Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10782/2008-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: INUNDAÇÃO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
DANO
LUCRO CESSANTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I. O proprietário (ou detentor) de um bem, móvel ou imóvel, além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção) tem obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação ou decorrente, por outros motivos, do bem que lhe pertence;
II. Assim, quem tem tiver em seu poder coisa, móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que não houvesse culpa sua;
III. O facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais;
IV. O dono de uma fracção autónoma responde pelos danos causados em fracção situada no piso inferior, em consequência de inundação (ou derrame de água) nela verificada e que seja causa de infiltrações verificadas na fracção inferior, com a produção de danos, salvo se provar que nenhuma culpa houve de sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido mesmo que não houvesse culpa;
V. Verificando-se tal hipótese deve responder, nomeadamente, pelos lucros cessantes decorrentes do facto de a fracção alheia não poder ser dada de arrendamento durante o lapso de tempo em que se mantiveram os efeitos das infiltrações e irreparáveis os estragos. (PR).
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.
No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, D e I intentaram a presente acção declarativa de condenação, na forma sumária, contra A, pedindo a condenação do Réu a pagar aos Autores a importância de € 14 211,83 (catorze mil, duzentos e onze euros e oitenta e três cêntimos), acrescida de todas as despesas decorrentes da presente acção e as demais relacionadas com a regularização dos danos patrimoniais ocorridos, que se vencerem durante a pendência da acção, montantes estes a liquidar em execução de sentença.
Pediram ainda se ordene ao Réu que permita o acesso à fracção de que é proprietário, sita …, a fim de serem reparados as deficiências que deram causa aos danos ocorridos na fracção dos Autores.  
Alegaram, para tanto, que:
No início de Agosto de 2005, se deslocaram à sua fracção, situada um andar abaixo da do Réu, e constataram que tinham ocorrido infiltrações nas paredes e tectos das duas casas de banho do imóvel.
No andar do Réu haviam ocorrido grandes inundações, que foram causa directa e necessária das descritas infiltrações.
Os Autores tentaram contactar o Réu, mas não conseguiram, sendo que despenderam quantias diversas com a realização de uma vistoria camarária e o envio de correio ao Réu, faxes e fotocópias.
Foi-lhes apresentado um orçamento referente à realização das obras de reparação a realizar na fracção.
O Réu impediu a vistoria da sua fracção, por parte do perito da seguradora dos Autores, sendo que estes pretendiam arrendar a fracção, o que se tornou impossível.
A partir de Setembro de 2005, conseguiriam um interessado em arrendar tal fracção pela prestação de € 900,00, o que se gorou face aos danos ocorridos nas instalações sanitárias.
O Réu contestou por excepção (ilegitimidade passiva) e por impugnação, pugnando pela absolvição da instância ou, quando assim se não entenda, pela improcedência da acção.
Alegou, em síntese, que:
Por contrato de seguro celebrado com a Companhia de Seguros, S.A., transferiu para esta a sua responsabilidade civil emergente de ocorrências relacionadas com a sua fracção, sobretudo por danos causados em virtude da utilização da fracção.
Assim, sempre será a referida seguradora a entidade a quem deverá ser dirigido qualquer pedido indemnizatório, sendo o Réu parte ilegítima.
A pessoa que habitava a sua fracção apenas se esqueceu de uma torneira aberta, situação que provocou um derrame de água de pequenas dimensões e circunscrito à zona da casa de banho, insusceptível de causar infiltrações noutros andares do prédio.
O Réu colocou-se à disposição para a efectiva verificação da situação.
O andar dos Autores, no mercado de arrendamento, tem um valor mensal não superior a € 350,00.
Os Autores responderam à matéria da excepção, pugnando pela sua improcedência e requerendo a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros, S.A., incidente que veio a ser admitido, vindo esta a integrar o lado passivo da instância, como associada do Réu.
Citada, a Interveniente Principal contestou, alegando, em suma, que só com a citação para a presente acção teve conhecimento da ocorrência descrita pelos Autores e que quando o contrato com a mediadora foi assinado, com vista ao arrendamento, já os Autores sabiam das infiltrações ocorridas na sua fracção.
Foi proferido despacho saneador com a dispensa da realização da audiência preliminar, no âmbito do qual o Tribunal julgou improcedente a excepção dilatória deduzida e procedeu à selecção da matéria assente e controvertida.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, tendo o Tribunal respondido à matéria constante da base instrutória, sem reclamação das partes.
Por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo os réus do pedido.
Inconformado com a decisão, vieram os AA interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1. Os Apelantes, na sequência da ocorrência de danos em duas casas de banho do seu imóvel sito …., constatados por estes no início de Agosto de 2005, instauraram a presente acção de condenação sobre a forma de processo sumário contra o Apelado, proprietário da fracção autónoma correspondente ao 4.° andar esquerdo, sita no mesmo número e morada.
2. Interveio ainda nos presentes autos a Companhia de Seguros, SA, na qualidade de associada do Réu.
3. Os Apelantes fundamentaram a sua acção tendo por referência a ocorrência de duas inundações na fracção propriedade do Apelado, que foram causa da ocorrência de infiltrações e consequentes danos ocorridos na fracção daqueles.
4. Uma vez que a fracção propriedade dos Apelantes não constituía a sua habitação permanente, estes pretendiam arrendá-la o que se tornou impossível em virtude dos danos ocorridos nas instalações sanitárias.
5. Peticionaram, a final, os Apelantes a condenação do Apelado e da Interveniente Companhia de Seguros, SA, na proporção das suas responsabilidades, no pagamento de indemnização pelos prejuízos sofridos e pelos benefícios que aqueles deixaram de obter em resultado de terem ficado impedidos de arrendar o imóvel.
6. O tribunal Recorrido julgou a presente acção totalmente improcedente, absolvendo os Apelados do Pedido, constituindo relevância para tal decisão as respostas negativas dadas aos artigos 5.°, 6.°, 11.°, 13.° e, por sua vez, a resposta positiva concedida aos artigos 16.°, 17.° e 18.°, todos da Base Instrutória.
7. Defende o Tribunal "a quo" que o Apelado, atento o depoimento da Testemunha T, provou que na sua fracção somente haviam ocorrido dois derrames de água, confinantes à casa de banho da sua fracção, insusceptíveis de causar infiltrações noutros andares do prédio.
8. Reza a Decisão recorrida que não ficou demonstrado, por parte dos Apelantes, que: i) no andar do Apelado haviam ocorrido grandes inundações, que foram causa directa e necessária das ditas infiltrações; ii) aqueles tentaram contactar o Apelado, via telefone e por escrito, sem resposta; iii) o Apelado impediu a vistoria à sua fracção por parte do perito da companhia de seguros A SA; iv) o arrendamento da fracção se revelou impossível devido aos danos ocorridos nas instalações sanitárias o que tornou a casa inabitável.
9. Por sua vez a decisão recorrida considerou que o Apelado provou que a pessoa que habitava a fracção do Réu apenas se esqueceu de uma torneira aberta, o que provocou derrames de água de pequenas dimensões e circunscritos à zona da casa de banho, insusceptíveis de causar infiltrações noutros andares do prédio e que este não recusou a efectiva verificação do caso (...)"
10. O Tribunal Recorrido fez assim um julgamento incorrecto da matéria de facto versada sobre os artigos 5.°, 6.°, 11.°, 13.°, 16.°, 17.° e 18.° da Base Instrutória.
11. O depoimento da testemunha João, perito da Companhia de Seguros A, SA, que interveio no âmbito do Contrato de Seguro Multirisco Habitação, celebrado entre esta e os Apelantes, a fim de avaliar os danos ocorridos na fracção destes, é contrário aos termos das respostas formuladas pelo Tribunal Recorrido aos artigos 6.°, 11.° e 18.° da Base Instrutória.
12. Deste depoimento resultou evidente que o Apelado para além de não ter respondido às solicitações dos Apelantes, nunca evidenciou qualquer atitude cooperante no sentido de resolver a situação e, inclusive, manifestou que não estava interessado em que fizessem uma vistoria ao seu andar, para que, tecnicamente, se pudesse determinar a origem das infiltrações (Cfr. Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 30/11/2008; Registo magnético do n.° 571 ao n.° 2332 lado Aj e do n.° O ao n.° 84 lado B) da cassete n.° 1).
13. Tão pouco o Tribunal Recorrido podia sustentar a sua resposta a estes quesitos com o depoimento da testemunha T, porquanto a mesma relativamente a esta matéria terá dito ao Apelado que a Apelada I havia comunicado a ocorrência de infiltrações e este limitou-se a declarar que não podia ser da sua fracção (Acta da Audiência de Discussão e Julgamento de 30/04/2008; Registo magnético do n.° 902 ao n." 1571 lado B) da cassete n.° /J.
14. Atenta a prova documental junta pelos Autores aos presentes autos (Cfr. Docs. n.°s 3, 4, 11, 12, 13, 16 e 17) e os depoimentos das Testemunhas J e T, o Tribunal Recorrido devia ter dado como provados os factos insertos nos artigos 6.° e 11.° da Base Instrutória e como não provado o artigo 18.° da mesma peça processual.
15. O artigo 13.° da Base Instrutória constitui desiderato que quase não necessita de prova, uma vez que, atendendo aos danos ocorridos nas casas de banho da fracção dos Apelantes, qualquer pessoa se recusaria em tomar de arrendamento uma casa naquele estado.
16. Relativamente a esse quesito ficou evidenciado pelas testemunhas J e D (Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 30/04/2008; Registo magnético do n.° 2261 ao n.° 2354 lado B) na cassete n.° 1 e do n.° O ao n.° 1000 lado A) na cassete n.° 2), que atendendo aos danos que se verificavam nas casas de banho da fracção dos Apelantes, ficou vedada a estes a possibilidade de arrendarem o imóvel, como era seu propósito.
17. E os Apelantes não podiam proceder à reparação dos danos em virtude do Apelado não autorizar a vistoria à sua fracção destinada a determinar a origem de tais anomalias (Cfr. Depoimento de Sérgio; Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 30/04/2008; registo magnético do n.° 85 ao n.° 901 lado B) da cassete n.° l).
18. O Tribunal "a quo" devia assim ter dado como provado o artigo 13.° da Base Instrutória.
19. Já no que respeita ao artigo 16.° da Base Instrutória, que insere um facto que é alegado pelo Réu, não resultou, nem pouco mais ou menos, provado que a Testemunha T apenas se "esqueceu de uma torneira aberta, que provocou derrames de água de pequenas dimensões", tendo esta testemunha afirmado que por duas ocasiões a sua casa de banho ficou toda inundada em virtude de uma torneira que posteriormente foi reparada.
20. Esta Testemunha declarou ainda que foram realizadas obras que não foram de pequena dimensão, atendendo a que segundo esta "eles escavacaram aquilo tudo".
21. Não se pode subsumir que tais inundações foram insusceptíveis de causar infiltrações noutros andares do prédio conforme conclui o Tribunal Recorrido na resposta ao quesito 17.° da Base Instrutória, tendo a testemunha Teresa reconhecido que calculou que a Autora Isabel lhe fosse bater à porta em virtude da ocorrência das duas inundações na sua casa de banho,
22. Outrossim, O Tribunal Recorrido errou ao dar como não provado o artigo 5.° da Base Instrutória, uma vez que também a testemunha Teresa, acaba por reconhecer, em virtude das inundações e da anomalia que se verificou na casa de banho da fracção do Réu, que poderiam ter ocorrido infiltrações no andar de baixo.
23. E em relação a tal facto, as testemunhas J e S (Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 30/04/2008; registo magnético do n.° 85 ao n.° 901 lado B) da cassete n.° 1) foram unânimes em declarar que, quase de certeza, os danos ocorridos nas casas de banho dos Autores teriam origem em infiltrações provenientes do andar de cima.
24. Só não se determinou a origem precisa de tais infiltrações, porquanto o Apelado, numa postura claramente abusiva, como ficou ilustrado nestes autos, impediu que fosse realizada uma apreciação técnica ao seu andar.
25. Atenta a prova produzida o Tribunal "a quo" devia ter dado como provados os artigos 5.°, 6.°, 11.°, 13.° da Base Instrutória.
26. Assim como devia considerar como não provados os factos insertos nos artigos 16.°, 17.° e 18.° da Base Instrutória.
27. Segundo a perspectiva da impugnação da matéria de direito da Sentença Recorrida, contrariamente ao entendimento perfilhado pelo Tribunal "a quo", os Apelantes lograram estabelecer o nexo de causalidade entre as inundações ocorridas na fracção do Apelado e os danos verificados nas casas de banho do andar daqueles.
28. O Tribunal Recorrido, não relevando a prova produzida em sede de audiência e julgamento, acabou por fazer uma interpretação restritiva da teoria da causalidade consagrada no artigo 563.° do Código Civil.
29. Segundo a perspectiva da teoria da causalidade adequada, princípio adoptada pela nossa doutrina e jurisprudência, e no que concerne à responsabilidade por facto ilícito culposo, como é o caso dos presentes autos, dever-se-á fazer uma interpretação mais ampla.
30. Porquanto, "o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais" e de que a (...) doutrina da causalidade adequada "não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano. (Cfr. Almeida Costa, Pags. 632 e 633J
31. E "do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido os danos. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano." (Prof. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", Vol. l, pag. 865, Coimbra-1989)
32. As duas grandes inundações ocorridas na fracção do Apelado, correspondem a factos que pela sua natureza não se mostram desadequados a produzir os danos ocorridos na fracção dos Apelantes.
33. Outrossim, não incidia sobre os Apelantes o ónus de provar que tal facto por si só fosse determinante para a produção dos danos.
34. Uma vez que estamos perante a responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, que se rege, conforme muito bem ilustra a Sentença Recorrida, pelo artigo 493.° do 26. Assim como devia considerar como não provados os factos insertos nos artigos 16.°, 17.° e 18.° da Base Instrutória.
Código Civil, cabia ao Apelado provar que nenhuma culpa houve da sua parte na ocorrência dos supra citados danos.
35. A Sentença Recorrida devia ter consagrado o princípio da presunção de culpa estatuído no artigo 493.° do Código Civil.
36. O Tribunal Recorrido, atendendo à prova produzida, devia ter concluído que o Apelado, como era seu dever, não logrou provar que os danos ocorridos na fracção dos Apelantes não decorreram de culpa sua, ou seja, que as inundações na sua casa de banho não foram causa suficiente para provocar as patologias verificadas nas casas de banho do andar dos Apelantes.
37. A conduta do Apelado, ao não permitir a realização da vistoria à sua fracção, enquadra-se numa clara situação de abuso de direito previsto no artigo 334.° do Código Civil, violadora inclusive do artigo 1422.°, n.° 1 e n.° 2, alínea a) do mesmo diploma legal, cabendo-lhe assim a obrigação de indemnizar nos termos gerais da responsabilidade civil.
38. Segundo a perspectiva da impugnação da Sentença no que respeita à matéria de direito, o Tribunal Recorrido violou normas insertas nos artigos 334.°, 493.°, 563.° e 1422.°, n.° 1 e n.° 2, alínea a), todos do Código Civil.
39. A decisão recorrida, quer de facto, quer de direito, devia ter ido no sentido de julgar procedentes os pedidos formulados pelos Apelantes.
40. Para além da condenação atinente a indemnizar os Apelantes pelas obras de correcção das patologias verificadas na sua fracção, Apelado e Interveniente, na sua respectiva proporcionalidade, deviam também ser condenados no pagamento dos valores peticionados pelos Apelantes e decorrentes do não arrendamento da sua fracção.
41. Isto é, o autor da lesão deve ser responsável por todos os danos ulteriores que eram de esperar segundo o curso normal das coisas, ou foram especialmente favorecidos pela conduta do agente quer na sua própria verificação quer na sua actuação concreta em relação ao dano de que se trata. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/01/2005, Processo n.° 04B4063, in www.dgci.pt e Pereira Coelho, in "Obrigações, pag. 166, Coimbra-1967).
Termos em que se requer, mui respeitosamente, a V. EXAS, VENERANDOS JUIZES DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA se dignem conceder provimento ao presente Recurso de Apelação, revogando A douta Sentença proferida pelo Tribunal Recorrido, julgando, por sua vez, totalmente procedentes os pedidos formulados pelos Apelantes nos presentes autos.
E decidindo nos termos ora propostos farão V. EXAS, VENERANDOS JUIZES DESEMBARGADORES, como é Vosso apanágio, a acostumada JUSTIÇA!
A Interveniente Seguradora contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.
As questões a resolver são as de saber:
- Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada;
- Na afirmativa e, em consequência, se os pedidos devem proceder.
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II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. A aquisição da fracção autónoma urbana com a letra “I”, sita … e registada na Sexta Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …., encontra-se inscrita a favor dos Autores na referida Conservatória;
2. A aquisição da fracção autónoma urbana com a letra “K”, sita …. e registada na Sexta Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …., encontra-se inscrita a favor do Réu na referida Conservatória;
3. Entre o Réu e a Interveniente Principal foi celebrado um contrato de seguro do ramo “Multiriscos Caixa Seguro Lar”, titulado pela apólice número 42/268803, que se regula pelas condições particulares aí exaradas e pelas respectivas condições gerais, com o seu início no dia 30 de Janeiro de 2004 (duração: ano e seguintes);
4. Assumiu a Interveniente Principal o risco pelas reparações pecuniárias legalmente exigíveis ao segurado, na qualidade de proprietário (quando contratado o seguro do edifício) ou de inquilino ou ocupante (quando contratado o seguro do conteúdo) do local do risco indicado nas condições particulares, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual e decorrente de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros, até o valor máximo garantido de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros);
5. A fracção autónoma identificada em 1 não se destina à habitação periódica e permanente dos Autores;
6. No início de Agosto de 2005, a Autora deslocou-se à fracção e constatou que tinham ocorrido infiltrações nas paredes e tectos das duas casas de banho do imóvel;
7. Na instalação sanitária sem banheira, o tecto apresentava-se com tintas empoladas e a descascar, dando origem ao aluimento do material e sendo visíveis manchas diversas no tecto;
8. Na instalação sanitária com banheira, observavam-se manchas de humidade, amarelada, no tecto;
9. Em 17 de Agosto de 2005, os Autores requereram à Câmara Municipal de Lisboa a realização de uma vistoria destinada a comprovar o estado de conservação da sua fracção, a qual se realizou a 6 de Outubro de 2005;
10. (…) Tendo os Autores despendido, para o efeito, a quantia de € 80,92;
11. A 18 de Agosto de 2005, a solicitação dos Autores, foi apresentado um orçamento, referente à realização das obras de reparação a realizar na fracção, no montante de € 250,00 (acrescido de IVA à taxa legal);
12. Pretendiam os Autores arrendar a sua fracção;
13. No contrato de mediação imobiliária celebrado entre os Autores e a mediadora imobiliária …. convencionou-se que esta se obrigava a diligenciar por conseguir um interessado em arrendar tal fracção pela quantia mensal de € 900,00;
14. A pessoa que habitava a fracção do Réu apenas se esqueceu de uma torneira aberta, o que provocou derrames de água de pequenas dimensões e circunscritos à zona da casa de banho;
15. (…) Insusceptíveis de causar infiltrações noutros andares do prédio;
16. O Réu não recusou a efectiva verificação da situação;
17. Só com a citação para a presente acção teve a Interveniente conhecimento da ocorrência descrita pelos Autores; e
18. O contrato com a mediadora foi assinado em 28 de Julho de 2005.
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III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Da decisão da matéria de facto:
Alegam os recorrentes que o Tribunal Recorrido fez um julgamento incorrecto da matéria de facto versada sobre os artigos 5.°, 6.°, 11.°, 13.°, 16.°, 17.° e 18.° da Base Instrutória, pois que atenta a prova produzida devia ter dado como provados os artigos 5.°, 6.°, 11.°, 13.°, como devia considerar como não provados os factos insertos nos artigos 16.°, 17.° e 18.° da mesma Base Instrutória.
Entendem os Recorrentes que pelos depoimentos das Testemunhas João e Teresa o Tribunal Recorrido devia ter dado como provados os factos insertos nos artigos 6.° e 11.° da Base Instrutória e como não provado o artigo 18.° da mesma peça processual.
Relativamente ao artigo 13.° da Base Instrutória dizem que este artigo ficou evidenciado pelas testemunhas João e Dulce.
Já no que respeita ao artigo 16.° da Base Instrutória discordam de que do depoimento da Testemunha Teresa resulte que esta apenas se "esqueceu de uma torneira aberta, que provocou derrames de água de pequenas dimensões", sendo que em relação a tal facto, as testemunhas João e Sérgio foram unânimes em declarar que, quase de certeza, os danos ocorridos nas casas de banho dos Autores teriam origem em infiltrações provenientes do andar de cima.
Vejamos se aos Apelantes assiste razão.
Importa, antes de mais, se diga que a decisão sobre a matéria de facto é alterável pelo Tribunal da Relação, nos casos, excepcionais, previstos no art. 712º do CPC, designadamente de constarem do processo todos os elementos de prova, que serviram de base às respostas, ou de ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados e ter sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida.
Em qualquer caso, é necessário não olvidar que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (art. 655º do C. P. C.), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser negligenciada.
De acordo com este princípio, que se contrapõe ao princípio de prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza e proveniência de qualquer delas.
Precisando-se, todavia, que a livre apreciação da prova não se confunde com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes com uma conscienciosa ponderação desses elementos e de todos os factores susceptíveis de condicionar e alicerçar a convicção do julgador, realizável no extrair de conclusões, em conformidade com as impressões colhidas e de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis.
E este critério de aferição tem de ser seguido sempre e também quando o julgamento tiver por base, fundamentalmente, prova testemunhal e tiver havido gravação dos depoimentos produzidos em audiência.
No caso dos autos, porque existiu gravação da prova, aliás com uma excelente qualidade, e porque os Recorrentes requereram, com observância do legal formalismo, a reapreciação da prova feita em 1.ª instância, nihil obstat à reapreciação requerida.
E, desde já, impõe dizer-se que após analisados os documentos que relevantes se mostram juntos aos autos e de ouvido, com as necessárias repetições, quanto disseram as partes e testemunhas em audiência de discussão, se tem de reconhecer que aos recorrentes assiste razão no dissentimento que vieram mostrar quanto à decisão da matéria de facto proferida pela 1.ª instância que, com o devido respeito, não foi uma decisão feliz, quanto a alguns dos pontos concretos colocados em crise pelos Recorrentes, por desadequada ao que se pensa ser a realidade dos factos. O que até custa aceitar quão bem decidida e fundamentada se mostra na parte restante.
A matéria nuclear da presente acção era, inquestionavelmente, a vertida no art. 5º da BI, onde se perguntava se no andar do Réu haviam ocorrido grandes inundações, que foram causa directa e necessária das infiltrações verificadas nas paredes e tectos das duas causas de banho do imóvel dos Autores.
Aliás foi nesta matéria que o tribunal concentrou, e bem, a dinâmica da audiência, procurando indagar junto dos vários interlocutores processuais da sua veracidade com o rigor com que a prova, a favor ou contra, deve ser efectuada.
Sucede que o tribunal recorrido dando como provadas as infiltrações, aliás suficientemente documentadas nos autos por relatório e fotografias, não considerou, todavia, provada a causa de tais infiltrações. No entanto, pelos elementos objectivos daquelas mesmas infiltrações e de quanto decorre do depoimento das testemunhas, sobretudo dos depoimentos conjugados das testemunhas João e Teresa só se pode concluir que a causa, directa e necessária, das mesmas consistiu efectivamente nas inundações verificadas no andar do Réu. A testemunha Teresa, que habitava o andar, confirmou que, por duas vezes, a casa de banho ficou toda inundada e que foi feita uma intervenção a nível das canalizações. Não pode, assim, suscitar-se dúvida razoável de que na origem das ditas infiltrações estiveram inundações, ou derrames de água, verificadas no piso superior, que se não foram “grandes” (não se provou a sua intensidade), foram, no entanto, de dimensão suficiente para causar os estragos verificados.
A dúvida que, razoavelmente, se poderá colocar é a de saber o porquê da existência da água que do andar do Réu, por acção da lei da gravidade, passou para o dos Autores. Terá sido a má vedação de uma torneira? A ruptura da canalização? Um a coisa e outra?
O depoimento da testemunha Teresa aponta no sentido daquelas eventualidades. O das restantes testemunhas é inócuo sobre tal aspecto porque não tiveram oportunidade de se deslocarem ao andar do Réu.
Note-se, todavia, que é pouco relevante que não se tenha provado por que é que existiu água à solta no andar do Réu que se veio a infiltrar para o andar dos Autores. O que importa é que se tenha provado que as infiltrações ocorridas tiveram a sua proveniência do piso de cima para o de baixo. E isso no caso parece resultar com evidência apodíctica do depoimento das testemunhas. Se fosse necessário indagar em concreto por que motivo a água não foi contida, então era fácil ao Réu não permitir verificar in loco a situação – como até parece ter acontecido - para que a sua responsabilidade pelos danos resultasse afastada. Obviamente que não pode defender-se semelhante requisito.
Daí que se entenda que a resposta ao artigo 5º da BI não podia ser negativa, parecendo antes como resposta adequada a de se considerar provado que “no andar do Réu haviam ocorrido derrames de água, que foram causa directa e necessária das descritas infiltrações”.
E esta resposta serve também para contrariar a resposta positiva dada aos artigos 16º e 17º da BI e que se mostra vertida nos pontos 14 e 15 da facticidade dada por assente na 1.ª instância, ou seja:
         “14. A pessoa que habitava a fracção do Réu apenas se esqueceu de uma torneira aberta, o que provocou derrames de água de pequenas dimensões e circunscritos à zona da casa de banho;
            15. (…) Insusceptíveis de causar infiltrações noutros andares do prédio”.
Esta matéria foi fundamentada no depoimento da testemunha Teresa, mas, com o devido respeito, a testemunha não confirma estes factos, que em todo o caso estariam contraditados por outros depoimentos, antes se reportando a duas situações em que a casa de banho do Réu ficou toda inundada e ainda à substituição das canalizações.
Assim sendo, a matéria em questão, como bem defendem os Apelantes, não pode ser considerada provada, carecendo de ser arredada do elenco factual.
Quanto à matéria do artigo 6º, onde se perguntava se “os Autores tentaram contactar o Réu, via telefone e por escrito, sem resposta”, considera-se bem respondido com “não provado”, por os Apelantes não mostrarem que a resposta deva ser em sentido diferente, pois que nem a prova ressalta do depoimento das testemunhas, nem na parte chamada à colação pelos Apelantes nem daquela que se colhe da audição da gravação realizada.
No que respeita à matéria do artigo 11º, onde se perguntava se “o Réu impediu a vistoria da sua fracção, por parte do perito da seguradora A, S.A., no âmbito da apólice “Multirisco Habitação número 35363”, têm razão os Apelantes ao reclamarem uma resposta afirmativa, pois que ela resulta com clareza do depoimento do citado perito, ou seja, a testemunha João e não há nenhuma razão para duvidar do seu depoimento, quer nesta quer noutra parte.
E esta resposta conduz a que a matéria do artigo 18º, no qual se interrogava se “o Réu se colocou à disposição para a efectiva verificação da situação”, se deva considerar como não provada. Com efeito, nenhuma prova foi efectuada em tal sentido, mesmo na resposta dada de que “o Réu não recusou a efectiva verificação da situação”. Esta resposta, que não parece caber dentro da pergunta formulada até pelo seu cariz negativo, foi justificada com o depoimento da testemunha T, mas tal depoimento não a justifica, até porque a testemunha não mostrou ter conhecimento da conversa que se passou entre o perito da seguradora e o Réu. Aliás nem sequer foi instada sobre este aspecto. O que disse é que ninguém se deslocou ao andar do Réu para analisar a situação, o que não tem significado, sabendo-se que nenhuma deslocação poderia ter cabimento se previamente não fosse autorizada pelo Réu. E como decorre do depoimento da testemunha J, o Réu não autorizou qualquer vistoria ao seu andar, dissuadindo até esta testemunha de qualquer contacto posterior para esse efeito. Como assim, é coerente que a testemunha Teresa, que habitava o andar do Réu, não tenha visto lá aparecer ninguém para analisar a situação.
A resposta que se impunha quanto ao artigo 18º da BI era, pois, a de lacónico “não provado”, devendo, assim, eliminar-se o ponto 16.
Finalmente no que concerne à matéria do artigo 13º, onde se questionava “o que se revelou impossível (arrendar a fracção), devido aos danos ocorridos nas instalações sanitárias e que tornaram a casa inabitável”, considera-se que, com base nos depoimentos das testemunhas, sobretudo da D e J, se realizou prova parcial desta matéria. É convincente o depoimento da testemunha D de que estava determinada a arrendar o andar e que não o fez em virtude do estado das casas de banho. Por outro lado, a testemunha J, que verificou os estragos das infiltrações, referiu que qualquer pessoa que pretendesse arrendar a casa, primeiro queria que fossem feitas as obras, o que, de resto, é da mais elementar experiência comum.
A resposta a esta matéria deve ter em mente também o depoimento da testemunha T que referiu a reparação da torneira, que havia provocado dois derramamentos de água com inundações da casa de banho, e as obras levadas a efeito na mesma casa de banho a nível das canalizações.
Daí que se entenda que “pelo menos enquanto não foi eliminada a causa das infiltrações e se fizeram sentir os efeitos das mesmas nas instalações sanitárias dos AA revelou-se impossível arrendar a fracção”.
Deste modo julga-se definitivamente assente a seguinte facticidade:
1. A aquisição da fracção autónoma urbana com a letra “I”, sita …. e registada na Sexta Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …., encontra-se inscrita a favor dos Autores na referida Conservatória;
2. A aquisição da fracção autónoma urbana com a letra “K”, sita ….. e registada na Sexta Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …., encontra-se inscrita a favor do Réu na referida Conservatória;
3. Entre o Réu e a Interveniente Principal foi celebrado um contrato de seguro do ramo “Multiriscos Caixa Seguro Lar”, titulado pela apólice número 42/268803, que se regula pelas condições particulares aí exaradas e pelas respectivas condições gerais, com o seu início no dia 30 de Janeiro de 2004 (duração: ano e seguintes);
4. Assumiu a Interveniente Principal o risco pelas reparações pecuniárias legalmente exigíveis ao segurado, na qualidade de proprietário (quando contratado o seguro do edifício) ou de inquilino ou ocupante (quando contratado o seguro do conteúdo) do local do risco indicado nas condições particulares, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual e decorrente de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros, até o valor máximo garantido de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros);
5. A fracção autónoma identificada em 1 não se destina à habitação periódica e permanente dos Autores;
6. No início de Agosto de 2005, a Autora deslocou-se à fracção e constatou que tinham ocorrido infiltrações nas paredes e tectos das duas casas de banho do imóvel;
7. Na instalação sanitária sem banheira, o tecto apresentava-se com tintas empoladas e a descascar, dando origem ao aluimento do material e sendo visíveis manchas diversas no tecto;
8. Na instalação sanitária com banheira, observavam-se manchas de humidade, amarelada, no tecto;
9. No andar do Réu haviam ocorrido derrames de água, que foram causa directa e necessária das descritas infiltrações;
10. O Réu impediu a vistoria da sua fracção, por parte do perito da seguradora A, S.A., no âmbito da apólice “Multirisco Habitação número 35363;
11. Em 17 de Agosto de 2005, os Autores requereram à Câmara Municipal de Lisboa a realização de uma vistoria destinada a comprovar o estado de conservação da sua fracção, a qual se realizou a 6 de Outubro de 2005;
12. (…) Tendo os Autores despendido, para o efeito, a quantia de € 80,92;
13. A 18 de Agosto de 2005, a solicitação dos Autores, foi apresentado um orçamento, referente à realização das obras de reparação a realizar na fracção, no montante de € 250,00 (acrescido de IVA à taxa legal);
14. Pretendiam os Autores arrendar a sua fracção;
15. No contrato de mediação imobiliária celebrado entre os Autores e a mediadora imobiliária Fitamétrica convencionou-se que esta se obrigava a diligenciar por conseguir um interessado em arrendar tal fracção pela quantia mensal de € 900,00;
16. Pelo menos enquanto não foi eliminada a causa das infiltrações e se fizeram sentir os efeitos das mesmas nas instalações sanitárias dos AA revelou-se impossível arrendar a fracção;
17. Só com a citação para a presente acção teve a Interveniente conhecimento da ocorrência descrita pelos Autores;
18. O contrato com a mediadora foi assinado em 28 de Julho de 2005.
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Quanto ao direito:
A questão a dilucidar é a de saber se em face da facticidade dada definitivamente por assente existe obrigação de indemnizar por parte dos RR e, na afirmativa, se nos termos peticionados pelos AA.
Estabelece o art. 1305º do CC que “o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
Como se verifica, a par da instituição dos direitos de pleno e exclusivo uso, fruição e disposição da coisa, que integram o conteúdo do direito de propriedade, este normativo expressamente preceitua a sujeição do proprietário aos «limites da lei» e à «observância das restrições» por ela impostos.
O que conduz a que o direito de propriedade deva ser exercido: por um lado, dentro dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, para que tal exercício não seja abusivo e, por outro lado, em conformidade com as “restrições”, sejam elas de interesse privado sejam de interesse público, que a lei expressamente estabeleça.
No que concerne às restrições de direito privado relevam de modo particular as que naturalmente são impostas pelas relações de proximidade e que têm em vista regular os conflitos de interesses que surgem entre vizinhos.
Acresce que, como anotam Pires de Lima e Antunes Varela, "deve entender-se que, além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção) o proprietário tem obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação ou decorrente, por outros motivos, das coisas que lhe pertencem (dever da prevenção do perigo)"[1].
De resto a própria lei prescreve nesse sentido. Com efeito, nos termos do art. 493º/1 do C. Civil "quem tem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que não houvesse culpa sua".
Estabelece este preceito a responsabilidade do detentor da coisa baseada na concepção de não terem sido tomadas as devidas e necessárias precauções para se evitar o dano, fazendo recair sobre aquele uma presunção de culpa, presunção «juris tantum» - que pode ser afastada mediante a prova da sua inexistência conforme prevê o art. 350º/2 - ou mostrando-se que os danos se teriam igualmente causado mesmo sem culpa.
Importa deixar claro que a responsabilidade do proprietário, ou detentor da coisa, nos termos dos normativos citados integra uma hipótese típica de responsabilidade civil extracontratual[2].
E, como se sabe, em sede de responsabilidade civil extracontratual, a obrigação de indemnizar tanto pode derivar da prática de um facto cul­poso violador de um direito subjectivo[3] ou de um diverso inte­resse alheio legalmente protegido (art. 483º do CC), como de situações de responsabilidade objectiva ou pelo risco (ex.: arts. 500º e ss.), como até de comportamentos lícitos danosos (ex.: arts. 339º/2, 1322º/1, e 1561º/1 do CC ).
A obrigação de indemnizar, em qualquer dos casos, tem por finalidade reparar um dano ou prejuízo, ou seja, “toda a ofensa de bens ou de interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, tanto de carácter patrimonial (desvantagem económica), como de carácter não patrimo­nial (relativos à vida, à honra, ao bem estar, etc.)”[4].
Acresce que o «obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (art. 562º do CC).
Assim, a obrigação de indemnizar compreende tanto os danos emergentes (ou os prejuízos imediatos sofridos pelo lesado), como os lucros cessantes (benefícios que ele deixou de obter em consequência da lesão) ou ainda os danos futuros, determináveis, de imediato ou em ulterior decisão (art. 564º do CC).
Sucede, porém, que a reparação não abrange, indiscriminadamente, todos e quaisquer danos, mas tão-somente os que se encontrem em determinada relação causal com o evento que fundamenta a obrigação de ressarcir. Com efeito, estipula o art. 563º do CC que «a obrigação de indem­nização só existe em relação aos danos que o lesado prova­velmente não teria sofrido se não fosse a lesão».
A nossa lei acolheu, nesta matéria, a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstracto, se mostre adequada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente[5]. Temos, pois, que “a ideia fulcral desta doutrina é a de que se considera causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostra adequa­da a produzi-lo. Torna-se necessário, portanto, não só que o fac­to se revele, em concreto, condição sine qua non do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção”[6].
Ora, no caso sub judice está provado que no início de Agosto de 2005, a Autora deslocou-se à fracção autónoma urbana com a letra “I”, sita na Avenida Engenheiro Arantes e Oliveira, n.º 44, 3.º andar esquerdo, pertença dos Autores e constatou que tinham ocorrido infiltrações nas paredes e tectos das duas casas de banho do imóvel, sendo que na instalação sanitária com banheira, observavam-se manchas de humidade, amarelada, no tecto e na instalação sanitária sem banheira, o tecto apresentava-se com tintas empoladas e a descascar, dando origem ao aluimento do material e sendo visíveis manchas diversas no tecto.
Sucede que na fracção do Réu, situada por cima, haviam ocorrido derrames de água, que foram causa, directa e necessária, das descritas infiltrações.
Em face dos princípios de direito acima analisados, ao Réu, na qualidade de proprietário da fracção identificada nos autos, competia assegurar que pela utilização da mesma não fossem causados danos nas outras fracções, designadamente através do derramamento de água que se viesse a infiltrar naquelas, produzindo estragos.
E o Réu não efectuou qualquer prova no sentido de mostrar ter tomado as necessárias cautelas a fim de impedir que os derrames de água verificados não causassem infiltrações na fracção dos AA, situada no piso inferir, sendo certo que em causa não está a verificação de infiltrações que sem culpa do Réu sempre se teriam verificado.
Como se defendeu em caso similar no douto Acórdão do STJ de 27.04.1999, “I. O sistema de condução de água instalado em fracção de prédio urbano, estando ligado a ela por forma permanente e definitiva, é parte integrante da mesma. II - O dono dessa fracção responde pelos danos causados em fracção situada no piso inferior, em consequência de inundação decorrente do desprendimento de uma bicha de um seu autoclismo, salvo se provar que nenhuma culpa houve de sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido mesmo que não houvesse culpa sua”[7].
E os AA sofreram danos com as assinaladas infiltrações, pois que requereram à Câmara Municipal de Lisboa a realização de uma vistoria destinada a comprovar o estado de conservação da sua fracção, a qual se realizou a 6 de Outubro de 2005, tendo despendido, para o efeito, a quantia de € 80,92.
Por outro lado, a 18 de Agosto de 2005, a solicitação dos Autores, foi apresentado um orçamento, referente à realização das obras de reparação a realizar na fracção, no montante de € 250,00 (acrescido de IVA à taxa legal).
Acresce que pretendiam os Autores arrendar a sua fracção, tendo no contrato de mediação imobiliária celebrado entre os Autores e a mediadora imobiliária …. convencionado que esta se obrigava a diligenciar por conseguir um interessado em arrendar tal fracção pela quantia mensal de € 900,00, sendo certo que pelo menos enquanto não foi eliminada a causa das infiltrações e se fizeram sentir os efeitos das mesmas nas instalações sanitárias dos AA revelou-se impossível arrendar a fracção.
Sofreram, assim, os AA um lucro cessante durante um período indeterminado de tempo por não poderem arrendar a fracção, como desejavam, devido às infiltrações imputáveis a conduta negligente do Réu.
Esta facticidade é, a nosso ver, claramente justificativa da conclusão de ter ficado demonstrada a existência de um nexo de causalidade adequada entre o facto de os AA não poderem dispor da casa para arrendamento enquanto as infiltrações se verificaram com o consequente não recebimento de rendas por virtude dos defeitos nela existentes e consequentes reparações dos mesmos.
Note-se que o art. 563º do CC, que consagra, quanto ao nexo de causalidade, a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, deve interpretar-se, com o sentido de que "o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais"[8].
Assim sendo, também por estes danos ou lucros cessantes o Réu tem de ser responsabilizado na medida em que para eles contribuiu, a apurar em posterior liquidação.
E por todos os danos também responde a Seguradora, Interveniente Principal nos autos, pois que entre esta e o Réu foi celebrado um contrato de seguro do ramo “Multiriscos Caixa Seguro Lar”, titulado pela apólice número 42/268803, pelo qual aquela assumiu o risco pelas reparações pecuniárias legalmente exigíveis ao segurado, na qualidade de proprietário (quando contratado o seguro do edifício) ou de inquilino ou ocupante (quando contratado o seguro do conteúdo) do local do risco indicado nas condições particulares, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual e decorrente de lesões corporais e/ou danos materiais causadas a terceiros, até ao valor máximo garantido de € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros).
No que concerne aos restantes pedidos, substrato factual se não provou que possa sustentar a sua procedência. Com efeito, como decorre da resposta negativa ao artigo 9º do BI, os AA não provaram terem despendido no envio de correio aos RR a quantia de € 20,91. Por outro lado, quanto ao pedido formulado de se ordenar ao Réu que permita o acesso à fracção de que é proprietário, a fim de serem reparados as deficiências que deram causa aos danos ocorridos na fracção dos Autores, não parece este pedido formulado em termos de merecer procedência, porque aos AA não assiste qualquer direito de proceder a reparações na casa do Réu. O que os AA podiam pedir era a condenação do Réu a efectuá-las. Contudo, este pedido até seria desnecessário, por estar suposto e exigido pela ordem jurídica que o Réu conserve o seu imóvel em condições de não causar danos nos bens alheios, sob pena de por eles dever ser responsabilizado.
Sopesado quanto fica dito, há que conceder parcial procedência ao recurso e à acção e de alterar a douta sentença recorrida, apesar de bem estruturada e fundamentada em face do julgamento produzido sobre a matéria de facto, segmento do qual, todavia, se dissente, produzindo-se decisão, que se considera melhor corresponder à verdade dos factos.
Sumário:
I. O proprietário (ou detentor) de um bem, móvel ou imóvel, além de estar sujeito às restrições ou limitações que a lei lhe impõe (dever de abstenção) tem obrigação de adoptar as medidas adequadas (dever de conteúdo positivo) a evitar o perigo criado pela sua própria actuação ou decorrente, por outros motivos, do bem que lhe pertence;
II. Assim, quem tem tiver em seu poder coisa, móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que não houvesse culpa sua;
III. O facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais;
IV. O dono de uma fracção autónoma responde pelos danos causados em fracção situada no piso inferior, em consequência de inundação (ou derrame de água) nela verificada e que seja causa de infiltrações verificadas na fracção inferior, com a produção de danos, salvo se provar que nenhuma culpa houve de sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido mesmo que não houvesse culpa;
V. Verificando-se tal hipótese deve responder, nomeadamente, pelos lucros cessantes decorrentes do facto de a fracção alheia não poder ser dada de arrendamento durante o lapso de tempo em que se mantiveram os efeitos das infiltrações e irreparáveis os estragos.

Procedem, por isso, parcialmente as conclusões do recurso, sendo de alterar a decisão recorrida.
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IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se parcial provimento à apelação e altera-se a decisão recorrida, julgando-se a acção parcialmente procedente, por provada, e condenando-se solidariamente o Réu e a Interveniente Seguradora – esta até ao limite de € 25.000,00 – a pagar aos AA as quantias de € 80,92 de despesas com a vistoria; € 250,00, acrescidos de IVA, de despesas com a reparação dos estragos e ainda a quantia respeitante ao lucro cessante durante o período de tempo em que não puderam arrendar a fracção, como desejavam, devido às infiltrações imputáveis a conduta negligente do Réu, quantia esta a apurar em posterior liquidação.
Custas nas instâncias pelos Apelantes e Apelados na proporção de 1/5 para os primeiros e de 4/5 para os segundos.

Lisboa,  29 de Janeiro de 2009. 
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela Gomes
Olindo Santos Geraldes
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[1] in Código Civil Anotado, vol III, 2ª ed, pág 95.
[2] também designada responsabilidade aquiliana ou delitual, Vd. M J. Almeida Costa, Ob. Cit., pg. 104.
[3] os direitos subjectivos compreendem, essencialmente, os direitos absolutos ou erga omnes (como os direitos reais) e os direitos de personalidade.
[4] Vd. M J. Almeida Costa, in Ob. Cit., pg. 171.
[5] Vd. I. G. Telles, in Direito das Obrigações, 7ª ed., pg. 404. e ss.
[6] Vd. M J. Almeida Costa, in Ob. Cit., pg. 172.
[7] Acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[8] Vd. ac. do STJ de 13.01.2005, acessível em http://www.dgsi.pt/jstj