Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8152/16.1T8LRS-C.L1-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO PROVISÓRIA
CITAÇÃO
ALTERAÇÃO DOS SUJEITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Antes da citação do réu, nenhum óbice haverá a que se modifiquem os sujeitos ou o objeto da causa. Já depois da citação do réu não é possível, designadamente, alterar a composição das partes na ação, a não ser através do acidente de habilitação (por ato entre vivos ou mortis causa) ou na sequência de incidente de intervenção de terceiros.

(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.



IRelatório:


... da ... ..., residente no Forte da Casa, veio propor, em 22.3.2017, contra ... de Portugal, S.A., e ... ... Controls Portugal-Unipessoal, Lda, providência cautelar de arbitramento de reparação provisória pedindo, em síntese, a condenação solidária das requeridas a pagar-lhe uma prestação mensal de € 650,00 até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na ação principal, a título de reparação provisória pelos danos por si sofridos na sequência do surto de Legionella que, em Novembro de 2014, afetou o Município de Vila Franca de Xira e Municípios limítrofes e atingiu o requerente. Diz que a fonte emissora do surto é a fábrica da 1ª requerida, dotada de torres de refri...ração, e que, por contrato celebrado entre ambas, cabia à 2ª requerida a manutenção das referidas torres. Mais refere, em súmula, que as requeridas incumpriram as regras técnicas devidas, não procedendo, nomeadamente, à limpeza e desinfeção das estruturas/componentes dos circuitos de arrefecimento, nem a um controlo microbiológico eficiente, mediante a realização de análises periódicas e tratamento regular das águas daqueles circuitos. Mais invoca que tendo sido infetado pela referida bactéria Legionella, esta provocou-lhe uma pneumonia, ficando o requerente gravemente doente e em risco de vida, o que o fez suportar, além do mais, gastos com medicamentos e acompanhamento médico. Tendo tal surto agravado as suas condições de saúde, viu-se impossibilitado de trabalhar, tendo sido reformado por invalidez em 31.1.2015. Deixou, assim, de auferir a quantia € 650,00 com a realização de pequenos trabalhos de reparação de eletrodomésticos que levava a cabo, para passar a auferir uma reforma de € 303,23. Deste modo, o seu agregado familiar, constituído pela companheira e dois filhos menores de ambos, encontra-se em estado de grande carência, vivendo por isso agora todos em casa da mãe da companheira para conseguirem subsistir.

Em 24.3.2017, veio o requerente solicitar seja dado sem efeito o requerimento inicial antes apresentado em 22.3.2017, “por conter vários lapsos”, sendo o mesmo substituído por outro que junta.

Nesse novo articulado, o requerente demanda ainda outras sete pessoas singulares, sendo os 3º, 4º e 5º requeridos enquanto trabalhadores/administradores da 1ª requerida, responsáveis pela segurança e conservação das instalações da mesma, e os 6º, 7º, 8º e 9º trabalhadores/representantes da 2ª requerida, responsáveis pelos procedimentos adotados no âmbito da atividade da 2ª requerida.

Em 5.7.2017, foi então proferido o seguinte despacho: “(…) Nos termos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do Código do Processo Civil: “É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada.”
Em anotação a este artigo, LEBRE DE FREITAS E ISABEL ALEXANDRE, Código do Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, entendem que o erro de cálculo ou de escrita pode ser revelado no contexto do escrito apresentado ou de outras peças para que ele manifestamente remeta.
No caso, porém, é manifesto que inexiste qualquer retificação de erro de cálculo ou de escrita, tratando-se ao invés de complementar a petição inicial, nomeadamente através da inclusão de novos sete requeridos.
Pelo exposto, indefere-se a requerida retificação, determinando-se o desentranhamento da petição inicial de fls. 20.
Notifique.
***
Sem prejuízo, convida-se o requerente a aperfeiçoar a petição inicial, completando-a com os restantes aspetos a que alude a segunda petição inicial com exceção da inclusão de novos sete requeridos, bem como a esclarecer o estado atual de insuficiência económica do lesado, que alegadamente foi posto em causa pela atuação das requeridas.
Prazo: 10 dias.”

Inconformado, interpôs recurso o requerente, apresentando as respetivas alegações que culmina com as conclusões a seguir transcritas:

i. O presente recurso tem como objeto o despacho de 05.07.2017 que indeferiu a substituição da petição inicial por lapso apresentada em 22.03.2017, por outra petição inicial que acrescenta novos Requeridos e novos fatos, com o fundamento de que o aditamento de novos Réus e factos não podem ser considerados como meros erros de escrita, nos termos do art.º 146º do CPC.
ii. O Recorrente não discorda com o Tribunal a quo que não ao caso não é aplicável o regime previsto no art.º 146º do CPC, contudo esta conclusão, não garante, por si só, o indeferimento do pedido de substituição, conforme sucedido.
Bem pelo contrário,
iii. A petição inicial é um acto postulativo e receptício, que ao contrário dos actos constitutivos, são livremente modificáveis enquanto não chegaram ao conhecimento do seu destinatário e livremente revogáveis enquanto não constituírem uma situação favorável para a contraparte, tal como prescreve o art.º 259º n 2 do CPC e 260º do CPC.
iv. Daqui decorre que enquanto a petição inicial não for notificado às contrapartes, não se dá o efeito processual da estabilização dos elementos subjetivos – partes - e objetivos – pedido e causa de pedir – da instância da acção declarativa, sendo livre à parte que apresentou o articulado revogar ou modificar o acto processual.
v. Este direito de livre modificação da petição inicial é ainda mais gritante nos casos de ações cautelares, uma vez que neste tipo de ações, a citação apenas é promovida após despacho liminar a admitir a Petição inicial e a ordenar a respetiva citação, constituindo uma exceção da regra da oficiosidade da citação, prevista no art.º 226º n º4 alínea b) do CPC.
vi. Neste caso, o Recorrente requereu a substituição da petição inicial de 22.03.2017, dois dias após a sua apresentação e muito antes de qualquer despacho liminar proferido pelo Tribunal a quo.
vii. Dado o carater postulativo e receptício da petição inicial, é lícito ao Recorrente revogar e/ou modificar livremente o seu teor, demandando outros Requeridos e alegando outros factos que inicialmente não demandou e alegou, até ao momento da citação do Requerido.
viii. Por outro lado, constitui um atentado ao principio do privilégio da verdade material sob a verdade processual, bem como ao livre acesso ao tribunais, a decisão ora recorrida de impedir numa fase tão embrionária da ação cautelar, o Recorrente, titular do direito de ação e sob o qual recai o ónus de alegação, substituir um articulado inicial, que por lapso enviou para o Tribunal e que não corresponde à sua vontade.
ix. Esta decisão viola ainda o princípio da celeridade processual e a proibição da prática de atos inúteis, dado que, nada impede ao Recorrente, após a citação dos Requeridos, promover, através da intervenção provocada, o chamamento dos sete requeridos.
x. Face ao exposto, é manifesto que a única decisão justa a proferir é a revogação do despacho recorrido, por violação dos arts.º 259º e 260º do CPC.”

Pede a revogação do decidido, sendo admitida a substituição de petição inicial apresentada em 22.3.2017 pela petição inicial apresentada em 24.3.2017, prosseguindo os autos.

Não se mostram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

***

IIFundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.

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III
Fundamentos de Direito:
Como é sabido, são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso. Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas, em causa está apenas saber se podia o requerente, dois dias após apresentar o requerimento inicial, substituí-lo por outro articulado contra novos demandados e com aditamento de novos factos aos antes alegados.
Desde logo verificamos que nenhuma questão se suscita verdadeiramente no que concerne aos novos factos invocados, se bem atentarmos no último segmento do despacho de 5.7.2017 e no convite ao aperfeiçoamento do mesmo constante.
Em rigor, a decisão recorrida apenas rejeita o novo articulado em face da referência feita pelo requerente ao anterior “conter vários lapsos” e não ser caso, segundo se entende, de retificação nos termos do art. 146, nº 1, do C.P.C.. Por outro lado, convida-se ao aperfeiçoamento da petição inicial “completando-a com os restantes aspetos a que alude a segunda petição inicial com exceção da inclusão de novos sete requeridos, bem como a esclarecer o estado atual de insuficiência económica do lesado, que alegadamente foi posto em causa pela atuação das requeridas”.

Ou seja, a grande objeção do tribunal a quo respeita à inserção de mais sete requeridos no novo articulado apresentado.
Ora, como bem observa o requerente, de acordo com o art. 259 do C.P.C. (idêntico ao artigo 267 do C.P.C. de 1961) a instância inicia-se pela proposição da ação e esta considera-se proposta, em regra, logo que seja recebida na secretaria a respetiva petição inicial, mas o ato da proposição não produz efeitos em relação ao réu senão a partir do momento da citação, salvo disposição legal em contrário.

Ao mesmo tempo, dispõe o art. 260 do C.P.C. de 2013 (tal como o anterior art. 268) que: “Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”. Por fim, dispõe o art. 262 do mesmo Código (anterior art. 270) que: “A instância pode modificar-se, quanto às pessoas: a) Em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio; b) Em virtude dos incidentes da intervenção de terceiros”.
Dos mencionados normativos resulta assim que, após a citação do réu, não é possível, nomeadamente, alterar a composição das partes na ação, exceto através do acidente de habilitação (por ato entre vivos ou mortis causa) ou na sequência de incidente de intervenção de terceiros, desde que, já se vê, sejam tais incidentes adequados à situação em concreto e processualmente admissíveis.
Tal significa que, antes da citação do réu, nenhum óbice haverá a que se modifiquem os sujeitos ou o objeto da causa.

Como claramente refere Lebre de Freitas, em comentário ao anterior art. 268([1]): “(…) A instância é inicialmente conformada pelo autor na petição inicial, nos seus elementos subjectivos (“quanto às pessoas”) e objectivos (pedido fundado numa causa de pedir). Até ao momento da citação, o autor pode ainda alterar a conformação por si efectuada, mediante modificação dos sujeitos ou do objecto da acção, sem prejuízo da não retroactividade dos efeitos da proposição que se reportem apenas à nova petição que apresente. A citação do réu fixa os elementos definidores da instância, que seguidamente só é alterável na medida em que a lei ...ral (artigos seguintes) ou uma lei especial o permita.”

No caso, a petição recusada foi apresentada dois dias depois da inicial, não havendo qualquer notícia de, entretanto, ter sido proferido despacho liminar e, muito menos, ter ocorrido a citação da contraparte, atenta a normal tramitação da providência (cfr. arts. 389, nº 1, e 385 do C.P.C.).

Assim sendo, e porque não se estabilizara ainda a instância, assistia ao requerente o pleno direito de alterar a composição das partes, aditando novos requeridos, e/ou de modificar ou acrescentar factos aos antes alegados, conforme se propôs, fosse qual fosse o motivo dessa sua pretensão.

Deste modo e em síntese, é manifesto que não pode manter-se a decisão recorrida, designadamente na parte em que rejeitou a possibilidade do aditamento de novos sete requeridos.

Deve, por isso e na circunstância, ao abrigo do art. 6 do C.P.C., concertar-se, oportunamente, em 1ª instância a decisão do presente recurso com o último segmento do despacho de 5.7.2017 (que mandou aperfeiçoar a petição inicial).

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IVDecisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida que determinou o “desentranhamento da petição inicial de fls. 20”.
Sem custas.
Notifique.

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Lisboa,26.09.2017

Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
                                                    
                             
[1]“Código de Processo Civil Anotado”, 1999, vol. 1º, pág. 477.