Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
938/08.7YXLSB.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
NOTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Demonstrados os factos constitutivos da existência do crédito e da cessão do mesmo, e nada impedindo que os efeitos dessa cessão em relação ao devedor sejam exercidos judicialmente, produz a mesma efeitos, independentemente de não ter sido feita prova da notificação prévia, com a sua alegação em sede de petição inicial e a citação efectuada nos autos.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


M... instaurou ação declarativa, sob a forma de processo sumário, contra M... e M..., pedindo a condenação dos Réus a inteirarem-lhe a importância de € 26.000,00, e respectivos juros civis, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efectivo pagamento.
Alegou, em síntese:
- ser irmã de M..., falecida em 23 de Janeiro de 2008;
- tendo a mesma sido empregada de casa e da ourivesaria dos Réus;
- aquela, devido à confiança existente com os seus patrões, acedeu a que ficasse domiciliada na sua residência e numa conta de que era titular, um empréstimo contraído pelos Réus para aquisição de um veículo automóvel mediante recurso o crédito bancário;
- sucede que a sua falecida irmã foi efectuando os pagamentos das prestações desse empréstimo, em substituição dos Réus que ficaram de o pagar logo que pudessem, sem que, contudo, tenham a chegado reembolsar a mesma do montante despendido de € 26.000,00.
- apesar disso, antes de falecer, e já na fase terminal da sua doença oncológica, a pedido desta, a Ré entregou-lhe um cheque nesse valor como garantia do pagamento da dívida, cheque esse que lhe foi entregue pela sua falecida irmã na sua festa de aniversário em 3 de Janeiro de 2008, perante vários convidados, como presente e em reconhecimento de todo o apoio que lhe havia prestado ao longo da sua doença, tendo esta ao mesmo tempo subscrito uma declaração nesse sentido.
- posteriormente ao falecimento da sua irmã foi apresentar o cheque a pagamento, tendo o mesmo sido recusado por “saque irregular” com fundamento na assinatura da Ré aposta no cheque não ser a do titular da conta, pelo que contactou a Ré que confessou ser devedora da referida importância, negando-se, contudo, a liquidá-la por existirem outros herdeiros com eventuais direitos sobre a mesma.
Os réus deduziram contestação invocando a excepção de ilegitimidade da Autora por na presente acção deverem ser intervenientes os restantes herdeiros da falecida M... por assentar a causa de pedir num mútuo em que a herança da falecida seria credora;
- mais alegaram a ilegitimidade do Réu por a importância de € 26.000,00 emprestada pela falecida irmã da Autora se ter destinado exclusivamente ao giro comercial do estabelecimento de ourivesaria que pertence como bem próprio à Ré, não tendo o Réu atento o regime de bens do casamento qualquer responsabilidade pela referida dívida.
- alegaram, ainda, nunca ter a Ré se recusado a efectuar o pagamento da mencionada quantia, desde que aos seus legítimos titulares, negando a versão apresentada na petição inicial tanto no que se refere a terem contraído um crédito bancário para aquisição de um veículo, bem como quanto à pretensa doação do valor correspondente ao cheque.
- em complemento, alegaram que o financiamento bancário foi contraído pela falecida irmã da Autora e amortizado pela mesma sem que tenha existido qualquer veículo automóvel, correspondendo antes a um financiamento para completar a aquisição pela mesma de uma habitação;.
- já quanto à proveniência da dívida alegaram referir-se a diversas quantias que a falecida no ano de 2004 foi emprestando ao estabelecimento de ourivesaria da Ré, tendo o cheque sido entregue como lembrança da dívida e apenas no interesse da falecida, tendo sempre actuado de boa fé e em defesa dos interesses desta, não valendo o mesmo como meio de pagamento, o qual, aliás, durante 4 anos não foi sequer reclamado fruto das boas relações existentes com os Réus e à situação económica desafogada da falecida.
- já quanto à pretensa doação do referido cheque e à declaração assinada pela falecida junta com a petição, impugnaram a assinatura aí aposta e não aceitaram que a mesma tivesse ocorrido por as relações da falecida com a Autora não serem boas, sustentaram que o cheque não é susceptível de ser doado e que a eventual cessão de créditos lhe teria de ter sido notificada, o que não ocorreu, pelo que a quantia em causa deve ser antes entregue à herança.
- entendem, por isso, que a acção deve ser julgada improcedente e, em qualquer caso, entender-se que não deu a Ré causa à acção por sempre se ter disposto a pagar a referida aos herdeiros legais da falecida.

A Autora respondeu à contestação.
Defendeu a sua legitimidade por o cheque lhe ter sido doado a si em vida e não pertencer à herança;

Mais alegou que:
- confrontou a ré com esse cheque na missa de 7.º dia posterior ao falecimento da sua irmã, o que foi inicialmente aceite por esta, pelo que sempre se teria de entender ter ocorrido uma cessão de créditos ou de posição contratual válida e eficaz.

Foi proferido despacho saneador.
Procedeu-se à dispensa da selecção da matéria de facto assente e de fixação da base instrutória, nos termos do artigo 787,º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Civil.
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão que julgou a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 26.000,00, acrescida de juros de mora civis, contados desde a notificação da presente sentença e até integral pagamento.
No mais, absolveu o Réu do pedido contra si formulado.
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Inconformada, interpôs a Ré competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
‘’1ª) – Há que reapreciar a matéria de facto consignada na sentença e que serviu de fundamento à decisão, tomando em consideração os seguintes pontos:
1.1 - fantasiosa e inventada história para justificar a existência de um impresso de cheque com uma quantia, escrita, de € 26.000,00, no espólio da M..., tratando-se de um autêntico romance de ficção a matéria dos arts. 4º, 5º, 10º parte final, 11º, 12º, 13º,
14º, 16, 17º e 18º da p.i.;
1.2 - depoimento apaixonado, autêntica representação teatral, por parte do marido da A.,
ouvido como testemunha: um ror de falsidades e invenções, indiscutivelmente o que é reconhecido pelo Mº Juiz que qualifica o comportamento daquela testemunha como PARCIAL e INTERESSADO DIRECTO NO DESFECHO DA CAUSA
(sic);
1.3 - depoimento da testemunha P... que não foi valorado, é certo
mas que a única coisa que sabia dizer (tanto foi a confusão) foi que a “única coisa que vi foi no dia dos anos da minha cunhada, a M... ir buscar um envelope” quando não era a esta matéria que estava a ser ouvida;
1.4 - Depoimentos contraditórios e alheios de incongruência da Nora e da Neta da A.,
sobretudo o desta última, tendo em relação à segunda, o Mº Juiz chegado a referir que ela PARECIA TER ISSO DECORADO (sic);
1.5 - Depoimentos ensinados e aprendidos, nalguns casos, mal...
1.6 - Depoimento “suspeito” da vizinha Maria Isabel, não parente,
mas amiga da A., que e limitou a ir lá a casa, segundo o seu
testemunho, para assistir à entrega de um impresso de cheque pela M... à A., que fazia anos.
2ª) – Devia ter sido considerada NÃO PROVADA a matéria dos arts. 20º, 21º, 23º, 28º e 29º da p.i. e PROVADA a dos artigos 30º e 38º da Contestação;
3ª) – A pretensa Declaração que a M... teria assinado logo de seguida à oferta é forjada, pois a única testemunha que podia merecer credibilidade neste ponto – a vizinha Maria Isabel – declarou NADA SABER, pois retirou-se do local logo a seguir a apagarem as velas do bolo;
4ª) – O documento 19 junto com a p.i. não é um cheque, mas um mero impresso de cheque, aliás de um Banco já inexistente e que serviu apenas para registo de dívida;
5ª) – A Declaração (Doc. 20 junto com a p.i.) não faz sentido algum, como o próprio Juiz chegou a interrogar-se. “Mas qual era a necessidade de fazer o documento? Eu se quero dar dinheiro a alguém dou um cheque e está dado o dinheiro para que é que serve... para que é que era preciso o documento?
6ª) – O escrito-declaração só aparece quando a A. percebe que a devedora não vai pagar à mesma A., pois considera que se trata de um crédito da herança e depois do Banco recusar o pagamento;
7ª) – O fundamento jurídico da decisão é que existindo um mútuo contraído pela Ré junto da falecida M..., o correspondente direito de crédito foi doado pela mutuante à irmã L..., mas um direito de crédito não é uma coisa e cede-se, nos termos da lei, só
produzindo efeitos em relação ao devedor se a cessão lhe for notificada ou ele a aceite, o que não sucede no caso;
8ª) – A haver doação esta foi de uma “coisa”, um cheque, como a própria A. reconhece, e por via da tradição dessa coisa.
9ª) - A Declaração a ser verdadeira confirma, afinal, que a doação – a existir – foi exatamente do cheque e, não de qualquer direito.
10ª) – Não tem qualquer apoio legal a decisão quando refere que houve uma cessão de crédito formalizada em declaração escrita, o que, salvo o devido respeito não pode aceitar-se;
11ª) – A douta sentença violou os arts. 577º e 583º, 1 e, também, arts. 947º-2, todos do C. Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença lavrada, com todas as legais consequências e como é de JUSTIÇA.
A recorrida apresentou contra-alegações em que pugna pela confirmação do julgado.
***
São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
1. A Autora M... é irmã de M..., falecida a 23/01/2008, residente que foi na Rua …, em Lisboa.
2. A falecida M... foi empregada doméstica dos Réus M... e M..., durante mais de 30 anos, ao longo dos quais se estabeleceu entre esta e os Réus uma relação de profunda amizade e confiança.
3. A falecida M... fazia também serviços de limpeza na ourivesaria “B...”, sita na Rua ..., em Lisboa.
4. Os Réus subscreveram o documento junto a fls. 10, cujo teor se dá por reproduzido, datado de 20/07/1998, em que o Banco Mello declarou conceder aos Réus o crédito de 4.800.000$00, mediante o respectivo reembolso em 60 prestações mensais, aí se indicando como finalidade do empréstimo a aquisição de um Toyota Land Cruiser.
5. O pagamento ficou domiciliado na residência da falecida M... referida em 1.
6. A falecida M... provisionava a conta n.º 00046850018 da agência de Campo de Ourique do Banco Mello com dinheiro seu, destinado ao pagamento das prestações para amortização do referido empréstimo.
7. A conta passou a ter o n.º 50030703263.
8. Tendo-se mantido a situação quando a conta passou para a Nova Rede – BCP, após a fusão do Banco Mello com o BCP.
9. A Ré assinou o impresso de cheque junto a fls. 26 e entregou o mesmo à falecida M... como comprovativo da existência de uma dívida no valor de € 26.000,00.
10. Por sua vez, o referido cheque foi entregue pela M... à Autora, sua irmã, durante a festa do aniversário desta, no dia 03/01/2008, como prenda de anos.
11. E acrescentou perante os vários convidados que a sua irmã “merecia tudo” era um “anjo”.
12. A Autora convivia com frequência com a falecida M... e que nos últimos tempos de vida desta a Autora prestou-lhe apoio e assistência relativamente à doença do foro oncológico que padecia.
13. A falecida M... assinou a declaração junta a fls. 27, na própria data de aniversário da Autora, constando da mesma o seguinte:

«DECLARAÇÃO
Eu, M..., portadora do B.I. nº 535349, emitido em 22/11/2004 Lisboa, com o número de contribuinte fiscal nº 145409635.
Declaro que dei a minha irmã M... portadora do B.I. nº 521773 Lisboa e número de contribuinte fiscal nº 113283377 no dia do seu aniversário, data 03 Janeiro do ano 2008 pelas 23.30 horas, um cheque no valor de 26.000.00 € (vinte e seis mil euros), do Banco Nova Rede Sucursal Campo de Ourique, pertencente a T... e M...
Dinheiro que Eu, M... emprestei à minha patroa Dona M... por diversas vezes.
Lisboa, 03 Janeiro de 2008»
14. M... viria a falecer na casa da Autora.
15. O impresso de cheque junto a fls. 26 foi, sucessivamente, apresentado a pagamento pela Autora, tendo sido devolvido em 28/02/2008 por “f. vício/formação vontade” e em 15/04/2008 por “saque irregular”, nomeadamente, por a Ré cuja assinatura foi aposta no documento não ser titular da conta sacada.
16. A falecida M... acreditava que o referido impresso de cheque representava o crédito que detinha sobre a Ré.
17. À data do respectivo óbito M... era viúva e não deixou descendentes nem ascendentes vivos.
18. M... faleceu sem ter cobrado o seu crédito de € 26.000,00 dada a inteira confiança que tinha nos Réus e porque essa quantia não lhe fazia falta, porque contou sempre, até à hora da morte, com todo o apoio e a amizade da Ré, sendo também certo que no Instituto de Oncologia nada pagava.
19. Consta da escritura de habilitação de herdeiros da falecida M... junta a fls. 50 a 54 que a mesma fez testamento público outorgado em 12/05/2005, e que deixou como seus herdeiros legítimos os seus irmãos M..., cabeça-de-casal, B..., a aqui Autora M..., J..., M..., A..., e os seus sobrinhos, filhos do irmão pré-falecido M..., J..., V... e D...
20. A cabeça-de-casal da herança da falecida M... na relação de bens que apresentou nas Finanças relacionou o crédito da falecida de € 26.000,00 sobre a Ré, nos termos de fls. 58 e 59.
21. A Ré é uma das proprietárias do estabelecimento comercial “Ourivesaria Baptista”, sito na Rua ..., em Lisboa.
22. Os € 26.000,00 emprestados, ao longo do tempo, pela falecida M..., destinaram-se exclusivamente ao estabelecimento referido em 21., entrando no respectivo giro comercial.
23. No contrato de mútuo celebrado com o Banco Mello figurou como mutuária a Ré, apenas e tão só porque aquele Banco não emprestava à falecida M... a quantia de 4.800.000$00 de que ela carecia para completar o preço de uma fracção autónoma que ela ia adquirir, na altura, já que aparecera um andar em excelentes condições.
24. Com o acordo do gerente da agência do Banco Mello, o financiamento foi feito em nome da Ré e revestiu a modalidade de “crédito automóvel”, sendo certo que o veículo Toyota Land Cruiser nunca existiu realmente, nem foi, portanto, adquirido seja pela Ré, seja pela M... que nem carta de condução tinha.
25. Foi aberta uma conta nova, especialmente para o efeito, em nome da Ré, mas com a morada da M....
26. Para o giro comercial da Ré como uma das proprietárias do estabelecimento comercial “Ourivesaria Baptista”, esta foi pedindo à falecida M..., em diferentes ocasiões, várias quantias até perfazerem a importância total de € 26.000,00.
27. A “Nova Rede”, conjunto de agências da rede do Banco Comercial Português, iniciou a sua actividade no ano de 2000 e encerrou em 2004.
28. O impresso de cheque esteve durante diversos anos na mão da falecida M... sem aquela alguma vez tivesse reclamado o pagamento da quantia aí inscrita.
29. A confiança entre a falecida M... e os Réus era total, de parte a parte.
30. A falecida M... tinha um bom rendimento mensal: duas pensões de reforma, dela e do ex-marido; o vencimento ao serviço da Ré e da mãe desta; gratificações frequentes; rendas de um andar em Massamá e recebia presentes e brindes frequentes, seja em objectos de ouro e prata, seja vestidos e roupas no Natal e no aniversário, além de ter muito poucas despesas, pois tomava as refeições na casa da Ré e passava as férias, no Algarve, com a Ré e os filhos desta.
31. A declaração junta a fls. 27 foi escrita em computador, máquina que a falecida M... não sabia manejar, por terceiro.
32. A falecida M... em 03/01/2008 sofria de doença oncológica.
33. A Ré nunca deixou de reconhecer a dívida e esteve sempre disposta a pagá-la, nesse sentido tendo escrito em 18/04/2008 carta registada, com aviso de recepção, dirigida à cabeça-de-casal da herança de M..., na qual declarou pagar os € 26.000,00 contra recibo assinado por todos os herdeiros.
34. A Ré nunca recebeu resposta da cabeça-de-casal por os herdeiros não terem chegado a acordo.
35. A falecida M... fez em 12/05/2005 o testamento público junto a fls. 55 a 57, no qual legou, em comum e partes iguais, a T..., J... e M..., a fracção autónoma de que era proprietária sita na Rua Cidade da Beira, Lote 14, freguesia de Prior Velho, concelho de Loures.
36. Pela altura da celebração da missa de 7.º dia em sufrágio da falecida M..., a Ré foi confrontada com a existência do impresso de cheque por si passado, tendo-se disponibilizado para liquidar a dívida de € 26.000,00 que tinha com a falecida, apenas não o tendo feito, de imediato, por terem surgido dúvidas do respectivo titular ter passado a ser a Autora ou a herança da falecida.
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Tal como o definiu o primeiro grau ‘’A questão que importa decidir consiste em saber se a Ré deve ser condenados a pagar à Autora a importância peticionada com base numa dívida para com a falecida irmã da Autora que esta lhe teria transmitido em vida.
Para tanto cabe analisar se ficou demonstrado ser a Ré efetivamente devedora à falecida irmã da Autora da quantia peticionada e, em caso afirmativo, se o respetivo direito foi transmitido à aqui Autora e se o reconhecimento do mesmo pode ser exercido através da presente ação’’
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Da relevância do putativo erro do julgamento de facto para o conhecimento mérito da causa
A ré considera que dever ser reapreciada a matéria. Argumenta que devia ser considerada NÂO PROVADA a matéria dos artigos 20.º, 21.º, 23.º , 28.º e 29.º da petição inicial e PROVADA a matéria do artigo 30.º e 38.º da contestação.
O nosso sistema recursivo, como é sabido, é de reponderação e não de reexame.
Ora, e sendo certo que prevalece também entre nós o princípio da economia processual, que veda a que o tribunal desenvolva atividade inútil, a reponderação do julgamento de facto só se justiçaria se tivesse qualquer relevância para a decisão de mérito final, o que no caso não acontece.

Vejamos porquê.
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Da citação como notificação ao devedor cedido
O tribunal, depois de, em sede de apreciação da existência do crédito, ter considerado que o seu perímetro de cognição se deveria cingir , de acordo com o entendimento expresso a respeito do preenchimento da causa de pedir e dos efeitos da confissão da dívida, a reconhecer a existência da dívida da Ré relativamente à falecida M... no que concerne aos € 26.000,00 mutuados, não se estendendo a mesma, por ausência de alegação e prova dos factos necessários, ao Réu igualmente demandado na presente acção’’, e em sede da transmissão do direito de crédito ter concluído pela validade da cessão de créditos por parte da falecida M... em favor da sua irmã no que se refere ao crédito de € 26.000,00 que detinha sobre a Ré, passou a debruçar-se sobre a exigibilidade do direito de crédito.
E em relação a este tema referiu : ‘’Finalmente, a respeito dos efeitos da cessão de créditos em relação ao devedor dispõe o artigo 583.º, n.º 1 do Código Civil que: “a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.”
No caso presente, invocou a Autora ter previamente à propositura da acção efectuado extrajudicialmente a notificação da cessão de créditos, não reconhecendo os Réus a mesma, nomeadamente, por entenderem existirem dúvidas sobre a titularidade do crédito, nomeadamente, se titulado pela Autora ou se pela herança representada por todos os herdeiros da falecida M....
Da matéria de facto provada resulta apenas provado que, por alturas da celebração da missa de 7.º dia em sufrágio da falecida M..., a Ré foi confrontada com a existência do impresso de cheque por si passado, tendo-se disponibilizado para liquidar a dívida que tinha para com a falecida, apenas não o tendo feito de imediato por terem surgido dúvidas quanto ao seu titular.
Ora, atenta a insuficiência dos factos provados e uma vez que só com a propositura da presente acção ficaram demonstrados os factos constitutivos da cessão de créditos, entende-se que o mero confronto da Ré com o impresso de cheque na posse da Autora é insuficiente para demonstrar ter havido a notificação da cessão, sendo certo que quanto à eventual aceitação desses efeitos, decorre dos autos que os Réus não chegaram a aceitar que a cessão tenha sido feita em favor da Autora, tendo a Ré manifestando dúvidas fundadas sobre o respectivo titular atento o falecimento da primitiva credora.
Assim, não tendo sido provada uma efectiva declaração negocial nos termos do artigo 217.º do Código Civil no que se refere à notificação da cessão de créditos, entendemos não ter ficado demonstrada a notificação extrajudicial da referida cessão de créditos.
Em todo o caso, sabendo-se que a notificação da cessão de crédito tanto pode ser feita pelo cedente como pelo cessionário (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 599), e sendo, por isso, irrelevante para efeitos de produção de efeitos relativamente a terceiros, a circunstância da cedente ter entretanto falecido, importa decidir se a mesma, ainda assim, pode produzir efeitos através do presente processo.
Ora, a propósito dos efeitos e da eficácia da notificação da cessão de créditos, têm entendido a doutrina e a jurisprudência maioritárias que a notificação do devedor não é um facto constitutivo do direito do cedente, mas mera condição de eficácia da cessão em relação ao devedor (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Maio de 2009, proc.29488/05.1YYLSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, que acompanharemos).
Com efeito, decorre do regime dos artigos 577.º e segs. do Código Civil que a cessão e a correspondente modificação subjectiva operada na relação creditícia consumam-se com a outorga do contrato causal, v.g. com um acordo de cessão de créditos, sendo a sua notificação ou aceitação mera condição de eficácia externa em relação ao devedor.
Discute-se, porém, se essa notificação pode ser efectuada ou produzir os seus efeitos mediante a citação efectuada em acção declarativa ou executiva, havendo quem defenda que essa notificação deveria encontrar-se efectuada no momento em que a acção é instaurada, enquanto outros, apelando para a função instrumental do processo e da notificação, entendem que nada obsta a que tal efeito se produza através da própria citação, até por a mesma apenas ter em vista evitar que a satisfação da prestação seja feita ao primitivo credor e dar conhecimento ao devedor da cessão (cfr. Acórdão citado).
É esta segunda tese a que se nos afigura mais consentânea com o fim da notificação a que se refere o artigo 583.º do Código Civil e com a circunstância da mesma ser mera condição de eficácia da cessão, e à qual aderimos.
Neste mesmo sentido, defende Assunção Cristas, em anotação a dois Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça contraditórios a propósito dos efeitos em relação ao devedor da notificação a que se refere o artigo 583.º do Código Civil poder ser efectuada ou não através da citação, estar a razão com a doutrina expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de 3 de Junho de 2004, uma vez “que o uso da citação corresponderá, quando muito, a um excesso de meios, que apenas poderá ter relevância, caso o devedor, não impugne o pedido, a nível de custas (arts 662.º, n.º 3, e 449.º do CPC)” e que “as consequências da citação não podem deixar de ser as mesmas do mero conhecimento: uma vez citado, o devedor cedido não está mais numa situação de ignorância que deva ser protegida; ainda que pretenda contestar, invocando mesmo a invalidade ou a ineficácia da transmissão, não poderá ignorar a transmissão (ainda que hipotética) e cumprir com eficácia liberatória perante o antigo credor” (cfr. Citação como Notificação ao Devedor Cedido, Cadernos de Direito Privado, n.º 14, Abril/Junho 2006, pág. 58 e segs.).
Por conseguinte, tendo a Autora demonstrado os factos constitutivos da existência do crédito e da cessão do mesmo a seu favor, e nada impedindo que os efeitos dessa cessão em relação ao devedor sejam exercidos judicialmente, entende-se que, independentemente de não ter sido feita prova da notificação prévia da cessão, produziu a mesma efeitos com a sua alegação em sede de petição inicial e com a citação efectuada nos autos.
Termos em que se conclui pela produção de efeitos da mesma e, consequentemente, pela procedência parcial da acção no que se refere à obrigação por parte da Ré em liquidar a dívida de € 26.000,00 que tinha para com a falecida M... perante a Autora como sua actual titular, absolvendo-se o Réu do pedido contra si formulado.
No que se refere aos juros de mora, atendendo a que apenas no decurso dos autos demonstrou a Autora o seu direito ao crédito invocado e por se ter considerado que só com a presente acção se efectuou a notificação da cessão, e não havendo qualquer culpa da Ré pelo atraso no cumprimento da sua prestação, para efeitos de mora nos termos do artigo 804.º do Código Civil, apenas serão os respectivos juros civis ser contados termos do artigo 559.º do Código Civil, desde a notificação da presente sentença, tudo nos termos do artigo 805.º do Código Civil’’
Ora discordamos da posição assumida pelo primeiro grau.
Louvamo-nos no Ac. STJ, de 09.11.2000 (Rec. 2611/00) que argumenta com proficiência o seguinte : ‘’A citação não passa de uma notificação judicial; o que a distingue desta é o facto de constituir o primeiro chamamento da pessoa visada ao processo (cfr. a respeito , o n.º 1 do artigo 228 do CPC).
Mas, a citação, como a notificação, tem um conteúdo determinado, pelo qual se avaliam e determinam os respetivos efeitos na esfera jurídica da pessoa citada.
A citação da ré (…) destinou a dar-lhe conhecimento de que fora proposta contra ele a ação e a chamá-la ao processo respetivo para se defender (cfr. o citado n.º 1 do artigo 228.º do CPC). A não mais do que isso, que não é pouco, aliás.
À citação não podem, pois, ser atribuídos os efeitos que o n.º 1 do artigo 583.º do CC liga à notificação da cessão de créditos, ou sua aceitação por parte do devedor.
Os efeitos da citação são os indicados no artigo 481.º do CPC, além de outros especialmente prescritos na lei, como é o caso previsto no n.º 1 do artigo 805.º do CC.
Nesse conjunto de efeitos não têm lugar os que no n.º 1 do artigo 583.º do CC atribui à notificação da cessão ao devedor, relativamente a ele.
Um do efeitos assinalados à citação pelo citado artigo 481.º do CPC, o da alínea b), é o de estabilização dos elementos essenciais da causa.
Ora, um do elementos essenciais da presente causa, porque integrante da causa de pedir, é, precisamente, o da notificação da cessão de créditos ou a sua aceitação por parte do devedor, quer isto dizer que, antes da citação, já tal elemento deverá fazer parte do elenco dos factos articulados no petitório, para que, uma vez citado o o devedor, tal facto esteja adquirido definitivamente para a causa, juntamente com os demais elementos que constituem a causa de pedir’’.
Dando o seu apoio a este aresto podemos citar na doutrina Luís Menezes Leitão, Cessão de Créditos , Coimbra, Almedina, 2005:361 e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações. 11:º ed. Almedina, Coimbra, 2008:818, nota2.
Pouco temos a acrescentar a esta posição porquanto a citação tem apenas uma tríplice função, a saber:
- dar conhecimento ao réu de que foi contra ele proposta uma determinada ação;
- convidar o demandado para se defender;
- constituí-lo como parte.
Em casos paralelos , v. g, nos pedidos de resolução dos contratos, não basta a citação – o que pensamos ser jurisprudência pacífica entre nós – para que se atribuía ao acto o poder de liquidar o negócio quando a este não foi posto termo em adequados termos , prévios á instauração da ação.

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Pelo exposto acordamos em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida com absolvição da recorrente do pedido.
Custas pela recorrida.

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Lisboa-17.12.2014

(Luís Correia de Mendonça)
(Maria Amélia Ameixoeira)
(Rui Moura)