Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | EDUARDO AZEVEDO | ||
| Descritores: | CONTRATO DE TRABALHO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ELEMENTO CONTRATUAL PRESUNÇÃO LEGAL | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/18/2015 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Texto Parcial: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
| Sumário: | 1- Somente dos factos considerados provados é que se deve partir para a aplicação do direito. 2- Nos termos do artº 640º do CPC, sob pena de rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de fato, o recorrente deve nomeadamente particularizar, individualizar ou determinar quer a factualidade que considera incorretamente julgada quer o modo como pretende que seja fixada dentro da que foi alegada pelas partes. 3- O elemento contratual é imprescindível na discussão sobre a natureza do vínculo jurídico que se vem a concretizar na prática e a sua relevância é exponenciada consoante o caso pelo quadro legal no âmbito do qual é celebrado. 4- A demonstração da factualidade conducente à presunção de existência de contrato de trabalho cabe a quem invoca o direito. 5- Como presunção legal pode ser ilidida por prova em contrário. 6- A não demonstração implica por sua vez que se deva fazer a prova dos elementos constitutivos da relação laboral como a de desenvolver uma actividade remunerada para outrem e sob a autoridade e direcção do respectivo beneficiário. 7- Constatando-se a existência de indícios estes devem ser avaliados no seu conjunto ou globalidade, na medida em que que os fatos que lhes dão origem são em regra dubitativos face à actividade que se prossegue, o modo como se exerce e o tempo disponível para a sua prestação. 8- Nestas circunstâncias, não sendo bastantes, a presunção é desde logo ilidida e então trata-se nomeadamente de uma prestação de serviços. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
| Decisão Texto Parcial: | Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa. I-RELATÓRIO: AA em 22.04.2013 propôs acção com processo comum contra BB, pedindo que seja declarado ilícito o despedimento promovido por esta, em consequência, condenada a pagar-lhe a retribuição mensal devida desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal, 5.000,00€ por danos não patrimoniais, 11.538,60€ de créditos laborais vencidos e não pagos, 5.769,30€ de indemnização, em substituição da reintegração e 7.802,75€ de subsídios de alimentação vencidos e não pagos, acrescidos de juros legais desde a data de vencimento até efectivo e integral pagamento. Alegou, em síntese: foi contratada pela R em 01.01.2007, para desempenhar as funções de ajudante familiar de apoio a idosos, sob a sua autoridade, direcção e fiscalização; aquando da admissão para assinar foi-lhe apresentado um contrato denominado de contrato de prestação de serviços; no entanto a sua prestação de trabalho configura verdadeira relação de trabalho subordinado; a partir do mês de Junho de 2011e no ano de 2012 a R passou a exigir-lhe a emissão de “recibos verdes”; por carta de 08.05.2012, foi informada que ia ser dispensada uma vez completo o aviso prévio de 30 dias, o que configura um despedimento ilícito; e prefere a indemnização à reintegração, tendo créditos laborais. Ocorreu audiência de partes, sem que conciliação houvesse. A R contestou, alegando, em súmula: a caducidade do direito à ação; a refutação das qualificações jurídicas; e a impugnação de factualidade nomeadamente por a desconhecer, além da A nunca ter ficado sujeita ao cumprimento de ordens específicas na execução do seu trabalho e a horário de trabalho. A A respondeu, opondo-se à exceção de caducidade, designadamente alterando o petitório no sentido também do “contrato existente entre A. e R. ser declarado como contrato de trabalho”. Foi proferido despacho saneador, julgando-se retificada a petição inicial, improcedente a dita excepção e dispensada a selecção da matéria de facto assente e da base instrutória. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e proferiu-se sentença em 22.10.2014, pela qual foi julgada improcedente a acão, em consequência a R absolvida dos pedidos. A A recorreu, recurso que foi admitido a subir nos autos e com efeito meramente devolutivo. Concluiu deste modo: (…) Não se contra-alegou. O processo foi com vista ao MP que foi de parecer no sentido da improcedência do recurso, ao que a recorrente respondeu pugnando no sentido deste. Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir. As questões a conhecer revertem, sucessivamente e sem prejuízo do conhecimento das posteriores encontrar-se prejudicado pelo das anteriores, para a impugnação da matéria de fato, a natureza jurídica do vínculo entre as partes como laboral, a ilicitude do despedimento e os créditos laborais advenientes. Os factos considerados assentes na sentença são: “A)- Em 02/01/2007, autora e ré celebraram o contrato que denominaram de “Contrato de Prestação de Serviços de Ajudante Familiar”, cuja cópia consta de fls. 20 a 23 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida. B)- O trabalho da autora consistia no desenvolvimento de tarefas próprias de apoio a idosos, atendendo em concreto às suas necessidades. C)- Essas tarefas eram constituídas, no essencial, pelas que integram os cuidados de higiene e alimentação nomeadamente preparar e aquecer a refeição e caso necessário ajudar o idoso a tomar as refeições. D)- Também nas tarefas a desempenhar se encontrava incluído prestar auxílio à higiene pessoal dos idosos. E)- A coordenadora do trabalho da autora era a Assistente Social, CC. F)- De quem recebia indicações sobre os cuidados a prestar, em função das necessidades dos utentes, nomeadamente através de reuniões que ocorriam semanalmente, onde também eram distribuídas pelas ajudantes familiares as casas a visitar. G)- Na cláusula sexta do contrato, referido em A), ficou estabelecido que a ré pagaria à autora a quantia de € 3,81 por cada hora de serviço prestado. H)- A ré abonou à autora, no período compreendido entre Janeiro de 2007 e Março de 2012, as importâncias indicadas nos recibos cujas cópias constam de fls. 24 a 58 e 62 a 73 dos autos, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos. I)- Os instrumentos utilizados pela autora, necessários ao desempenho das suas funções, eram fornecidos pela ré e pelos familiares dos utentes. J)- A ré emitiu a declaração cuja cópia consta de fls. 74 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, relativa às importâncias pagas à autora no ano de 2012 a título de trabalho independente, datada de 20/01/2013. K)- A ré enviou à autora a carta cuja cópia consta de fls. 75 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 08/05/2012, através da qual a informou que o contrato, referido em a), cessaria os seus efeitos 30 dias após a recepção da mesma carta.”. A primeira parte do recurso que nas motivações se nomeia como “Da Prova Documental (não valorada)”, afigura-se-nos que através dos documentos que aí são nomeados não visa propriamente alterar qualquer fatualidade que esteve presente na decisão de mérito na sentença, após a decisão relativa à mesma. Deve-se à circunstância da sentença, nessa parte, remeter diretamente para documentos, aí dando-os como integralmente por reproduzidos. Mas, assim sendo, faria antes sentido trazer à colação o seu teor já na fase da apreciação do direito face à fatualidade em questão. E outra não poderá ser a interpretação do recurso, agora aludindo-se também às conclusões pois, é consabido, somente dos factos considerados provados é que se deve partir para a aplicação do direito e a introdução no debate de pretensos factos instrumentais, complementares ou concretizadores resultantes dos meios probatórios produzidos só teria pertinência na fase da instrução e de julgamento da primeira instância da matéria de facto (artºs 5º e 607º do CPC) e na da apreciação por esta instância de eventual modificação da decisão sobre os factos que deles se socorre, o que a recorrente não requerer expressamente. Efectuada esta prevenção, avancemos para a reapreciação da prova gravada, nos termos expressos pela recorrente, e que obviamente subentende, agora sim, a impugnação da decisão relativa à matéria de fato com fundamento na errada apreciação da mesma. Está prevista no artº 640º do CPC, o qual, sob pena de rejeição, impõe diversos ónus de especificação no recurso. Segundo esse preceito deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (nº 1). Isto implica, no que interessa, que o recurso só seja conhecido neste âmbito se a recorrente cumpriu tais ónus de particularizar, individualizar ou determinar quer a factualidade que considera incorretamente julgada quer o modo como pretende que seja fixada dentro da que foi alegada pelas partes. Nestes termos e face ao já referido quanto à circunstância de no momento em que se retiram ilações dos factos apurados, salvo alguma razão especial que não divisamos no caso concreto o tribunal já não dever conformar essa atividade à prova que antes se teve à disposição, há que atender apenas ao que respeita à demonstração da alegada sujeição a horário de trabalho que provem do nº 14 da petição (A R fixou o horário de trabalho da A., de 2.ª a 6.ª Feira, das 9 horas às 17h30m, com 1 hora de intervalo para almoço). Em qualquer caso, sem que se possa concordar em absoluto com o modo algo impreciso e, por outro lado, excessivo relativamente ao dito alegado como se formulou a concretização da decisão sobre esta matéria (alª I) das conclusões (“… a Autora assim como demais trabalhadoras designadas por ajudantes familiares cumprem um horário, a saber todos os dias chegam de manhã, até às 9h ao Centro de Dia GG e ao final do dia regressam (17h) para deixar as chaves das casas que vão visitar, conforme escala feita pela CC”), porque se apreende inequivocamente, sem prejuízo do exercício do contraditório, a singularidade que se pretende ver provada. Por isso, o mesmo já não acontece quando no recurso se refere de forma genérica a outra matéria de fato, aludindo-se, por exemplo, que “não se compreende porque razão o Tribunal não deu como provado os restantes pressupostos do n.º 1 do art.º 12.º do Código de Trabalho, a saber: I - A alínea a) do n.º 1 do art.º 12.º , a saber: “a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;“). Ademais, a existir matéria na petição que eventualmente possa assimilar-se a essa previsão legal (nºs 15 a 17 da petição) a mesma não deixa de ter já algum respaldo nos factos assentes e sobretudo tem sentidos confluentes com outra matéria alegada pelo que não pode ser tomada de forma unívoca. E face ao estatuído nos artigos 64º, 65º e 72º do CPT resulta que se impõem que a prova oral a produzir em audiência de julgamento se faça em torno de factos concretos e não sobre grandes categorias caraterizadores de factos, reconduzindo a diversas condutas, cenários, ocorrências e eventos, sob pena mais uma vez de condicionar a legítima atuação das partes e a descoberta da verdade material. Quanto à matéria sindicada a atender, cujo ónus de prova é da recorrente (artº 342º, nº 1, do CC, invocou-se para o efeito o depoimento das testemunhas CC e DD, a primeira, assistente social e que quanto ao Centro de Dia GG já foi coordenadora de serviço domiciliário e agora é diretora do mesmo serviço, e de DD Que até 2014 foi diretora do estabelecimento. Como pretende a recorrente que ela fique assente, como se pode constatar do acima enunciado excede o estritamente alegado e nessa parte ou não deve se tida em conta ou não necessita de ser fixada para se obter dela as conclusões que se pretende retirar sobre a natureza do vinculo jurídico estabelecido entre as partes. De qualquer modo não foi considerada provada mesmo nos limites do alegado pela recorrente. Na sentença justificou o desfecho da prova quanto à fatualidade não assente deste modo: ” Não se consideraram provados quaisquer outros factos, em virtude de não ter sido produzida prova bastante, por quem tinha o respectivo ónus, sobre a sua ocorrência (art. 342º, nº 1, do Cód. Civil). Nomeadamente, não foram considerados provados os restantes factos alegados pela autora na petição inicial, já que, por um lado, os documentos juntos e destinados à respectiva prova não se consideraram aptos para o efeito e, por outro, a testemunha a eles indicada não tinha conhecimento directo dos mesmos, sendo que, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (art. 414º do CPC)”. É claro que a recorrente invoca o depoimento de tais testemunhas que foram antes oferecidas pela R para depor baseada no princípio da aquisição processual. Aqui procede corretamente (artº 413º do CPC). No entanto, os depoimentos dessa testemunhas bem como da testemunha EE, cozinheira, que está zangada com a recorrente mas de quem já foi amiga e conhece fatos essencialmente sem os constatar diretamente, não apontam, antes pelo contrário, inequivocamente para a factualidade do núcleo central do alegado a propósito na petição inicial. Deles não se logra retirar que o recorrente observasse um horário pré-determinado pela recorrida como período diário pelo qual a obrigação contratada teria que ser cumprida sob pena de inadimplência. Como resulta meridianamente dos depoimentos das testemunhas CC e DD a variedade de início e final dessa prestação impunha-se desde logo em função do específico resultado a conseguir: satisfação de necessidades dos idosos segundo um plano de cuidados a prestar que não tinha a pretensão de se determinar pelo conjunto de tarefas que cada caso exigia, parte que seria deixado ao melhor critério, capacidade e discernimento da recorrente, ficando-se pela avaliação das necessidades. De resto a dimensão do tempo é referida pela primeira testemunha, não indo para além disso, como “todos os dias de manhã as senhoras chegam, vão buscar a chave ao chaveiro, ao fim do dia entregam” ou “as pessoas umas querem às 8h30, outras às 9h, (...) vão buscar as chaves ao centro, ao chaveiro e deslocam-se para os domicílios. … eu não lhe posso dizer que ela fez isso todos os dias mas é a rotina normal”, ou ainda em que relativamente a alguns dos utentes nem as chaves se encontrariam no Centro de forma a que a recorrente necessitasse de aí deslocar para se encaminhar para os respectivos domicílios. A segunda testemunha referiu que o tempo despendido não era igual todos os dias. A terceira depôs no sentido da recorrente mencionar-lhe que às vezes se dirigia aos domicílios às 8 horas e às vezes mais cedo até e nem tinha hora de refeição. Quanto às chaves ia às vezes buscá-las. Chegados aqui, sublinhando-se o sobredito, dir-se-á que a prova testemunhal é insuficiente para se afirmar que em cumprimento do contrato a recorrente tinha que satisfazer um número de horas diárias e semanais, com fixação pela recorrida do seu inicio e termo diário, que, além disso, determinava ainda um intervalo de tempo de descanso durante esses períodos diários, como como se tudo se tratasse de um período normal de trabalho. Ademais num quadro contratual em que o pressuposto seria só por si de inclusivamente atenuar a necessidade do seu estabelecimento já que o seu cumprimento sempre implicaria maleabilidade temporal que não comprometesse as exigentes atribuições da recorrida no auxilio ao utentes que com ela contratualizaram serviços no âmbito, principalmente, do apoio social. E toda esta apreciação da prova pelo tribunal a quo tem ainda a seu favor o importante princípio da imediação da prova que não pode ser descurado no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaiu a mesma, segundo o princípio da liberdade de julgamento. No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial. O julgador deverá avaliar o depoimento em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência (Miguel Teixeira de Sousa, A Livre Apreciação da Prova em Processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII, 1984, 115 e seg). Outra não poderia ser então a decisão do tribunal a quo face também ao disposto no artº 414º do CPC (ainda artº 346º do CC). Improcede, pois, em tais termos a impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Quanto à subsunção dos factos assentes ao direito temos que a recorrente alega que mesmo apenas os que assim foram considerados na sentença seriam suficientes para se reconhecer da laboralidade do vínculo jurídico que se veio a desenvolver entre si e a recorrida. Vinculo iniciado em 02.10.2007 com a celebração de um contrato denominado pelas partes como “Contrato de Prestação de Serviços de Ajudante Familiar”, singularizado permanentemente pela invocação do DL nº 141/89 de 28.04 como diploma ao abrigo do qual tal ocorria, pelo que a recorrente obrigava-se a executar as funções, nos termos do respetivo artº 4º (cláusula 2ª), bem como se comprometia a cumprir as obrigações previstas do seu artº 11º. O quadro normativo desse diploma tem como motivo justificativo no seu preâmbulo a resposta à acção social constituída pelos chamados ajudantes familiares para a qual se mostrava ser conveniente estabelecer um quadro legal de referência definindo o perfil de pessoas que iria praticar o apoio social através do exercício da sua actividade, envolvendo formação para a delicada missão de quem vai prestar cuidados e a realização de tarefas normalmente da responsabilidade dos membros de uma família, bem como a regularização da forma como a actividade deverá ser desenvolvida, o tipo de relação jurídica que deve existir entre o ajudante familiar e a instituição responsável pela resposta social e ainda os direitos e deveres de ambas as partes decorrentes dessa relação. Designadamente, o artº 1º define objectivo nesse sentido e o artº 2º define o que se considera como ajudante familiar, a saber aquele que em articulação com as instituições de suporte, presta serviços domiciliários imprescindíveis à normalidade da vida da família nos casos em que os mesmos serviços não possam ser prestados pelos seus membros. Por seu turno nos artºs 9º, 10º e 16º determina-se que “a realização da prestação de serviços de ajuda domiciliária é ajustada com as instituições de suporte”, essa prestação de serviço “deve constar de documento”, sendo que pela “celebração do contrato os ajudantes familiares não adquirem a qualidade de empregado, funcionário ou agente das instituições de suporte” e os mesmos “ficam obrigatoriamente enquadrados pelo regime de segurança social dos trabalhadores independentes”. Retorna-se ao contrato, onde: na cláusula 3ª a recorrente vinculou-se a uma actividade prestada a utentes abrangidos pela BB sem prejuízo de poder ser alterada, de harmonia com as necessidades de apoio social e as prioridades a definir pela recorrida; segundo a cláusula 4ª a actividade da recorrente seria dirigida a um número de famílias/utentes, de acordo com indicadores estabelecidos para o apoio domiciliário, salvaguardadas as especificidades e constrangimentos da instituição de suporte; e a cláusula 10ª estabelecia que o contrato não conferia à recorrente a qualidade de funcionário, agente ou trabalhador efectivo do quadro de pessoal da recorrida não existindo no âmbito do mesmo subordinação jurídica ou direcção efectiva. Independentemente do que pudesse valer juridicamente esta última cláusula perante o princípio justificado sobretudo pela situação de subordinação económica em que o trabalhador se encontra face ao empregador da irrenunciabilidade ou da indisponibilidade de direitos laborais que contra a mesma depusessem, primeiramente haverá que atentar que a recorrente nunca questionou a sua liberdade contratual de firmar o acordo com a recorrida, nem invocou qualquer divergência entre a vontade real e o declarado e, menos ainda, qualquer falta ou vício de vontade (artºs 236º a 257º do CC) susceptível de questionar a validade do contrato. Assim, o elemento contratual não sendo incontornável é todavia imprescindível na discussão sobre a natureza do vínculo jurídico que na prática veio a concretizar-se, relevância exponenciada pelos ditames legais acima explicitados (ac do STJ de 08.10.2008, www.dgsi.pt; segundo este aresto se bem que se vinque que “o que releva realmente não é a denominação escolhida pelas partes nem os termos em que foi redigido, mas sim os termos em que o mesmo foi executado”, haverá de qualquer modo que levar em conta ”quer o “nomen juris” que as partes lhe deram, quer as próprias cláusulas, uma vez que tais indícios … assumem importância para ajuizar da vontade das partes no que diz respeito ao regime jurídico que elegeram para regular a relação”). O mesmo será dizer se a execução se manteve na esfera contratual cujo elemento literal é indefectível no sentido de que o seu objecto é um resultado do trabalho intelectual ou manual da recorrente, na letra do artº 1154º do CC, que consagra a noção de contrato de prestação de serviços (aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra um certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição), assim, no caso concreto traduzido no apoio social a utentes abrangidos pelas atribuições da recorrida. Ou, apesar desse elemento, no domínio de uma relação laboral e, por isso, subordinada juridicamente à recorrida como beneficiária da actividade da recorrente, nos termos dos artºs 1152º do CC e 10º do CT/2003 e 11º do CT/2009. Para o primeiro preceito contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante uma retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta, consubstanciando os outros dois preceitos idêntica noção. Refere a recorrente que ao se provar que “para a execução do trabalho a trabalhadora recebia indicações sobre os cuidados a prestar aos utentes e das casas a visitar da coordenadora da R., a CC, que a R. pagava à A. um valor em contrapartida do trabalho prestado (€ 3,81, por cada hora) e que os instrumentos utilizados pela autora, necessários ao desempenho das suas funções eram fornecidos pela ré e pelos familiares dos utentes, dever-se-ia ter concluído pela verificação da existência de uma presunção de laboralidade, nos termos do art. 12º, n.º 1, als. a), b) e d) do CT”. Apontou ainda para o efeito o teor da documentação referente aos “recibos” dos montantes que recebia da recorrida, como a sua constância e número mecanográfico lá inscrito; a entrega só em 2013, referente ao ano anterior, de uma declaração de rendimento auferido a título de trabalho independente, admitindo-se assim, “a contrario sensu” que os rendimentos desde 2007 a 2011 foram auferidos como trabalho dependente; e o recebimento de instrumentos implicava também o recebimento das instruções quanto ao modo de realização do serviço de apoio domiciliário. Deste modo conclui pela existência de subordinação jurídica já que verifica-se alienabilidade, dever de obediência e sujeição a poder disciplinar. Mas não se pode estar de acordo. Vejamos. A determinação da lei aplicável redunda na aplicação dos Códigos de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27.08, e de 2009, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12.02, às circunstâncias que se verificaram nos períodos de tempo em que se encontram em vigor, atendendo por sua vez a que a que nos termos do artº 7º desta última foi ressalvada a aplicação do respectivo código aos factos integralmente passados no domínio do anterior (cfr António Monteiro Fernandes in Direito do Trabalho, Almedina, 2012, 128, segundo o qual: “supomos, pois, que é aplicável aos contratos existentes em cada momento a presunção que nesse momento conste da lei vigente”). Constata-se dos fatos assentes que as características identificadoras da relação entre as partes não se diferenciam ao longo do seu exercício, não se suscitando qualquer rutura na sua sucessão. É comum na doutrina e a jurisprudência o entendimento que o critério distintivo aqui a observar encontrar-se-á na subordinação jurídica: relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato porque pressupõe ordens, regras ou orientações do empregador. Esse critério pode ser preenchido de forma tipológica (com os elementos do tipo negocial do contrato de trabalho ou, por contraponto, dos negócios jurídicos em que a prestação é desenvolvida como a vontade das partes perante a relação jurídica que envolverá o modo de direcção da actividade e a integração na estrutura organizativa), ou indiciária (com os indícios de subordinação jurídica). Quanto aos segundos socorremo-nos dos que foram elencados no acórdão do TR de Lisboa de 23.10.2013 (www.dgsi.pt), catalogados como internos e externos. Segundo o mesmo, os internos são: o local onde é exercida a actividade; a ocorrência em instalações do empregador ou em local por este indicado; a existência de horário de trabalho fixo; a utilização de bens ou utensílios fornecidos pela contra-parte; a remuneração tomando como unidade o tempo de trabalho (e não a tarefa), e ainda com pagamento de subsídios de férias e de natal; a realização da actividade pelo sujeito obrigado, com impossibilidade, em regra, de recurso a colaboradores, visto a natureza “intuito personae” do contrato de trabalho; a assunção do risco pelo destinatário da actividade; o modo de execução do contrato, mormente cumprindo o credor da prestação da actividade obrigações específicas do contrato de trabalho como o direito a férias ou a prestação de informações impostas pelo artº 106 do CT; e a inserção do prestador da actividade numa estrutura produtiva. Por seu turno refere que os externos incluem: o desenvolvimento da actividade apenas para um beneficiário da prestação; o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade e a sua inscrição como trabalhador dependente; a sua inscrição na Segurança Social como trabalhador dependente (mormente nas folhas do beneficiário da actividade); e a sua sindicalização. A demonstração da factualidade conducente à presunção de existência de contrato de trabalho introduzida pelos códigos de trabalho sob análise cabe a quem invoca o direito. E como presunção legal pode ser ilidida por prova em contrário (artº 344º, nº 1, do CC; presunção juris tantum). A não demonstração implica por sua vez que se deva fazer a prova dos elementos constitutivos como referido: a de desenvolver uma actividade remunerada para outrem e sob a autoridade e direcção do respectivo beneficiário. Acresce, a presunção de laboralidade no CT de 2003 na versão inicial e na que aí foi introduzida pela Lei nº 9/2006, de 20.03 (artº 12º - presume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição), é constituída essencialmente pela reprodução dos ditos elementos da noção de contrato de trabalho. Sem autonomia é praticamente nula a sua função útil. O CT de 2009 é que configura a presunção pela enunciação de diversos indícios, podendo bastar apenas a ocorrência de dois deles (a actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado (nº 1, alª a); os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade (b); o prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma (c); seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma (d); e o prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa (e); cfr entre outros António Monteiro Fernandes, ob citada, 126-127, Pedro Romano Martinez in Direito do Trabalho, Almedina, 2013, 307, e Bernardo Lobo Xavier in Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2014, 366 e segs). Contudo, é comum também afirmar-se que face à constatação da existência de indícios estes devem ser avaliados no seu conjunto ou globalidade, na medida em que que os fatos que lhes dão origem sendo em regra dubitativos face à actividade que se prossegue, o modo como se exerce e o tempo disponível para a sua prestação. Nessas circunstâncias, não sendo bastantes, a presunção é desde logo ilidida e então trata-se nomeadamente de uma prestação de serviços. No caso, a matéria de facto provada tem por início o contrato que aquando a sua celebração se manifesta por si com inequivocidade sobre a vontade das partes: aderir-se, sem reservas, a um quadro legal em que a prestação de serviços deve ser tomada como imperativo para quem envereda pela respectiva atividade de apoio social a terceiros por intermédio da instituição responsável pela resposta social. Deve-se lançar mão dos indícios internos que a mesma revela, os quais resultam da circunstância da recorrente ter uma coordenadora do trabalho, da mesma “receber indicações sobre os cuidados a prestar, em função das necessidades dos utentes, nomeadamente através de reuniões que ocorriam semanalmente, onde também eram distribuídas pelas ajudantes familiares as casas a visitar”, de ter sido contratado receber a recorrida a quantia de 3,81 € por cada hora de serviço prestado e a forma como a mesma foi paga ao longo dos anos, e dos instrumentos utilizados pela recorrente, “necessários ao desempenho das suas funções, eram fornecidos pela ré e pelos familiares dos utentes”. Essa factualidade tem eventual conexão com o teor das alªs a), b) e d) do nº 1 do artº 12º do CT/2009. No entanto, não deixam de se revelar como indícios ténues de vínculo laboral, não assumindo consistência necessária para essa qualificação, em primeiro lugar atento ao seu significado em si, em segundo lugar visto o que já se referiu sobre o contrato formalizado, em terceiro lugar dada a outra factualidade que os contraria. Efetivamente, não relevam em absoluto porque são aspectos também compatíveis com o objectivo a atingir pelo mesmo contrato. Não resulta que fosse trabalho a realizar no próprio Centro nem em local controlado pela recorrida. Ter uma coordenadora do trabalho e desta receber-se indicações nos termos ficados assentes não significa necessariamente haver inserção numa estrutura hierárquica e organizativa da recorrida. Em principio isso meramente traduz uma racionalização de meios tendencialmente como única forma de se conseguirem os fins das atribuições da recorrida. De forma alguma tal factualidade tem reflexo em eventual exercício de poder disciplinar sobre a recorrente quanto ao incumprimentos dessas indicações como se houvesse uma relação laboral e não se demonstra quiçá a necessidade de justificar faltas e obter autorização para férias. O alcance da uniformidade da quantia que sucessivamente a recorrente ia recebendo mensalmente a que se reportavam os documentos do respectivo processamento, nomeados formalmente como de vencimento até Dezembro de 2008, e da própria definição contratual do valor hora de prestação de actividade tem sempre como condicionante o próprio objecto do contrato e a fórmula de formação desse valor os quais se entende como inviabilizadores de outras modalidades compensatórias que nem a recorrente indica. Da declaração de rendimentos referente ao ano de 2012 a título de trabalho independente só por si não se pode inferir o contrário quanto ao resto do tempo em que vigorou o contrato e, como se sabe, não se apurar um fato não implica que se demonstrou o contrário. No que concerne aos instrumentos utilizados que eram fornecidos não só pela recorrente como pelos familiares dos utentes, não se pode olvidar, o que torna menos diferenciador para o desiderato da recorrente, que é próprio da execução de um contrato de prestação de serviços que ao obrigado devam ser fornecidos os meios necessários a essa execução, por força do disposto no artº 1167º, alª a), do CC aplicável ex vi artº 1156º do mesmo diploma. Igualmente depõe contra esse desiderato a tributação fiscal a que a recorrente estava sujeita (trabalho independente). O mesmo acontece com os ditos documentos de processamento nos quais se associa o valor a prestação de serviços e referem prestador de serviços – ajudante familiar. Ao número mecanográfico neles apostos não se atribuiu significado e nem a recorrente o convoca. A recorrente emitiu “recibos verdes”. A recorrente não demonstra que recebesse subsídios de férias e de natal e a sujeição a um horário de trabalho. É assim manifesta a insuficiência quantitativa e qualitativa de indícios, e, assim, pelo fracasso da prova da subordinação jurídica não se logrando demonstrar a existência de um contrato de trabalho e, não havendo contrato de trabalho, outra não poderá ser a decisão senão a de que é improcedente o recurso, já que também ficará necessariamente prejudicada a apreciação da alegada ilicitude do despedimento e dos créditos a ela associados. Decisão: Acordam os Juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida. Custas pela recorrente. ****** Lisboa,18-11-2015 Eduardo Azevedo Celina Nóbrega Paula Santos | ||
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