Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
495/14.5GCALM.L1–3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: CARTA DE CONDUÇÃO
CADUCIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I – O artigo 130.º do Código da Estrada distingue a caducidade do título, que se verifica, nomeadamente, se ele não for revalidado nos prazos fixados no RHLC, do seu cancelamento, que ocorre se tiverem passado mais de 5 anos sobre a data em que ele devia ser revalidado.
II – A condução de um veículo com a carta de condução caducada constitui a contra-ordenação p. e p. pelo n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada.
III – Consideram-se não habilitados a conduzir veículos aqueles cuja carta de condução tiver sido cancelada, razão pela qual o comportamento é punível neste caso pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. Consubstancia a prática de um crime.
IV – De acordo com a matéria de facto provada, o arguido não tinha conhecimento de que já não se encontrava habilitado a conduzir automóveis porque a carta de condução que tinha sido emitida em seu nome apenas era válida até ele ter completado os 50 anos de idade, tendo caducado nessa data, encontrando-se em 30 de Março de 2014 cancelada.
V – A questão que se coloca é a de saber se essa situação configura um erro sobre a factualidade típica, a que são aplicáveis os n.ºs 1 e 3 do artigo 16.º do Código Penal, ou uma falta de consciência da ilicitude, a que é aplicável o artigo 17.º do mesmo diploma.
VI – No caso, trata-se de um erro da consciência psicológica e não de um erro da consciência ética do arguido, não existindo qualquer embotamento da personalidade, qualquer obstáculo à «apreensão das decisões axiológicas da ordem jurídica», mas uma errada representação de um elemento normativo do tipo – o estar habilitado a conduzir nos termos do Código da Estrada.
VII – Por isto, essa falta de conhecimento de um elemento do tipo objectivo impede a afirmação da existência de dolo do tipo – artigo 16.º, n.º 1, do Código Penal –, o que, aliado à inexistência de qualquer tipo incriminador da condução sem habilitação legal por negligência, implica necessariamente a absolvição do arguido do crime por que tinha sido condenado na 1.ª instância.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

1 – O arguido M foi julgado na Secção Criminal – Juiz 2 – da Instância Local de Almada da Comarca de Lisboa e aí condenado, por sentença de 25 de Maio de 2015, pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, conduta p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 €, tendo sido fixada, desde logo, em 40 dias a duração da prisão subsidiária.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:

1. No dia 30 de Março de 2014, pelas 15:15 horas, na Estrada Nacional 10-1, no Lazarim, na Caparica, concelho de Almada, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula XZ-...-.....
2. O arguido não era titular de carta de condução válida que o habilitasse a conduzir veículos automóveis.
3. Solicitado documento que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículos, o arguido exibiu a carta de condução emitida em 11/08/1999 pela DGV, da categoria B e B1.

4. Todavia, a carta de condução exibida pelo arguido caducou em 17/03/2014 (com a entrada em vigor do Decreto-lei n.º 138/2012, de 05/06), sendo certo que o mesmo não procedeu à sua revalidação.
5. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, querendo conduzir o veículo automóvel.
6. O arguido estava convencido que a carta de condução referida em 3) era válida e o habilitava a conduzir veículos automóveis.
7. O arguido foi condenado:

Por sentença transitada em julgado em 08/02/2010, no âmbito do Processo Comum Singular n.º 456/05.5GELSB, que correu termos no 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial do Seixal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), e na proibição de conduzir pelo período de três meses, pela prática em 12/09/2005 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Por sentença transitada em julgado em 19/06/2014, no âmbito do Processo Sumário n.º 751/14.2GCALM, que corre termos na Instância Local Criminal de Almada, Juiz 2, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), e na proibição de conduzir pelo período de três meses, pela prática em 17/05/2014 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
8. O arguido está desempregado há cerca de cinco anos.
9. Aufere o Rendimento Social de Inserção no valor mensal de € 178,00 (cento e setenta e oito euros).
10. Vive com a mãe.
11. Tem a 4.ª classe.

2 – O arguido interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
I. O arguido M não podia ter sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 02/98, de 03.01,
II. Porquanto foi dado como provado no ponto 6.º dos Factos Provados que o arguido estava convencido que a sua carta de condução era válida e o habilitava a conduzir veículos automóveis.

III. Esta matéria provada enquadra-se no regime do artigo 16/1 e 3 do CP e não no artigo 17.º do citado diploma legal.
IV. No caso dos autos ficou provado que o arguido estava convencido que tinha uma carta de condição válida, por tal facto, uma vez que o aludido crime tem uma estrutura exclusivamente dolosa, não pode o arguido ser condenado por conduzir sem habilitação legal.

V. A sentença violou assim ao artigo 16.º e 17.º do Código Penal.

VI. Impõe-se assim repor a legalidade, aplicando-se a este caso o artigo 16/3 do Código Penal e, consequentemente, absolver o arguido pela prática do crime de que vem acusado, porquanto tal delito não prevê a punição negligente.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, podem, e devem, suprir as nulidades e/ou vícios da decisão recorrida, substituindo-a por Acórdão que revogue a decisão recorrida e, consequentemente, absolva o arguido do crime de que vem acusado.

3 – Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 116.

4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 119 a 123).

5 – A Sr.ª procuradora-geral-adjunta emitiu o parecer de fls. 131 e 132 no qual sustentou que o recurso merecia provimento porque deveria ser aplicado ao caso o disposto no artigo 16.º do Código Penal.

6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – O arguido foi condenado, como se disse, pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, conduta p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro.
Antes de abordarmos a questão suscitada pelo recorrente, importa que nos debrucemos sobre o enquadramento jurídico da conduta.
O Código da Estrada hoje vigente, cuja redacção originária foi dada pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, estabelecia, no seu artigo 125.º, n.º 2, que as cartas de condução eram, em princípio, válidas «para a categoria de veículos e pelo período de tempo nelas averbados». Passado esse período de tempo, as cartas de condução caducavam, prevendo-se que quem, sendo titular de uma carta de condução caducada, conduzisse um veículo fosse punido com a coima prevista no artigo 131.º, n.º 1, desse diploma. Porém, se o condutor tivesse deixado ultrapassar dois escalões etários previstos para a revalidação da carta em diploma próprio, era considerado, para todos os efeitos legais, como não habilitado para a condução de veículos automóveis – artigo 131.º, n.º 2, alínea c), desse Código.
O diploma próprio para o qual o Código da Estrada nesta situação remetia era, em 1994, o Decreto Regulamentar n.º 65/94, de 18 de Novembro, cujo artigo 7.º, n.º 1, estabelecia que o termo de validade das cartas de condução da categoria B, que é essa que para este efeito nos interessa, ocorria, sucessivamente, na data em que o seu titular perfizesse 65 e 70 anos e, posteriormente, de dois em dois anos.
Esse regime manteve-se praticamente inalterado após revisão do Código da Estrada operada pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro[1], e a revogação do Decreto Regulamentar n.º 65/94, de 18 de Novembro, pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 209/98, de 15 de Julho, diploma que aprovou e publicou em anexo o “Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir”. Também neste Regulamento se previa que as cartas de condução da categoria B fossem válidas até que o respectivo titular completasse 65 e 70 anos e, depois dessa idade, de dois em dois anos, devendo, em cada uma dessas datas, ser renovadas.
A condução de um veículo com uma carta caducada era punível com a coima prevista no n.º 5 do artigo 130.º do Código, salvo se o condutor tivesse deixado ultrapassar sucessivamente dois escalões etários previstos para a revalidação, caso em que se considerava, para todos os efeitos legais, como não habilitado para conduzir – n.ºs 2 e 4 do mesmo preceito legal.
Não obstante o Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, ter dado nova redacção ao artigo 130.º do Código da Estrada, o quadro jurídico antes traçado manteve-se, no essencial, inalterado a partir de 1 de Outubro de 2001, data em que entraram em vigor as alterações ao Código da Estrada introduzidas por este diploma.
O mesmo se poderá dizer quanto às alterações ao Código da Estrada introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro. Porém, nessa mesma data foi publicado o Decreto-Lei n.º 45/2005, cujo artigo 4.º, pouco depois alterado pelo Decreto-Lei n.º 103/2005, de 24 de Junho, alterou de modo significativo o prazo de validade das cartas de condução da categoria B.
Essas cartas, que, desde o termo da vigência do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39 672, de 20 de Maio de 1954[2], caducavam pela primeira vez aos 65 anos, passaram a caducar aos 50, 60, 65 e 70 anos e, posteriormente, de 2 em 2 anos – artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 45/2005, de 23 de Fevereiro.
Este diploma previu, no seu artigo 10.º, n.º 2, que as cartas de condução anteriormente emitidas se mantivessem válidas até 1 de Janeiro de 2008, vigência que foi alargada pela nova redacção dada ao n.º 5 do artigo 4.º desse diploma pelo Decreto-Lei n.º 103/2005, de 24 de Junho. Nele se estabeleceu que o titular de carta de condução emitida antes da entrada em vigor daquele diploma mantinha a habilitação até que ocorresse o primeiro termo de validade então introduzido, ou seja, até que completasse 50 ou 60 anos.
O quadro legal até aqui vigente veio a ser clarificado com a alteração ao Código da Estrada introduzida pela Lei n.º 72/2013, de 3 de Setembro, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2014, e com a publicação do novo “Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir” aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de Julho.
O artigo 10.º do novo RHLC manteve a obrigação de os titulares das cartas de condução cujo prazo de validade terminasse quando os seus titulares completassem 65 anos as revalidarem quando perfizessem 50 e 60 anos.
O artigo 130.º do Código da Estrada distinguiu a caducidade do título, que se verifica, nomeadamente, se ele não for revalidado nos prazos fixados no RHLC, do seu cancelamento, que ocorre se tiverem passado mais de 5 anos sobre a data em que ele devia ser revalidado.
A condução de um veículo com a carta de condução caducada constitui a contra-ordenação p. e p. pelo n.º 7 do artigo 130.º do Código, considerando-se não habilitados a conduzir veículos aqueles cuja carta de condução tiver sido cancelada, razão pela qual o mesmo comportamento é punível neste caso pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. Consubstancia a prática de um crime.

8 – Descrito, em termos breves, o regime legal pertinente, importa analisar a concreta situação deste arguido.
Ele nasceu, como resulta da sentença, no dia 17 de Março de 1959.
Como se pode ver da respectiva carta de condução, junta a fls. 8, ele foi autorizado a conduzir veículos da categoria B a partir de 4 de Novembro de 1986, sendo a carta de condução originalmente válida até 16 de Março de 2024, véspera da data em que ele completará 65 anos.
Essa data foi, porém, alterada pelo citado Decreto-Lei n.º 103/2005, de 24 de Junho, passando a ser válida apenas até que ele completasse 50 anos, ou seja, até 16 de Março de 2009, tendo caducado no dia seguinte.
Em face da legislação actualmente em vigor, essa carta deve considerar-se cancelada 5 anos depois, ou seja, a partir de 16 de Março de 2014.
Por isso, quando em 30 de Março de 2014 o arguido conduziu o veículo referido nos autos, ele já não era titular de carta de condução.
A comprovada conduta do arguido preenche, portanto, o tipo objectivo da incriminação contida nos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. No dia 30 de Março de 2014 o arguido conduziu um automóvel na via pública sem para tal estar habilitado nos termos previstos no Código da Estrada.
Vemos portanto que a narração dos factos provados contém diversas valorações jurídicas e que estas nem sempre são correctas ou, pelo menos, rigorosas[3].

9 – Chegados aqui, importa que nos debrucemos sobre a questão suscitada pelo recorrente, que é a de determinar a relevância do facto de se ter considerado provado que o arguido estava convencido que a carta de condução emitida em 1986 era válida e que o habilitava a conduzir veículos automóveis.
A questão é portanto a de saber se estamos perante um erro sobre a factualidade típica a que são aplicáveis os n.ºs 1 e 3 do artigo 16.º do Código Penal ou perante uma falta de consciência da ilicitude prevista no artigo 17.º do mesmo diploma.
A solução dessa questão é, para nós, clara.
De acordo com a matéria de facto provada, o arguido não tinha conhecimento de que já não se encontrava habilitado a conduzir automóveis porque a carta de condução que tinha sido emitida em seu nome apenas era válida até ele ter completado os 50 anos de idade, tendo caducado nessa data, encontrando-se em 30 de Março de 2014 cancelada. Trata-se de um erro da consciência psicológica e não de um erro da consciência ética do arguido. Não existe nesta situação qualquer embotamento da personalidade, qualquer obstáculo à «apreensão das decisões axiológicas da ordem jurídica»[4], mas uma errada representação de um elemento normativo do tipo – o estar habilitado a conduzir nos termos do Código da Estrada.
Essa falta de conhecimento de um elemento do tipo objectivo impede a afirmação da existência de dolo do tipo – artigo 16.º, n.º 1, do Código Penal –, o que, aliado à inexistência de qualquer tipo incriminador da condução sem habilitação legal por negligência, implica necessariamente a absolvição do arguido do crime por que tinha sido condenado na 1.ª instância.

10 – Apenas um reparo sobre a persistência do uso pela nossa jurisprudência de frases como a que consta do ponto 5 da matéria de facto provada[5] para afirmar, de uma forma global, o carácter doloso da conduta e a existência de consciência da ilicitude. Para além da imprecisão de cada um dos termos utilizados, a que vemos atribuídos os mais diversos sentidos, e do fundamento material do juízo de culpa que implicitamente lhe subjaz[6], uma frase como a que consta do ponto 5 não tem a plasticidade necessária para dar resposta ao actual estado da doutrina do crime e às suas exigências, não permitindo descrever adequadamente o objecto dos elementos cognitivo e volitivo do dolo, nem sequer distinguir as diferentes modalidades do dolo.
Também por isso não se atendeu a qualquer possível contradição existente entre os pontos 5 e 6 da matéria de facto provada.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido M, revogando a decisão recorrida e absolvendo o arguido do crime por que foi condenado em 1.ª instância.
Sem custas.

²

Lisboa, 25 de Novembro de 2015


(Carlos Rodrigues de Almeida)


(Vasco de Freitas)
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[1] Ver o artigo 130.º da nova redacção do Código da Estrada.
[2] No final da vigência desse Código as cartas de condução não profissionais caducavam aos 40, 50, 60, 65 e 70 anos e, a partir dessa idade, de 2 em 2 anos – n.º 7 do artigo 47.º desse diploma.
[3] Se a carta de condução do arguido se encontrasse caducada, então a sua conduta consubstanciava a contra-ordenação p. e p. pelo artigo 130.º, n.º 7, do Código da Estrada.
[4] DIAS, Jorge de Figueiredo, in «Direito Penal – Parte Geral», Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 548.
[5] Aí se diz que o «arguido agiu livre, deliberada e conscientemente».
[6] A afirmação da existência de culpa por poder actuar de outra forma.