Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | GRANJA DA FONSECA | ||
Descritores: | SERVIDÃO DE PASSAGEM SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA REQUISITOS CONSTITUIÇÃO EXTINÇÃO ÂMBITO DEVER DE INDEMNIZAR | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/10/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | 1 – Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente. 2 – Uma das formas de constituição de uma servidão é a destinação do pai de família, o que pressupõe o concurso dos seguintes requisitos essenciais: (i) que os dos prédios tenham pertencido ao mesmo dono; (ii) uma relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação); (iii) separação dos prédios ou fracções em relação ao domínio (separação judicial) e inexistência de qualquer declaração, no respectivo documento, contrária à destinação. 3 – A servidão por destinação do pai de família constitui-se no momento em que os prédios ou fracções passam a pertencer a proprietários diferentes e tem na origem o acto voluntário consistente na colocação do sinal ou sinais visíveis e permanentes. O acto constitutivo é o da separação jurídica dos prédios, do mesmo proprietário, sendo que aquele sinal ou sinais (presuntivos do acto da destinação) deverão preexistir a tal separação, aplicados pelo anterior proprietário. 4 – Sempre que se verifiquem os pressupostos do artigo 1549º, a servidão por destinação do pai de família constitui-se, não por acto negocial, mas sim por força da lei, sendo irrelevante saber se o alienante e o adquirente quiseram que tal acontecesse, salvo se, ao tempo da declaração, outra coisa se houver declarado no próprio documento da separação do domínio. 5 – A servidão por destinação do pai de família não se pode extinguir por desnecessidade. 6 – Uma vez que o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação, os donos do prédio serviente terão de desobstruir todos os obstáculos que impeçam o seu exercício pelo dono do prédio dominante. 7 – Se a privação do Anexo tem causado aos autores apenas algum desgaste emocional e algum nervosismo e ansiedade, significa que o estado emocional e de tensão provocado nos autores como consequência da conduta dos réus não ultrapassam o nível das contrariedades e incómodos relevantes para efeitos indemnizatórios, ficando aquém daquele patamar de gravidade superior e suficiente para reclamar a compensação, não ultrapassando aquele mínimo que, objectivamente, deva ter-se como de suportabilidade exigível, em termos de resignação. (Sumário do Relator – GF) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1.B.... e mulher C... intentaram contra D... e mulher E... esta acção declarativa comum com processo sumário, pedindo: a) - que seja reconhecida a existência de uma servidão de passagem sobre o prédio dos réus (prédio serviente), pela qual se acede ao prédio dos autores; b) - que se condenem os réus a desobstruírem a passagem entre os dois prédios, bem como a porta e janela da propriedade dos autores, retirando, nomeadamente, as placas de madeira que ali colocaram; c) que os réus sejam condenados a pagarem aos autores a quantia de 5.400 euros, a título de danos patrimoniais e a quantia de 2.000 euros, a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido dos respectivos juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento. Fundamentando a sua pretensão, alegam, em síntese, os autores serem proprietários de dois imóveis, que identificam, sendo os réus proprietários de um imóvel, que também vem identificado, sendo que no imóvel daqueles existe um Anexo, destinado a habitação, ao qual se acede, obrigatoriamente, através do imóvel dos réus. Acrescentam que os réus selaram as vias de acesso ao Anexo, pelo que estão os autores impedidos de a ele aceder. O Anexo era arrendado, pelo montante de 150 euros por mês, valor que deixaram de usufruir por via da conduta dos réus, o que representa, à data da propositura da acção, um prejuízo de 5.400 euros, quantificando em 2.000 euros os danos não patrimoniais sofridos, em consequência dos incómodos, transtornos, nervosismo, ansiedade e desgaste emocional que têm sentido. Os réus contestaram, alegando, em síntese, que os autores podem aceder ao mencionado Anexo através da sua propriedade, sem necessidade de passar pelo imóvel dos réus. Explicaram o contexto em que, em tempos, a passagem pelos três prédios era feita e disseram que os autores, aquando da aquisição dos seus imóveis, concordaram em encerrar o portão que ligava as duas propriedades. Impugnaram os demais factos alegados na petição inicial, nomeadamente, o valor do arrendamento e os danos patrimoniais e não patrimoniais. Os autores foram notificados da contestação e nada disseram. A acção foi registada (cfr. artigo 3º, nº 2, do Código do Registo Predial). Foi proferido despacho saneador e fixados os factos assentes e a base instrutória. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferido e publicado o despacho que dirimiu a matéria de facto controvertida, despacho que não foi objecto de qualquer reclamação e seguidamente a sentença que, julgando totalmente improcedente, por não provada, a acção, absolveu os réus dos pedidos contra eles formulados. Inconformados, recorreram os autores, formulando as seguintes conclusões: 1ª – Pela sentença proferida pelo Tribunal a quo a acção foi julgada improcedente por não provada, mas andou mal o Tribunal a quo, na medida em que da matéria provada e da fundamentação são notórias as contradições existentes entre ambas. 2ª – É facto assente que na propriedade descrita sob o n.º ...., propriedade dos ora recorrentes, existe um Anexo e que a porta de acesso ao mesmo se encontra colocada do lado do prédio dos ora recorridos. 3ª – É facto assente que, aquando da aquisição do seu prédio, os recorridos sabiam da existência do referido Anexo, como sabiam que no mesmo existia um inquilino e que esse inquilino sempre utilizou o prédio que passou a pertencer aos recorridos para aceder ao Anexo por ser o único acesso. 4ª – Pelo que, deveriam ter ficado provados os quesitos 2º e 8º, nomeadamente, que os autores, para terem acesso ao referido Anexo, têm de passar obrigatoriamente pelo prédio dos réus e que, atendendo à localização geográfica do prédio dos ora recorrentes, inexiste alternativa para aceder ao referido anexo, pois de outro modo não fará sentido, porque nada se alterou no local até aos dias de hoje. 5ª – Prova destes factos são os depoimentos de F... e G..., depoimentos que o Tribunal considerou isentos, sendo pessoas que, não tendo relação em particular com nenhuma das partes, revelaram conhecimento directo e concreto dos factos. 6ª – O Tribunal deu ainda como provado que «os autores, desde 2003 até à presente data, estão impedidos de aceder ao Anexo através dos acessos referidos», «o que faziam até então». Porém, deu como não provado que«os autores, antes de estarem impedidos de aceder ao Anexo arrendavam os mesmos para fins habitacionais», «pelo valor de 150 euros» e que, «desde a saída do último inquilino, Junho de 2003, os autores estão impedidos de arrendar o Anexo, porque os réus vedaram o acesso à dependência» (quesitos 16º, 17º e 18º). 7ª – Nada mais contraditório. Se o inquilino saiu em 2003, foi também em 2003 que os recorridos procederam às “obras” de vedação do acesso ao Anexo, porta e janela. Logo deveria ter ficado provado que, após a saída do inquilino que ocupava o Anexo dos recorrentes, os réus vedaram o acesso à dependência e, por consequência, ficaram impedidos de aceder e paralelamente arrendar. 8ª – Provada a propriedade do Anexo, como sendo dos ora recorrentes, se os mesmos adquiriram a propriedade em 1993, mesmo que o arrendamento não tenha sido celebrado com estes, (pois ficou provado que existia arrendamento), a partir da compra do imóvel existe a transferência do arrendamento. 9ª – Daí terem sido juntos aos autos os canhotos dos recibos de arrendamento de fls. 196, o que não foi impugnado pela parte contrária e como tal deveria ter sido relevado e ficado provado que o Anexo se encontrava arrendado pelo valor de 150 euros, quesitos 16º e 17º. 10º - Quanto ao quesito 18º, ficou provado que em 2003 os recorridos procederam às “obras” de vedação de acesso ao Anexo, o que aconteceu na sequência da saída do inquilino. Logo deveria ter ficado provado este quesito. 11ª – Tais factos retiram-se do depoimento da testemunha G.... 12ª – Se o inquilino sempre utilizou o prédio que pertence aos réus para aceder ao Anexo, também por ser o único acesso, como explica o Tribunal a quo que não ficou demonstrado que os autores, para terem acesso ao dito Anexo, têm de passar obrigatoriamente pelo prédio dos réus? 13ª – O Tribunal deu como não provados os quesitos 28º e 29º, nomeadamente que a condição referida foi comunicada pelo vendedor do imóvel aos autores nem que estes aceitaram a condição sugerida pelos réus. 14ª – Contraditoriamente, o Tribunal a quo deu como provado que, «em data não concretamente apurada foi acordado entre autores e réus que o portão que fazia a ligação entre o prédio dos autores e o prédio dos réus seria encerrado, assim como encerradas seriam a janela e a porta que deitavam para o prédio dos réus». 15ª – A ser assim, como é que justifica o Tribunal a quo que, tendo os ora recorridos adquirido o imóvel descrito sob o n.º .... e inscrito na matriz sob o n.º .... em 16 de Maio de 2002, um ano após tenham selado a cimento as duas portas que davam acesso ao Anexo dos ora recorrentes e meses após selaram a cimento a janela? 16ª – Caso existisse algum acordo, conforme o Tribunal a quo refere, não fazia sentido que, na data do fecho das portas e janelas do anexo realizadas pelo réu, os autores apresentassem uma queixa. 17ª – É evidente a inexistência de qualquer acordo nos termos em que o tribunal considerou existir. Basta atentarmos no documento 5º, junto com a petição inicial. Caso assim fosse, não haveria nem denúncia dos autores, nem o réu mentia perante as autoridades, ao afirmar que as obras que estavam a ser efectuadas eram na sua propriedade. 18ª – Andou mal o Tribunal a quo, ao considerar a existência de um acordo entre as partes e dando como factos provados os quesitos 24º e 25º, quando tal acordo nunca existiu. 19ª – O Tribunal a quo fundamenta a prova destes quesitos nas declarações de uma testemunha arrolada pelos recorridos e por sinal filha dos mesmos. 20ª – Contudo do depoimento de H... não se retira por si só a comprovação dos factos quesitados em 24º e 25º. 21ª – Aliás basta comparar com o depoimento da testemunha I...., também filho dos réus. 22ª – A testemunha H... disse ao Tribunal que, quando foi feito o negócio, os pais se dirigiram à escritura dos ora recorrentes e que transmitiram que só comprariam a casa com base no acordo, daí entender-se que foi no ano de 1993, pelo que a testemunha tinha à altura 11 anos de idade e o seu irmão 20 anos. 23ª – Não deixa de ser estranho que testemunha I... tenha referido no seu depoimento um “acordo”, a que assistiu, entre autores e réus, para divisão dos anexos existentes nas propriedades, não sabendo pormenores quanto ao acesso ao anexo. 24ª – No entanto, o Tribunal a quo julgou o depoimento da testemunha H... credível ao ponto de convencer o Tribunal da existência de um acordo, pelo facto da testemunha dizer que recentemente (ano 2003/2004) ter relatado uma conversa com o ora recorrente, na qual este teria confirmado o tal acordo, embora alegando ter mudado de ideias (tudo palavras da testemunha). 25ª – O tribunal a quo apreciou mal a prova quanto aos quesitos 24º e 25º, na medida em que se considera que não ficaram os mesmos provados, atento só ter sido dado relevância a uma conversa que somente a testemunha relatou. 26ª – Pelo supra exposto, deveria o Tribunal a quo ter considerado provados os quesitos 2º, 8º, 16º, 17º e 18º e como não provados os quesitos 24º e 25º. 27ª – A matéria provada, nos moldes preconizados, implica necessariamente uma decisão diferente daquela que o Tribunal a quo veio a tomar. 28ª – Nos termos do artigo 1543º do CC, “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente...”, referindo ainda o artigo 1544º que “podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades...”, estabelecendo o artigo 1547º os vários modos de constituição de servidão. 29ª – O facto dos ora recorrentes não terem outro acesso ao seu prédio – Anexo – que não seja através do prédio serviente (dos ora recorridos), bem como o prédio – Anexo – dos ora recorrentes se encontrar a uma cota muito superior pelo lado que confronta com a sua propriedade, não é legítimo que, decorridos cerca de 16 anos, se lhe venha incutir um encargo, como parece que entendeu o Tribunal a quo. 30ª – Considera-se que, nos presentes autos, se encontram preenchidos os requisitos factuais e legais para a constituição de uma servidão de passagem. 31ª – Consequentemente, deveria ter sido julgada totalmente procedente a acção, condenando-se os ora recorridos no pedido. Os recorridos contra – alegaram, defendendo a bondade da decisão recorrida. Cumpre decidir: 2. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, salvo se outras forem de conhecimento oficioso, o objecto do recurso integra as seguintes questões: a) – Alteração da matéria de facto; b) – Verificabilidade dos requisitos factuais e legais para a constituição de uma servidão de passagem. c) – Indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais aos autores. 3. A primeira questão, a ser decidida, reporta-se à impugnação da matéria de facto. Entendem os recorrentes que o tribunal a quo não julgou correctamente os factos quesitados sob os n. os 2º, 8º, 16º, 17º, 18º, 24º e 25º, pretendendo, por isso, a reapreciação da prova produzida, nomeadamente, a prova testemunhal produzida pelos recorrentes e pelos recorridos, devendo ser considerados provados, em seu entender, os factos constantes da decisão recorrida sob os números 2º, 8º, 16º, 17º, e 18º e não provados os factos 24º e 25º. Como é sabido, nos termos do artigo 712º, alínea a), CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A do CPC, a decisão com base neles proferida. E, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. O artigo 690º-A do CPC, estabelece os ónus que impendem sobre o impugnante, sob pena de rejeição desse recurso: a) – Especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados (n.º 1, alínea a); b) – Especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (n.º 1, alínea b); c) – Indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos (n.º 2). Importa, pois, em primeiro lugar, verificar se os recorrentes deram cumprimento aos ónus que sobre si impendiam. Os recorrentes identificaram os pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados, por referência aos artigos da decisão sobre essa matéria. Também foram indicados os concretos meios probatórios em que se funda a sua pretensão: mostram-se identificados os depoimentos que, em seu entender, justificam resposta diversa. Relativamente ao ónus previsto no n.º 2 do artigo em causa, os recorrentes indicaram também os depoimentos por referência à acta de julgamento, nos termos do artigo 522º-C. Estamos, pois, em condições de apreciar o mérito do recurso. Relativamente aos poderes conferidos à Relação pelo artigo 712º CPC, desenharam-se duas correntes. A primeira, mais restritiva, na linha do defendido por Miguel Teixeira de Sousa[1], resume os poderes do tribunal de recurso a uma intervenção meramente formal, residual, destinada a apurar apenas a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, bastando que a decisão da 1ª instância seja uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, intervindo o tribunal de recurso apenas em caso de erro manifesto, consistente na flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão. A segunda corrente defende uma leitura mais ampla dos poderes da Relação, considerando que, em sede de reapreciação da prova, a Relação tem os mesmos poderes que a 1ª instância, podendo formar convicção diversa relativamente à matéria impugnada. Neste sentido se pronunciam, designadamente, Abrantes Geraldes[2] e Amâncio Ferreira[3]. A segunda corrente é a que melhor se ajusta ao propósito de um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto e, como observa Abrantes Geraldes, as limitações decorrentes da falta de imediação não devem esvaziar o regime da reapreciação da matéria de facto, mas tão só aconselhar especiais cuidados aquando da reapreciação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, “evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto, quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados”[4]. Passemos, então, à reapreciação dos concretos pontos da matéria de facto impugnados pelos autores. Estão em causa os quesitos 2º, 8º, 16º, 17º e 18º, considerados não provados, cuja prova competia, nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, aos autores. E estão igualmente em causa os quesitos 24º e 25º, considerados provados, cuja prova, nos termos do n.º 2 do artigo 342º citado, competia aos réus. Como se referiu, entendem os autores haver feito prova dos factos que integram os quesitos 2º, 8º, 16º, 17º e 18º, enquanto os réus não teriam provado os factos que integram os quesitos 24º e 25º, pelo que o Tribunal a quo teria feito uma incorrecta apreciação da matéria de facto, ao considerar não provados os primeiros e provados os segundos. Quesitos 2º e 8º: Está assente que os autores adquiriram o prédio inscrito na matriz sob o n.º ..., em 22 de Outubro de 1993, enquanto os réus adquiriram a propriedade descrita sob o n.º ..., em 16 de Maio de 2002. Está igualmente assente que, na propriedade descrita sob o n.º ..., propriedade dos ora recorrentes, existe um Anexo e que a porta de acesso ao mesmo se encontra colocada do lado do prédio dos ora recorridos. É também facto assente que, aquando da aquisição do seu prédio, os recorridos sabiam da existência do referido anexo, como sabiam que nesse Anexo existia um inquilino, o J..., e que esse inquilino sempre utilizou o prédio que passou a pertencer aos réus para aceder ao Anexo por ser o único acesso. Pergunta-se no quesito 2º se “os autores, para terem acesso ao referido Anexo, têm que passar obrigatoriamente pelo prédio dos réus”, perguntando-se no quesito 8º se, atendendo à localização geográfica do prédio dos autores, inexiste alternativa para aceder ao Anexo senão passar pelo prédio dos réus”. Ora, atendendo ao depoimento das testemunhas F..., K... e G... constata-se que, tal como sempre aconteceu, depois que os anteriores proprietários daqueles prédios, adquiridos respectivamente pelos autores e réus, haviam construído o referido Anexo, o acesso ao mesmo fazia-se pelo prédio dos ora réus, pois a localização do Anexo fica a uma cota muito superior ao nível da propriedade dos autores. Assim aconteceu não só com o J..., como antes dele acontecera com os seus pais que também haviam arrendado esse Anexo aos anteriores proprietários para sua habitação. No mesmo sentido, se pronunciaram as testemunhas L.... e M...., embora não tivessem sido indicados a estes quesitos. Foram eles que venderam os prédios aos autores e réus, sendo certo que os mesmos vieram à posse do M... por herança. Foi o seu pai quem construiu o dito Anexo e o arrendou aos pais do J..., conjuntamente com outro Anexo, hoje propriedade dos réus. Com efeito, desde 1993, até à data da aquisição do prédio pelos réus, ou seja, durante quase dez anos, seja o inquilino J..., seja os seus pais, anteriores arrendatários, seja os autores, sempre tiveram acesso ao Anexo, sua propriedade, o qual já possuía uma porta com umas escadas de acesso e uma janela colocados e virados para o prédio dos réus. Se tanto o J..., como os seus pais, sempre utilizaram o prédio dos réus para aceder ao Anexo, também por ser o único acesso, daqui resulta como corolário lógico que os autores para terem acesso ao dito Anexo têm de passar obrigatoriamente pelo prédio dos réus. As testemunhas jamais afirmaram que, no prédio dos autores, há espaço para executar um acesso ao Anexo, sem necessidade de se continuar a passar pelo prédio dos réus, nem o poderiam ter dito porque, como se referiu, a localização do Anexo fica a uma cota muito superior ao nível da propriedade dos autores. Ainda que assim não fosse, não caberia aos autores ficarem com um encargo de executar obras para aceder a um prédio seu, uma vez que quando o adquiriram não foi com essa condição. Estas testemunhas não têm qualquer relação em particular com nenhuma das partes, revelaram conhecimento directo e concreto dos factos, afigurando-se o seu depoimento como isento. Consideram-se, pois, como provados os quesitos 2º e 8º. Quesitos 16º, 17º e 18º: Pergunta-se, nestes quesitos, se, “antes de estarem impedidos de aceder ao Anexo, os autores arrendavam o mesmo para fins habitacionais”, “pelo valor de 150 euros mensais” e se, “desde a saída do último inquilino (Junho de 2003), os autores estão impedidos de arrendar o Anexo, porque os réus vedaram o acesso à dependência”. Está assente que, em Julho de 2003, foi verificado que os réus selaram a cimento duas portas, uma que dava acesso directo da propriedade dos autores para a propriedade dos réus e outra referente à entrada para o Anexo existente no prédio dos autores, pelo que estes ficaram privados de aceder ao Anexo através destes acessos, o que faziam até então. Em 15/10/2003, foi verificado que os réus selaram a cimento a janela do Anexo. Assim, desde 2003 até à presente data, os autores estão impedidos de aceder ao Anexo através dos referidos acessos. Logo, após a saída do inquilino, os réus procederam às obras de vedação do acesso ao Anexo, porta e janela, ficando os autores impedidos de a ele aceder. Ora, se os autores não podem aceder ao dito Anexo em consequência das “obras” levadas a cabo pelos réus, estão igualmente impedidos de o arrendar, pelo que, desde a saída do último inquilino (Junho de 2003), os autores estão impedidos de arrendar o Anexo, uma vez que os réus vedaram o acesso à residência. Não foi, porém, possível apurar qual a renda paga mensalmente pelo J... aos autores. Em relação aos quesitos provados, foi relevante o depoimento de G..... Consideram-se assim provados os quesitos 16º e 18º e não provado o quesito 17º. Quesitos 24º e 25º: Perguntava-se nestes quesitos, cuja prova competia aos réus, se “aquando da venda dos imóveis pertencentes aos autores e aos réus foi acordado entre todos (autores, réus e vendedores dos prédios) que o portão que fazia a ligação entre o prédio dos autores e o prédio dos réus seria encerrado”, “assim como seriam encerradas a janela e a porta que deitavam para o prédio dos réus”. O Tribunal deu como provado que, “em data não concretamente apurada, foi acordado entre autores e réu que o portão que fazia a ligação entre o prédio dos autores e o prédio dos réus seria encerrado, assim como encerradas seriam a janela e a porta que deitavam para o prédio dos réus”. A esta matéria responderam os vendedores L... e M.... Porém, ao contrário do decidido, ambos são peremptórios em afirmar que, ao pé deles, não houve nenhum acordo. Apenas sabem que autores e réus se davam bem, e que “a gente cá se entende”, disseram eles, aquando da escritura dos réus. É certo que existe um documento assinado pelos réus (fls. 226), documento que aparece dez anos depois da venda do prédio aos réus. Tal como o M... explicitou, este documento foi feito a pedido do D..., procurando a mulher escrever o que ele pretendia. Aliás, os réus adquiriram o imóvel em 2002. Logo, no ano seguinte, após a saída do J...., selaram a cimento as duas portas que davam acesso ao Anexo dos autores e poucos meses depois selaram a cimento a janela. Caso existisse algum acordo, não faria sentido que os réus tapassem as portas e a janela com cimento, impedindo por completo o acesso ao Anexo. Nem sentido faria a queixa dos autores junto da Câmara Municipal. O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações da testemunha H...., filha dos réus. Ela não assistiu a qualquer acordo. Porém, refere que os réus só adquiriram o prédio com a condição única e exclusiva de serem encerrados a janela, a porta e o portão do Anexo, sendo tal condição comunicada pelo vendedor do imóvel aos autores, o que, como vimos, os vendedores não aceitam. Confirma que os autores aceitaram o acordo por aquilo que os pais lhe disseram lá em casa quando foi feito o negócio e retira essa mesma conclusão duma conversa que diz ter havido com o B..., quando este lhe referiu que havia mudado de ideias quanto ao acordo. Ora os vendedores do imóvel referem que à frente deles não foi feito qualquer acordo nem lhes foi imposta qualquer condição para que o negócio se realizasse. Logo, o depoimento desta testemunha não é por si só suficiente a ponto de o Tribunal a quo poder retirar do mesmo a ilação da existência de um acordo. Aliás, nunca se poderia deixar de ter em consideração o disposto no artigo 394º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores. Donde, se consideram não provados os quesitos 24º e 25º. 4. Consideram-se assim provados os seguintes factos: 1º - Por cota G - Ap. 37 de ...., da ...Conservatória do Registo Predial de Sintra, mostra-se registada a aquisição a favor dos autores do prédio urbano sito em Ranholas, na Rua ...., nº ...., freguesia de S. Pedro de Penaferrim, descrito sob o nº .... e inscrito na matriz sob o nº ...., (Certidão predial de fls. 180-181 e alínea A). 2º - Por cota G - Ap. 37 de ...., da ... Conservatória do Registo Predial de Sintra, mostra-se registada a aquisição a favor dos autores do prédio urbano sito em Ranholas, na Rua ....., nº ...., freguesia de S. Pedro de Penaferrim, descrito sob o nº .... e inscrito na matriz sob o nº .... (Certidão predial de fls. 182-183, e alínea B). 3º - Por cota G - Ap. ..., da ... Conservatória do Registo Predial de Sintra, mostra-se registada a aquisição a favor dos Réus do prédio urbano sito em Ranholas, na Rua ...., nº..., freguesia de S. Pedro de Penaferrim, descrito sob o nº ... e inscrito na matriz sob o nº .... (Certidão predial de fls. 178-179 e alínea C). 4º - Autores e réus adquiriram os prédios acima identificados, por compra, a M... e mulher L.... e N.... e mulher O... (alínea D). 5º - M... e mulher L... e N.... e mulher O..., adquiriram aqueles prédios, por partilha, por óbito de P.... e mulher Q.... (cfr. documentos de fls. 24-25 e 71-72 e alínea E). 6º - O prédio descrito sob o nº .... é composto por casa de rés-do-chão, habitação e logradouro e confronta a Norte com P...., a Sul com Estrada Nacional e a Nascente e Poente com R.... (alínea F). 7º - Na propriedade descrita sob o nº ...., existe um Anexo (quesito 1º). 8º - Os autores, para terem acesso ao referido Anexo, têm que passar obrigatoriamente pelo prédio dos réus (quesito 2º). 9º - A porta de acesso e janela do Anexo encontram-se colocadas do lado do prédio dos Réus (quesito 3º). 10º - Aquando da aquisição do seu prédio, os réus sabiam da existência do referido Anexo (quesito 4º). 11º - À data da aquisição do prédio pelos réus, o Anexo existente no prédio dos autores tinha um inquilino (quesito 5º). 12º - O inquilino sempre utilizou o prédio que ora pertence aos réus para aceder ao Anexo (quesito 6º). 13º - Também por ser o único acesso (quesito 7º). 14º - Atendendo à localização geográfica do prédio identificado em A), inexiste alternativa para aceder ao Anexo senão passar pelo prédio dos réus (quesito 8º). 15º - Em Julho de 2003, foi verificado que os réus selaram a cimento duas portas, uma que dava acesso directo da propriedade dos autores para a propriedade dos réus e outra referente à entrada para o Anexo existente no prédio dos autores (quesito 9º). 16º - Em 15 de Outubro de 2003, foi verificado que os réus selaram a cimento a janela do Anexo (quesito 10º). 17º - Por isso, os autores ficaram privados de aceder ao Anexo através dos acessos referidos em 15º) (quesito 11º). 18º - O que faziam até então (quesito 12º). 19º - Foram as obras referidas em 15º) e 16º) que os réus executaram sem licença camarária (quesito 13º). 20º - Os réus executaram obras sem possuir a respectiva e necessária licença camarária e, na sequência de processo de contra - ordenação instaurado contra o réu veio a Câmara Municipal de Sintra a determinar a demolição das obras realizadas (alínea G). 21º - O réu foi notificado pela Câmara Municipal de Sintra para proceder à demolição dessas obras (alínea H). 22º - Foram tais obras que originaram o processo de contra - ordenação referido em 20º) (quesito 14º). 23º - Desde 2003 até à presente data, os autores estão impedidos de aceder ao Anexo através dos acessos referidos em 15º) (quesito 15º). 24º - Antes de estarem impedidos de aceder ao Anexo, os autores arrendavam o mesmo para fins habitacionais (quesito 16º). 25º - Desde a saída do último inquilino (Junho de 2003) que os autores estão impedidos de arrendar o anexo, porque os réus vedaram o acesso à dependência (quesito 18º). 26º - A privação do Anexo tem causado aos autores algum desgaste emocional e algum nervosismo e ansiedade (quesito 20º). 27º - Os anteriores proprietários dos três prédios, porque eram proprietários únicos dos três prédios, permitiam que o inquilino do Anexo utilizasse uma passagem existente na actual propriedade dos réus (quesito 23º). 5. A 1ª questão de direito a decidir consiste em saber se sobre o prédio dos réus existe em proveito exclusivo do prédio dos autores um encargo, consubstanciado numa servidão de passagem. Com efeito, servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (cfr. artigo 1543º CC). Uma das formas de constituição de uma servidão é a destinação do pai de família (cfr. artigo 1547º CC). Ao lado da usucapião, a destinação do pai de família constitui uma forma originária não negocial de constituição de servidões aparentes, contínuas ou descontínuas. Em ambas estas modalidades constitutivas da servidão intervém a lei para suprir a falta de uma manifestação expressa e transmudar uma mera situação de facto numa verdadeira situação jurídica de relevantes efeitos práticos. A destinação do pai de família é hoje regulada no artigo 1549º do CC. Esta disposição regula a hipótese frequente de dois prédios distintos, ou duas fracções de um só prédio, terem pertencido ao mesmo dono e ter-se estabelecido, entre esses prédios ou fracções, uma relação de dependência por força da qual um dos prédios ou uma das fracções presta utilidade ao outro ou à outra. Esta situação de facto, sendo revelada por sinais visíveis e permanentes, que inequivocamente evidenciem aquele estado de serventia, é análoga àquela em que, pertencendo os prédios ou fracções a donos diferentes, patenteia o condicionalismo de uma verdadeira servidão. Naquele estado de facto e por imperativo da conhecida máxima nemini res sua servit, a servidão não existe, pois no nosso ordenamento jurídico não é admissível a servidão do proprietário. Existe, quando muito, uma servidão em estado latente, uma servidão meramente causal; e esta situação perdurará enquanto os prédios ou fracções forem do mesmo dono ou se ambos passarem simultaneamente para o domínio de outro único proprietário. Surgirá, porém, automaticamente, a figura jurídica da servidão se os dois prédios ou fracções se separarem, radicando-se no domínio de proprietários diferentes. O estado de simples serventia entre prédios do mesmo dono, (servi - latente ou causal), transmuda-se numa verdadeira servidão formal ou em sentido técnico. A utilidade que um prédio prestava a outro ou uma fracção a outra a título de propriedade (mesmo dono), passa a ser prestada a título de servidão (donos diferentes). Constitui-se assim a servidão por destinação do pai de família. Infere-se do artigo 1549º CC que a constituição da servidão por destinação do pai de família pressupõe o concurso dos seguintes requisitos essenciais: a) - Que os dois prédios tenham pertencido ao mesmo dono; b) - Uma relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação); c) - Separação dos prédios ou fracções em relação ao domínio, (separação jurídica), e inexistência de qualquer declaração, no respectivo documento, contrária à destinação. A servidão constitui-se no momento em que os prédios (ou fracções) passam a pertencer a proprietários diferentes e tem na origem o acto voluntário consistente na colocação do sinal ou sinais visíveis e permanentes. O acto constitutivo é o da separação jurídica dos prédios, do mesmo proprietário, sendo que aquele sinal ou sinais (presuntivos do acto da destinação) deverão preexistir a tal separação, aplicados pelo anterior proprietário. Torna-se assim fundamental a existência de um conjunto de circunstâncias, materiais e objectivas, reveladoras da relação de serviço entre os dois prédios, que pertencem a donos diferentes, sendo a essas que a lei atribui o efeito constitutivo da servidão, cuja ratio será precisamente a presunção do acto de destinação. Será que, in casu, se verificam os aludidos pressupostos, sem necessidade de indicar também, como requisito, o de os sinais haverem sido postos pelo mesmo dono ou pelos seus antecessores ? Atendendo aos factos provados, verifica-se que, em 22/10/1993, foi registada na ... Conservatória do Registo Predial de Sintra, a aquisição a favor dos autores do prédio urbano sito em Ranholas, na Rua ...., nº ..., freguesia de S. Pedro de Penaferrim, descrito sob o nº .... e inscrito na matriz sob o nº ..... Nesse mesmo dia, foi ainda registada na dita Conservatória a aquisição a favor dos autores do prédio urbano sito em Ranholas, na Rua ..., nº ..., freguesia de S. Pedro de Penaferrim, descrito sob o nº .... e inscrito na matriz sob o nº ..... Em 16/05/2002, foi registada na mesma Conservatória a aquisição a favor dos réus do prédio urbano sito em Ranholas, na Rua ..., nº ..., freguesia de S. Pedro de Penaferrim, descrito sob o nº .... e inscrito na matriz sob o nº ..... Autores e réus adquiriram os prédios acima identificados, por compra, a M... e mulher L... e N.... e mulher O..., os quais adquiriram aqueles prédios, por partilha, por óbito de P... e mulher Q.... O prédio descrito sob o nº ... é composto por casa de rés-do-chão, habitação e logradouro e confronta a Norte com P...., a Sul com Estrada Nacional e a Nascente e Poente com R... e nele existe um Anexo cuja porta de acesso e janela se encontram colocadas do lado do prédio dos réus. Os autores, para terem acesso ao referido Anexo, têm que passar obrigatoriamente pelo prédio dos réus. Aquando da aquisição do seu prédio, os réus sabiam da existência do referido Anexo, no prédio dos autores e sabiam que o mesmo tinha um inquilino, o qual sempre utilizou o prédio que ora pertence aos réus para aceder ao Anexo e também por ser o único acesso. Com efeito, atendendo à localização geográfica do prédio identificado em A), inexiste alternativa para aceder ao Anexo senão passar pelo prédio dos réus. É patente que o prédio dos autores resultou de fraccionamento promovido pelos anteriores proprietários que, aquando da transmissão para aqueles, continuaram com o prédio, posteriormente transmitido para os réus, com o estabelecimento do encargo em benefício dos autores. O direito dos autores passarem pelo prédio dos réus para acederem ao Anexo encontra-se estabelecido a favor do seu prédio por destinação dos anteriores proprietários. A destinação foi operada através da abertura de duas portas: uma que dá acesso directo do prédio dos autores para a propriedade dos réus e outra referente à entrada para o Anexo dos autores, através de um lanço de escadas, deitando para o prédio que hoje é dos réus. Esse Anexo havia sido arrendado a um casal, transmitindo-se o direito ao arrendamento para um seu filho, os quais sempre utilizaram o prédio que ora pertence aos réus para aceder ao Anexo, sendo certo que esse era o único acesso. Assim, tanto o prédio dos autores, onde se encontra o Anexo, como o prédio dos réus haviam pertencido ao mesmo dono. Verifica-se também uma relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes. Por último, houve uma separação dos prédios em relação ao domínio (separação jurídica), inexistindo qualquer declaração, na escritura de compra e venda, contrária à destinação. Com efeito, a partir dos contrato de compra e venda em que figuraram como outorgantes, os ora autores e réus, e os anteriores proprietários, o prédio dos autores e o prédio dos réus deixaram de pertencer ao mesmo dono. Resulta do disposto no artigo 1549º do CC que, verificados todos os pressupostos referidos, a servidão por destinação do pai de família surgirá, salvo se ao tempo da separação, outra coisa se houver declarado no respectivo documento. Resulta assim deste preceito legal que será irrelevante a declaração não constante do próprio documento da separação do domínio. Entendeu o legislador que a presunção derivada dos sinais só deveria reputar-se destruída por esta forma, excluindo-se quaisquer outros documentos. Ora, na escritura de compra e venda, nada consta. E nada constando da aludida escritura, não é possível ilidir a presunção estabelecida no artigo 1549º, pelo que a aludida servidão se constituiu por destinação do pai de família. Os réus pretendem que a servidão de passagem se extinguiu mediante um acordo estabelecido entre autores e réus. Para além de se não haver feito prova de qualquer acordo, convém não esquecer que aquele acordo, a existir, nem sequer relevava, por si só, dado que não havia sido formalizado por escritura pública (artigo 875º CC) e nem podia valer como convenção adicional do contrato de compra e venda realizado (artigo 394º, n.º 1 CC). Pretendem os réus que, a existir a servidão de passagem, a mesma se teria extinto por desnecessidade. Mas sem razão. Para além de nenhuma prova haver sido feita no sentido de que para aceder ao Anexo não seria necessária a referida servidão de passagem, importa referir que, tratando-se, como se trata-se, in casu, de uma servidão de passagem constituída por destinação do pai de família, a mesma jamais se poderia extinguir por desnecessidade. É que estamos perante uma servidão que tem na base um facto voluntário. Permitindo a lei que estas servidões se constituam mesmo quando não são estritamente necessárias, não podem extinguir-se por desnecessárias, porque, então, nem se poderiam constituir. O facto, portanto, de existir um acordo na base das servidões voluntárias torna a situação diferente da que se verifica no domínio das servidões legais ou no das constituídas por usucapião, pelo que a servidão por destinação do pai de família não se pode extinguir por desnecessidade. A 2º questão a decidir prende-se com a desobstrução da passagem entre os prédios serviente e dominante, bem como da porta e janela dos autores que o réu vedou, retirando nomeadamente as placas de madeira. Ficou provado que, em Julho de 2003, foi verificado que os réus selaram a cimento duas portas, uma que dava acesso directo da propriedade dos autores para a propriedade dos réus e outra referente à entrada para o Anexo existente no prédio dos autores e, em 15 de Outubro de 2003, foi verificado que os réus selaram a cimento a janela do Anexo, ficando, por isso, os autores impedidos de aceder ao Anexo através das referidas portas, o que faziam até então. Compelidos pela Câmara de Sintra a demolirem aquelas “obras”, vieram a tapar a porta e a janela do Anexo com placas de madeira. Dispõe o artigo 1565º, n.º 1 do Código Civil que “o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação”. “Este princípio não passa de uma simples aplicação da ideia geral de que toda a lei que reconhece ou atribui um direito legitima os meios indispensáveis para o seu exercício, uma vez que os meios indispensáveis ao exercício da servidão compreendem tudo quanto é necessário, não só ao uso como à conservação dela[5]”. Daqui resulta que os réus terão de permitir o livre acesso dos autores ao referido Anexo, desobstruindo as duas portas, (a que dá acesso directo da propriedade dos autores para a propriedade dos réus e a que dá entrada para o Anexo existente no prédio dos autores), bem como a janela do anexo. A 3ª questão consiste em saber se os autores, com dolo ou mera culpa, violaram ilicitamente o direito dos autores ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, resultando danos desta violação. O artigo 483º do Código Civil consagra o princípio geral da responsabilidade por actos ilícitos. A simples leitura desta norma mostra que vários pressupostos condicionam, no caso da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, cabendo a cada um desses pressupostos um papel especial na complexa disciplina das situações geradoras do dever de reparação do dano. Reduzindo todos estes requisitos à terminologia técnica corrente na doutrina, a responsabilidade pressupões o facto do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano, um nexo de causalidade entre o facto e o dano. In casu, nenhuma dúvida resta que, existindo uma servidão de passagem pelo prédio dos réus a favor do prédio dos autores, aqueles impediram o acesso ao Anexo dos autores, selando as portas que davam respectivamente acesso ao prédio dos réus e ao Anexo dos autores. Trata-se de um facto dominável ou controlável pela vontade do agente, consistindo a ilicitude na desconformidade entre a conduta devida e a conduta adoptada pelos autores, impedindo os autores do acesso ao Anexo. Não basta, porém, a ilicitude do comportamento dos réus, para que eles sejam obrigados a indemnizar os autores pelos danos resultantes da sua actuação. É preciso ainda que os réus tenham agido com culpa, isto é, que tenham actuado em termos de a sua conduta ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia como podia ter agido de outro modo. Ora, in casu, o comportamento dos réus é censurável, pois sabendo bem que os inquilinos do Anexo sempre utilizaram o prédio que ora pertence aos réus para aceder ao Anexo, sendo aliás o único acesso, e que aquela servidão de passagem se havia constituído por destinação do pai de família, impediram os autores de aceder ao dito Anexo através dos acessos atrás referidos, obstruindo-os. Para que haja obrigação de indemnizar, e condição essencial que haja um dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém. Dispõe o artigo 564º, n.º 1 do Código Civil que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Portanto o dever de indemnizar abrange os prejuízos sofridos, a diminuição dos bens já existentes na esfera patrimonial do lesado - danos emergentes, e os ganhos que se frustraram, os prejuízos que advieram ao lesado por não ter aumentado, em consequência da lesão, o seu património - lucros cessantes. Conforme ensina o Prof. Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, pág. 373, “os danos emergentes traduzem-se numa desvalorização do património, os lucros cessantes numa sua não valorização. Se diminui o activo ou aumenta o passivo, há um dano emergente (damnum emergens); se deixa de aumentar o activo ou de diminuir o passivo, há um lucro cessante (lucrum cessans). Ali dá-se uma perda, aqui a frustração de um ganho”. No caso em apreço, alegaram os autores que, anteriormente ao réu ter vedado o acesso, o autor arrendava a dependência para fins habitacionais, pelo valor de 150 euros mensais e que, desde a saída do último inquilino, ficou o autor impossibilitado de efectuar o arrendamento, em virtude do réu lhe ter vedado o acesso. É verdade que, com excepção do valor da renda paga pelo último inquilino, os factos alegados ficaram provados. No entanto, embora o autor tivesse ficado objectivamente impossibilitado de arrendar o Anexo, nenhuma prova se fez que alguém tivesse pretendido o seu arrendamento. Isto porque o Anexo dos autores carece de um complemento, não sendo bastante para dispor de cozinha e de quarto. Antes, servia de cozinha, enquanto o Anexo dos réus servia de quarto. Aliás, o primitivo dono dos três prédios tinha destinado aquele Anexo a arrumos de batatas e de outros produtos hortícolas. Não lograram, portanto, os autores provar os lucros cessantes, pelo que não tendo sido provada a existência de danos patrimoniais, fica desde logo afastada a responsabilidade dos réus a esse título. Pretendem também os autores ser indemnizados a título de danos não patrimoniais, por a conduta da ré lhe ter causado incómodos de vária ordem, traduzidos designadamente em desgaste emocional, nervosismo e ansiedade, ao verem-se confrontados com uma anómala e insólita situação de se verem impedidos de aceder ao seu Anexo, vendo inclusivamente vedadas a porta e a janela do mesmo. Provou-se, a este propósito, que a privação do Anexo tem causado aos autores algum desgaste emocional e algum nervosismo e ansiedade. A ser assim, põe-se o problema de saber se, dada a natureza dos danos, estes relevam e, consequentemente, são atendíveis para efeitos indemnizatórios já que a lei apenas elege como danos indemnizáveis os que “pela sua gravidade mereçam a tutela do direito” (artigo 496°, n.º 1, do Código Civil). Isto significa que, em sede de compensação por danos não patrimoniais, por não se estar perante a lesão de interesses susceptíveis de avaliação pecuniária, o dano não corresponde a um prejuízo determinado ou materialmente determinável, reparável por reconstituição natural ou através de um sucedâneo em dinheiro, mas a uma lesão de ordem moral ou espiritual apenas indirectamente compensável através de utilidades que o dinheiro possa proporcionar e que o requisito «dano», como pressuposto da obrigação de indemnizar, não seja um qualquer prejuízo, mas apenas aquele que se apresente com um grau de gravidade tal que postule a atribuição de uma indemnização ao lesado. Se essa gravidade não concorrer, não pode falar-se de dano não patrimonial passível de ressarcimento. Responder à questão de saber se os danos demonstrados assumem ou não a referida gravidade é o mesmo que ter ou não por verificado o requisito «dano», como pressuposto da obrigação de indemnizar. Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc, reflectindo, mais ou menos, melhor ou pior, manifestações de perturbações emocionais. A avaliação da sua gravidade tem de aferir-se segundo um padrão objectivo, e não á luz de factores subjectivos[6], sendo, nessa linha, orientação consolidada na jurisprudência, “com algum apoio na lei”, que as simples contrariedades ou incómodos apresentam “um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do n.º 1 do artigo 496º”[7]. Por outro lado, dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação[8]”. Ora, se a privação do Anexo tem causado aos autores apenas algum desgaste emocional e algum nervosismo e ansiedade, significa que o estado emocional e de tensão provocado nos autores como consequência da conduta dos réus, não ultrapassam o nível das contrariedades e incómodos irrelevantes para efeitos indemnizatórios, ficando aquém daquele patamar de gravidade superior e suficiente para reclamar compensação, não ultrapassando aquele mínimo que, objectivamente, deva ter-se como de suportabilidade exigível, em termos de resignação. Assim postas as coisas, só pode concluir-se pela improcedência do pedido dos autores quanto a estes danos. 6. Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, julgando a acção parcialmente procedente por provada, revoga-se a sentença recorrida, decidindo-se: a) – Reconhecer a existência de uma servidão de passagem pelo prédio dos réus, pela qual se acede ao Anexo (acima referido) do prédio dos autores; b) – Condenar os réus a desobstruírem a passagem entre o prédio dos autores e o prédio dos réus bem como a porta e a janela do Anexo dos autores que vedaram, retirando nomeadamente as placas de madeira. c) – Absolver os réus quanto à indemnização peticionada. Custas por autores e réus, na proporção de ¼ para aqueles e de ¾ para estes. Lisboa, 10 de Dezembro de 2009 Manuel F. Granja da Fonseca Fernando Pereira Rodrigues Maria Manuela dos Santos Gomes [1] Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, 348. [2] Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Almedina, 2ª edição, 279 e seguintes. [3] Manual de Recurso em Processo Civil, 8ª edição, 216. [4] Obra citada, 282. [5] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, 663. [6] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9ª edição, 628. [7] Ac. do STJ de 12/10/1973, BMJ, 230,107. [8] Ac. do STJ de 4/03/2008, in www.dgsi.pt. |