Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | ALDA TOMÉ CASIMIRO | ||
Descritores: | FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/03/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | No Código Penal, versão de 1995, não foi incluída no tipo legal do crime de falsificação de documentos a chamada falsidade, falsificação indirecta ou falsa documentação indirecta, não existindo actualmente, no sistema jurídico português, nenhum tipo de crime que puna o terceiro que se serve do funcionário de boa fé para inserir no documento elementos inexactos ou falsos. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa. I-Relatório: No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular e nº ...2/08.3TAVFX que corre termos na Secção Criminal (J...) da Inst. Local de Lisboa, da Comarca de Lisboa, foi o arguido, KG..., casado, nascido a 12.01.1971 em Moçambique, de nacionalidade portuguesa, filho de GB... e de NC..., residente em 1530 Somergrove Crescent, Pickering, O N, L1x2k7 Pickering, O N Canadá, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, aI. d) do Cód. Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 600,00 € (seiscentos euros). Mais foi condenado, na procedência parcial do pedido de indemnização civil formulado por “SMOF – Serviços de mão-de-obra temporária e formação profissional – Empresa de trabalho temporário, Lda.”, a pagar a esta demandante uma indemnização no valor de 9.317,80 € (nove mil, trezentos e dezassete euros e oitenta cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% a contar desde a data de notificação do pedido. * Sem se conformar com a decisão, o arguido interpôs o presente recurso pedindo que seja revogada a sentença recorrida, com a sua consequente absolvição por não estarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime p. e p. pelo art. 256º, nº 1 alínea d) do Cód. Penal. Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem: 1.A expressão "Por forma a evitar o pagamento das dívidas aos credores, ...", que consta no número 5 da matéria dada como provada não consubstancia qualquer facto concreto, mas uma mera conclusão, conclusão essa que, aliás, assenta em meras presunções e abstrações jurídicas. 2.Com efeito, não resulta da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, quaisquer factos que permitam suportar, em concreto, tal conclusão ou a manifestação da intenção do arguido em não pagar as dívidas aos credores. 3.A verdadeira razão e intenção para dissolver a sociedade foi, conforme desde sempre referiu o arguido, e que consta na ata (ponto 1) a sociedade já não ter qualquer atividade e, com essa dissolução, o arguido pretender "arrumar a casa", de modo a poder ir viver para o Canadá, com a sua mulher e filha menor, conforme veio a suceder, país onde continua a residir, e onde foi notificado da douta sentença. 4.Deverá pois a expressão "Por forma a evitar o pagamento das dívidas aos credores, ...", que consta no referido número 5 ter-se por não escrita e ser suprimida. 5.Por outro lado, os factos dados como provados não são de molde a integrar o referido crime previsto no artigo 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal, já que não estão preenchidos, in casu, todos os elementos constitutivos do aludido crime, pois falta a verificação do dolo específico consubstanciado na intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, e ainda pelo facto da declaração inverídica que consta no documento (ata) não constituir "um facto juridicamente relevante". 6.Com efeito, o arguido ao fazer constar na ata da sociedade Ubiquando Unipessoal, Lda, que esta já não tinha qualquer ativo ou passivo não teve a intenção de causar prejuízo a quem quer que fosse. Apenas pretendia dissolver uma sociedade que já não exercia qualquer atividade e, dessa forma poder ir viver para o estrangeiro, como efetivamente veio a acontecer. 7.Por outro lado, não resulta da prova produzida quaisquer factos concretos que permitam tirar a ilação de que o arguido, ao assinar aquela ata, tivesse intenção de causar prejuízo a alguém ou que tivesse efetivamente causado prejuízos. 8.Assim, não foi feita a prova da existência do nexo de causalidade entre os prejuízos invocados pela demandante e o registo de dissolução da sociedade Ubiquando-Unipessoal, Lda.. 9.Não ficou pois demonstrado, no presente caso, o dolo específico traduzido na intenção do arguido de causar prejuízo a terceiros bem como na intenção de obter para si benefício ilegítimo. 10.Acresce que para existir o crime p. e p. nos termos do artigo 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal necessário se torna que a falsidade que constar do documento ou de qualquer dos seus componentes seja um facto juridicamente relevante, ou seja, ter a virtualidade de constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica. 11.Ora, a declaração de inexistência de passivo da sociedade Ubiquando-Unipessoal, Lda, à data de 30 de junho de 2008, feita pelo seu único sócio, o ora arguido, sendo embora inverídica não é uma declaração juridicamente relevante, pelo menos para efeitos criminais, pois não é pelo facto de a mesma ter sido tomada que vai contrariar a existência de créditos que sobre a sociedade se venha a reclamar. 12.Como tem sido defendido por vasta jurisprudência, entre outros no Acórdãos da Relação do Porto de 14 de abril de 2010, 19 de outubro de 2010 e 4 de maio de 2011, bem como no Acórdão da Relação de Coimbra de 19 de junho de 2013, in www.dgsi.pt, as declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo nem passivo e de que não existiam bens a partilhar, são de mera responsabilidade daqueles (...) Trata-se de uma declaração res inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais. 13.É que os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos, não podendo por isso a dissolução e extinção da sociedade ser-lhes aposta, gozando os credores sociais da proteção conferida pelos artigos 1020º do Código Civil e artigos 160º, nº 2, 162º, 163º e 164º do Código das Sociedades Comerciais. 14.Também o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 854/13.0TAMAI, in. www.dgsi.pt, ao pronunciar-se sobre esta questão veio defender que "(...) a incriminação assim viabilizada também não se basta com a simples invocação da declaração inverídica inserta na deliberação social e determinante da dissolução da sociedade e da intenção de causar prejuízo a terceiros, tendo que ser preenchida por factos necessários e suficientes à indiciação (fase de instrução) ou prova (fase de julgamento) de que a sociedade possuía activos que permitiam a satisfação, total ou parcial, do crédito destes, activos esses entretanto partilhados e dissipados, o mesmo não ocorrendo relativamente ao património dos sócios. Só assim poderá afirmar-se a existência de um nexo de causalidade entre a decisão dos sócios de dissolverem a sociedade e a declararem, de imediato, liquidada por ausência de passivo e/ou activo e a impossibilidade do terceiro ofendido obter a satisfação do seu crédito (...)" 15.Ora resulta dos autos e em particular dos factos dados como provados, que não foi recolhida qualquer prova da existência de ativos da sociedade à data da assinatura da ata pelo arguido. 16.Tão-pouco ficou provado o nexo de causalidade entre a decisão do arguido de dissolver a sociedade e a declarar liquidada por ausência de passivo e ativo e a impossibilidade da demandante SMOF obter a satisfação do seu crédito. 17.Somos pois levados a concluir que in casu não está preenchido o conceito de "facto juridicamente relevante" da al. d) do nº 1 do art. 256º CP.", já que não ficou demonstrado que a vontade determinante e subjacente a tal declaração foi a de prejudicar terceiros e que existiam ativos no património social que permitiam a satisfação dos créditos dos terceiros que foram partilhados e dissipados. 18.Não estão assim preenchidos todos os elementos constitutivos do crime da falsificação previsto no artigo 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal. 19.Assim sendo, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos artigos 256º, nº 1, alínea d) do Código Penal e artigo 162º do Código das Sociedades Comerciais, ao condenar o arguido, com base nessas normas, quando o deveria ter absolvido. * A Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou concluindo que o recurso do arguido não merece provimento. * Nesta Relação, a Digna Procuradora-geral Adjunta emitiu Parecer onde levanta a dúvida sobre a validade da procuração junta pelo recorrente em 13.11.2015 atendendo a que essa procuração estava datada de 8.01.2009 e que em 2.09,2011 o ora recorrente tinha revogado mandato anteriormente conferido ao mesmo mandatário. Suscitou também a dúvida sobre a regularidade da notificação da sentença ao ora recorrente efectuada através de carta rogatória remetida às Justiças do Canadá. Em resposta, o recorrente veio juntar nova procuração ao mesmo mandatário, agora datada de 7.03.2016, e em que ratifica todos os actos praticados pelo mandatário, incluindo a interposição do recurso. Nessa mesma resposta o recorrente, através do seu mandatário, assume ter tido conhecimento da sentença e considerou-se notificado. Assim, julgamos o recorrente notificado da sentença e ratificado o processado. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir. * * * Fundamentação. Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos: 1.SMOF – Serviços de Mão-de-Obra Temporária e Formação Profissional – Empresa de Trabalho Temporário, Lda. dedica-se à prestação de serviços na área do trabalho temporário. 2.Em Janeiro de 2007, o arguido, na qualidade de representante legal da "Ubiquando Unipessoal, Lda.", contratou a SMOF e solicitou a colocação de pessoal em Lisboa, tendo ambas as partes assinado um contrato de utilização de trabalho temporário com o número 01/07-UBI, o que veio a repetir-se mais tarde, em Março de 2007, altura em que foram celebrados novos contratos com os números 02/07-UBI e 03/07-UBI. 3.Porém, o arguido, na qualidade de representante legal da "Ubiquando-Unipessoal, Lda.", não procedeu ao pagamento das faturas números: 1234, 12459, no valor global de 8.4006. 4.Em consequência, a SMOF-Empresa de Trabalho Temporário, Lda, instaurou procedimento de injunção em 10 de Julho de 2007, ao qual foi aposta força executiva em 6 de Novembro de 2007 e com base nesse título executivo, em Fevereiro de 2008 foi intentada acção executiva no ...º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, com o número ...6/08.1 TBVFX. 5.Por forma a evitar o pagamento das dívidas aos credores, o arguido procedeu à dissolução e liquidação da sociedade "Ubiquando-Unipessoal, Lda", tendo entregue na Conservatória do Registo Comercial da Amadora, para o efeito, uma ata por ele assinada, com data de 30 de Junho de 2008, onde o mesmo declara no ponto 2, que em virtude de na presente data, a sociedade já não ter qualquer ativo ou passivo, encontra-se em condições de poder ser dada por liquidada. 6.Com base nessa declaração falsa, o arguido conseguiu a dissolução da sociedade, de acordo com o registo da Conservatória do Registo Comercial de Amadora efetuado no dia 28 de Agosto de 2008. 7.Com a sua conduta, o arguido causou à SMOF - Empresa de Trabalho Temporário, Lda um prejuízo patrimonial superior a 8.600,74€ e que, à data da execução, se cifrava de €9.317,80 (nove mil trezentos e dezassete euros e oitenta cêntimos). 8.Ao praticar os factos acima descritos, o arguido agiu com a vontade livremente determinada e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe não era permitida. 9.O arguido não tem antecedentes criminais. 10.A demandante prestou o serviço requerido, pelo arguido, que foi recebido e nunca reclamado e nunca deixou de pagar as remunerações dos funcionários requeridos pelo arguido. 11.A demandante cumpriu com as suas obrigações legais uma vez que entregou as retenções efetuadas em sede de IRS, entregou e pagou a verba correspondente à Segurança Social e entregou o valor correspondente ao IVA das faturas emitidas. E considerou-se serem estes os factos não provados: 1)A demandante viu-se na contingência de contratar uma Advogada, havendo a considerar o valor a despender para pagamento do seu trabalho, no montante de € 2.000, acrescido de IVA à taxa legal. 2)O arguido, enquanto gerente da Ubiquando, Lda. só recorreu aos serviços da queixosa por um período muito curto de tempo, enquanto a sociedade Grupo AG, Comercio Internacional Lda., da qual o arguido era administrador, não adaptou o seu pacto social de modo a poder efectuar os trabalhos que eram executados pelos colaboradores da queixosa. 3)Assim, os serviços a que se referem as facturas 12342, 12459, no valor de 8.400€, foram indevidamente facturados à Uiquando Lda., pois, conforme foi acordado entre a queixosa e o arguido, tais serviços deveriam ser facturados à sociedade Grupo AG, SA a quem foram prestados tais serviços. 4)As instalações onde foram executados os trabalhos, sitas na Rua Tomás da Fonseca, nº 38 e na Rua Estêvão Vasconcelos, nº 17-A, Casal de S. Brás, Amadora, pertenciam à referida sociedade Grupo AG, SA e os trabalhos executados pelos colaboradores da queixosa consistiam na montagem de televisores comercializados com a marca "AG electronics" e eram pertença daquela sociedade. 5)A demandante prestou diversos serviços para aquela sociedade, Grupo AG, SA, tendo os mesmo sido pagos, à excepção dos serviços constantes das facturas 12342 e 12459, no valor de € 8.400,02,por, entretanto, esta sociedade ter entrado em processo de insolvência. 6)Essa dívida encontra-se relacionada no respectivo processo de insolvência que corre termos pelo ...º Juízo do Tribunal de Benavente, com o nº ...4/09.4 TBBNV. 7)O arguido tem uma fraca situação económica, vive em casa própria hipotecada, com a sua mulher e filha, de dois anos e aufere um rendimento mensal de 450€, enquanto a sua mulher aufere um rendimento de 750€. O tribunal recorrido fundamentou a fixação da matéria de facto como segue: O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica e valoração da prova produzida, em especial, no Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 577, bem como nos documentos de fls. 7 a 28, 47 a 60, 284 a 357. Tal convicção assentou ainda no depoimento da testemunha DC... que se revelou serena, isenta e credível, tendo referido que trabalhou para a demandante até 2009, que esta prestou serviços de trabalho temporário à Ubiquando de que o arguido era dono, confirmando o teor de fls. 7 a 22 e que as faturas não foram pagas, que a demandante procurou obter o pagamento instaurando injunção, bem como no depoimento da testemunha ST... que se revelou serena, isenta e credível, tendo referido que entre 2005 e 2007 trabalhou para a demandante, tendo recomeçado em 2010 a trabalhar para ela e que o arguido usufruiu de trabalho temporário prestado pela demandante nos anos de 2006 e 2007, que participou na elaboração dos contratos, que quando saiu em Agosto de 2007 ainda permaneciam em dívida as faturas da Ubiquando, no depoimento da testemunha CP..., que se revelou serena, isenta e credível, tendo referido que era trabalhadora da demandante e trabalhou para Ubiquando, empresa do arguido, no depoimento da testemunha NF... que, não obstante ser gerente da demandante se revelou serena, isenta e credível, tendo referido que a Ubiquando ficou a dever oito ou nove mil euros por lhe ter prestado serviços de trabalho temporário e ainda no depoimento da testemunha JB... que se revelou serena, isenta e credível, tendo referido que trabalhou para a demandante em 2006 ou 2007 tendo pela demandante sido colocado a trabalhar para a Ubiquando. A factualidade não provada deveu-se à ausência de elementos probatórios que a sustentasse, quanto aos serviços de advocacia e respectivo valor, bem como quanto ao invocado pelo arguido. * * * Apreciando… De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. O recorrente impugna um dos factos provados e insurge-se contra a qualificação jurídica dos factos feita na sentença recorrida. * Da impugnação da matéria de facto… O recorrente afirma claramente que não pretende a reapreciação da prova, mas impugna parte do facto dado como provado em 5., concretamente a expressão “Por forma a evitar o pagamento das dívidas aos credores (…)”. O facto em questão é o seguinte: “5. Por forma a evitar o pagamento das dívidas aos credores, o arguido procedeu à dissolução e liquidação da sociedade "Ubiquando-Unipessoal, Lda", tendo entregue na Conservatória do Registo Comercial da Amadora, para o efeito, uma ata por ele assinada, com data de 30 de Junho de 2008, onde o mesmo declara no ponto 2, que em virtude de na presente data, a sociedade já não ter qualquer ativo ou passivo, encontra-se em condições de poder ser dada por liquidada.” O facto impugnado é um facto do foro pessoal, considerando que afirma a intenção do agente. Ora é sabido que a intenção é uma realidade que não é apreensível directamente, mas antes decorre da análise do conjunto de outras circunstâncias de facto dadas como provadas, vistas à luz das regras da experiência comum. Como ensina Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1981, pág. 292), existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa. No mesmo sentido, Malatesta, in “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, págs. 172 e 173, defende que, exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas (“percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência”). E o certo é que, analisando os factos provados, depreende-se que o Tribunal recorrido infere que o arguido procedeu à dissolução e liquidação da sociedade "Ubiquando-Unipessoal, Lda", por forma a evitar o pagamento das dívidas aos credores. Todavia, a simples dissolução e liquidação de uma sociedade não pode ser vista como forma, sem mais, de evitar o pagamento das dívidas aos credores. Como se refere no último acórdão citado pelo recorrente nas suas conclusões de recurso, para que se possa concluir que o agente quis evitar o pagamento das dívidas será preciso alegar e provar que a sociedade possuía activos que permitiam a satisfação, total ou parcial, dos créditos existentes, pois só assim poderia afirmar-se a existência de um nexo de causalidade entre a decisão dos sócios de dissolverem a sociedade e a impossibilidade do terceiro ofendido obter a satisfação do seu crédito. Ora a prova de que a sociedade dissolvida possuía activos para proceder ao pagamento das dívidas não foi feita (nem o facto foi alegado), pelo que a conclusão da intenção do arguido retirada pelo Tribunal recorrido foi incorrecta. Consequentemente também não poderiam ter sido dados como provados os factos 7. e 8. (7. Com a sua conduta, o arguido causou à SMOF - Empresa de Trabalho Temporário, Lda um prejuízo patrimonial superior a 8.600,74€ e que, à data da execução, se cifrava de €9.317,80 (nove mil trezentos e dezassete euros e oitenta cêntimos); e 8. Ao praticar os factos acima descritos, o arguido agiu com a vontade livremente determinada e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe não era permitida). Nestes termos, em face do que vem de ser expendido, há que modificar a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 431º b) do Cód. Proc. Penal, sendo eliminada do ponto 5. dos factos provados a expressão “Por forma a evitar o pagamento das dívidas aos credores (…)”, a qual será dada como não provada, sendo também eliminados os pontos 7. e 8. dos factos provados, dando-se como não provados. * Em face da presente alteração, os factos dados como provados não preenchem os elementos constitutivos do tipo de crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, aI. d) do Cód. Penal. Efectivamente, comete aquele crime “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime… fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante”. Deve entender-se por documento, para os efeitos de crime de falsificação que ora interessam (cfr. o art. 255º a) do Cód. Penal) “a declaração corporizada em escrito ... inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente...” Do aludido conceito decorre que “documento, para efeitos de direito penal, não é o material que corporiza a declaração, mas a própria declaração independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano” (Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667). Assim, o referido tipo legal de crime integra não só a falsificação material, mas também a falsificação ideológica. “Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração incorporada no documento cumpre distinguir as diversas formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.” (obra citada, pág. 676). Considerando os factos provados, verificamos que, desde logo, ali não consta o elemento subjectivo do tipo: a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo. Ora a falta deste elemento impõe a absolvição do recorrente. Já saber se a acta assinada pelo recorrente, onde o mesmo declara que em virtude de na presente data, a sociedade já não ter qualquer activo ou passivo, encontra-se em condições de poder ser dada por liquidada, contém ou não um facto juridicamente relevante, tendemos a considerar que sim. Um facto é juridicamente relevante quando produza uma alteração no mundo do Direito, ou seja, quando abra ensejo à obtenção de um benefício (neste sentido Leal Henriques e Simas Samos, Cód. Penal Anotado, em anotação ao art. 256º); ou, segundo Helena Moniz, facto falso juridicamente relevante é aquele facto “que crie, modifique ou altere uma relação jurídica” (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo. II, p. 683). Ora a declaração de que uma sociedade não tem activo nem passivo e pode ser liquidada constata um facto juridicamente relevante no sentido de que conduz à liquidação de uma pessoa colectiva. Mas esta acta não constitui mais do que uma declaração, a ser exibida perante o Sr. Notário, de que a sociedade não tem activo nem passivo. Se se tratasse de uma pessoa singular, essa pessoa produziria tal declaração perante o Notário, como estamos em sede de uma pessoa colectiva, a mesma declaração é produzida em acta. Ora as declarações falsas prestadas pelos outorgantes ao Notário no acto de formalização de uma escritura pública que constituem uma simulação, não são puníveis em face do actual Código Penal, não sendo susceptíveis de integrar o crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º do Código Penal. Vejamos porquê… Nos termos do art. 455º do Cód. Penal de 1886, a simulação constituía crime. O nº 2 do art. 233º do Cód. Penal de 1982 punia “quem, induzindo em erro um funcionário, o levar a fazer constar de documento ou objecto equiparável, a que a lei atribui fé pública, algum facto que não é verdadeiro ou a omitir facto juridicamente relevante ...”. Este normativo reduziu o antigo espectro do antigo crime de simulação, ficando impune a simulação entre particulares mas nele cabendo todas as falsas declarações, por acção ou por omissão de factos que devessem figurar em documento ou objecto equiparável, a que a lei atribui fé pública (neste sentido Matos Fernandes, Falsificação de documentos, Moeda, Pesos e Medidas, Col. Jur., IX, tomo 4, pág. 30 ss). Também Figueiredo Dias e Costa Andrade (“O Legislador de 1982 optou pela Descriminalização do Crime Patrimonial de Simulação”, Parecer in Col. Jur., VIIl, tomo 3, pág. 20 ss) defendem que “a total ausência de qualquer referência à figura da simulação, ou a qualquer conduta legal e materialmente equivalente no novo Código Penal, não pode deixar de ter um significado unívoco: o da decisão do legislador no sentido da descriminalização daquela forma tradicional de ilícito, confiando a respectiva prevenção e sancionamento ao direito civil”, já que entendem que a simulação tem natureza patrimonial e nos crimes de falsificação o bem jurídico acautelado não é o património, mas antes o da segurança e confiança do tráfico jurídico. Repare-se que no Cód. Penal de 1982 o crime de falsificação de documento tem previsão no art. 228º. Mas no Cód. Penal de 1995, nem a penalização do nº 2 do art. 233º do Cód. Penal de 1982 se manteve, mantendo-se no essencial a do 228º. De facto, no Código Penal de 1995, não foi incluída na falsificação de documentos a chamada falsidade, falsificação indirecta ou falsa documentação indirecta. Conforme sublinha Helena Moniz (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 679 e Crime de falsificação de documentos, pág. 198) “não existe, pois, actualmente, no sistema jurídico português nenhum tipo de crime que puna o terceiro que se serve do funcionário de boa fé para inserir no documento elementos inexactos ou falsos”. Termos em que, quer em face da alteração dos factos provados e não provados agora efectuada, quer em face do argumento histórico expendido (de que as falsas declarações prestadas perante notário não constituem o crime de falsificação de documento), impõe-se a constatação de que o recorrente não cometeu o crime de falsificação por que foi condenado em primeira instância, pelo que irá agora absolvido. Em face da absolvição, e considerando o elenco dos factos ora provados, improcede o pedido de indemnização civil, pois que não estão preenchidos os pressupostos que fariam o recorrente incorrer na obrigação de indemnizar a demandante: desde logo a existência de um facto ilícito (cfr. o disposto no art. 129º do Cód. Penal e no art. 483º, do Cód. Civil. É certo que, nos termos do art. 377º, nº 1, do Cód. Proc. Penal, “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado (…)”, mas para o processo poder prosseguir é necessário que, estando em causa responsabilidade extracontratual, os respectivos pressupostos se tenham por verificados. Lembramos que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/99 de 17.06, (publicado na Série I do DR de 03.08.1999), fixou a seguinte jurisprudência: “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, nº 1 do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”. Ora a responsabilidade contratual é aquela que deriva de um contrato ou de um negócio jurídico, enquanto a responsabilidade extracontratual compreende a responsabilidade por facto ilícito (arts. 483º ss do Cód. Civil), a responsabilidade pelo risco (arts. 499º ss do Cód. Civil) e a responsabilidade por factos lícitos. Assim, absolvido o arguido do crime imputado (por falta de prova, descriminalização do facto, por amnistia da infracção, por prescrição do procedimento criminal, por extinção do direito de queixa, etc.), havendo pedido de indemnização civil fundado em responsabilidade extracontratual, o tribunal deve conhecer do pedido (e, verificados os respectivos pressupostos, condenar o demandado). No caso, a responsabilidade por facto ilícito, que era a única que podia estar em causa, não se verifica (por o arguido/demandado não ter cometido qualquer facto ilícito) e a responsabilidade contratual não pode ser aqui apreciada. Pelo que também do pedido de indemnização civil tem o recorrente que ser absolvido. * * * Decisão: Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogam a sentença recorrida, absolvendo o recorrente. Sem custas. Lisboa, 3.05.2016 (processado e revisto pela relatora) (Alda Tomé Casimiro) (Cid Geraldo) |