Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
511/2004-7
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: CONTA DE DEPÓSITO
COMPENSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Contrato de abertura de conta, também denominado de contrato de conta bancária ou simplesmente depósito bancário é o contrato pelo qual se deposita e confia ao Banco dinheiro ou títulos de crédito, constituindo-se este na obrigação de restituir nas condições convencionadas.
A conta solidária pode ser movimentada por qualquer dos titulares, individual e livremente.
O regime da solidariedade da conta respeita sobretudo às relações entre o banqueiro e o cliente, na medida em que fixa o regime da movimentação do seu saldo pelos seus titulares. Já a questão da propriedade do saldo da conta solidária respeita às relações entre os vários titulares da conta, a ela sendo alheio o banqueiro.
O contrato de depósito bancário é considerado como um contrato de depósito irregular, atento o disposto no art.1205º CC, sendo regido pelas normas do mútuo.
Na conta solidária, uma vez que qualquer dos titulares pode levantar a totalidade do saldo, também poderá constituir débitos, fazer aplicações financeiras ou constituir depósitos a prazo e, por maioria de razão, onerar o depósito para garantir obrigações próprias ou alheias.
Nos depósitos a prazo o banqueiro pode usar o correspondente crédito para efeitos de compensação, sem condicionalismos, logo que o prazo se tenha vencido, ou pagando antecipadamente os juros antes do vencimento, por via dos arts. 1147º e 1206º do CC.
Perante uma conta solidária, o banqueiro pode compensar o crédito que tenha sobre algum dos seus contitulares, até à totalidade do saldo.
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

MARIA S. propôs a presente acção declarativa em processo comum sob a forma ordinária contra o BANCO SANTANDER PORTUGAL SA. pedindo seja condenado a pagar-lhe a quantia de 14.479.423$00 acrescida de juros de mora à taxa legal sobre 8.755.781$00 desde 1/2/99 ou, subsidiariamente, um terço daquele montante (4.826.474$00) acrescido de juros de mora à taxa legal sobre 2.918.594$00 desde 1/2/99 até efectivo pagamento.
Para o efeito, alega que em 1/8/91 foi aberta na agência do Réu em Sacavém uma conta de depósitos à ordem no valor de 13.800.000$00 em seu nome (1ª titular), do seu sobrinho A. Manuel (2º titular) e filha deste A. Paula (3ª titular) e que depois foi constituído em depósito a prazo em 14/2/92. O referido A. Manuel subscreveu uma livrança em nome da Mola Moderna Lda. no valor de 10.000.000$00 dando aquele depósito em penhor, como garantia, mas sem conhecimento nem consentimento da Autora. Posteriormente o A. Manuel retirou 3.000.000$00 para amortizar a livrança. Depois, o penhor foi reduzido para 5.000.000$00 e face ao não pagamento do restante da livrança, foi a conta de depósitos em causa debitada em 13/8/93 em 5.603.829$00, mas sem o conhecimento da Autora.

Citado, contestou o Réu a fls.44.
Alega que a conta de depósitos foi aberta no regime da solidariedade o que permite que, no todo ou em parte, seja movimentável por qualquer dos titulares sem intervenção dos restantes. A Autora autorizou expressamente o Réu a debitar na conta os efeitos da responsabilidade de qualquer dos seus titulares, bem como os correspondentes encargos e despesas. A Autora autorizou que toda a correspondência do Banco fosse enviada para a morada do A. Manuel. O Réu de todas as operações deu conhecimento à Autora. A entender-se que a Autora tem 1/3 do depósito por força da presunção do art. 516º CC, certo é que o restante do depósito não utilizado é superior à sua quota. Pede a improcedência da acção.

Foi elaborado saneador e despacho de selecção da matéria de facto.
As partes arrolaram testemunhas e juntaram documentos.
Procedeu-se à audiência de julgamento.
Foi proferida sentença que absolveu do pedido.

Desta sentença interpôs recurso a Autora o qual foi devidamente admitido como de apelação.
A apelante ofereceu alegações rematando com as seguintes conclusões:
1. Não obstante a conta bancária em apreço ter três titulares, ficou considerado provado que a totalidade do seu saldo pertencia à Autora/Recorrente.
2. Foi dado como não provado que:
a) a Recorrente tivesse alguma vez sido informada que o Recorrido poderia proceder à compensação de créditos através de quantias existentes na dita conta bancária
b) a Recorrente alguma vez tivesse dado autorização ao Recorrido para, através da dita conta, compensar créditos que ele, Recorrido, dispusesse ou viesse a dispor relativamente aos outros dois titulares
3. A douta sentença de que se recorre, fundamenta-se nos dois factos supra mencionados, não provados.
4. A decisão recorrida viola as disposições contidas no nº 1 do artigo 847 e nº3 do artigo 853 do Código Civil, e nº 2 do artigo 659 do Cód. Proc. Civil.
Pede a revogação da sentença.

Contra-alegou o Réu batendo-se pela manutenção da decisão recorrida.

Cumpre conhecer do recurso.

FACTOS PROVADOS:

A/. Por escritura outorgada em 30.04.1998, a Ré alterou a sua firma ou denominação para Banco Santander Portugal, SA, em lugar de BCI - Banco de Comércio e Indústria., SA.
B/. Em 01 de Agosto de 1991 foi aberta uma conta no BCI de Sacavém em que figura como 1ª titular a Autora, Maria S., como 2ª titular A. Manuel e como 3ª titular A. Paula– doc.fls.8.
C/. A conta referida em B) é uma conta de depósitos à ordem com o no 030-0109033-54 – fls.8.
D/. A referida conta é uma conta colectiva solidária, podendo qualquer dos três contitulares movimentá-la livremente, parcial ou totalmente, sempre sem carecer de intervenção ou autorização dos restantes – fls.8.
E/. A conta em apreço foi constituída através do depósito de dois cheques, um de dez milhões de escudos e outro de três milhões e oitocentos mil escudos sacados, respectivamente, sobre o Banco Espirito Santo e Comercial de Lisboa e a União de Bancos Portugueses (cfr. doc. de fls. 9 que aqui se dá por integralmente reproduzido), depósito este feito por António Manuel Fialho Cunha – fls.9.
F/. Em 14 de Fevereiro de 1992, na mesma agência (BCI -Balcão de Sacavém) A. Manuel constituiu o depósito a prazo no T92108, no valor de Esc. 13.800.000$00 pelo prazo de 183 dias, por débito da conta aludida em B) e C) – fls.10.
G/. A. Manuel era sócio-gerente da sociedade Mala Moderna,, Lda. com sede na Quinta do Vinagre, EN 10, em Alhandra, a qual também era titular de uma conta no dito balcão de Sacavém, com o no 030-0071061-09.
H/. Por carta datada de 24.07.1992 dirigida ao BCI - Sacavém e assinada por A. Manuel, figurando como remetente Maria S. e A. Manuel é dado conhecimento ao referido Banco que o depósito a prazo no T-92108 de Esc. 13.800.000$00, constituído em 92/02/14 com vencimento em 92/08/15, em nome de Maria S. se encontra a garantir o financiamento por livrança subscrita por Mola Moderna, Lda,, no valor de Esc. 10.000.000$00, com início em 92/07/17, conforme doc. de fls. 11 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
I/. Em 18.03.1993, A. Manuel deu instruções à Ré para transferir a quantia de Esc. 3.000.000$00 do depósito a prazo para a conta à ordem de que ele, a A. Paula e a Autora eram os titulares – fls.15.
J/. Em 18.03.1993, com o objectivo de ser amortizada parte da divida da Mala Moderna, solicitou o A. Manuel a transferência daqueles 3.000.000$00 para a conta de que esta sociedade era titular – fls.16.
L/.Transferência essa que se consumou em 20.03.1993 – fls.17.
M/.Com esta retirada de 3.000.000$00, passou o aludido depósito a prazo a ser de Esc. 10.800.000$00, conforme extracto de 12.04.1993, entregue pela Ré – fls.18.
N/. Continuando em divida uma parte da livrança, comunicou a Ré à Autora, em 16.07.1993 que o depósito a prazo, até ao montante de 5.000.000$00 se encontrava dado em penhor e garantia do pagamento da mesma e que na data do vencimento do depósito a prazo iriam pagar-se, através deste, daquele montante – fls.22.
0/. No termo do prazo da livrança, não tendo a Mola Moderna pago o montante ainda em dívida, fez-se a Ré pagar, conforme já tinha informado, através do supra mencionado depósito a prazo que a garantia.
P/. Em 20.08.1993 comunicou a Ré à Autora que a livrança subscrita pela Mala Moderna, no valor de 10.000.000$00, que estava garantida pelo depósito a prazo (nº T92108), se encontrava totalmente liquidada, que o saldo actual da conta depósito à ordem é de 1.139$20 e que o valor que não foi necessário afectar ao pagamento da livrança ascende a 5.745.461$70 o qual, por renovação em 14/8/93, continua como depósito a prazo – carta de 20/8/93 junta a fls.23.
Q/A conta de depósitos à ordem foi debitada em 13.08.1993, por transferência, pela quantia de 5.000.000$00 mais 549.290$70 de juros e 54.538$30 de encargos com a livrança – fls.24.
R/. Por carta de 27.03.1998 confirmou a Ré que foi de 8.603.829$00 a quantia total debitada na conta da Autora para pagamento da totalidade da dívida da Mola Moderna, Lda, sendo 8.000.000$00 de capital (primeiro 3.000.000$00, depois 5.000.000$00), 549.290$70 de juros e 54.538$30 de encargos com a livrança – fls.26 e 27.
S/. A Autora deu instruções ao seu sobrinho, A. Manuel, para que abrisse uma conta na agência do BCI na Reboleira.
T/. Conta essa que tanto ele como a Autora e A. Paula podiam movimentar.
U/. Os 13.800.000$00 referidos na al. E) pertenciam exclusivamente à Autora.
V/. Em 20.10.1992 a Autora soube, quando se deslocou à agência da Reboleira para levantar parte do dinheiro, que o depósito se encontrava caucionado, não permitindo qualquer levantamento.
X/. Em 26.10.1992 . a Autora, por carta, solicitou os esclarecimentos ao gerente da Agência de Sacavém, o que levou este e o director de zona a deslocar-se à casa da Autora – fls.12.
Z/. A justificação apresentada verbalmente por aqueles dois funcionários baseou-se na possibilidade, decorrente do facto de se tratar de uma conta solidária, de os três titulares poderem movimentá-la livremente.
AA/. Qualquer um dos três titulares da conta poderia movimentar a totalidade do seu saldo e/ou constituir de "per si" um depósito a prazo com base nesse saldo.
BB/. Os dois cheques referidos na alínea E) mostram-se sacados sobre contas colectivas e estão emitidos à ordem de A. Manuel.
CC/. No dia 1.8.1991 o beneficiário e depositante dos cheques (aludidos na al. E), na qualidade de contitular da conta dos autos, fez uma aplicação financeira com os respectivos fundos,
DD/. subscrevendo 12.370 Unidades de Participação do Fundo BC1 - Tesouraria, por débito na conta D/0 030-0109033-54.
EE/. Os juros desta aplicação foram creditados na citada conta D/O.
FF/. Tendo a Ré disso dado conhecimento aos titulares da referida conta.
GG/. A Ré sempre deu conhecimento à Autora da situação da aIudida conta D/0.
HH/ Das condições gerais da abertura da conta (fls.80) consta o item 13 nos seguintes termos:
o Banco reserva-se o direito de debitar na conta os efeitos aceites por qualquer dos titulares , domiciliados ou não nessa conta, bem assim como as despesas e demais encargos, mediante aviso antes da data do vencimento, desde que não receba indicações em contrário (facto este aditado porque de relevante interesse e porque consta do documento de fls.80 que é o verso de fls. 8 e 61 juntos pela Autora – art,8º da p.i. - e aceite por ambas as partes).
II/ Da ficha de assinaturas da abertura da conta bancária consta “morada de correspondência R.Francisco ---., Alhandra, 2600 Vila Franca de Xira (facto este aditado porque de relevante interesse e porque consta do documento de fls.8 junto pela Autora (original a fls.118) e aceite por ambas as partes).


O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do art.690 e 684 nº3 CPC, salvo questões de conhecimento oficioso (art.660 nº2 CPC).
Questões a decidir:
- alteração oficiosa da matéria de facto;
- natureza da conta solidária;
- legitimidade e validade da ordem dada por um dos contitulares da conta solidária para transferir a quantia de 3.000.000$00 dessa conta para a conta de terceiro (Mala Moderna Lda);
- legitimidade e validade da afectação do saldo de uma conta solidária a prazo como garantia do pagamento de uma livrança, em poder do Banco Réu, subscrita por terceiro (Mala Moderna Lda.);
- admissibilidade da compensação do saldo da conta a prazo com créditos do Banco Réu.

1. Alteração oficiosa da matéria de facto.

Foram formulados os seguintes quesitos:
6º - Nem no momento da celebração do contrato de abertura de conta nem em qualquer outro momento, anterior ou posterior, foi a Autora informada que a Ré podia proceder à compensação de créditos através de quantias existentes na dita conta?
7º - e nem a Autora alguma vez deu autorização à Ré para, através da dita conta, compensar créditos que ela, Ré, dispusesse ou viesse a dispor relativamente aos outros dois titulares?
13º - A Autora autorizou expressamente o Réu a debitar na conta dos autos efeitos da responsabilidade de qualquer dos seus titulares, bem como os correspondentes encargos e despesas?
Estes quesitos mereceram resposta “não provado”.
Certo é, porém, que foi junto aos autos o doc. fls.80 e que é o verso de fls.8 e 61 (ficha de assinaturas de pessoas singulares) onde constam as “condições gerais” do contrato de abertura de conta bancária, designadamente, a condição nº13 com a epígrafe “efeitos não cobrados no vencimento”. E o teor deste documento junto pelo Banco, não foi impugnado pela Autora. Consequentemente, deve aceitar-se como provado o teor do mesmo (art.374 CC).
Assim, a resposta mais adequada a tais quesitos será em conjunto: provado apenas que da ficha de assinaturas consta a condição geral nº13 inserta a fls.80.
Trata-se da condição já aditada e transcrita na al. HH/ dos factos provados.

Foi formulado também o quesito 14º nos seguintes termos:
A Autora deliberou em conjunto com os demais titulares da conta que a correspondência a esta respeitante seria endereçada para a Rua Francisco Filipe Reis nº6, 1º esq.?
Mereceu resposta “não provado”.
Certo é também que na ficha de assinaturas da abertura de conta junta a fls. 8 e 60 consta “morada da correspondência R. Francisco Filipe Reis nº6 – 1º esq., Alhandra, 2600 Vila Franca de Xira”.
E o teor deste documento não foi impugnado pelas partes, pelo que o mesmo é de aceitar como provado.
Assim, a resposta mais adequada ao referido quesito será:
provado que a morada de correspondência postal é a que consta da ficha de fls.8.
Trata-se do conteúdo da al. II/ dos factos provados já aditada.

2.
Contrato de conta bancária solidária
Por acordo entre o A. Manuel e o Banco Réu, em 1/8/91 foi aberta uma conta de depósitos à ordem na agência de Sacavém do Banco Réu, figurando como 1ª titular a Autora, como 2º titular o referido A. Manuel e como 3ª titular a Ana Paula.
Trata-se de um contrato de abertura de conta, também denominado de contrato de conta bancária ou simplesmente depósito bancário. Mediante ele o seu titular, ou alguém a seu mando, deposita e confia ao Banco dinheiro ou títulos de crédito constituindo-se este na obrigação de lho restituir nas condições entre ambos convencionadas.
As “condições gerais” deste tipo de contrato regulam, no geral, o modo e a forma da abertura em si da conta e o modo da sua movimentação, manutenção e encerramento, bem como a forma da comunicação postal entre cliente e banqueiro e residualmente, nos casos omissos, é corrente remeter para os “usos bancários e legislação bancária. ” Elas têm a natureza típica de cláusulas contratuais gerais,
No caso, trata-se de uma conta bancária colectiva, pois foi aberta e constituída em nome de vários titulares.
Mas foi convencionado o regime da solidariedade, isto é, trata-se de uma conta solidária, pois pode ser movimentada por qualquer dos titulares individual e livremente, devendo o banqueiro entregar-lhe até a totalidade do saldo. O regime da solidariedade da conta respeita apenas às relações entre o banqueiro e o cliente na medida em que fixa o regime da movimentação do seu saldo pelos seus titulares.
Na conta solidária, como é o caso, e nada se estipulando, presume-se que todos os titulares da conta comparticipam em partes iguais no saldo, por força do art.516 CC, isto é, que todos os titulares são comproprietários do saldo da conta em partes iguais (sendo também usada a expressão “propriedade dos fundos”). Pode, no entanto, ser elidida tal presunção, nos termos gerais, estipulando-se ou provando-se que são diferentes as quotas de cada titular no saldo ou que o mesmo é propriedade de apenas um deles (parte final do art. 516 CC). Ao banqueiro é de todo indiferente saber a quem pertencem os fundos depositados, pois a relação contratual é estabelecido apenas entre ele e os titulares da conta. Aliás, mesmo que o saldo da conta seja pertença de apenas um dos titulares, o banqueiro cumpre a sua obrigação de depositário entregando a totalidade do saldo a outro titular, por efeito do regime convencionado da solidariedade da conta (art.512 e 528 nº1 CC).A questão da propriedade do saldo respeita, pois, apenas às relações entre os vários titulares da conta, a ela sendo alheio o banqueiro.
Estas matérias foram objecto de pronúncia dos tribunais, concretamente, pelos acórdãos publicados na CJ - RP 13/11/2000 V-188, STJ 17/6/99 II-152, RP 14/1/98 I-25, RL 12/5/98 III-94, STJ 27/1/98 I-42, RP 4/3/97 II-189.

Importa ainda definir qual a natureza do contrato de depósito bancário.
Normalmente tem sido considerado como um contrato de depósito irregular, atento o disposto no art.1205 CC já que as quantias depositadas na conta bancária são fungíveis, sendo regido pelas normas do mútuo (ac. RL 18/5/82 CJ III-97 e STJ 8/10/91 BMJ 410º-805).
No entanto, como se anuncia no ac. RL 22/1/2002 CJ I-78 (relator Ant. Geraldes), doutrina mais recente tende a acentuar que o depósito bancário constitui um contrato atípico, de natureza complexa, com início na abertura de conta, a qual passa a enquadrar sucessivas operações a débito e a crédito e outras prestações inseridas no chamado “serviço de caixa”. Ele envolve ainda a operação de conta-corrente, o dever de o banqueiro receber os depósitos, de restituir ao depositante o saldo, de entregar a terceiro indicado pelo titular da conta, de o informar e fazer comunicações, conforme o clausulado geral.
Mas seja qual for a natureza do depósito bancário, o que é certo é que a lei manda aplicar ao depósito irregular, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo (art.1206 CC). Isto é, quando o banco aceita do seu cliente quantias para depositar, o banco obriga-se a restituir-lhas logo que aquele lhas solicite e conforme o convencionado.

Ora, a conta de depósitos à ordem em causa foi constituída em 1/8/91 através do depósito de dois cheques no valor de 10.000.000$00 e 3.800.000$00 que eram da exclusiva pertença da Autora, figurando como seus titulares esta, o A. Manuel e a A. Paula. Com esse saldo foi constituída uma contra a prazo em 14/2/92 (alínea E e F).
Mas logo em 18/3/93 o co-titular A. Manuel deu ordem ao Banco Réu para transferir da conta a prazo para a conta à ordem a quantia de 3.000.000$00 e nesse mesmo dia solicitou que essa mesma quantia fosse transferida para a conta da Mala Moderna Lda. a fim de amortizar parte da dívida que esta tinha para com o Banco Réu, o que o Réu fez (alínea I e J dos factos provados).

3.
Legitimidade e validade da ordem dada por um dos contitulares da conta solidária para transferir a quantia de 3.000.000$00
Sobre a questão da eventual inadmissibilidade da transferência da quantia de 3.000.000$00 da conta a prazo para a conta à ordem e desta para a conta de terceiro (Mala Moderna Lda.), diga-se que a mesma é líquida e clara face ao regime estipulado da solidariedade da conta. Como qualquer dos titulares pode movimentar livre e individualmente a conta, podendo retirar o saldo parcial ou totalmente, sem necessidade da intervenção dos demais co-titulares, nenhum obstáculo existe a que o co-titular A. Manuel possa transferir, como transferiu, parte do saldo para a conta de terceiro. E o Banco Réu eximiu-se da sua obrigação cumprindo a ordem recebida face ao mesmo regime de solidariedade da conta, sendo-lhe de todo alheia a finalidade e motivação da operação bem como a consideração de eventuais prejuízos para os demais titulares da conta. É que, nos termos do art.512 nº1 (parte final) CC, cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.
Por isso, nenhuma responsabilidade é de assacar ao banqueiro.
Aliás, não se compreende a indignação da Autora pelo facto de o Banco ter cumprido a ordem de transferência dos 3.000.000$00 para a conta da Mala Moderna Lda. dada pelo co-titular A. Manuel. Na verdade, ela tem obrigação de saber o regime de conta que escolheu ou aceitou, bem como o que isso implica e, se não sabia, tinha a obrigação de se informar. E, no regime da conta-solidária, é sabido que qualquer dos co-titulares pode esgotar a totalidade do saldo em seu exclusivo proveito, mesmo sabendo que o mesmo fundo depositado não é sua pertença. Aliás, no art.10º da p.i. a Autora mostrou bem conhecer os efeitos da abertura de uma conta solidária, nunca tendo alegado o seu desconhecimento da natureza da mesma.
Não sendo o saldo pertença do A. Manuel, como de facto se provou, e tendo ele utilizado em seu proveito parte dele, como sucedeu, é questão que respeita apenas aos titulares da conta nas suas relações entre si, visto que a questão da propriedade do saldo da conta é de todo alheia ao banqueiro depositário, como acima se disse.

Atente-se que, face ao percurso das operações bancárias havidas (transferência da quantia de 3.000.000$00 do depósito a prazo para depósito à ordem, ambos em nome dos mesmos titulares, e deste para a conta de depósito à ordem de que é titular terceiro, a fim de poder ser paga uma parte do financiamento feito pelo Banco Réu e este terceiro), apenas houve mera movimentação da conta bancária solidária de que é co-titular a Autora e não compensação de créditos do Banco sobre a mesma conta.

4. Conta solidária a prazo dada como garantia de empréstimo de terceiro.
A conta a prazo aberta em nome da Autora, A. Paula e A. Manuel foi dada por este como garantia de um empréstimo bancário no valor de 10.000.000$00 contraído por terceiro (Mala Moderna Lda.).
É correcta a argumentação exposta na sentença recorrida: se qualquer dos titulares podia levantar a totalidade do saldo (independentemente de os fundos respectivos serem ou não seus), também poderia constituir débitos, fazer aplicações financeiras ou constituir depósitos a prazo e, por maioria de razão, onerar o depósito para garantir obrigações próprias ou alheias.
No fundo, quem pode o mais, pode o menos.
“Se um titular pode, sozinho, esgotar o saldo, também poderá, sozinho, constituir débitos, junto do banqueiro que impliquem, por via da compensação, esse mesmo esgotamento” – M. Cordeiro o c. pg.256.

5. Compensação
Muito se tem discutido sobre a admissibilidade da compensação de créditos do banco depositário sobre o saldo de conta bancária de que é titular o devedor.
Sobre esta questão debruçou-se especialmente Meneses Cordeiro in Da Compensação pg.241 ss. cuja posição seguimos.
“ Coarctado na garantia que sempre significa a possibilidade de compensar, o banqueiro irá ser mais parcimonioso na concessão de crédito; poderá, ainda, exigir mais garantias ou elevar as taxas de juro, num conjunto de medidas que dificultarão o desenvolvimento do comércio e da economia...A compensação, devidamente assumida, será um dos instrumentos mais naturais, mais justos e mais inócuos de fazer baixar os custos do crédito e, em geral, dos serviços financeiros”
Sucede que foi convencionada a compensação, pois ela consta de cláusula contratual geral, concretamente, da condição geral nº13 constante de fls. 80 nos seguintes termos: o Banco reserva-se o direito de debitar na conta os efeitos aceites por qualquer dos titulares , domiciliados ou não nessa conta, bem assim como as despesas e demais encargos, mediante aviso antes da data do vencimento, desde que não receba indicações em contrário.
Anote-se que a Autora não alegou desconhecer esta condição geral nem que a mesma lhe tivesse por qualquer modo sido ocultada. Aliás, foi a própria Autora quem juntou o documento de fls. 8 em cujo verso se encontra a referida condição geral nº13. Aceitando o documento aceita-o na sua totalidade já que não questionou qualquer das condições gerais ou particulares dele constantes. E o seu sentido é claro, nem o mesmo foi objecto de dúvida ou de diferente interpretação pela Autora.
Desde já se afirma que o Banco cumpriu a obrigação de comunicação, pois, pre-avisou que iria proceder à compensação, sendo certo, ainda, que não foi dada pelos co-titulares da conta qualquer indicação em contrário, isto é, da oposição concreta a qualquer operação de compensação, designadamente, à aqui em causa.

Por outro lado, a compensação é admitida - e não pode ser afastada - desde que verificados os requisitos legais e observado o modo da sua efectivação previstos no art. 847 e 848 CC. Só é excluída nos casos concretos referidos no art. 853 CC. Um dos casos em que não é admitida é quando o devedor a ela tiver renunciado. Daí que não seja a prévia autorização do depositante a permitir a compensação um pressuposto da sua legitimação. Como se conclui no douto ac. RL 22/1/2002 CJ I-78 (relator António Geraldes), “por isso, em vez de se defender a legitimidade da compensação da existência de um acordo estabelecido entre as partes, ainda que por adesão a um clausulado proposto pelo banco, parece mais correcto realçar um acordo no sentido do afastamento de um direito que, em geral, se inscreve na esfera do credor no preciso momento em que passa a ser titular do crédito”.

Esta cláusula 13ª não viola qualquer dispositivo da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais nem, de resto, foi invocada pela Autora qualquer desconformidade da mesma com qualquer das suas normas.
Convenhamos que a transcrita cláusula introduz mecanismos de ordem prática, agilizadora, facilitadora e útil, tanto para o Banco como para o cliente, referentemente à concessão de crédito e sua liquidação.
Mas “a compensação convencional, previamente acordada em abertura de conta...é a solução mais indicada e mais desejável. Previne litígios e, sendo devidamente acompanhada das competentes informações, protege totalmente os particulares” – Meneses Cordeiro o. c, pg.244.

Mas a questão essencial que se põe neste momento é a seguinte:
Pode o Banco compensar o seu crédito sobre o depositante titular de um depósito a prazo ?
No sentido favorável, ac. STJ 7/2/91 in BMJ 404º pg.397, e contra, mas num contexto algo diferente, ac. STJ 19/7/79 BMJ 289º pg.345. Para outros, nunca pode haver lugar à compensação – ac.RP 12/10/89 CJ IV-215.
A falta de “homogeneidade” do crédito e do débito a compensar prevista no art.847 nº1 b) CC parece obstar à compensação, na medida em que o depósito a prazo não é “mobilizável” a qualquer momento visto que ele é constituído a benefício de ambos os contraentes, do depositante, que prefere a sua imobilização com fruição dos juros convencionados, e do banqueiro depositário, que conta com ele pelo prazo convencionado para o seu giro comercial. Na verdade, o depósito a prazo não é da mesma espécie e qualidade (condição imposta pelo referido preceito).
Mas, como afirma M. Cordeiro o c. pg.250, “já assim não será – ou não será necessariamente – quando o banqueiro possa “modificar” unilateralmente a natureza do depósito, designadamente tornando-o mobilizável”.
Aplicando-se ao depósito bancário as regras do mútuo (art.1206 CC), como se disse, pode o mutuário fazer antecipar o pagamento do mútuo, isto é, a restituição do depósito a prazo desde que satisfaça os juros por inteiro vencidos e vincendos até ao termo do prazo por que fora constituído esse depósito a prazo, por força do art.1147 CC.
Por isso, o mesmo Autor conclui a fls.251 que “no tocante a depósitos a prazo, o banqueiro pode usar o correspondente crédito para efeitos de compensação:
- sem condicionalismos, logo que o prazo se tenha vencido;
- pagando antecipadamente os juros antes do vencimento por via dos artigos 1147 e 1206 do Código Civil.

No caso dos autos, de facto, o Banco comunicou à Autora que na data do vencimento do depósito a prazo iria pagar-se da livrança através do referido depósito (ver al. N dos factos provados), isto é, o Banco aguardou o termo do depósito a prazo para o tornar mobilizável e fazer operar a compensação.

Outra questão: e poderá também o Banco, credor de um dos
titulares, operar a compensação com o saldo duma conta solidária a prazo?
Também aqui há divergência na jurisprudência. Pela negativa: ac. RL 27/6/95 CJ III-136 (por falta de reciprocidade de créditos e falta de autorização de todos os contitulares), RC 3/12/96 CJ V-35, STJ 11/3/99 I-147, RL 6/5/99 CJ III-84, RC 24/10/2000 CJ IV-41. Pela positiva: ac. STJ 8/10/91 BMJ 410º-805. Com mais frequência a jurisprudência tem admitido a compensação apenas na parte referente à quota presumida que cabe ao devedor do banqueiro: por todos, ver ac. STJ 1/10/96 CJ III-33 e RL 12/5/96 CJ III-94.
Como dá nota M. Cordeiro o c. pg. 253, na doutrina, Alberto Luís in Direito Bancário pg.167-168 só admite a compensação com contas colectivas no caso de ser expressamente convencionada, Paula Camanho in Do Contrato de Depósito Bancário admite a compensação quando solicitada pelos depositantes ou algum deles, enquanto que Antunes Varela in Das Obrigações em Geral 7ª ed. 2º vol. Pg.703 admite a compensação na medida do direito do credor adstrito ao débito.

Mas a solução do problema reside na própria natureza da solidariedade da conta bancária. O regime da solidariedade foi o escolhido pelos três titulares da conta e aceite pelo Banco em benefício e no interesse de ambos, pois dela advêm vantagens e desvantagens para ambos.
Como se disse, nas contas solidárias, qualquer dos seus titulares pode movimentar a totalidade do seu saldo, reduzindo-o a zero, e até tornar o saldo devedor através do saque a descoberto sem que a questão da titularidade dos fundos possa ser oponível ao banqueiro. E este, como devedor/depositário, pode escolher qualquer um dos credores solidários titulares da conta a quem satisfaça a prestação, exonerando-se da sua obrigação, nos termos do art.528 nº1 e 512 nº1 CC.
E por força desse regime “se um titular pode, sozinho esgotar o saldo, também poderá, sozinho, constituir débitos, junto do banqueiro que impliquem, por via da compensação, esse mesmo esgotamento”.
Por isso, “o banqueiro, perante uma conta solidária, pode compensar o crédito que tenha sobre algum dos seus contitulares, até à totalidade do saldo” – M. Cordeiro o c. pg.256.
Só assim não será caso tenha havido convenção em contrário ou renúncia à compensação por parte do devedor (art.853 nº2 CC) o que, no caso presente, não houve.

Conforme carta da Ré de 16/7/93 junta a fls.22, como a livrança não foi paga, o Banco fez-se pagar através de parte (5.000.000$00) do depósito a prazo dado em penhor como garantia para pagamento da referida livrança. Mas, apesar de a livrança se ter vencido em 18/5/93, o Banco aguardou pelo termo do depósito a prazo (12/8/93) para se fazer compensar através do mesmo e pelo valor de apenas 5.000.000$00 em 13/8/93 (doc. fls.24) – ver al. N e O dos factos provados.

Por via dupla podia o Banco obter pagamento dos 5.000.000$00 titulados pela livrança não paga na data do vencimento. Por um lado, por via da compensação, mesmo tratando-se, como se trata, de conta solidária a prazo, e no termo deste, como se disse. Por outro lado, por via do penhor legitimamente constituído sobre a conta solidária a prazo por um dos seus titulares, como acima se disse também.
Por isso, é de manter a sentença absolutória recorrida.

Impõe-se, no entanto, a seguinte observação residual. A titularidade dos fundos depositados na conta solidária é inoponível ao banqueiro depositário, como acima se expôs, o que afasta desde logo a procedibilidade do pedido principal e mesmo do subsidiário.
Certo é que, por efeito da presunção legal estabelecida pelo art. 516 CC, são iguais as quotas de cada um dos titulares da conta. A entender-se ( como a Autora entende ao formular o pedido subsidiário) que o Banco apenas podia operar a compensação do seu crédito sobre um dos titulares até ao montante que tal titular disponha no depósito, isto é, até um terço do montante do depósito, então, a quota da Autora foi preservada porque, e conforme al. H e P, da conta inicial de 13.800.000$00 restou na conta à ordem 1.139$20 e na conta a prazo 5.745.461$70. Consequentemente, não podia proceder o pedido subsidiário.

Improcedem as conclusões do recurso.

Assim, acorda-se em confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Lisboa 11 de Maio de 2004

Jorge Santos
Vaz das Neves
António Geraldes