”;
- “... considerando o local de embate (vide, teor do auto de participação do acidente) a largura da faixa de rodagem de 5,60 metros, portanto 2,80 metros cada hemi-faixa (vide, teor do auto de participação) e a zona do veículo EE atingida no embate (rodado traseiro direito), conclui-se que o condutor do motociclo podia e devia ter evitado o acidente, pois tinha espaço livre à esquerda da hemi-faixa de rodagem por onde circulava (não se apurou que tal espaço tivesse ocupado com outras viaturas) para poder desviar-se do EE., e assim, evitar a colisão. O que só não conseguiu em virtude da velocidade desadequada que imprimia ao motociclo, atenta as características do local, como fica demonstrado nas marcas de travagem do motociclo no local e no facto de, em consequência da colisão, o EE ter sido atirado para fora da estrada.”
- “...no que concerne às características do local, do quadro factual apurado importa ainda reter que estamos em presença de uma recta com entroncamento ...”;
- “... não se apuraram quaisquer circunstâncias ou comportamentos completamente extraordinários que impedissem o condutor do motociclo de puder prever que à sua frente se encontrava o veículo seguro na ré.”
São considerações que nos suscitam as maiores reservas.
Desde logo, não podemos acompanhar a afirmação segundo a qual o condutor do SR violou a obrigação de regular a velocidade de maneira a poder imobilizar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, visto que, referindo-se a previsão legal à sua velocidade em momento anterior àquele em que o EE se atravessou à sua frente, nesse momento o espaço livre e visível era, obviamente, mais longo do que a partir da altura em que tal atravessamento se deu; a presença do EE na trajectória do SR traduziu-se, afinal, no surgimento de um obstáculo antes inexistente, insusceptível de enquadramento na previsão do art. SRº, nº 1 do C. Estrada.
A afirmação de que o condutor do SR tinha espaço livre à esquerda, porquanto se não provou que esse espaço estivesse ocupado com outros veículos, não tem fundamento bastante, já que também se não provou que tal espaço estivesse livre e desocupado; e só o seu não aproveitamento no caso de estar livre – o que se não demonstrou -, poderia revelar a culpa do condutor do SR, a qual, naturalmente, se não presume.
Também a sentença não podia inferir que o SR rodava com velocidade inadequada (entenda-se, excessiva) a partir de marcas de travagem cuja existência e extensão não julgou como provadas.
Por outro lado, não se vê que o quadro dos factos julgados como provados e atinentes às características do local, mostre que este era uma recta, nem qual era a sua extensão.
E dizer-se que se não apuraram circunstâncias extraordinárias que impedissem o condutor do SR de poder prever que à sua frente se encontrava o EE peca, desde logo, pelo facto de afirmação idêntica poder ser feita quanto ao condutor do EE – já que também quanto a ele se não provou que não pudesse prever a aproximação do SR em sentido contrário –, sendo certo que este, apesar disso, escapou a semelhante juízo de culpa.
Não vem impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nem este tribunal tem à sua disposição todos os elementos probatórios produzidos, pelo que lhe está vedado alterar a matéria de facto julgada como provada.
Pode, todavia, salientar-se, oficiosamente, que:
- A afirmação segundo a qual o condutor do EE verificou não haver nenhum veículo em sentido contrário é dificilmente conciliável – rondando a contradição de factos – com a circunstância de, tendo iniciado a mudança de direcção para a esquerda numa recta quando estava já junto ao eixo da via, ter sido embatido na roda traseira direita logo depois de o ter transposto;
- Para um juízo satisfatório sobre a velocidade a que rodava o SR, importa averiguar factos que são sugeridos por elementos constantes da participação elaborada pela GNR – e que devem ter-se como alegados, já que tal documento foi junto com a petição inicial pelo autor que o deu como reproduzido no art. 6º; a não se entender assim, tais factos, porque instrumentais, sempre seriam de considerar nos termos do art. 264º, nº 2 –, designadamente procurando determinar a extensão das marcas de travagem eventualmente deixadas pelo SR e o local da imobilização deste, que ali é representado no preciso local de embate, sem a projecção a maior ou menor distância que é tão frequente em veículos de duas rodas;
- Também para a formulação de um juízo, que consideramos indispensável, sobre a distância a que qualquer dos condutores podia ter-se apercebido da aproximação do outro veículo, importa averiguar as características do local – isto é, se é em recta ou em curva e, no primeiro caso, qual a sua extensão a partir do entroncamento e na direcção da R….
Tudo isto evidencia a necessidade da ampliação da matéria de facto apurada, nos termos do nº 4 do art. 712º, através da reabertura da audiência para averiguação dos pontos concretos que ficaram salientados, mas sem esquecer a possibilidade de o âmbito da averiguação ser alargado a outros pontos para que se evitem contradições na decisão.

IV – Pelo exposto, e sem prejuízo da sua manutenção na parte não viciada, delibera-se anular a decisão proferida sobre os factos, determinando-se que no tribunal “a quo” se proceda à ampliação da matéria de facto nos termos indicados, após o que se proferirá de novo sentença.
Custas a cargo da parte que a final vier a ficar vencida.
Lxa. 31.03.09
(Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho)

(Maria Amélia Ribeiro)

(Arnaldo Silva)