Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1894/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
IMPUGNAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Não se impugnando a decisão sobre a matéria de facto, com fundamento em depoimento cujo registo se alegou ser irregular, a arguição da sua nulidade não tem influência na decisão da causa.
II. Sem a exclusão da imputabilidade do devedor, não releva a causa de impossibilidade da prestação, para a extinção da obrigação.
(O.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I. RELATÓRIO

P deduziu, no 4.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, embargos de executado contra o (IFADAP), que, através de execução para pagamento de quantia certa, lhe exigiu o pagamento da quantia de 2 157 876$00, tendo alegado, para tanto, entre o mais, que cumprira os termos da atribuição do subsídio de apoio à exploração agrícola, excepto na parte em que ficou impossibilitado, por razões alheias à sua vontade ou de força maior.
Recebidos os embargos, contestou o embargado, que, alegando o incumprimento do contrato, concluiu pela sua improcedência.
Realizado o julgamento, com gravação, foi proferida a sentença, julgando-se improcedentes os embargos de executado.

Não se conformando, o embargante recorreu e, tendo alegado, formulou, no essencial, as seguintes conclusões:
a) Há deficiência no registo dos depoimentos das testemunhas do embargado, que é geradora de nulidade (art.º 201.º, n.º 1, do CPC).
b) Os factos alegados nos artigos 11.º a 17.º e 24.º a 27.º da petição de embargos, dados como não provados, foram incorrectamente julgados.
c) O apelante viu-se, por razões que não lhe podem ser imputáveis, na impossibilidade objectiva de cumprir o contrato na sua totalidade (art.º 790.º, n.º 1, do CC).
Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da sentença recorrida, considerando-se os embargos procedentes.

Contra-alegou o embargado, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em causa, essencialmente, a nulidade do registo da prova, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e o não cumprimento do contrato.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Na sentença foram dados como provados os seguintes factos:
1. O IFADAP intentou contra o embargante a acção executiva, com fundamento na certidão de dívida, constante de fls. 4 da execução, reclamando o pagamento da quantia de 2 157 876$00.
2. Por escrito de 16 de Outubro de 1996, denominado contrato de atribuição de ajuda no âmbito do Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal (PAMAF), o embargante, na qualidade de beneficiário, e o IFADAP acordaram na atribuição da ajuda ao investimento, na quantia de 2 086 825$00 e prémios anuais, como consta do documento de fls. 8 da execução.
3. Para o efeito, o embargante apresentou o projecto de investimento, constante de fls. 9 a 13 da execução, o qual foi aprovado pelo embargado.
4. Nesse projecto, o embargante propunha-se plantar um hectare de terreno com 125 nogueiras, dois hectares com 307 pés de cerejeira e 3,5 hectares com 123 pés de castanheiro.
5. Por carta de 28 de Janeiro de 1997, o embargado comunicou ao embargante a necessidade de lhe remeter documentos comprovativos dos investimentos efectuados.
6. Por carta registada com aviso de recepção, recebida em 25 de Março de 1997, o embargado reiterou o pedido anterior, concedendo novo prazo para o efeito.
7. Por carta de 18 de Abril de 1997, o embargado informou o embargante de que autorizava a conclusão das plantações até Março de 1998, mencionando que a área mínima de plantação era de 0,5 ha de superfície contínua e as áreas para as quais fora aprovado o projecto.
8. Por carta de 30 de Junho de 1998, o embargado informou o embargante de que lhe era concedido prazo até Novembro de 1998, para a conclusão dos investimentos, findo o qual, não havendo comprovativo dos investimentos, o projecto seria cancelado e o contrato rescindido.
9. Por carta de 27 de Maio de 1999, o embargado informou o embargante de que, em virtude de apenas ter efectuado parte da plantação proposta e aprovada, iria proceder à revisão das condições iniciais de aprovação do projecto, reduzindo o valor do subsídio de 2 086 825$0 (já recebidos) para 786 833$00 e o montante total do prémio complementar de 1 700 000$00 para 657 400$00.
10. Nessa carta, pedia-se ainda ao embargante que, em virtude da redução efectuada, procedesse à devolução da quantia de 1 299 992$00.
11. Por carta datada de 1999, o embargado informou o embargante de que havia sido concedido prazo até Março de 2000, para a total e completa concretização dos investimentos aprovados, advertindo que, findo tal prazo, a exploração seria visitada para a avaliação da concretização dos investimentos e revisão das condições contratuais, caso aqueles não se encontrassem concluídos.
12. Em Junho de 2000 a exploração agrícola do embargante foi visitada por técnicos do embargado, os quais observaram o que consta do relatório de fls. 33 a 36.
13. Por carta datada de 10 de Julho de 2000, o embargado comunicou ao embargante que, na sequência daquela visita, procedeu à revisão das condições iniciais de aprovação do projecto, passando o valor do subsídio de 2 086 825$00 para 428 292$00 e o montante total do prémio complementar de 1 700 000$00 para 448 800$00.
14. Em função dessa revisão, o embargado solicitou ao embargante que procedesse à devolução de 1 658 533$00 de subsídio e 36 200$00 de prémio.
15. Em virtude da realização de obras de alargamento de um caminho, parte do terreno do embargante, em área não determinada, veio a ficar inutilizado para cultivo.
16. Muitos dos castanheiros plantados pelo embargante vieram a falecer por razões desconhecidas.
17. O embargante é agricultor e as suas habilitações literárias são a instrução primária.

2.2. Descrita a matéria de facto dada como provada, importa conhecer do objecto recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, designadamente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Preliminarmente, não pode deixar de se observar que o recorrente não apresentou as conclusões, de “forma sintética”, cujo ónus vem estabelecido no art.º 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), correspondendo as mesmas, praticamente, à reprodução integral da motivação. Não se formalizou, todavia, o convite à sua correcção, por tal se vir a revelar, na prática, como inútil e indesejável factor de morosidade.

Antes da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, interessa considerar a questão da nulidade decorrente da alegada deficiência do registo dos depoimentos das testemunhas indicadas pelo embargado.
A possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzidas, no processo civil, foi consagrada através do DL n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, vindo a ter total implementação a partir da entrada em vigor das alterações ao processo civil operadas pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e pelo DL n.º 180/96, de 25 de Setembro.
Procurou-se, com essa nova garantia proporcionada às partes, criar “um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto”.
Essa garantia implicou, também, como consta igualmente do respectivo relatório, a “criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação” (art.º 609.º-A do CPC).
A Relação poderá alterar a decisão do tribunal da 1.ª instância sobre a matéria de facto, designadamente, quando do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou quando, tendo ocorrido a gravação dos depoimentos, tiver sido impugnada, nos termos do art.º 690.º-A, a decisão com base neles proferida – al. a) do n.º 1 do art.º 712.º do CPC.
É dentro do contexto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que a falta de gravação de depoimento reveste relevância, pois só nessa medida pode influir no exame ou na decisão da causa. Não sendo a impugnação baseada em depoimento obtido em semelhantes condições, a arguição da nulidade, por omissão de formalidade prescrita pela lei, carece de utilidade.
Ora, no caso vertente, o recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, com fundamento nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo embargado, pelo que, não se impondo a sua reapreciação, a arguição da nulidade não tem qualquer influência na decisão da causa.
De qualquer modo, os depoimentos de duas dessas testemunhas, determinantes para a convicção do Tribunal (fls. 81), conseguem ouvir-se, permitindo a sua compreensão, não obstante se reconheça certa deficiência do seu registo, que dificulta mas não impossibilita a sua reapreciação
Assim, e independentemente da questão do prazo da respectiva arguição, quer por falta de relevância, quer por não ter sido omitido o acto prescrito por lei, improcede a arguida nulidade do registo da prova.

Passando, agora, à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pretende o recorrente que os factos alegados sob os artigos 11.º a 17.º e 24.º a 27.º da petição de embargos sejam considerados provados (a base instrutória foi dispensada). Para o efeito, baseia-se nos depoimentos das três testemunhas que arrolou e nos documentos de fls. 13 e 14, que juntou com a petição de embargos.
A matéria relevante dos referidos artigos 11.º a 13.º encontra-se dada como provada nos n.º s 2 a 4 da decisão sobre a matéria de facto, coincidente com a descrição dos respectivos factos, não fazendo sentido a respectiva alegação.
Por outro lado, a matéria dos artigos 14.º e 15.º é de todo irrelevante para a decisão da causa. Efectivamente, o que interessa saber, para confronto com o projecto de investimento de plantação de árvores aprovado, é o número de árvores na realidade plantadas, não tendo importância alguma, em face da obrigação de resultado cujo cumprimento se discute, os actos preparatórios da plantação.
Relativamente à matéria dos artigos 16.º e 17.º, que respeita ao número de árvores plantadas, foi dado como provado o que consta do n.º 12, que também remete para o relatório de fls. 33 a 36, no qual se especifica o número de árvores plantadas, diferente do alegado pelo recorrente.
A materialidade provada, alegada pela parte contrária, não foi sequer objecto de impugnação do apelante.
(…)
Assim, não há motivo para modificar a resposta dada.
A mesma fundamentação serve, igualmente, para manter a resposta quanto à matéria do artigo 24.º da petição de embargos (plantação de castanheiros).
(…)
A matéria dos artigos 26.º e 27.º da petição de embargos (replantação de mais 100 castanheiros e os seus custos) é irrelevante nos termos alegados, dada a obrigação de resultado a que o recorrente se vinculou.
Nestas condições, portanto, não procedem as razões invocadas pelo recorrente de impugnação à decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se a mesma sem qualquer alteração, nos termos anteriormente descritos.
Delimitada a matéria de facto provada, resta então analisar a questão de direito substantivo suscitada no recurso, que se prende com o não cumprimento do contrato, por decorrência de uma causa de impossibilidade.
Entre o apelado e o apelante foi celebrado um contrato, mediante o qual o segundo se obrigava a plantar um certo número de árvores numa determinada área de terra, enquanto o primeiro lhe atribuía uma subvenção financeira, no âmbito do Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal (PAMAF), regulado pelo DL n.º 150/94, de 25 de Maio.
Desse contrato resulta que a obrigação assumida pelo apelante constitui uma obrigação de resultado, na medida em que o devedor se vinculou a conseguir um certo efeito útil ou a garantir a produção de certo resultado (ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, págs. 758 e 759, e ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4.ª edição, pág. 71).
O apelante, ao propor-se plantar um certo número de árvores, de várias espécies, em determinada área de terra e num prazo certo, obrigou-se a conseguir ou produzir um resultado, nomeadamente a plantação das árvores e a sua normal conservação.
Nas obrigações de resultado, só a impossibilidade (superveniente) objectiva e não culposa da prestação exonera o devedor, como decorre dos termos do disposto no art.º 790.º do Código Civil.
Assim, a obrigação extingue-se, quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.
Da matéria de facto provada, desde logo, se depreende que o apelante não realizou integralmente a sua prestação, porquanto não plantou as árvores a que se obrigara, quer em termos de quantidade, quer de área, apesar das sucessivas prorrogações do prazo. Com efeito, das 125 nogueiras projectadas, plantou 84, das 307 cerejeiras, plantou 63. Já quanto aos castanheiros, a plantação (141) excedeu o projecto (123). Em termos de área, o relatório mencionado no n.º 12 da matéria de facto relata que a área dos prédios rústicos nem permitia efectuar as plantações previstas no projecto. Sendo a área dos prédios já insuficiente para a concretização do projecto de florestação aprovado, torna-se irrelevante a redução da área, por efeito da obra de alargamento de um caminho.
Por outro lado, não se verifica qualquer situação que tornasse impossível a prestação por causa não imputável ao apelante.
Ficou provado, na verdade, que muitos dos castanheiros plantados vieram a falecer por razões desconhecidas.
Todavia, o desconhecimento das razões da morte das árvores não permite concluir que esse resultado derivasse de caso fortuito.
O caso fortuito, como por todos é sabido, anda particularmente associado à ideia de imprevisibilidade.
Ora, esta ideia não é passível de ser extraída da materialidade provada, na medida em que é ignorada a causa da morte das árvores. Não se pode afirmar, por isso, se a causa da morte corresponde a um caso imprevisível ou previsível.
Dentro deste contexto, portanto, não se pode ter como excluída a imputabilidade do apelante.
Sem a exclusão da imputabilidade do devedor, não releva a causa de impossibilidade da prestação, para a extinção da obrigação.
A impossibilidade da prestação, traduzindo um facto extintivo da obrigação, cabia de ser demonstrada na acção pelo devedor, por imperativo da regra da distribuição do ónus da prova consagrada no n.º 2 do art.º 342.º do Código Civil.
Por isso, não se extinguindo a obrigação a cargo do apelante e não tendo este realizado integralmente a prestação a que se vinculara, não pode deixar de subsistir o direito de crédito a favor do credor.

2.3. Perante o que antecede, é possível extrair em síntese como mais relevante:
1) Não se impugnando a decisão sobre a matéria de facto, com fundamento em depoimento cujo registo se alegou ser irregular, a arguição da sua nulidade não tem influência na decisão da causa.
2) Sem a exclusão da imputabilidade do devedor, não releva a causa de impossibilidade da prestação, para a extinção da obrigação.

Nestes termos, improcede a apelação, sendo caso para se confirmar a sentença recorrida, a qual aplicou correctamente o direito vigente.

2.4. O apelante, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil, as quais, todavia, são inexigíveis por efeito do benefício do apoio judiciário requerido.
III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar o recorrente no pagamento das custas, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário requerido.
Lisboa, 22 de Março de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.)
(Fátima Galante)