Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | AGOSTINHO TORRES | ||
| Descritores: | QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO INVESTIGAÇÃO CRIMINAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/25/2011 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | Iº Só em caso de escusa legítima de fornecer informações abrangidas pelo segredo bancário, se justifica o recurso ao incidente previsto no nº3, do art.135, do Código de Processo Penal; IIº O novo regime do art.79, nº2 al.d), do DL nº298/92, de 31/12 (RGICSF), com a redacção introduzida pela Lei nº36/2010 de 2/9, permite o acesso directo pelo Ministério Público na fase de inquérito de qualquer processo penal, com dispensa de intervenção do Juiz, às informações bancárias necessárias à descoberta da verdade material, numa base de proporcionalidade, face à inexistência de alternativas de investigação e com respeito pelos dados que afectem direitos fundamentais ligados à reserva da vida privada e que nada tenham a ver, de forma relevante, com a investigação em curso; IIIº Face àquele novo regime, é ilegítima a recusa da instituição bancária em fornecer directamente ao Ministério Públicos, elementos relativos a uma conta bancária, considerados essenciais para o prosseguimento da investigação criminal; | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – 5ª SECÇÃO (PENAL) I-RELATÓRIO 1.1- No âmbito do procº de inquérito1410/09.3jdlsb-A.L1, pendente contra a arguida A... na 2ª secção/04 do DIAP de Lisboa, para investigação de eventual responsabilidade na prática de crimes de burla e de falsificação, p.p. nos artºs 217º, 218º e 256º, nº1 , alª a) e nº 3 do mesmo diploma e invocando a falta de outros elementos de prova nos autos que lhe permitissem a descoberta da verdade material, o MºPº solicitou à (BANCO...), S.A., ao abrigo do artº 79º nº2 al. d) do DL nº 298/92 , de 31/12, com a red. introduzida pela Lei 36/2010 de 2 de Setembro, excecionando o dever de sigilo, elementos bancários atinentes: · À identificação de titulares da conta nº 000736016644300 · Ficha de abertura da conta. · Documentos de suporte apresentados · Extratos bancários reportados ao período compreendido entre 1/10/2006 e 31/08/2009 Em resposta, o Banco solicitado recusou fornecer os elementos solicitados alegando estarem sujeitos a segredo bancário, nos termos do artº 78º do RGICSF ( DL 298/92) o qual, na nova redacção introduzida ao artº 79º nº2, alª d), não fundamenta qualquer alteração ao regime que já vigorava. De seguida, face a tal resposta, o MºPº titular do inquérito, em promoção ao Mmº JIC, solicitou nos termos dos artºs 11º e 286º, nº2, alª c) do CPP, a apreensão dos documentos com aquela informação pretendida mas recusada ou então, ao abrigo dos artºs 135º nº 3 e 182º do CPP se ordenasse àquela entidade financeira a prestação dos dados sobreditos com quebra do invocado segredo, perante a ilegitimidade da recusa. Tal promoção foi do seguinte teor: “Vão os autos ao Mmo Juiz com a seguinte promoção: Reportam-se os presentes autos à eventual prática dos crimes de burla, e Falsificação, p. e p. pelos artsº 217, 218º e 256º, nº 1, al. a) e nº 3, do mesmo código. Por despacho proferido a fls. 153 dos autos, e ao abrigo do disposto no art. 79º nº 2 al. d) do Decreto-Lei 298/92 de 31.12, com a redacção introduzida pela Lei 36/2010 de 2 de Setembro, foi solicitado à BANCO... que informasse: Tal entidade bancária recusou ilegitimamente prestar tais informações invocando que tal preceito não fundamenta a prorrogação do dever de segredo profissional bancário. O mencionado artº 78º do DL 298/92 prevê o segredo profissional dos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, dos seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional. No entanto, tal dever de segredo não é absoluto e pode ser revelado nos termos previstos na lei penal e de processo penal, em conformidade com o artº 79º, nº 2, al. d), do mencionado diploma legal. Efectivamente, não existem nos autos quaisquer outros elementos de prova que nos possam auxiliar na descoberta da verdade material relativamente aos factos que se encontram a ser investigados. Pelo que se torna necessário a obtenção de tal informação para que a investigação criminal prossiga, com vista à obtenção de indícios suficientes para eventual acusação. É fundamental apurarem-se tais elementos. Assim por se nos afigurar ser de grande interesse para a descoberta da verdade material e para a prova, promovo: Nos termos do disposto nos artºs 181º e 268º, n.º 2, al. c), do C.P.P. seja ordenada a apreensão dos documentos já referidos, onde conste: Ou, caso ainda se entenda pertinente, seja ao abrigo do disposto nos arts. 135º nº 3 e 182º do C.P.P. ordenada a prestação por aquela entidade das informações solicitadas com quebra do segredo invocado e perante a recusa ilegitimamente reclamada. (…)» Foi então que o Mmº JIC, de seguida, por despacho de 12-05-2011 entendeu que tal recusa era mesmo ilegítima, porquanto, em síntese, face à nova redação daquele preceito, no âmbito de um processo penal, “as autoridades judiciárias podem ordenar e recolher directamente os dados solicitados”. E, assim, com base em tal entendimento legal, dispensou a Banco... do dever de sigilo bancário e ordenou-lhe que remetesse ao tribunal, no prazo de 10 dias, os solicitados elementos em falta, “sob cominação de multa por falta de colaboração com o tribunal”. 1.2 – Inconformada com esta decisão, a BANCO... recorreu para este Tribunal da Relação, dizendo em conclusões da motivação apresentada: 1. “Andou mal o Tribunal a quo ao determinar à Banco..., S.A. que prestasse a informação solicitada pelo Ministério Público de fls. …; 2. Tal informação encontra-se sujeita a segredo, nos termos do disposto no artigo 78.º do RGICSF; 3. O Tribunal a quo não interpretou correctamente a alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF, que dispõe que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal; 4. E aplicou indevidamente ao caso o disposto no artigo 135.º, n.º 2, do CPP, pretendendo não ter a Banco..., S.A. legitimidade para se escusar à prestação da informação em causa, o que equivale a dizer que entendeu não existir in casu dever de guardar segredo profissional; 5. Nos termos do disposto no artigo 9.º do Código Civil, a norma contida na alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF não pode ser interpretada fora do contexto sistémico em que se integra; 6. E devem antes de mais aplicar-se, no âmbito de um processo penal, as normas da CRP, designadamente a disposição contida no seu artigo 26.º, que dispõe que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar; 7. Atendendo à forma como é actualmente utilizado o sistema bancário, o acesso à informação bancária dos cidadãos permite determinar os exactos contornos da respectiva vida privada; 8. Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, a lei apenas pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos; 9. A ponderação exigida pela CRP para que ocorram as restrições referidas em 8 antecedente apenas poderá resultar da intervenção de um tribunal superior, nos termos do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do CPP; 10. A interpretação que o Tribunal a quo faz da norma contida na alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF não respeita o disposto nos artigos 18.º e 26.º da CRP, facto que aqui se argui para todos os efeitos; 11. A alteração legislativa que esteve na origem da actual redacção da alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF visou apenas clarificar o regime anteriormente vigente, procedendo designadamente à harmonização da expressão com a que consta da alínea f) da mesma disposição legal e acomodando tal redacção com a introdução do n.º 3 do citado artigo; 12. O n.º 2, do artigo 79.º do CPP pretende apenas determinar as entidades às quais a informação sujeita a sigilo pode ser revelada, contendo regras de apuramento de legitimidade passiva para recepção da informação em causa, tal não significando contudo que não devam ser respeitadas as normas casuisticamente aplicáveis para que a informação possa ser prestada às entidades aí referidas; 13. Ao contrário do que pretende o Tribunal a quo, não veio o legislador introduzir na alínea d) do n.º 2 do artigo em causa qualquer excepção ao padrão constante das restantes alíneas do mencionado preceito, que devem ser complementadas com as regras procedimentais aplicáveis que possibilitem a prestação da informação coberta pelo dever de segredo; 14. Assim, quando se refere que a informação bancária pode ser revelada, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF, às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal, deverá entender-se que tal informação deve ser prestada nos termos das disposições aplicáveis do processo penal, que se mantiveram inalteradas; 15. A introdução do actual n.º 3 do artigo 79.º do RGICSF em nada interfere com as conclusões supra expendidas, antes evidenciando incongruência na interpretação que o Tribunal a quo faz da alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF; 16. Atendendo ao que antecede, é legítima a escusa por parte da Banco..., S.A. na prestação da informação solicitada, ao abrigo do disposto nos artigos 78.º do RGICSF e 135.º e 182.º, ambos do CPP; 17. A quebra de sigilo pela Banco..., S.A. fá-la-ia aliás incorrer na violação do dever de segredo, nos termos e com as consequências previstos nos artigos 84.º do RGICSF e no artigo 195.º do Código Penal; 18. É assim ilícita a aplicação feita in casu pelo Tribunal a quo do disposto no artigo 135.º, n.º 2, do CPP, violando o disposto nos artigos referidos em 16 antecedente; 19. Acresce que, ao usar da competência atribuída ao Tribunal da Relação pelo n.º 3 do artigo 135.º e pelo artigo 12.º, ambos do CPP, verifica-se a nulidade insanável a que se refere a alínea e) do artigo 119.º do CPP, que aqui expressamente se argui, com as consequências estatuídas no n.º 1 do artigo 122.º do CPP; 20. O despacho referido deverá assim ser revogado e substituído por outro que permita à Banco..., S.A. que guarde segredo acerca da informação em causa, a menos que venha a ser determinada a quebra de tal segredo, nos termos legais; 21. Assiste à Banco..., S.A. legitimidade para interposição do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 401., n.º 1, alínea d), do CPP. 1.3- Em contra-alegações pugnou o MºPº, em síntese, pela manutenção da decisão recorrida, a qual aplicou devidamente as alterações legislativas em vigor ao regime de dispensa de sigilo bancário 1.4- Admitido o recurso com subida em separado, de imediato e efeito suspensivo e, após sustentação do despacho recorrido, foi remetido a esta Relação, tendo o MºPº aqui emitido douto parecer no qual, no essencial, sufragou o entendimento do seu par da 1ª instância em contra-alegações, destacando a atenção para o espírito da alteração legislativa na esteira do aperfeiçoamento do projecto de Lei nº 218/XI que conduziu ao entendimento de, nesta matéria, se alargar às autoridades judiciárias os mesmos poderes que já vinham sendo conferidos às autoridades administrativas, eliminando-se na alª d) do nº 2 do artº 79º do RGICSF a referência anterior “ nos termos previstos na lei penal e de processo penal” e passando a constar “ as autoridades judiciárias no âmbito de um processo penal “ 1.5- Remetidos os autos à Conferência, após exame preliminar e vistos legais, cumpre decidir. II- CONHECENDO 2.1- É ponto mais que assente e pacífica jurisprudência que o âmbito dos recursos se encontra delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação mas sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP[1]. São tais conclusões que visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[2]. Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis no âmbito dos poderes desta Relação. 2.2-Está em apreciação e, em síntese, a seguinte questão: Apesar da alteração legislativa ao artº 79º nº2 alª d), do RGICSF introduzida pela Lei 36/2010 de 20/09, em matéria de dispensa de sigilo bancário, continua a ser necessária a intervenção do tribunal superior nos termos do incidente aplicável ex vi do disposto no artº 135º nº 3 do CPP, sendo pois nulo o despacho recorrido ao considerar a ilegitimidade de recusa por parte da recorrente BANCO... ? 2.3- A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL 2.3.1- A BANCO..., solicitada primeiramente pelo MºPº e, depois, por ordem judicial (JIC), a prestar informações no âmbito de um processo penal, destinadas à averiguação de factos relativos à eventual prática de crimes de burla e de falsificação, recusou-se a fazê-lo, atitude esta considerada então como ilegítima. O tribunal de primeira instância não suscitou o desencadear do mecanismo de dispensa do dever de sigilo previsto no artº 135º nº 3 do CPP a este Tribunal da Relação, optando por determinar à recusante, sob cominação de multa por falta de colaboração com o tribunal, a prestação, em prazo que fixou, das informações pretendidas. A Banco... entende, no recurso interposto, que continua a ser exigível aquele mecanismo processual de dispensa por tribunal superior, assentando argumentos na invocação constitucional da reserva de vida privada (artº 18º nº2 da CRP) e na inalteração desse instituto, já vigente segundo o regime anterior à Lei 36/2010. Em suma, a actual redação do artº 79º nº2 alª d) do RGICSF não afastaria o regime do artº 135º nº 3 do CPP. Quid juris? O dever de segredo, a nível bancário, tem tido consagração legislativa nos art. 78° e 79.º do DL 298/92, de 31/12, que aprovou o «Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras». De acordo com o n.°2 do art. 78° de tal diploma, “estão designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”. O dever de segredo é, assim, tratado como segredo profissional, vinculando todos aqueles que, por virtude das suas funções, têm acesso às referidas informações, concretamente: “os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a titulo permanente ou ocasional” (art. 78° n° 1). Como se afirmou no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n° 2/2008,pubº in DR l.ª série, de 31 de Março de 2008, o segredo bancário tem em vista a salvaguarda de duas ordens de interesses: por um lado, o regular funcionamento da actividade bancária, com a consequente repercussão no “bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento de recursos”, e, por outro, a reserva da intimidade da vida privada de cada um dos clientes da Banca. No entanto, a lei concebe o segredo bancário essencialmente como protecção do direito fundamental à reserva da vida privada, consagrado no art. 26° n.° 1 da CRP, porquanto o mesmo cessa quando exista autorização do cliente na sua revelação (art. 79° n° 1, do citado DL). Inexistindo autorização do cliente, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podiam ser revelados pela instituição bancária, no âmbito das suas atribuições, às entidades referidas nas alíneas a), b) e e) do n° 2 do art. 79° e ainda, na versão anterior à recente alteração legislativa operada pela Lei 36/2010, “nos termos previstos na lei penal e de processo penal” [ d)] ou “quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo” [ e)]. Este estado de coisas mudou entretanto com a alteração legislativa operada pelo artº 1º da Lei36/2010 de 2 de Setembro ao artº 79º nº2 alª d) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ( RGICSF) [aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, com as alterações nele introduzidas ao longo dos anos[3]] , e que com entrada em vigor 180 dias após a data da sua publicação no DºRª, passou a ter seguinte redacção: «Artigo 79.º [...] 1 — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . b) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . c) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . d) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal; e) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . f) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 — É criada no Banco de Portugal uma base de contas bancárias existentes no sistema bancário na qual constam os titulares de todas as contas, seguindo -se para o efeito o seguinte procedimento: a) (…) b) (…) c) O Banco de Portugal adopta as medidas necessárias para assegurar o acesso reservado a esta base, sendo a informação nela referida apenas respeitante à identificação do número da conta, da respectiva entidade bancária, da data da sua abertura, dos respectivos titulares e das pessoas autorizadas a movimentá-las, incluindo procuradores, e da data do seu encerramento, e apenas podendo ser transmitida às entidades referidas na alínea d) do n.º 2 do presente artigo, no âmbito de um processo penal.» (negrito nosso) Por outro lado, de acordo com o art. 135° do CPP, quando deva ser aplicável com as devidas adaptações, caso conclua o tribunal pela legitimidade da escusa — o que ocorre se o facto estiver abrangido pelo segredo e não houver autorização do titular da conta — terá nesse caso, então, de suscitar, em incidente (de quebra de segredo profissional), a intervenção do tribunal imediatamente superior, o qual pode autorizar a sua quebra “sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante” (n° 3). Com o AC de fixação de jurisprudência do STJ de 13-02-2008 [4] ficou porém definida a forma e processo de suscitação do incidente em caso de recusa, se legitima, nos termos seguintes, resumidamente: «1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário. 2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal. 3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.» Este aresto argumentou assim: (…) 3. 1. O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses. (1) Sobre este ponto, ver o Parecer nº 138/83 do Conselho Consultivo da PGR (BMJ 342, p. 61), o Ac. nº 278/95 do Tribunal Constitucional, de 31.5.1995, nº 7.2., Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª ed., p. 253, e José Maria Pires, O Dever de Segredo na Actividade Bancária, p. 19, entre muitos outros elementos. Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos. Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a “biografia” de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no art. 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. (Assim, o citado Ac. nº 278/95 do TC, nº 7.1., e Meneses Cordeiro, p. 254. Diferentemente, J.M. Pires funda o segredo bancário na “necessidade de proteger a actividade bancária de intromissões que prejudiquem a confiança das relações entre as instituições e os seus clientes”, considerando o segredo bancário como expressão de um “direito fundamental de segredo”, enquadrável nos direitos fundamentais atípicos, previstos no art. 16º, nº 1 da CRP. Porém, esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário. (cfr expressamente, o Ac. citado do TC, nº 8.) 3.2. O segredo bancário está regulado actualmente no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL nº 298/92, de 31-12, da seguinte forma: (…) Como vemos, o segredo bancário é tratado como segredo profissional, vinculando todos aqueles que, por via do exercício da profissão, têm acesso às informações indicadas, designadamente, no nº 2 do art. 78º. O dever de segredo cessa quando exista autorização do cliente, sendo pois livremente disponível o correspondente direito, o que revela que o legislador concebe o segredo bancário essencialmente como protecção do direito fundamental à reserva da vida privada. Mas cessa ainda noutras situações, em que interesses relevantes de ordem pública impõem essa cessação, por força do princípio constitucional da concordância entre valores constitucionais conflituantes (nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa). Importam-nos apenas, para o nosso caso, as als. d) e e) do nº 2 do art. 79º do RGICSF, que remetem para a lei penal e processual penal e para as disposições especiais que limitem o dever de segredo. Entre estas últimas contam-se, como é sabido, a legislação penal sobre cheques sem provisão (art. 13º-A do DL nº 454/91, de 28-12, introduzido pelo DL nº 316/97, de 19-11), a legislação sobre combate à criminalidade organizada e económico-financeira (art. 2º da Lei nº 5/2002, de 11-1) e ainda a legislação sobre branqueamento de capitais (art. 9º da Lei nº 11/2004, de 27-3). Nelas se estabelece o dever de as instituições bancárias prestarem as informações necessárias para a investigação das respectivas infracções. Nestes casos, as instituições bancárias têm o dever de prestar às autoridades de investigação criminal as informações que lhes forem solicitadas. O segredo bancário cede, nessas situações, por imposição legal (e independentemente de autorização do titular da conta), ao interesse público de investigação criminal. Nestes casos, não há, pois, que ponderar qual o interesse que deve prevalecer, porque o legislador, à partida, decidiu privilegiar o interesse público. O juízo de prevalência foi feito pelo próprio legislador. A eventual recusa das instituições bancárias em prestar informações às autoridades de investigação é sempre ilegítima. 3.3. Mas é admitida ainda a cessação do segredo bancário “nos termos previstos na lei penal e de processo penal”. Estabelece o art. 135º do CPP: (…) 1. (…) 2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3. O tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. (…) 5. Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. Da leitura do preceito ressalta o tratamento distinto entre as situações de legitimidade e de ilegitimidade de escusa de prestação de depoimentos ou informações por parte das entidades bancárias às autoridades judiciárias. Quando se pode afirmar que a escusa é legítima? A legitimidade da escusa não pode deixar de resultar do cumprimento de um dever legal, isto é, do cumprimento do dever de segredo a que a instituição bancária está obrigada. A medida da legitimidade da escusa é, pois, a da extensão do segredo bancário. Em contrapartida, haverá ilegitimidade da escusa quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo bancário (nº 2 do citado art. 78º) ou tiver havido consentimento por parte do titular da conta. Assentes estes conceitos, analisemos agora o regime de cada uma das situações. O nº 2 do art. 135º prevê a hipótese de ilegitimidade da escusa, estabelecendo que, nesse caso, o próprio tribunal perante o qual ela é efectuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação dos depoimentos ou das informações, cumprido que seja o formalismo previsto no nº 5 do mesmo artigo. Nessa situação, não impõe a lei que se faça qualquer juízo de ponderação de interesses em ordem a determinar o que deverá prevalecer, nem o mesmo teria qualquer sentido, porque não existe segredo. Por isso, a lei autoriza o tribunal a ordenar a prestação do depoimento, sem mais, uma vez apurado (ultrapassadas as eventuais dúvidas) que a escusa é ilegítima, não podendo a instituição bancária subtrair-se ao cumprimento do ordenado. Havendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, é o próprio tribunal perante o qual a escusa foi efectuada que as deve resolver. Não estamos, nessa situação, perante uma quebra de segredo, simplesmente porque o facto não está legalmente coberto pelo segredo bancário, ou houve autorização do titular da conta. Diferente é o caso de escusa legítima. A legitimidade da escusa resulta necessariamente, como vimos, de o facto estar abrangido pelo segredo (e não haver autorização do titular da conta). Nesta situação, a obtenção do depoimento ou da informação escrita já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto: os interesses protegidos pelo segredo bancário, por um lado; os interesses no sucesso da investigação criminal, por outro. É precisamente esse juízo que o nº 3 do mesmo art. 135º prevê que seja assumido em incidente específico – incidente de quebra de segredo profissional – a ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido. 3.4. Temos, pois, que têm tratamento claramente diferenciado as situações de legitimidade e de ilegitimidade da escusa de prestação de depoimento ou informações pelas instituições bancárias, sendo evidentemente mais simples o caso de ilegitimidade, que é da competência do próprio tribunal em que a escusa tenha sido invocada, precisamente porque aí se trata apenas de constatar a inexistência de sigilo bancário e consequentemente a ilegitimidade da escusa, e consequentemente ordenar a prestação da informação (ou do depoimento). Estando, porém, o facto coberto pelo segredo, e sendo portanto legítima a escusa, só a quebra do segredo pode obrigar a entidade bancária à prestação da informação. Mas a quebra do segredo impõe um juízo de prevalência entre os interesses em conflito, que o legislador entendeu dever deferir a um tribunal superior. Sendo assim, temos que, quando invocado o sigilo bancário, a autoridade judiciária perante a qual tiver sido suscitada deverá decidir se essa escusa é legítima ou ilegítima. Quando conclua, após as diligências que considerar necessárias e cumprido o formalismo do nº 5 do mesmo artigo, que a escusa é ilegítima, a autoridade judiciária ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento, não podendo então a instituição bancária deixar de cumprir o ordenado. Se concluir que a escusa é legítima, dois caminhos estão abertos à autoridade judiciária: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na obtenção do depoimento, ou então suscita o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior. A quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima. Temos, pois, que consideramos correcta e adequada a interpretação dos preceitos legais efectuada pelo acórdão-fundamento. É neste sentido a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, de que se destacam os acórdãos de 6.2.2003, procº. nº 159/03, da 5ª Secção, sendo relator o Consº. Pereira Madeira, e de 28.6.2006, procº. nº 2178/06, da 3ª Secção, sendo relator o Consº. Sousa Fonte. (…)» * Visto isto: Sobre esta matéria do segredo bancário e profissional em geral e, sobretudo, em particular na área e domínio da fiscalidade, algumas soluções no direito comparado foram alcançadas em face do conflito entre o binómio: principio da intimidade da vida privada / direito legal de acesso da Administração à conta bancária, com base, nomeadamente no principio da igualdade fiscal (igualdade de pagamento e de tratamento perante a administração fiscal. De todo o modo, podemos dizer com segurança que o segredo fiscal e o segredo bancário coincidem em relação aos elementos que os compõem, mas revestem algumas diferenças básicas quanto às funções que preenchem. Na verdade, enquanto o segredo bancário constitui uma “súmula dos deveres do banqueiro para com o seu cliente, o segredo fiscal constitui um mero dever de reserva da Administração em relação aos dados que o administrado lhe deve fornecer.”[5] O conceito que se procura definir não foge muito do binómio direito/dever.[6] Garante uma zona essencial de privacidade, cria e fomenta as condições de confiança que devem presidir às relações entre as instituições e os clientes, sejam estes pessoas singulares ou colectivas. Por outro lado, defende as próprias instituições de revelações que possam prejudicar o seu bom nome e o desenvolvimento normal das suas operações, tudo isso em consonância com o direito à integridade pessoal (moral e física) das pessoas, direito que, nos termos do n.º 1 do art. 25.° da Constituição é inviolável. Sabemos porém que esse direito se desmultiplica em vários outros, entre os quais avultam os relativos ao bom-nome e reputação, à imagem, à palavra e à reserva da intimidade e da vida privada e familiar. (Cfr: Gomes,Noel, in “Segredo Bancário e Direito Fiscal”, Almedina, Ano 2006, páginas 19 a 20; SOUSA, Rabindranath Capelo «O segredo bancário - em especial, face às alterações fiscais da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro», in Estudos em homenagem ao Professor Inocência Galvão Teles, volume II, Lisboa, 2002, pp. 178-179.”) O segredo bancário, como direito, tem a particularidade de apresentar (no mínimo) uma dualidade de titulares: cliente bancário /instituição financeira. O direito do cliente sendo subjectivo, ainda que disponível, impõe-se na justa medida em que assiste ao Banco o dever e o poder de impedir (ou de tentar impedir) que os factos e elementos protegidos pelo segredo bancário sejam revelados, aproveitados ou, por qualquer forma, conhecidos por aqueles que constituam terceiros face à relação jurídica bancária estabelecida. Trata-se, portanto, de um direito subjectivo misto de público e privado (para alguns, porém, absoluto). Aqui, refere “R. Capelo de Sousa citº que é sobretudo um direito subjectivo mas relativo, contratual, do cliente face à instituição financeira, "nomeadamente com deveres de prestação de boa-fé e de respeito por normas de segurança e de confidencialidade nas operações bancárias" cuja esfera activa é ainda preenchida por esta última, a qual, para além de estar vinculada ao dever de discrição, é também, em certa medida, e à semelhança do seu cliente, titular de um direito subjectivo absoluto (público e privado), oponível a todos os terceiros, incluindo ao próprio Estado. A par do conceito e da natureza jurídica do segredo bancário, pode discutir-se – e é efectivamente discutido, sobretudo em países em que não existe disposição legal que o consagre e o defina - o fundamento deste instituto jurídico, tema que aqui não iremos curar de tratar, dada a sua inserção dogmática. Na base deste debate, porém, está fundamentalmente a falta de uma definição (de segredo bancário) absoluta e inamovível que se possa considerar como eternamente válida para todos os ordenamentos jurídicos e para todas as épocas históricas.[7] Parte integrante de um contrato bancário, produz para os outorgantes basicamente três direitos e três deveres convergentes num mesmo sentido, sendo eles a segurança, o lucro e a salvaguarda da intimidade, este último, traduzindo-se para o cliente na salvaguarda da intimidade privada, e para os Bancos na salvaguarda da intimidade concorrencial, e comercial.[8] No entanto, o Tribunal Constitucional, no Acº n° 278/95, de 31 de Maio (pub. BMJ n. ° 451, a págs. 114 a 128), fez aportes fundamentais sobre a matéria do sigilo bancário, dos quais aqui salientamos os passos mais significativos: «Tendo em conta a extensão que assume na vida moderna o uso de depósitos bancários e conta corrente, é de crer que o conhecimento dos seus movimentos activos e passivos reflecte grande parte das particularidades da vida económica, pessoal ou familiar dos respectivos titulares. Através da investigação e análise das contas bancárias, torna-se, assim, possível penetrar na zona mais estrita da vida privada. Pode dizer-se, de facto, que, na sociedade moderna, uma conta corrente pode constituir "a biografia pessoal em números". Está este Tribunal em condições de afirmar que a situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as operações activas e passivas nela registadas, faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada condensado no artigo 26. °, n.° l da Constituição, surgindo o segredo bancário como um instrumento de garantia deste direito. De facto, numa época histórica caracterizada pela generalização das relações bancárias, em que grande parte dos cidadãos adquire o estatuto de cliente bancário, os elementos em poder dos estabelecimentos bancários, respeitantes designadamente às contas de depósito e seus movimentos e às operações bancárias, cambiais e financeiras, constituem uma dimensão essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada constitucionalmente garantido. O segredo bancário, no entanto, não é de todo um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. (negrito e itálico nossos) Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os Bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes. Só que as restrições ao segredo bancário hão-de constar necessariamente de Lei da Aª Rª ou de Decº Lei emitido no uso de autorização legislativa e hão-de obedecer aos requisitos que os nºs 2 e 3 do artigo 18. ° da Lei Fundamental impõem às leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias, quais sejam: só são admissíveis nos casos expressamente previstos na Constituição, ou seja, quando o Diploma fundamental o autorizar explicitamente; devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, isto é, devem obedecer ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo ou da proibição do excesso, devendo ser, por isso, necessárias, adequadas e proporcionais; e têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais." Também no direito suíço, que foi legislativamente um dos maiores protectores do sigilo bancário[9] e fazendo habitualmente distinção entre evasão (fundamento da denegação de informações) e fraude fiscal ( domínio penal) já hoje não é bem assim, na sequência de acusações recorrentes de falta de transparência fiscal e da colocação daquele país em “lista cinzenta” pela OCDE. Embora na sua legislação actual, ainda se possa verificar que a regra é a de, v.g., quanto à impossibilidade da administração fiscal, ter acesso directo a informações de carácter sigiloso, esta apenas se destina a procedimentos tributários não sancionatórios, um vez que, nos procedimentos sancionatórios não podem estar sujeitos a estas restrições devido a sua componente penal. (Os processos não sancionatórios definem-se por processos onde as entidades bancárias assumem a qualidade de contribuintes ou de terceiros na relação fiscal). Voltando ao caso que nos ocupa, diremos então que, na génese das alterações legislativas ao RGICSF (artº 79º nº2 d), esteve o PROJECTO DE LEI N.º 218/XI (1.ª) da Assembleia da República [10] com a seguinte Exposição de motivos: “A Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro, aprovou, entre outras, medidas de derrogação do sigilo bancário adequadas à repressão da criminalidade económica e financeira, munindo a administração fiscal de instrumentos que se revelaram úteis nesse combate. A intenção então aí expressa de conceder à administração fiscal meios de apuramento da verdade tributária adequados não se pode compaginar com uma interpretação daquele diploma legal da qual resulte aquela como tendo pretendido conferir mais poderes à administração fiscal do que aos juízes de direito. Aliás, com a publicação do Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro — que alterou o disposto na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, sobre segredo profissional —, deixou de ser sustentável qualquer interpretação que possa restringir o efeito que se pretendeu atingir. Importa, pois, colocar um ponto final sobre quaisquer dúvidas que se possam suscitar, clarificando que os juízes de direito, no âmbito das suas atribuições, não devem experimentar mais restrições do que a administração tributária em matéria de derrogação do segredo profissional sobre os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional. Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, abaixo assinados, apresentam o seguinte projecto de lei: Artigo 1.º Altera a alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.º 246/95, de 14 de Setembro, n.º 232/96, de 5 de Dezembro, n.º 222/99, de 22 de Julho, n.º 250/2000, de 13 de Outubro, n.º 285/2001, de 3 de Novembro, n.º 201/2002, de 26 de Setembro, n.º 319/2002, de 28 de Dezembro, n.º 252/2003, de 17 de Outubro, n.º 145/2006, de 31 de Julho, n.º 104/2007, de 3 de Abril, n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro, n.º 1/2008, de 3 de Janeiro, n.º 126/2008, de 21 de Julho, n.º 211-A/2008, de 3 de Novembro, pela Lei n.º 28/2009, de 19 de Junho, pelo Decreto-Lei n.º 162/2009, de 20 de Julho, pela Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro, que passa a ter a seguinte redacção: «Artigo 79.º (») 1 — (») 2 — (») a) (») b) (») c) (») d) Aos juízes de direito, no âmbito das suas atribuições; e) (») f) (»)» Por sua vez, a alteração introduzida ao nº 3, c) do artº 79º teve a sua génese no PROJECTO DE LEI N.º 221/XI e que criou no Banco de Portugal uma base de dados de contas bancárias: «Exposição de motivos O processo até agora seguido, de consulta ao Banco de Portugal, que por sua vez dirige consulta a todas as instituições financeiras, sobre a existência de contas bancárias em nome de determinada entidade ou entidades, não se afigura ser o mais prático e resulta em delongas que afectam o regular andamento dos processos, podendo aliás, propiciar mais fácil fuga à acção da justiça. Pelo que, importa facilitar o acesso das autoridades judiciárias, no âmbito de um processo, à informação da existência de conta bancária e dos seus titulares. Impõe-se, assim, a criação no Banco de Portugal de uma base de dados que identifique os titulares de contas, independentemente da sua natureza. Tal base deverá ser constituída através de informações de abertura e fecho de contas e numa primeira fase da titularidade das contas bancárias existentes no sistema com indicação, tão-somente, da dos seus titulares. (…)» Decorre assim quer do elemento literal, quer do histórico quer ainda do teleológico que foi intenção clara e aberta do legislador em eliminar, em caso de recusa ilegítima, o incidente de dispensa de sigilo e de conferir às autoridades judiciárias acesso directo ao pedido de elementos e informações bancárias, à semelhança do que já acontecia com a administração tributária e em regimes especiais (artº 13ºA) do DL 454/91 de 28/12; artº 2º da Lei 5/2002- combate à criminalidade organizada e económico-financeira e crimes de catálogo ali indicados; o artº 60º dado DL 15/93- tráfico de estupefacientes; Lei 25/2008- crime de branqueamento e financiamento do terrorismo) De acordo com a definição contida na alª b) do artº 1º das disposições legais (preliminares e gerais) do CPP, autoridades judiciárias são o Juiz, o Juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos actos processuais que cabem na sua competência. Ora, o texto legal resultante da alteração introduzida pela Lei 36/2010 tem na sua base a mens legis visando pôr fim à aplicação ao sigilo bancário do incidente de quebra do segredo profissional previsto no artº 135º do CPP, desde logo porque deslegitima a recusa das entidades bancárias ao fornecimento dos dados solicitados em processo penal pelas autoridades judiciárias, tal como vinha já acontecendo, grosso modo, com aqueles regimes especiais, mas desta vez com uma amplitude generalizada a qualquer crime em investigação, ainda que sem prejuízo de a autoridade judiciária fundamentar nos autos a razão, sentido, âmbito e limites do pedido, a inexistência de outra alternativa e o contributo fundamental, numa perspetiva de proporcionalidade, para descoberta da verdade, acionando esta como um valor mais alto equivalente ao do interesse prevalecente. E, acrescentaremos nós, numa prudente atitude de salvaguarda dos direitos fundamentais, garantindo que a afectação eventual de reserva da vida privada não seja publicitada nem desnecessariamente devassada para fora dos limites processuais, tal como acontece, mutatis mutandis, com as escutas telefónicas. A aludida alteração sendo mais recente que os regimes especiais vigentes para a criminalidade mais complexa, mais grave ou dita menos comum, afigura-se especial em relação a eles na sua actual abrangência, sobretudo face ao regime do artº 135º e ss do CPP em matéria de dispensa do incidente de sigilo profissional e de acesso directo na criminalidade dita “comum” a informações bancárias pelo próprio MºPº na fase de inquérito de qualquer processo penal com dispensa de intervenção do Juiz. Passou pois a haver uma regra de acesso sem restrições de natureza do processo (desde que penal) ou de tipo de crime por qualquer autoridade judiciária, naquela acepção sobredita. Cremos pois que, desde que respeitada a proporcionalidade do acesso, salvaguardados direitos fundamentais quanto à publicidade desnecessária para fora do processo penal e respeitado o principio do interesse prevalecente da descoberta da verdade material, inexistindo ou sendo de muito difícil alcance alternativas que não passem pela violação do segredo bancário, aquele dever de sigilo não prevalece, a sua recusa será ilegítima, essa ilegitimidade afasta por si a necessidade de uso instrumental do incidente previsto no artº 135º do CPP e não se oferece campo a violações dos preceitos constitucionais, v.g. na vertente do direito à reserva da vida privada, contido que se aceite estar o direito à protecção do segredo bancário num resíduo constitucional situado mais no direito ao “ter” cuja protecção constitucional é muito duvidosa em vez de um direito ao “ser”. De resto, algumas dúvidas sobre a (in) constitucionalidade da abertura de amplos poderes não só aos juízes como também ao MºPº, que é incontestavelmente uma autoridade judiciária, quando já elas mal existiam em matérias de acesso por entidades competentes da administração fiscal, parecem-nos excessivas, salvo o devido respeito, e sem fundamento, embora discordemos, em tese geral, que se diga que a norma actualizadora derrogou tacitamente as normas especiais na parte em que exigiam (caso do artº 1º nº1 da Lei 5/2002) ou faziam depender “o acesso ao segredo de razões para crer que as informações teriam interesse para a descoberta da verdade”. Na verdade, não cremos que o legislador tenha agora querido um acesso não só alargado a mais entidades (as autoridades judiciárias) como também indiscriminado, sem respeito pela existência de um fundamento relevante sediado no interesse da descoberta da verdade, principio este geral do processo penal e que lhe subjaz desde o início até à conclusão final[11] Desta forma, podemos concluir que: a) O novo regime do artº 79º nº2 alª d) não é de modo algum limitado pelo nº3 (sobre a criação de uma base de dados junto do Banco de Portugal) pois este complementa aquele. b) O novo regime permite o acesso directo pelas autoridades judiciárias em processo penal, às informações bancárias necessárias à descoberta da verdade material, numa base de proporcionalidade, face à inexistência de alternativas de investigação e com respeito pelos dados privados que afectem direitos fundamentais ligados à reserva da vida privada e nada tenham a ver, de forma relevante, com a investigação em curso. c) A possibilidade de acesso aos dados pelo MºPº pode sempre ser controlável, naquela afectação, por uma autoridade judicial. d) Na medida do possível e desde que a investigação não seja perturbada os arguidos devem ser preferencialmente informados da violação da reserva de acesso para que, em caso de protecção constitucional, possam acionar os meios de defesa estabelecidos na lei a seu favor, para tanto devendo as autoridades judiciárias com acesso aos dados do segredo bancário, segundo o novo regime em vigor, procurar garantir a protecção desses dados perante a publicidade do processo da devassa por terceiros. e) Por último, no caso concreto, não vislumbramos que haja sinais de alguma das apontadas restrições que imponha uma legitimação da recusa da BANCO... recorrente, de onde concluímos sem hesitação pela improcedência do recurso e a desnecessidade de dispensa do dever de sigilo pela via processual do incidente previsto no artº 135º do CPP, hipótese essa apenas aplicável se a dita recusa fosse legítima que, como se viu já, não é. III- DECISÃO 3.1.- Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente. 3.2- Taxa de justiça em 10 UC a cargo da recorrente Lisboa, 25 de Outubro de 2011 Relator: Agostinho Torres; Adjunto: Luís Gominho; ---------------------------------------------------------------------------------------- [1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95 [2] vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335; e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas. [3] introduzidas pelos Decretos -Leis n.os 246/95, de 14 de Setembro, 232/96, de 5 de Dezembro, 222/99, de 22 de Julho, 250/2000, de 13 de Outubro, 285/2001, de 3 de Novembro, 201/2002, de 26 de Setembro, 319/2002, de 28 de Dezembro, 252/2003, de 17 de Outubro, 145/2006, de 31 de Julho, 104/2007, de 3 de Abril, 357 -A/2007, de 31 de Outubro, 1/2008, de 3 de Janeiro, 126/2008, de 21 de Julho, e 211 -A/2008, de 3 de Novembro, pela Lei n.º 28/2009, de 19 de Junho, pelo Decreto -Lei n.º 162/2009, de 20 de Julho, pela Lei n.º 94/2009, de 1 de Setembro, e pelos Decretos -Leis n.os 317/2009 de 30 de Outubro, 52/2010, de 26 de Maio, e 71/2010, de 18 de Junho. [4] Cfr que, no caso do Ac FJ citado, havia sido também a Banco... (BANCO...) a interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do art. 437º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2006, proferido no procº. nº 9375/06, da 3ª Secção (certificado a fls. 2-6), invocando como fundamento o acórdão da mesma Relação de 3.10.2006, proferido no procº. nº 5029/06, da 5ª Secção [5] Cfr SANCHES, J.L. SALDANHA, “Segredo Bancário, Segredo Fiscal: Uma Perspectiva Funcional”,Revista “Fiscalidade” n.º 21, Janeiro - Março de 2005, Edições do Instituto Superior de Gestão, página 34. [6] (apud PIRES, José Maria, apresentada no “Elucidário de Direito Bancário” , Coimbra Editora, Ano 2002, página 472.) [7] Cfr “Sobre a relatividade da fundamentação do dever de discrição bancária, veja-se PRIETO, Cazorla , El secreto bancário, Instituto de Estúdios Fiscales, 1978, pp. 79-80, no que é acompanhado por Guillén FERRER, El Secreto Bancário y sus limites legales, Tirant to Blanch, Valência, 1997, pp. 35. Diferente opinião é perfilhada por AZAUSTRE FERNÁNDEZ, El secreto bancário, Bosch, 2001, Barcelona, pp. 151, para quem o "fundamento (razón explicativa) de una institución es único, ello explica su existência en los diversos ordenamientos y en épocas diferentes; Lo que variará será su extensión en la plasmación que los diversos ordenamientos positivos hagan de la misma". ( apud SOUSA, José, op. citº) [8] Cfr OLIVEIRA E SOUSA, José Manuel, “O SIGILO OU SEGREDO BANCÁRIO NO NOSSO REGIME FISCAL FDUP- III Curso de Pós-Graduação em Direito Fiscal. [9]Vide http://www.portugues.rfi.fr/economia/20110923-sigilo-bancario-suico-esta-ameacado-diz-especialista [10] Vide DAR | II Série A - Número: 068 | 21 de Abril de 2010 [11] Como parece ter sido, ao contrário, se bem o interpretamos, defendido em, aliás douto, artigo publicado, ao que sabemos, na internet, de 4 de Março de 2001, de Latas, João Casebre, apoio à conferência realizada na BANCO... nesse mesmo dia. |