Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3703/13.6TBFUN-A.L1-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: ARRESTO
DOAÇÃO
INOFICIOSIDADE
JUSTO RECEIO DE PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/28/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) Para a procedência de arresto não se exige a certeza de que a perda da garantia se vai tornar efectiva com a demora da acção, bastando que se verifique um justo receio de tal perda vir a concretizar-se.
II) No caso de doação inoficiosa a herdeiro legitimário, a reposição do que é devido em virtude da redução imposta às liberalidades é feita em dinheiro, e não em espécie ou in natura.
III) O requerente, herdeiro preterido, não sendo titular de um direito de crédito propriamente dito sobre o requerido, fruto de uma relação jurídica estabelecida entre ambos, “terá aparentemente um direito sobre o requerido” radicado na reposição em dinheiro do que é devido em resultado da redução da doação por inoficiosidade.
IV) Verifica-se periculum in mora quando o donatário nunca viveu na Madeira, antes reside na Austrália, e encontra-se a tentar vender o imóvel que lhe foi doado pelo seu pai, o que tudo indica o constituirá na obrigação de cumprir o encargo da redução por inoficiosidade.(AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório:

AS… deduziu, em 30 de Agosto de 2013, no Tribunal Judicial do Funchal procedimento cautelar especificado contra MS…, pedindo o arresto do prédio urbano situado em F…, Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … e inscrito na respectiva matriz sob o n.º …, com fundamento em que ES…, falecido no dia 11/08/2013, deixou como únicos e universais herdeiros o requerente, o requerido e M…, seus filhos, sendo que, por escritura de 20/03/2007, o mesmo ES… doou aquele imóvel ao requerido, o qual é indivisível por natureza e constitui praticamente o único bem da herança, pelo que a referida doação é inoficiosa por violar a quota disponível do doador, nos termos dos artigos 2159º n.º 2 e 2168º do Código Civil. Alegou ainda que o requerido não tem outros bens conhecidos e que pretende vender aquele imóvel, o que impedirá o requerente de satisfazer o seu crédito, ou seja, o quinhão hereditário a que tem direito.

Após inquirição da testemunha indicada pelo requerente, foram fixados os factos indiciariamente assentes e foi, por decisão proferida em 16 de Setembro de 2013, julgado o procedimento cautelar improcedente. 

Inconformado, apelou o requerente.

Alegou e formulou a seguinte síntese conclusiva:

1º A função do arresto é garantir a satisfação do direito do credor, para que, obtida sentença de condenação, esta produza o seu efeito útil; e o seu deferimento depende:

1. da demonstração da probabilidade da existência do crédito do requerente e justificado receio da perda da garantia patrimonial desse crédito, salvo as seguintes excepções:

a) os créditos dos tesoureiros – nº 1 e 2 do art. 396ºdo C.P.C.;

b) os créditos de preço relativo á aquisição de bens - nº 3 do mesmo art. 396º do mesmo Código.

2º O crédito do recorrente integra-se na excepção prevista na alínea b) supra, pelo que nem sequer é preciso demonstrar o receio da perda da garantia patrimonial do crédito.

3º Assim, o recorrente pode obter, sem necessidade de provar o justo receio de perda da garantia patrimonial, o arresto do bem que foi doado ao recorrido quando estiver em dívida, no todo ou em parte, as tornas da respectiva aquisição.

4º A razão de ser desse preceito legal aplica-se integralmente ao caso de devedor de tornas que pretende fazer desaparecer os bens inoficiosamente doados.

Quando assim se não entenda,

5º O valor comercial do imóvel dos autos, fixado pelo recorrido nas tentativas de venda é de 100.000 €, diferente do valor patrimonial tributário que é de 7.723 €.

6º A douta decisão recorrida fundamenta-se na falta de prova de que o requerido não tem outros bens que sirvam de garantia patrimonial do crédito do recorrente.

7º Porém, no crédito por tornas do herdeiro legitimário, nos casos em que a herança é composta apenas pelo prédio inoficiosamente doado, o próprio prédio é garante especial desse crédito porquanto:

a) O herdeiro credor pode pedir a licitação sobre o bem doado – art. 52º do Regime Jurídico do Processo de Inventário;

b) O herdeiro legitimário pode pedir a avaliação do bem doado - art. 54º do mesmo RJPI;

c) O pagamento das tornas é obtido directamente pela venda do bem doado - art. 62, nº 3 do mesmo RJPI;

d) O herdeiro credor pode registar hipoteca legal sobre o prédio doado – artigo 62, nº 4 do mesmo RJPI.

8º Ficou provado nos autos que o recorrido pretende vender o imóvel inoficiosamente doado, ostentando no prédio uma placa de “vende-se” e publicitando na internet a venda através duma agência imobiliária.

9º Se o recorrido vender o prédio, facilmente desaparecerá com o dinheiro e, dada a volatilidade deste, diminuída fica a garantia patrimonial do crédito sendo assim justificado o receio do recorrente.

10º Este receio de perda da garantia patrimonial é fundamento mais do que suficiente para que o arresto seja decretado, sendo desnecessário provar que ele não tem mais bens no seu património.

11º A prova de inexistência de outros bens, em especial no caso concreto – onde o devedor não reside em Portugal e só veio cá quando o pai, doador, acabou de falecer (nem um mês decorreu!) e logo colocou o prédio à venda –, constitui uma autêntica PROVA DIABÓLICA, isto é, constitui uma exigência técnica e praticamente impossível de cumprir.

12º O deferimento do presente pedido de arresto constitui um acto de justiça irrecusável para com o recorrente e, pelo contrário, o seu indeferimento constitui uma condenação a nunca mais receber o valor do direito que lhe compete na herança do seu pai.

13º Foram violados os artigos 391º, 396º, nº3, do Código do Processo Civil, o artigo 619º do Código Civil e os artigos 52º, 54º e 62, nºs 3 e 4 do Regime Jurídico do Processo de Inventário.

           Face ao exposto, deverá ser revogada a sentença do Tribunal a quo e substituída por outra que dê provimento ao peticionado e decrete o arresto do prédio doado até que se mostrem pagas as tornas devidas.

2. Fundamentos:

2.1. De facto:

Na 1ª instância consideraram-se indiciariamente assentes os seguintes factos:

1º O requerente é filho de ES….

2º ES… faleceu no dia …/…/…, deixando como únicos herdeiros os seus três filhos: AS… (requerente), MS… (requerido) e M….

3º Por escritura pública, outorgada em 20/03/2007, no Cartório Notarial do …, ES… declarou ceder, a título gratuito, a MS…, por conta da quota disponível da sua herança, o prédio urbano (indivisível por natureza), situado em …, descrito na Conservatória do Registo Predial (sob o n.º …) e inscrito na respectiva matriz (sob o n.º …), com o valor patrimonial de 7.152,59 euros e com uma área de 350 m2, dos quais 72 m2 são de superfície coberta.

4º ES… residia no prédio referido em 3º e não possuía outros bens imóveis, sendo apenas titular, quanto a bens móveis sujeitos a registo, de um veículo automóvel, marca Ford, modelo Fiesta, do ano de 2000, não lhe sendo conhecidos outros bens.

5º O requerido nunca viveu na Madeira, reside na Austrália e encontra-se a tentar vender o imóvel referido em n.º 3.

            2.2. De direito:

Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do requerente, ora apelante, a questão que se coloca é a de saber se, em face dos factos havidos por indiciariamente provados, se justifica que seja decretado o arresto requerido.

            No caso vertente, considerou-se na decisão recorrida que o requerente não logrou demonstrar indiciariamente o justo receio de perda da garantia patrimonial pelo que, não se bastando a lei com um receio subjectivo do requerente, foi o procedimento cautelar julgado improcedente.

            O artigo 619º nº 1 do Código Civil estabelece que «o credor que tenha receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo».

           Por outro lado, decorre do disposto nos artigos 406º nº 1 e 407º nº 1 do Código de Processo Civil (na versão do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, por força do disposto no nº 2 do artigo 7º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho) que o arresto deve ser decretado se da prova sumária (summaria cognitio) for de concluir pela probabilidade séria da existência do crédito do requerente (fumus boni juris) e pelo receio da perda da garantia patrimonial (periculum in mora).

           Não se exige para que seja legítimo o recurso a este meio conservatório da garantia patrimonial que exista certeza de que a perda da garantia se vai tornar efectiva com a demora da acção, bastando que se verifique um justo receio de tal perda vir a concretizar-se[1]. Seguindo a doutrina do Acórdão do STJ de 20.01.2000, vem-se entendendo que “Na fórmula genuína do "justo receio de perder a garantia patrimonial" cabe uma variedade de casos, tais como os de receio de fuga do devedor, de sonegação ou ocultação de bens e de situação deficitária, não bastando que o requerente se limite a alegar meras convicções, desconfianças ou suspeições de tais situações”.[2]

In casu, o requerente fundamentou o justo receio no facto, indiciariamente demonstrado, de o requerido estar a tentar vender o imóvel que seu pai lhe doou e na circunstância de não serem conhecidos outros bens ao requerido, facto que aquele não logrou demonstrar.

Com base no entendimento de que a falta de demonstração, ainda que sumária, de que a venda do imóvel (ainda não concretizada) terá como consequência a frustração dos direitos do requerente no caso de vir a ocorrer redução da liberalidade por inoficiosidade, considerou-se na decisão recorrida pela inexistência de indícios bastantes no tocante ao fundado receio de perda da garantia patrimonial, requisito de verificação indispensável para o decretamento do arresto.

Está em causa a doação em vida de um prédio por ES…, falecido no dia 11 de Agosto de 2013, o qual deixou três filhos, entre os quais o requerente e o requerido, e, de harmonia com a facticidade indiciariamente assente, não possuía outros bens imóveis, sendo apenas titular, quanto a bens móveis sujeitos a registo, de um veículo automóvel do ano de 2000, não lhe sendo conhecidos outros bens.

Neste contexto factual, concluiu a decisão recorrida, com acerto a nosso ver, que perante tal património e sendo de presumir que o veículo terá diminuto valor, é altamente provável que a doação venha a ser considerada inoficiosa por ofender a legítima, ou seja, a porção de bens de que o de cujus não podia dispor por ser legalmente destinada aos seus herdeiros legitimários (artigos 2156º, 2157º, 2159º nº 2 e 2168º do Código Civil).

Com efeito, para o cálculo da legítima e, por conseguinte, da quota disponível deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (artigo 2162º do Código Civil).

Os bens doados integram, assim, o acervo da herança para tal efeito, qualificando a lei como inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que atinjam a quota legítima dos herdeiros legitimários, entre os quais figuram os filhos, as quais são redutíveis em tanto quanto o necessário para que a legítima seja preenchida (artigos 2168º e 2169º do Código Civil).

Havendo lugar à redução, a lei estabelece no artigo 2174º do Código Civil distinção entre bens doados divisíveis e indivisíveis. Sendo indivisíveis, os bens doados ficam para o herdeiro legitimário se a redução exceder metade do seu valor, recebendo o donatário o correspondente à parte restante em dinheiro; caso a redução não exceda metade do valor dos bens doados, estes ficam para o donatário (nºs 1 e 2). Prescreve, porém, o nº 3 do mesmo artigo que a reposição daquilo que se despendeu gratuitamente a favor dos herdeiros legitimários, em consequência da redução, é feita de igual modo em dinheiro, significando que, como ensina Antunes Varela, caso o donatário seja herdeiro legitimário a reposição do que é devido em virtude da redução imposta às liberalidades, ainda que o bem doado seja indivisível, é feita em dinheiro, e não em espécie ou in natura.[3]

Entendido, como na decisão recorrida, que o requerente “funda a sua pretensão numa interpretação plástica e lata do conceito de crédito” e que, em face dos factos sumariamente demonstrados nos autos, não sendo titular de um direito de crédito propriamente dito sobre o requerido fruto de uma relação jurídica estabelecida entre ambos, não pode deixar de conceder-se que “terá aparentemente um direito sobre o requerido” radicado na reposição em dinheiro do que é devido em resultado da muito provável redução da doação por inoficiosidade visto os factos apurados apontarem no sentido de que esta liberalidade ofende a sua legítima.

E a reposição em dinheiro a realizar pelo requerido há-de fazer-se em primeira linha pelas forças da doação que lhe foi feita, ou seja, o encargo da redução será satisfeito à custa do bem doado, como decorre da regra estabelecida no artigo 2175º do Código Civil para o perecimento ou alienação dos bens doados em prejuízo da legítima.

Com efeito, segundo este preceito se os bens doados tiverem perecido por qualquer causa ou tiverem sido alienados ou onerados, o donatário ou os seus sucessores são responsáveis pelo preenchimento da legítima, até ao valor desses bens à data da abertura da sucessão. Como refere Antunes Varela, o legislador quis proteger com mais segurança o direito do herdeiro legitimário à legítima.[4]

Indo a responsabilidade do donatário até ao valor dos bens doados à data da abertura da herança em caso de perecimento ou oneração dos mesmos, não pode deixar de ter-se como verificado o periculum in mora perante a demonstração sumária de que o requerido nunca viveu na Madeira, reside na Austrália e encontra-se a tentar vender o imóvel que lhe foi doado pelo seu pai, liberalidade que, tudo indica, foi feita em prejuízo da legítima do requerente, o constituirá na obrigação de cumprir o encargo da redução.

Como tal e sem necessidade de outros considerandos, procede a apelação.

Decisão:

Termos em que acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, decretando o arresto do prédio urbano situado em …, freguesia de …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ….

Custas nas duas instâncias a cargo do requerente, aqui apelante, mas a atender na acção respectiva (artigo 453º nº 1 do Código de Processo Civil).

28 de Novembro de 2013

(Fernanda Isabel Pereira)

(Maria Manuela Gomes)

(Fátima Galante)


[1] Cfr. P. Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 1967, pág. 452.
[2] In http://www.dgsi.pt/jstj, Processo nº 99B1201.
[3] In Código Civil Anotado, vol VI, Coimbra Editora 1998, pág. 282.
[4] Loc. Cit., pág.283.