Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDA ISABEL PEREIRA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE TRABALHO DANOS MORAIS | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/30/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | RECURSO PROCEDENTE | ||
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Sumário: | Não sendo contratadas pelas partes outras garantias ou formas de cobertura, a apólice de seguro não abrange, em caso de acidente em consequência do exercício da actividade profissional por conta própria, os danos não patrimoniais, mesmo no domínio do seguro obrigatório instituído pela Lei nº 100/97. (FG) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1. Relatório: Manuel intentou, em 19 de Janeiro de 2000, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra Companhia de Seguros, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 26.000.000$00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes no valor de 4.000.000$00. Mais pediu a condenação da ré a prestar-lhe os serviços médicos, medicamentosos, de fisioterapia e tratamentos ou pagá-los, vitaliciamente. Alegou, para tanto e em suma, que celebrou com a ré um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho por conta própria e que, no período de validade do mesmo, sofreu um acidente de trabalho em 27 de Julho de 1997, em consequência do qual teve lesões que lhe determinaram uma incapacidade permanente global de 74% e que lhe causaram danos de índole patrimonial e não patrimonial, cujo ressarcimento inclui no pedido juntamente com os tratamentos futuros. Na contestação a ré apenas questionou o grau de incapacidade do autor e alegou que o contrato de seguro invocado não gera o direito ao ressarcimento de danos não patrimoniais. Foi concedido ao autor o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de preparos e do prévio pagamento de custas. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente nos seguintes termos: “a) condeno a Ré Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao Autor a quantia de € 55.139,00 (cinquenta e cinco mil, cento e trinta e nove euros) a título de indemnização por danos patrimoniais, quantia esta acrescida de juros à taxa legal contados desde a data da citação até integral pagamento; b) condeno a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 19.95192 (dezanove mil, novecentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos) a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal desde a presente data até integral pagamento; c) condeno a Ré a prestar vitaliciamente ao Autor os cuidados médicos e tratamentos necessários para evitar o agravamento da sua situação clínica e dores emergentes da queda ocorrida em 27.07.96, ou então a suportar o encargo da sua prestação; d) e absolvo a Ré do demais pedido”. Inconformada, apelou a ré, sustentando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva: 1ª O contrato de seguro em apreço, de Acidentes de Trabalho de Trabalhador por contra Própria, não prevê que, ao segurado, seja a seguradora obrigada a prestar, em caso de sinistro, indemnização por danos não patrimoniais. 2ª Essa obrigação também não decorre da lei. 3ª A responsabilidade civil, a cargo de uma seguradora, envolve obrigações para com um terceiro, que não para o próprio segurado, neste tipo de contrato. 4ª A decisão em causa violou o contratado entre Recorrente e Recorrido, não observou ainda os princípios por que se regem os acidentes de trabalho (Lei 100/97 de 13/9) e fez errada aplicação dos normativos respeitantes à responsabilidade civil, maxime os dispostos pelo Artigo 483 e seguintes do C.C., que se não aplicam in casu. Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida no que toca à obrigação da recorrente pagar ao recorrido a indemnização de 19.951,92 € a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais. Na contra alegação pugnou o recorrido pela confirmação do julgado e pediu a condenação da ré em indemnização por litigância de má fé. Colhidos os visto legais, cumpre decidir. 2. Fundamentos: 2.1. De facto: Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos: 1. O Autor fez com a Ré, em 28.01.91 um acordo escrito, pelo período de um ano, automaticamente renovável, a que coube a apólice n° 00806453, junta a fls. 57, 58 e 59 [al. a)]; 2. O Autor caiu de cerca de 3 metros de altura quando em 27.07.96 procedia, por conta própria, a reparações eléctricas nas instalações da D, S.A., com sede na Zona Industrial da Abrunheira, Sintra (al. b)]; 3. O Autor participou imediatamente o acidente a Ré [al. c)]; 4. Com o acidente em causa, o Autor sofreu traumatismo craniano com perda de conhecimento, consciente à entrada, com amnésia para o acidente; traumatismo torácico com fracturas do 1° ao 6° arcos costais esquerdos, fractura do 6° arco costal a direita, fractura do manúbrio, hemotórax a direita, hemopneumotórax a esquerda, contusão pulmonar a esquerda; traumatismo abdominal com foco de contusão hepática objectivada por TAC; traumatismo da região escapulo-umeral e braço direitos com contusões várias; esteve sujeito a três intervenções cirúrgicas e aos demais tratamentos a que se referem os documentos e relatórios medicas, apresentando o Autor, depois da alta concedida pela R., síndroma pós-traumatismo craneano, cicatrizes de três craniotomias, anosmia pós-cirúrgica, paralesia total do músculo frontal esquerdo, neuropatia bilateral pós-cirúgica da intervenção dos músculos temporais, deformação da caixa torácica, atrofia do músculo grande peitoral esquerdo a tesão compressiva bilateral dos nervos cubitais [al. d)]; 5. A Ré aceitou a participação do acidente que lhe foi efectuada pelo Autor, prestou- -lhe assistência médica, medicamentosa, fisioterapia, hidromassagens e tratamentos em piscina por sua conta e responsabilidade, nas suas próprias instalações e Serviços Clínicos, bem como emitiu termo de responsabilidade para nova intervenção cirúrgica efectuada no Hospital Egas Moniz e acompanhamento posterior, e procedeu ao pagamento da remuneração mensal do Autor e todas as despesas inerentes ao acidente, como transportes para tratamento [al. e)]; 6. A Ré aceitou o nexo causal entre o acidente e as lesões supra referidas [al f)]; 7. Tendo custeado todos os serviços médicos, medicamentosos a tratamentos ao Autor até 02.06.98, data da alta dada pelos serviços médicos da Ré [al. g)]; 8. Das lesões resultantes da queda referida em b) resultou para o Autor uma incapacidade parcial permanente de 54% desde 01 de Abril de 1999 [1º]; 9. Em consequência da queda referida em b) o Autor teve imensas dores [5º]; 10. Dores estas na região clavicular, ombro esquerdo, tórax e coluna cervico-dorsal [6º]; 11. E continua a sofrer imenso com as lesões e limitações resultantes de tal queda [7º]; 12. Em consequência das lesões sofridas com a queda o Autor perdeu o olfacto [8º]; 13. E sofreu alterações do gosto [9º]; 14. E tem dificuldades na memória, na atenção e concentração [10º]; 15. Tendo ficado com cicatrizes resultantes da queda e das 3 intervenções cirúrgicas, que o marcam definitivamente [11º]; 16. E ficado em estado depressivo elevado [12]; 17. E com cefaleias [13]; 18. E com dificuldades em dormir [14º]; 19. Em consequência da queda referida em 8) o Autor continua a necessitar de cuidados médicos e de tratamentos para evitar o agravamento da sua situação clínica e dores [15º]; 20.E só os não tem feito mais por serem caros enão dispor de dinheiro suficiente para os pagar [16º]; 21. O Autor nasceu a 23.05.1951 [certidão de fls. 92]. Com fundamento nos documentos juntos a fls. 36 a 38, mostram-se ainda provados, com relevo para a decisão da causa, estoutros factos: 22. De acordo com o estipulado nas condições particulares da apólice n° 00806453 o acordo titulado pela mesma “cobre o risco profissional do próprio segurado nos termos constantes das condições gerais da apólice”; 23. Consta do artº 5º das condições gerais da referida apólice o seguinte: “1. O direito à reparação que, nos termos do presente contrato, assiste às pessoas seguras compreende todas as prestações em espécie e em dinheiro previstas na legislação sobre acidentes de trabalho.” 2.2. De direito: Delimitado o recurso pelas conclusões da alegação da ré, aqui recorrente, delas emerge como única questão a decidir saber se o contrato de seguro de acidentes de trabalho de trabalhador por conta própria celebrado entre a mesma e o autor abrange os danos não patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho e se a autora deve ser condenada por litigância de má fé. 2.2.1. Estão as partes de acordo quanto à celebração, em 28 de Janeiro de 1991, do contrato invocado pelo autor como causa de pedir e, bem assim, no tocante à sua qualificação jurídica como contrato de seguro de acidentes de trabalho de trabalhador por conta própria. Também não questionam que por virtude desse contrato, corporizado na apólice nº 00806453, ficou a ré obrigada a ressarcir o autor dos danos emergentes do acidente ocorrido em 27 de Julho de 1996, não questionando, igualmente, a sua qualificação como acidente de trabalho. Aquele acidente está, por isso, abrangido pela cobertura da apólice, aceitando a ré todas as responsabilidades dele decorrentes e em que foi condenada na sentença recorrida, salvo a respeitante aos danos não patrimoniais por entender que estes não são ressarcíveis quer à luz do contrato de seguro, quer da legislação aplicável, que considera ser a atinente a acidentes de trabalho, mais concretamente a prevista na Lei nº 100/97, de 13 de Setembro. Para decidir se tais danos não patrimoniais são ou não indemnizáveis importa atentar, em primeiro lugar, no convencionado na apólice que titula o contrato de seguro celebrado entre o autor e a ré, uma vez que a responsabilidade da ré radica unicamente neste contrato. Estipulam as condições particulares que o seguro “cobre o risco profissional do próprio segurado nos termos constantes das condições gerais da apólice”, estabelecendo, por sua vez, o nº 1 do artº 5º das condições gerais da referida apólice que “O direito à reparação que, nos termos do presente contrato, assiste às pessoas seguras compreende todas as prestações em espécie e em dinheiro previstas na legislação sobre acidentes de trabalho.” Não prevê, assim, o contrato de seguro em qualquer das suas cláusulas, particulares ou gerais, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos pelo segurado, trabalhador por conta própria, em consequência de acidente de trabalho, remetendo para a legislação sobre acidentes de trabalho o âmbito do direito à reparação ao estabelecer que tal direito do sinistrado compreende todas as prestações em espécie e em dinheiro previstas na legislação sobre acidentes de trabalho. Torna-se necessário, pois, averiguar qual o regime legal aplicável em matéria de acidentes de trabalho. O acidente de trabalho causador das lesões sofridas pelo autor ocorreu no dia 27 de Julho de 1996, estando ao tempo ainda em vigor a Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, pelo que é o regime legal estabelecido neste diploma legal o aplicável ao caso para se poder concluir pela ressarcibilidade ou não dos danos não patrimoniais emergentes do acidente de trabalho sofrido pelo autor. Estabelece a Base IX da referida Lei nº 2127 que o direito à reparação compreende prestações em espécie, que incluem, entre outras, as prestações de natureza médica, cirúrgica farmacêutica e hospitalar, [al. a)] e prestações em dinheiro, sendo estas “indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente; pensões aos familiares da vítima e despesas do funeral, no caso de morte” [al. b].) Não está prevista, no âmbito do direito à reparação por acidente de trabalho, a indemnização por danos não patrimoniais (1). Essa indemnização só é devida nos casos especiais de reparação estabelecidos na Base XVII da mesma Lei nº 2127, ou seja, quando exista culpa ou dolo da entidade patronal na produção do acidente de trabalho (2), situação que não pode perspectivar-se nos presentes autos quanto ao autor por se tratar de um trabalhador por conta própria. Este regime legal manteve-se na Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, que revogou a Lei nº 2127. Com efeito, também na Lei nº 100/97, aplicável aos acidentes de trabalho ocorridos após a sua entrada em vigor, a indemnização por danos não patrimoniais emergentes de acidente de trabalho não faz parte do direito à reparação do sinistrado, como resulta do respectivo artigo 10º, embora, ao contrário do que sucedia na Lei nº 2127, estabeleça a obrigatoriedade do seguro para os trabalhadores independentes, ou seja, aqueles que exerçam uma actividade por conta própria (artigo 3º nºs 1 e 2). E a apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho aprovada pelo Instituto de Seguros de Portugal (ISP), no quadro da Lei nº 100/97 (artigo 38º), para os trabalhadores independentes através do Regulamento n.º 1/2000, de 7 de Janeiro, (3) reforça este entendimento ao estabelecer no artigo 2º, sob a epígrafe Objecto e âmbito do contrato, o seguinte: “1 - A seguradora, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante o pagamento dos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho da pessoa segura identificada na apólice, em consequência do exercício da actividade profissional por conta própria, também identificada nas condições particulares da apólice. 2 - São consideradas prestações em espécie as prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica e hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa. 3 - Constituem prestações em dinheiro a indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho, a indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, em caso de incapacidade permanente, o subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, o subsídio para readaptação de habitação, a prestação suplementar por assistência de terceira pessoa e nos casos de morte as pensões aos familiares do sinistrado bem como o subsídio por morte e despesas de funeral. 4 - De harmonia com o estipulado nas condições particulares poderão ainda ser objecto do presente contrato outras garantias ou formas de cobertura”. O que significa que, não sendo contratadas pelas partes outras garantias ou formas de cobertura, a apólice de seguro não abrange, em caso de acidente em consequência do exercício da actividade profissional por conta própria, os danos não patrimoniais, mesmo no domínio do seguro obrigatório instituído pela Lei nº 100/97. Perante o quadro legal desenhado, que é o aplicável face ao estipulado no contrato de seguro celebrado entre o autor e a ré, tem de concluir-se que, no caso vertente, aquele contrato não cobre a indemnização por danos não patrimoniais resultantes do acidente de trabalho em causa, abrangendo unicamente as prestações em espécie e em dinheiro estabelecidas na Base IX da Lei nº 2127. Procedem, assim, as conclusões da alegação da ré, ora apelante, devendo revogar- se a sentença recorrida no segmento condenatório correspondente. 2.2. Posto isto, importa apreciar se a conduta processual da ré é susceptível de integrar litigância de má fé à luz do disposto no artigo 456º do Código de Processo Civil, como sustenta o autor, com fundamento em que veio na sua alegação invocar legislação do foro laboral - Lei nº 100/97 - para obstar à pretensão deduzida pelo autor quando na acção intentada por este no tribunal de trabalho defendeu com êxito a incompetência material deste tribunal por tal competência estar atribuída à jurisdição civil. Salvo o devido respeito, não assiste razão ao autor. A invocação da legislação sobre acidentes de trabalho justifica-se por ser a aplicável ao caso, como se viu, por força do estipulado no contrato de seguro e é compatível com a competência em razão da matéria dos tribunais cíveis para conhecer da acção. Uma coisa é a determinação do tribunal materialmente competente para julgar a acção, outra a determinação do regime legal aplicável por imposição do estipulado no contrato invocado pelo autor como causa de pedir. Os autos não evidenciam, assim, qualquer comportamento censurável por parte da ré que lhe possa ser assacado a título negligência grave, quer ao contestar a acção, quer ao interpor recurso da sentença recorrida, sendo certo que a tese jurídica que sustentou foi, no essencial, acolhida. Não se verificam, por conseguinte, os pressupostos da litigância de má fé estabelecidos no artigo 456º do Código de Processo Civil. 3. Decisão: Nesta conformidade, acorda-se em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a ré Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., a pagar ao autor Manuel Barroso Pereira Duro, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 19.95192, acrescida de juros à taxa legal, absolvendo-a do pedido nesta parte. Custas pelo apelado, tendo-se em conta o apoio judiciário de que beneficia. 30 de Junho de 2005 (Fernanda Isabel Pereira) (Maria Manuela Gomes) (Olindo dos Santos Geraldes) _________________ 1 Neste sentido Ac. do STJ de 11.12.1990, in http://www.dgsi.pt/jstj. 2 Vide Ac. RL, de 05.04.1989, CJ 1989, tomo 2, pág. 182. 3 Publicado no DR IIª série de 7 de Janeiro de 2000. |