Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1550/2004-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/01/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário: A obrigação de alimentos fixada no âmbito de uma regulação do exercício do poder paternal pode ser tornada efectiva por meio do incidente de incumprimento previsto no art.º 189 da OTM.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

A veio deduzir contra A e G, ambos com os sinais dos autos, incidente de incumprimento do regime de exercício do poder paternal em vigor em relação aos filhos comuns, invocando a falta de pagamento da pensão de alimentos estabelecida, solicitando a colaboração do tribunal para a identificação de uma fonte de rendimentos do requerido onde pudessem ser deduzidas as prestações vencidas e vincendas.
Tal incidente foi liminarmente indeferido, nos seguintes termos:
“ O incidente de desconto directo da pensão de alimentos no vencimento do obrigado encontra-se previsto no artº 189° da OTM (Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro).
Tal normativo encontra-se inserido na Secção III - Alimentos devidos a menores, do Capítulo 11 - Processos, do Título 11 - Dos Processos Tutelares Cíveis, da OTM.
A acção de alimentos regulada pelos art.ºs 186° e segs., forma de processo autónoma da de regulação do exercício do poder paternal (Secção II), é aplicável aos casos em que não haja lugar a regulação do poder paternal.
O art.o 190°, n.º 5, do citado diploma legal, estabelecia "O disposto neste artigo e no anterior é aplicável qualquer que seja o processo em que tenha sido fixada a obrigação alimentícia ".
Este dispositivo foi revogado pela alínea b) do n.o 2 do Decreto-Lei n.o 48/95, de 15 de Março, o qual apesar de inserido numa reforma penal não excepcionou qualquer das normas inseridas no art.º 190° citado da revogação em causa.
Com a revogação do art.o 190.º, o incidente previsto no art.o 189.º deixa de ser aplicável às situações de dívida de alimentos não abrangidas pelas acções previstas nos art.ºs 186.º e segs., todos da OTM.
A disposição constante do art.º 10 da Lei n.o 75/98, de 19 de Novembro, não represtinou a norma constante do n.º 5 do art.o 190.º da OTM, não se insere dentro das disposições desta lei, nem tornou aplicável o art.o 189.º aos casos de regulação do exercício do poder paternal.
Assim, a referência ao art.o 189.º constante da Lei n.º 75/98, apenas deve ser entendida para os casos em que a lei prevê a sua aplicação.
Assim, só pode ser feita valer a pretensão como a dos autos através da execução especial por alimentos nos termos do art.o 1118.º do Código de Processo Civil, cujo processamento é mais abrangente que o do art.o 189.º em causa, podendo haver lugar, nomeadamente, a penhora de outros bens, e oferece mais garantias ao próprio executado.
Em suma, a situação dos autos está fora do âmbito de aplicação do art.º 189.º da OTM (Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro), bem como do art.o 181.º da mesma lei, porquanto este incidente de incumprimento apenas se aplica aos casos de não cumprimento do regime de regulação do poder paternal que não os respeitantes à obrigação alimentar.”

Inconformado, o Ministério Público agravou do assim decidido, tendo formulado, nas respectivas alegações, as seguintes conclusões:
……………………………………

A requerente aderiu ao recurso interposto, e às respectivas alegações;
Foi mantido o despacho recorrido.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões, está em causa nos presentes autos saber se a obrigação de alimentos fixada no âmbito de uma regulação do exercício do poder paternal pode ser tornada efectiva por meio do incidente de incumprimento previsto no art.º 189 da OTM.
A questão assim enunciada já contém os respectivos pressupostos de facto, tornando dispensável a sua identificação autónoma.

Vejamos:

Antes da revogação do art.º 190 da OTM, operada pelo art.º 2.º 1 e 2 al. b) do DL 48/95, nenhuma dúvida existia quanto à aplicabilidade do incidente regulado no art.º 189 da OTM à cobrança judicial de alimentos devidos a menores, independentemente do modo como os mesmos tivessem sido fixados. Isso resultava do n.º 5 do referido diploma.
Operada a referida revogação, através de um diploma que aprovou uma alteração ao Código Penal, integrada numa revogação mais ampla de disposições legais avulsas de natureza penal, suscita-se a dúvida de saber se se deve considerar revogado todo o preceito, ou, apenas, as suas disposições de natureza penal.
Tendo em conta a intenção do legislador – revogar legislação penal avulsa – e porque nenhuma justificação é apresentada para a revogação do referido n.º 5, nem essa revogação era justificável a qualquer título, para além de não estar contida na lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi publicada aquela alteração do Código Penal, considera-se justificada a conclusão de que o legislador da referida alteração apenas quis revogar as disposições de natureza penal contidas no preceito revogado. Assim, ao declarar revogado o referido preceito, sem fazer qualquer ressalva, o legislador terá dito mais do que queria, devendo a disposição em causa ser interpretada restritivamente.
Mas mesmo que se devesse entender que todo o preceito foi revogado, nem por isso a sua doutrina deixaria de ser aplicável. Sendo seguro, como é, que essa revogação não tinha sido intencional, não se fundando em qualquer vontade de alterar o regime ali estabelecido, observa-se que estão em causa processos de jurisdição voluntária, em que cabe ao tribunal a prática dos actos adequados e convenientes a atingir um determinado fim, devendo seguir-se em cada caso a forma de processo que corresponda à providência a assegurar- cf. o art. 210 da OTM.
Ou seja, a pretendida revogação não teria alterado o âmbito das providências previstas na OTM, enunciadas nos seus art.ºs 146 e 147, as quais devem ser efectivadas por uma das formas de processo ali também previstas ou, subsidiariamente, e se for caso disso, pelo processo tutelar comum.
Ora, o incidente de incumprimento, para além do reconhecimento legal ora questionado, tem sido comumente utilizado para tornar efectiva a prestação de alimentos, ajustando-se razoavelmente a tal objectivo. E, uma vez que nenhuma alteração relevante ocorreu na definição, ou no conteúdo, da obrigação de alimentos devida a menores, julga-se que tal incidente continua a ser um meio adequado a assegurar o seu cumprimento, independentemente do meio processual utilizado para a sua fixação.
Aliás, julga-se que é exactamente nos casos em que a obrigação de alimentos tem subjacente uma regulação do exercício do poder paternal, em que o incumprimento daquela obrigação é, frequentes vezes, motivado pelo incumprimento, por parte do outro progenitor, de outras obrigações do mesmo regime, que melhor se ajusta o incidente de incumprimento, facilitando a resolução das divergências que lhe deram origem.
Depois, diversamente da interpretação restritiva do art.º 1.º da Lei 75/98 de 19-11 feita na decisão recorrida, julga-se que a referência ao art.º 189 da OTM ali feita, repetida no art.º 3.º do DL 164/99 de 13-05, traduz a afirmação, feita pelo próprio legislador, de que não fora alterado, ou de que foi reposto, o âmbito de aplicação do referido preceito legal. Considerados os termos amplos em que os dois preceitos estão redigidos, e ponderada a finalidade do regime de garantia de alimentos em que se inserem, seguramente aplicável às prestações de alimentos fixadas no âmbito da regulação do exercício do poder paternal, deveria entender-se que o regime estabelecido no art.º 189 da OTM voltou a ser aplicável a todos os casos de alimentos devidos a menores.
Conclui-se, pois, que a obrigação de alimentos fixada no âmbito de uma regulação do exercício do poder paternal pode ser tornada efectiva por meio do incidente de incumprimento previsto no art.º 189 da OTM, procedendo o agravo.
Neste mesmo sentido pode ver-se, de forma mais justificada, o acórdão da Relação de Guimarães de 30-10-2002, in CJ ano XXVII – Tomo V – 267.

Termos em que se acorda em dar provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, para que seja dado seguimento ao incidente de incumprimento que foi suscitado.

Sem custas.
Lisboa, 01-04-2004

( Farinha Alves)
( Tibério Silva )
( Silveira Ramos )