Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1152/11.0YXLSB.L1-6
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: REFORMA DE TÍTULO
CASO JULGADO
PORTADOR DE BOA-FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - De acordo com o disposto no art.º 1072.º, al.ª c), do CPCiv./1995 - lei aplicável no âmbito de anteriores autos tendentes à reforma de título perdido ou desaparecido - se o título não aparecer até ser proferida a decisão, a sentença que ordenar a reforma declarará sem valor o título desaparecido.
- A razão de ser deste preceito legal radica na necessidade de substituição do título perdido ou desaparecido, de molde a que, ordenada e realizada a reforma, fique sem valor o título originário, uma vez substituído por título novo, não podendo ocorrer um efeito multiplicador dos títulos - prejudicial ao respectivo devedor - que o extravio não poderia justificar.
- Se o dispositivo da sentença de reforma desse título não refere expressamente a sua perda de valor, mas ordena a emissão de novo título, como tal substitutivo do originário/desaparecido, tal dispositivo necessariamente contém, de forma implícita, a legal declaração de perda de valor.
- É de admitir o chamado caso julgado implícito, que tem lugar quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência lógica ou necessária, outra a que o caso julgado deve estender-se.
- Ao portador subsequente de título originário objecto de reforma, que invoca ser portador de boa fé, cabe demonstrar essa boa fé.
- Tal portador de boa fé não fica inibido de exercer o direito emergente da respectiva relação subjacente, nem de accionar outros direitos, recorrendo da sentença de reforma ou fazendo valer a responsabilidade do requerente da reforma, se este a tiver requerido de má fé.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa

                                                         ***
          I – Relatório ([1])
J..., com os sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra “A...”, também com os sinais dos autos, pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de € 5.262,37, acrescida de juros de mora desde a data de entrada da p. i. em juízo e sobre o montante de € 4.489,17 até efectivo pagamento.
Para tanto, alegou, e em suma:
- ser legítimo portador, por os ter adquirido a M..., de três títulos de capitalização, emitidos pela R. e a que estão subjacentes dois contratos de seguro de capitalização, celebrados entre a R. e M..., pelos quais a R. se obrigou a pagar ao portador, aquando do resgate, o valor de capital garantido para cada um deles e que é de € 1.496,39 cada um;
- não ter a R., na data de vencimento dos títulos, apesar de interpelada, pago ao A. os montantes em causa, antes recusando o pagamento e informando que os pagou àquela M...;
- quando o deveria ter feito ao portador dos títulos, tendo, por isso, o A. a receber a quantia de € 4.489,17, acrescida de juros desde a data de vencimento dos títulos.
Contestou a R., requerendo a intervenção principal provocada daquela M... e alegando, em síntese, que os títulos em causa foram reformados por sentença, transitada em julgado em Maio de 2006, a pedido da subscritora dos mesmos, tal M..., e pagos à mesma, na sequência de pedido de resgate, pelo que os títulos apresentados pelo A. não têm qualquer valor.
Respondeu o A., impugnando o alegado pela R. e argumentando não lhe ser oponível a sentença que determinou a reforma dos títulos, adquiridos de boa fé, por não ter sido ele parte no processo e tal constituir violação do espectro do caso julgado.
Indeferida a requerida intervenção principal e proferido despacho saneador tabelar – sem condensação –, foi realizada a audiência de discussão e julgamento, com decisão da matéria de facto, pela forma constante de fls. 178 e segs. dos autos.
Após o que foi proferida sentença – datada de 16/12/2013 –, julgando a acção improcedente, com a consequente absolvição da R. do pedido.
Inconformado, interpôs recurso o A., apresentando a sua alegação, sintetizada nas seguintes

Conclusões:
«1.ª - Salvo o devido respeito, que e obviamente muito, vem a mui douta sentença recorrida inquinada por um vício na legal subsunção do acervo de factos apurado nos autos, qual seja, a perfilhada oponibilidade ao Recorrente da sentença proferida em processo de reforma de títulos de que foram objectos os que subjazem ao pedido;
2.ª - Contudo, a concreta sentença proferida no processo que, sob o n.º 270/06.0TB VNG, correu termos pelo 6.° Juízo Cível do Vila Nova de Gaia, em que foi Requerente M... e Requerida a aqui R. – ordenou a reforma dos títulos mas não determinou a perda de validade dos títulos reformados.
3.ª - A “perda de valor” a que alude a norma prevista na alínea c) do artigo 1.072.° do vetusto Código do Processo Civil não opera ex lege. A “perda de valor” depende da prolação de decisão judicial que o determine. Se assim não fosse, ficaria vazia do qualquer sentido a referência contida na norma, “... a sentença que ordenar a reforma declarará sem valor o título desaparecido”.
4.ª - Entende o douto aresto decorrido, salvo o devido respeito, mal, que a perda de valor dos títulos é “... uma mera decorrência da sentença proferida em processo de reforma de títulos ...”. Todavia, para que a – juridicamente muito relevante – perda de valor dos títulos fosse uma mera decorrência da sentença, teria de existir uma norma substantiva que assim o determinasse. E não faria qualquer sentido a letra da norma contida na referida alínea c) do artigo 1.072.º do Código de Processo Civil anterior.
5.ª - A sentença que determina a reforma e ordena a emissão de novos títulos produziu uma alteração, potestativa, no ordenamento jurídico, nos estritos termos em que decide. A legal injunção “... a sentença que ordenar a reforma declarará sem valor o título desaparecido” visa proteger os interesses da emitente dos títulos. A concreta sentença reformante em apreço não o fez e a Recorrida conformou-se com ela, deixando precludir a salvaguarda do seu interesse, pelo que a decisão se sedimentou nos precisos em que foi prolatada.
6.ª - Sendo que, “Os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objecto, e a fonte ou título constitutivo. Por outro lado, é preciso atender aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade – faz lei – para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo. Não pode, portanto, impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo quo ela mesma não definiu.”
7.ª - Por outro lado, prevê também a lei que a decisão reformatória determine a sua própria publicitação. O que se compreende tendo em vista a salvaguarda da segurança do comércio jurídico e dos legítimos interesses de terceiros de boa-fé. Todavia, a sentença em apreço também não o faz, o que terá forçosamente de inquinar a sua oponibilidade a terceiros.
8.ª - Ainda, note-se a decisão proferida pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, segundo o qual “A decisão judicial que decreta os títulos originários sem valor e manda reformá-los, não produz caso julgado quanto ao titular dos mesmos, que não tem qualquer intervenção no processo de reforma ...”
9.ª - Em suma, na sua conceptualização, a acção de reforma por extravio de títulos ao portador, pelas alterações que a sua procedência determina na ordem jurídica comporta um duplo risco: um risco para o emitente dos títulos em ver duplicada a existência deles e putativamente duplicada a obrigação de pagamento quo os títulos comportam; e um risco para o terceiro portador de boa-fé, de ver esvaziado o direito de crédito titulado pelos documentos que tem em sua posse.
10.ª - Daí que a lei acautele, em nome da segurança do comércio jurídico, o risco do emitente pela legal provisão da declaração de perda de validade dos títulos reformados, e o risco do terceiro pela determinação da publicitação da decisão.
1.ª - Com uma enorme diferença na tutela dos interesses, pois que ao passo que o emitente dos títulos é parte na acção de reforma deles, o terceiro portador de boa-fé pode nunca vir a saber que os títulos de que é portador foram objecto do reforma.
12.ª - Na concreta acção de reforma de títulos que o douto aresto sub judice erige como fundamento do sentido que perfilha deixou o R. Recorrido, aí Requerido, precludir a salvaguarda do seu risco ao conformar-se com a prolação de uma decisão que se abstém de determinar a perda do valor dos títulos que emitiu.
13.ª - E mais, a decisão reformante, ao abster-se de ordenar a publicitação da (inexistente) perda de valor dos títulos cuja reforma ordena, posterga, rectius inviabiliza, a salvaguarda dos legítimos interesses de terceiros de boa-fé, pelo que não pode ser oponível ao Recorrente.
14.ª - Por tudo, padece o douto decisório recorrido da ilegalidade que resulta da violação das normas convencionais contidas nos próprios títulos, designadamente o n.º 1 da cláusula 7.ª e a cláusula 8.ª, do artigo 425.º e ss. do Código Comercial e, bem assim, da norma contida na alínea c) do artigo 1.072.º do Código de Processo Civil antigo, pela insustentabilidade de leitura que dela faz a sentença sub judice.».
Pugna, assim, pelo provimento do recurso, revogando-se a decisão recorrida.
Contra-alegou a R., pugnando pela confirmação da sentença.
***
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, após o que foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem.
Considerando-se nada obstar ao conhecimento do mérito do recurso, foi proferida decisão sumária, pela qual foi julgada improcedente a apelação.
É desta decisão sumária que vem interposta a presente reclamação para a Conferência (cfr. fls. 255 e segs.), pretendendo a parte recorrente/reclamante, para além de arguir nulidade processual da decisão singular proferida – nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1, do NCPCiv., mediante a invocação de inexistir remissão para decisão anterior sobre o mesmo objecto e ocorrer omissão de instrução com cópia de decisão precedente –, que seja reapreciada, colegialmente, a matéria do recurso, por forma a conhecer-se do seu objecto, tendo em conta que a decisão de reforma não determinou, expressamente, a perda de valor dos títulos reformados, para o que reitera a argumentação expendida na sua anterior alegação.
A parte contrária, notificada, nada veio dizer.
Apreciando e decidindo, em Conferência:

II – Âmbito do Recurso
Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas respectivas conclusões, pressuposto o objecto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil actualmente em vigor e aqui aplicável quanto ao regime do recurso (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([3])([4]), estava em causa na presente apelação, restrita à matéria de direito, saber se é (in)oponível ao Apelante (enquanto portador dos títulos) a sentença de reforma, por esta não ter determinado a perda de validade dos títulos reformados, nem a sua própria publicitação.
Já na reclamação para a Conferência são suscitadas, como dito, as questões da nulidade processual da decisão singular e da não determinação, na decisão de reforma, da perda de valor dos títulos reformados.
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III – Fundamentação
A) Matéria de facto
Na 1.ª instância foi julgada provada – de forma incontroversa – a seguinte factualidade:
«1. O A. é portador de três títulos de capitalização, emitidos pela R., com os n.ºs 85463, 85464 e 79082, constantes de fls. 7 e segs.
2. Subjacentes a tais títulos estão dois contratos de seguro de capitalização, a que correspondem as apólices n.ºs 0F03.90.906538 e 0F03.90.907475, celebrados entre a R. e M..., pelos quais a R. se obrigou a pagar ao portador dos títulos, aquando do resgate, o valor de capital garantido por cada um deles, no valor de Esc. 300.000$00.
3. O prazo dos contratos estabelecido foi de 8 anos, com taxa de juro garantida de 3% sobre a prestação líquida de encargos.
4. À apólice n.º 0F03.90.906538 corresponde o título n.º 79082, vencido em 15 de Dezembro de 2006.
5. À apólice nº 0F03.90.907475 correspondem os títulos n.ºs 85463 e 85464, vencidos em 23 de Março de 2007.
6. Nos termos do disposto do n.º 1 do artigo 7.º das Condições Gerais apostas no verso de cada um dos títulos, “O Título de Capitalização é transmissível e ao seu portador são reconhecidos todos os direitos inerentes.”
7. E nos termos do disposto no artigo 8.º das mesmas Condições Gerais, “O pagamento das importâncias devidas pela Seguradora será efectuado ao Portador, mediante entrega do original do título.”
8. A R. nada pagou ao A., que a interpelou em tal sentido, na qualidade de portador dos três títulos identificados.
9. Foi enviada à R., que a recebeu, a carta de fls. 13 e segs., datada de 21-02-2011, solicitando o pagamento dos referidos títulos.
10. A R. respondeu nos termos constantes da carta de fls. 16, referindo que os títulos em causa tinham sido pagos a M..., em 16-06-2006 que, na qualidade de portadora dos títulos, solicitou o seu resgate.
11. M... apresentou à distribuição, no dia 5 de Janeiro de 2006, no 6.º Juízo do Tribunal Judicial de Reforma de Títulos, ao abrigo do disposto no art.º 1069.º em que é Requerida a R. AXA, requerendo a reforma dos títulos referidos acima em 1., alegando o seu extravio, nos termos constantes da certidão de fls. 74 e segs.
12. Por sentença proferida neste processo, datada de 27 de Abril de 2006 e transitada em julgado em 22 de Maio de 2006, foi determinada a reforma dos supra referidos títulos e a emissão de novos títulos, conforme consta da certidão de fls. 74 e segs.
13. A R. procedeu à emissão dos títulos objecto de reforma e ao seu posterior envio, em 23 de Maio de 2006, à subscritora dos mesmos, M..., nos termos constantes de fls. 44 e segs.
14. Na sequência do pedido de resgate apresentado pela subscritora e portadora dos títulos, M..., em 30 de Maio de 2006, a R. procedeu ao pagamento dos mesmos em 16 de Junho de 2006, conforme consta de fls. 49 e segs.».
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         B) O Direito
1. - Da nulidade processual
Como já mencionado, vem arguida a nulidade processual da decisão singular proferida, ao abrigo do disposto no art.º 195.º, n.º 1, do NCPCiv., para o que o Reclamante, notando que naquela decisão se começou por aludir, no âmbito do art.º 656.º do NCPCiv. – referente à decisão liminar do objecto do recurso –, à simplicidade das questões decidendas, “designadamente por terem já sido jurisprudencialmente apreciadas” ([5]), invoca faltar remissão para decisão anterior sobre o mesmo objecto e ocorrer omissão de instrução com cópia de decisão precedente.
Esta parcela da reclamação é admissível, nos termos do disposto no art.º 652.º, n.ºs 3 e 4, do NCPCiv., pelo que dela cabe conhecer.
Dispõe o aludido art.º 656.º do NCPCiv.:
“Quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia”.
Na decisão sumária pode ler-se:
Dado que as questões objecto da causa revestem simplicidade, designadamente por terem já sido jurisdicionalmente apreciadas, será esta julgada em singular, nos termos do disposto no artigo 656° do Novo Código Processo …”.
E é verdade que, lida a decisão sumária dos autos, nela não se descortina qualquer remissão para precedentes decisões jurisprudenciais.
Donde que também não tenha – como não foi – sido junta cópia de qualquer precedente decisão, por não convocada.
Inexiste, assim, como é manifesto, decisão proferida por simples remissão para qualquer precedente decisão jurisprudencial, caso em que seria estranho que se juntasse cópia a que alude o art.º 656.º citado.
Torna-se manifesto, pois, ser deslocada a referência na decisão singular a questões já jurisdicionalmente apreciadas, referência que só poderá dever-se a lapso manifesto da Exm.ª Relatora que proferiu tal decisão ([6]).
Assim, é patente que nenhuma remissão para anterior jurisprudência uniforme foi feita – ou sequer pretendeu fazer-se –, pelo que nenhum sentido teria a junção de cópia de anteriores decisões jurisprudenciais.
O que ocorreu foi manifesto lapso de escrita quanto à referência às questões em causa como tendo já sido jurisdicionalmente apreciadas.
O que pretendia exarar-se era apenas que as questões objecto da causa se revestiam de simplicidade, entendimento que permitia, sem mais, a prolação de decisão singular.
Donde que inexista a nulidade processual invocada.
Improcede, por isso, a reclamação nesta parte.

2. - Da inoponibilidade da sentença de reforma, por não determinação da perda de validade dos títulos
Insiste o Apelante que, enquanto portador subsequente dos títulos originários, não lhe é oponível a sentença de reforma, pois que esta não determinou, expressamente, a perda de validade desses títulos, matéria que, por objecto de recurso, devia ter sido conhecida na decisão reclamada.
Na sentença recorrida pode ler-se, a este propósito:
Isto é, considerando que o pedido de reforma dos títulos foi apresentado por M... com fundamento no seu extravio, uma vez proferida sentença de reforma dos títulos, os títulos perdidos ou desaparecidos perdem o seu valor. Ainda que da sentença proferida no processo de reforma em causa (v. fls. 85) não conste tal menção, a mesma não tem valor constitutivo, mas, como a própria lei indica, meramente declarativo e a perda de valor dos títulos originais é uma mera decorrência da sentença proferida em processo de reforma de títulos, com fundamento no seu desaparecimento, donde não resta senão concluir que os títulos apresentados pelo A. para sustentar a sua pretensão não têm qualquer valor e, como tal, não poderão determinar a condenação da R. no valor titulado”.
E do art.º 1072.º, al.ª c), do CPCiv./1995 – lei aplicável no âmbito dos autos em que foi proferida a decisão de reforma – resulta que, “Se o título não aparecer até ser proferida a decisão, a sentença que ordenar a reforma declarará sem valor o título desaparecido, devendo o juiz ordenar que lhe seja dada publicidade pelos meios mais adequados, sem prejuízo dos direitos que o portador possa exercer contra o requerente” ([7]).
É que a razão de ser deste preceito – referente à reforma de títulos perdidos ou desaparecidos – radica, naturalmente, na necessidade de substituição do título perdido ou desaparecido, de molde a que, ordenada e realizada a reforma, fique sem valor o título desaparecido/originário, pois que já substituído por título novo, não podendo ocorrer um efeito multiplicador dos títulos, que o extravio não poderia justificar.
Com também pode ler-se na decisão recorrida ([8]), «muito embora a sentença produza o efeito de fazer substituir o título desaparecido pelo novo, passando este a ter o valor que àquele cabia, e deixando o documento desaparecido de valer como título de crédito e de legitimar o seu portador para o exercício daquele direito cartular, todavia o seu possível futuro portador de boa fé não fica inibido de exercer o direito emergente da respectiva relação subjacente, nem de fazer valer outros direitos, como o de recorrer da sentença que deferiu a reforma (art.º 680.º, n.º 2 do CPC), ou de fazer valer a responsabilidade do requerente, se este tiver requerido a reforma de má fé».
Bem se compreende que seja taxativo o preceito da al.ª c) do referido art.º 1072.º, ao sancionar que a sentença de reforma declarará sem valor o título desaparecido, pois que de outro modo não poderia ser.
Assim, mesmo para quem entendesse – divergindo da sentença apelada, como faz o Apelante – que da sentença de reforma, não obstante o carácter taxativo da lei processual, teria que resultar declaração no sentido de ficarem sem valor os títulos primitivos/desaparecidos, certo é, a nosso ver – e salvo o devido respeito –, que tal tomada de posição decisória resulta implícita em tal sentença.
Nesta pode ler-se: “… determina-se a reforma (…).
Julgando-se pois procedente em conformidade a presente acção, devem ser emitidos pela Requerida novos títulos de acordo com o exposto” ([9]).
Com efeito, a declaração – mesmo se exarada em sentença – pode ser expressa ou tácita, resultar explícita ou apenas implícita ([10]), sendo de admitir o chamado caso julgado implícito quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência necessária, outra a que o caso julgado se alarga ([11]).
Ponto é que, se for implícita, possa a declaração resultar com toda a probabilidade e concludência do texto da decisão/declaração expressa, como o legislador deixou esclarecido, a propósito da declaração negocial, no art.º 217.º do CCiv. ([12]).
Assim, se o dispositivo da sentença de reforma dos títulos, por desaparecimento dos mesmos, não refere expressamente a perda de valor dos títulos desaparecidos, resultado cartular que, aliás, vem expresso na lei processual, mas ordena claramente a emissão de novos títulos, substitutivos dos anteriores (primitivos/desaparecidos), tal dispositivo necessariamente contém, de forma implícita, essa perda de valor, por esta ser uma decorrência lógica e legal daquela.
Doutro modo, cair-se-ia numa irrazoabilidade jurídica – ou, até, no absurdo de se reformar/substituir títulos, com emissão de títulos novos, mantendo o valor dos títulos substituídos, em claro e inaceitável prejuízo do devedor cartular –, que o direito não pode acolher.
Tal traduziria um efeito multiplicador dos títulos, que a relação contratual subjacente não permitiria, sob pena de lesão injustificada e, como tal, injusta para o interesse contratual de uma das partes, a seguradora, que poderia ver-se compelida – como pretende o Apelante – a satisfazer duas vezes o mesmo crédito.
Só pode concluir-se, por isso, que a decisão de reforma visou, como era de lei, a perda de valor dos títulos primitivos/perdidos/substituídos, só não o tendo, assim, declarado expressamente por provável lapso, resultando, todavia, a determinação da perda de valor implícita no dispositivo dessa decisão, que não deixou de ordenar a emissão de novos títulos, como tal substitutivos dos originários.
Donde que aquela determinação de perda de valor ainda resulte implícita no dispositivo da sentença de reforma.
Com o que terão de improceder as conclusões em contrário do Apelante/Reclamente.
Quanto ao mais, deve dizer-se que se concorda com a decisão singular proferida, que, por isso, se transcreve no mais significativo:
«Dispõe o artigo 1072.º que se publicam avisos, num dos jornais mais lidos da localidade em que se presuma ter ocorrido o facto da perda ou desaparecimento, ou, não havendo al jornal, num dos que forem mais lidos na localidade, identificando-se o título e convidando-se qualquer pessoa que esteja de posse dele a vir apresentá-lo até ao dia designado para a conferência. (al. a))
(…)
Portanto, no caso do desaparecimento do título se este não aparecer até à decisão a consequência é que o tribunal declara o título sem valor. Quer dizer, o título deixa de representar o que quer que seja.
(…)
O Apelante coloca a questão da oponibitidade em termos de caso julgado.
De acordo com o disposto nos arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a excepção do caso julgado tem como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, repetindo-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e a causa de pedir.
Pretende-se evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – artigo 497.º, n.º 2, do mesmo diploma.
Por seu turno, a denominada força ou autoridade reflexa do caso julgado também pressupõe, tal como a excepção do caso julgado, a tríplice identidade prevista no artigo 498.º do Código de Processo Civil.
(…)
No caso a decisão que declarou os títulos sem valor tem autoridade de caso julgado material que se manifesta no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada.
O problema que aqui se coloca é o dos efeitos da decisão, a exequibilidade das sentenças quanto a terceiros.
Mas para estes casos dispõe o artigo 680.º n.º 2 “As pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
E o artigo 685.º n.º 4 “Quando, fora dos casos previstos nos números anteriores, não tenha de fazer-se a notificação, o prazo corre desde o dia em que o interessado teve conhecimento da decisão.
Portanto, não obstante a autoridade da sentença transitada em julgado, estabelece-se uma cláusula de salvaguarda quanto a terceiros prejudicados que podem recorrer dessa sentença, começando prazo de recurso a correr desde o dia em que provem ter conhecimento da mesma.
Tudo isto significa que Autor não pode, nesta acção, pôr em causa a mencionada declaração dos títulos sem valor.
Mas não fica desprotegido. Se for um terceiro prejudicado pode inviabilizar o efeito do trânsito em julgado recorrendo nos termos sobreditos. Se obtiver ganho de causa, então essa declaração não lhe será oponível. Mas tem de trilhar este caminho.».
Acresce que, se o Apelante invoca ser portador de boa fé, certo é que da factualidade provada nenhum contributo se pode retirar no sentido de demonstrar essa boa fé, tanto mais que nada se apurou – e ónus da prova impendia sobre o A. – quanto ao modo como foram obtidos os títulos em causa.
E, quanto à não determinação de publicidade da decisão de reforma, não pode acompanhar-se a ideia de que resulta inviabilizada a salvaguarda dos interesses do Apelante, enquanto terceiro de boa fé, e de inoponibilidade, por isso, em relação ao mesmo, pois que, como visto, não logra ele, desde logo, demonstrar nesta sede a sua invocada boa fé.
De sublinhar ainda, como dito na sentença ([13]) e reiterado na decisão sumária reclamada, que o aqui Apelante, se, como invoca – mas não demonstra nestes autos –, estiver de boa fé ([14]), poderá exercer, obviamente, o seu direito contra a requerente da reforma dos títulos.
Na verdade, se daquela os obteve validamente e se ela, depois de lhos ter transmitido, obteve a respectiva reforma, de molde a alcançar a satisfação do crédito, perante a devedora/seguradora, quando já não era titular de tal crédito, então o ora A./Apelante pode/deve accioná-la, por ter cobrado crédito, através do expediente da reforma dos títulos, de que já não era titular, em prejuízo daquele a quem havia transmitido tal crédito ([15]).
Não pode é, neste condicionalismo, condenar-se aqui a devedora/seguradora a pagar/satisfazer segunda vez o mesmo crédito.
Improcedendo, assim, a apelação in totum, deve manter-se a sentença recorrida, tal como já expendido na decisão singular reclamada.
***
IV – Sumariando (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):
1. - De acordo com o disposto no art.º 1072.º, al.ª c), do CPCiv./1995 – lei aplicável no âmbito de anteriores autos tendentes à reforma de título perdido ou desaparecido –, se o título não aparecer até ser proferida a decisão, a sentença que ordenar a reforma declarará sem valor o título desaparecido.
2. - A razão de ser deste preceito legal radica na necessidade de substituição do título perdido ou desaparecido, de molde a que, ordenada e realizada a reforma, fique sem valor o título originário, uma vez substituído por título novo, não podendo ocorrer um efeito multiplicador dos títulos – prejudicial ao respectivo devedor –, que o extravio não poderia justificar.
3. - Se o dispositivo da sentença de reforma desse título não refere expressamente a sua perda de valor, mas ordena a emissão de novo título, como tal substitutivo do originário/desaparecido, tal dispositivo necessariamente contém, de forma implícita, a legal declaração de perda de valor.
4. - É de admitir o chamado caso julgado implícito, que tem lugar quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência lógica ou necessária, outra a que o caso julgado deve estender-se.
5. - Ao portador subsequente de título originário objecto de reforma, que invoca ser portador de boa fé, cabe demonstrar essa boa fé.
6. - Tal portador de boa fé não fica inibido de exercer o direito emergente da respectiva relação subjacente, nem de accionar outros direitos, recorrendo da sentença de reforma ou fazendo valer a responsabilidade do requerente da reforma, se este a tiver requerido de má fé.
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V – Decisão
Pelo exposto, na improcedência da reclamação, acorda-se, em Conferência, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas da apelação e na 1.ª instância pelo A./Apelante.

Escrito e revisto pelo relator.
Elaborado em computador.

Lisboa, 13/11/2014

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José Vítor dos Santos Amaral (relator)

_______________________________________
Regina Almeida

_______________________________________
Maria Manuela Gomes


[1]    () Segue-se, no essencial, o relatório da decisão singular de fls. 238 e segs. dos autos em suporte de papel.
[2]     () Exceptuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
[3]     () Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. fls. 182-194, bem como os art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.).
[4]     () De notar, porém, desde já, que, se em matéria recursória é aplicável o NCPCiv., já no mais tem aplicabilidade o CPCiv. revogado, designadamente quanto à tramitação do processo judicial especial de reforma, tendo em conta a data da decisão de reforma (27/04/2006) o escopo dos presentes autos e o tempo da sua instauração (processo intentado em Junho de 2011), anterior, pois, à data de entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26/06, e, consequentemente, do NCPCiv. – cfr. art.º 8.º daquela Lei n.º 41/2013.
[5]          () Cfr. fls. 238.
[6]       () Que, entretanto, deixou de exercer funções nesta Relação, o que motivou que estes autos fossem objecto de redistribuição (cfr. fls. 263). 
[7]          () Citação com itálico aditado.
[8]         () Que, por sua vez, cita Miguel Pupo Correia, Direito Comercial, Universidade Lusíada, 4.ª ed., ps. 552 e seg..
[9]         () Cfr. fls. 85 dos autos em suporte de papel.
[10]     () Aos actos do juiz – designadamente, o declarado em sentença – podem assumir virtualidade de aplicação, com as necessárias adaptações, algumas regras civilísticas atinentes à declaração, tal como previstas nos art.ºs 217.º e segs. do CCiv. – cfr. Ac. STJ, de 24/04/2002, Agravo n.º 686/02 - 7.ª Sec. (Cons. Oliveira Barros), in Sumários de Acórdãos, www.stj.pt. 
[11]        () Assim, taxativamente, o Ac. STJ, de 14/05/2014, Proc. 120/13.1TTGRD-A.C1S1 (Cons. Mário Belo Morgado), in Acórdãos do STJ - Base de Dados, www.stj.pt.
[12]        () Veja-se também o disposto nos art.ºs 236.º e 9.º, ambos do CCiv., a propósito, respectivamente, da interpretação da declaração e da interpretação da lei, a não permitir que o intérprete se fique apenas por um eventual sentido literal, que atenda somente ao que resulta expresso no texto, ainda que irrazoável ou absurdo, mas a poder/dever atender a sentido implícito naquele, se o mais consentâneo – ou o único razoável – ante os sentidos possíveis e visto o contexto da declaração e outros elementos atendíveis.
[13]           () Nesta pode ler-se: “Aquele que tenha o título em seu poder não pode exercer quaisquer direitos cartulares, dado que o título pereceu como título de crédito, foi declarado sem valor.Mas tal não significa que ele tenha perdido outros direitos que eventualmente tenha contra o requerente da reforma em ligação com o título e com o próprio processo da reforma. Esses direitos podem emergir, ou da relação subjacente, se existir, ou da responsabilidade civil, se o requerente tiver actuado de má fé ao requerer a reforma.   Não deve, todavia, ser esquecido o preceito do art.º 680º/2 do CPC que admite o recurso por terceiros não intervenientes no processo e que sejam directa e efectivamente prejudicados com a reforma. O prazo para a interposição do recurso conta-se neste caso a partir da data em que o terceiro tenha conhecimento da decisão (…). Assim, os efeitos do caso julgado não impedem o A. de exercer quaisquer direitos relativamente à requerente Maria Delminda, considerando até a alegada compra dos títulos à mesma (v. art.º 1º da p.i.), mas obstam à condenação da R. e procedência da presente acção (…)”.

[14]  () Trata-se da boa fé subjectiva, em que alegadamente se encontra investido o portador subsequente do título.
[15]  () O que, a ser cabalmente demonstrado, evidenciaria a má fé da requerente da reforma.