Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
85/08.1TBSCG.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
COMPRA E VENDA
USUCAPIÃO
ACESSÃO INDUSTRIAL
NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: – Celebrado um contrato mediante o qual o autor compra um determinado terreno aos Réus, pagando desde logo a totalidade do preço e entrando de imediato na posse de tal terreno, deverá qualificar-se tal contrato como de compra e venda e não como um contrato-promessa de compra e venda.
– O facto de o negócio ter sido realizado verbalmente nada tem a ver com a qualificação do contrato mas apenas com a sua validade formal.
– Não tendo sido o contrato celebrado mediante escritura pública, a posse do autor/comprador deverá ter-se como não titulada, embora a decorrente presunção da má fé possa ser, como foi, ilidida pelo possuidor.
– Tendo o autor mantido a posse continuada e de boa fé, pública e pacífica, durante mais de 15 anos, adquire a propriedade do terreno por usucapião.
– O facto de os Réus, posteriormente, terem construído uma casa no dito terreno, de valor incomparavelmente superior ao deste, pode integrar o conceito de acessão industrial imobiliária.
– Tendo a construção sido realizada de boa fé, os Réus adquirem a propriedade do terreno nos termos do art. 1340º do Código Civil, estando obrigados a pagar ao autor uma compensação correspondente ao valor do terreno antes da construção nele incorporada.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

A intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra V e mulher, L, pela qual peticiona a condenação dos RR em sentença que produza os efeitos da sua declaração negocial relativamente à compra e venda do prédio objecto dos presentes autos. Subsidiariamente, pede o reconhecimento do direito de propriedade do A por usucapião relativamente ao prédio objecto dos autos e a condenação dos RR. a restituírem o prédio ao A ordenando-se a demolição de tudo o que nele tenha sido construído; e subsidiariamente, caso se considere que a restituição representa para os RR um prejuízo superior ao sofrido pelo A., a condenação dos RR. a pagarem ao A uma indemnização no valor de € 30.000,00 relativa ao valor do prédio.
Para tanto, alega, em síntese, ter acordado com os RR., em 1992, a compra de um prédio rústico que os RR tinham à venda, bem como que na altura pagou o preço total acordado de 320.000$00. Acrescenta que ficou igualmente acordado ser o A. a marcar a escritura de compra e venda logo que os RR lhe facultasse a documentação necessária, tendo entrado de imediato na posse plena do mesmo.
Por último, alega que com a aprovação do PDM em 2007, os RR iniciaram, em 2008, a construção de um imóvel no referido prédio rústico, recusando-se a outorgar a escritura acordada.
Em sede de contestação, os RR. impugnam a factualidade alegada pelo A, nomeadamente que tenham celebrado com este qualquer negócio jurídico relativamente ao prédio em causa nos autos, bem como que este tenha tido a posse plena ou sequer a detenção do mesmo.
Conclui, pugnando pela improcedência da acção, alegando a nulidade do pretenso negócio jurídico celebrado.

O processo seguiu os seus termos, realizando-se o julgamento e vindo a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente provada e procedente, condenando os RR a pagarem ao A a quantia de € 20.550,00 e absolvendo-os do mais peticionado.
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Inconformados recorrem os RR, concluindo que:
- A recorrente não se pôde conformar com a decisão recorrida, porquanto o Tribunal a quo procedeu a urna inadequada apreciação/julgamento da prova produzida, colocou os fundamentos da decisão em oposição com a mesma, por um lado, errou na interpretação e aplicação do direito, recusou-se a decidir o pedido de declaração de nulidade dos negócios jurídicos alegadamente celebrados entre A. e os RR. ora recorrentes, violou diversos normativos da lei substantiva.
– O Tribunal deu erroneamente corno provados os factos que se passam a descriminar e cuja numeração é feita na sentença nos números 8, 9, 10, 12 e 13.
– Na decisão em que dá resposta aos quesitos que constituem a base instrutória o Mº juiz considera fundamentais para a formação da sua convicção os depoimentos das testemunhas M e C.
– As quais não obstante serem respectivamente mãe e esposa do A. não suscitaram quaisquer reservas ao Tribunal “pelo modo sereno e isento como foram prestados, respondendo as testemunhas apenas aquilo que percepcionaram, não procurando salvaguardar a qualquer custo a sua posição”.
– Salvo o devido respeito, isso é simplesmente impensável, não só porque é a própria sentença recorrida que refere que as testemunhas prestaram depoimento indirecto, de ouvir dizer ao marido, como são as próprias gravações da prova que impõem o dar-se como não provada tal matéria.
– E os testemunhos em que a douta sentença baseia a sua convicção não são mais do que o testemunho da mãe e da esposa do A.. Sempre se poderá dizer que esta circunstância só por si não é suficiente para desacreditar as mesmas, mas a verdade é que o que elas nada sabem directamente sobre os elementos do negócio, apenas sabem aquilo que o A. lhe disse. E por isso sim, nunca poderiam servir para fundar a convicção da julgadora.
– É que douta sentença entende que o que o A. e RR. quiseram e celebraram foi uma compra e venda, e como se pode servir de prova documental para fazer prova dos elementos de um negócio jurídico para a qual a lei exigia escritura pública ( Artigo 364º, Exigência legal de documento escrito, do Código Civil, cujo nº 1 refere expressamente que "quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior”.
– Também o Tribunal não poderia ter dado como provado os seguintes factos: 13. O A. ficou de marcar a escritura pública de compra e venda quando o entendesse, tendo entrado de imediato, em Agosto de 1992, no gozo, uso, fruição e plena disposição do prédio descrito em 1. com autorização e consentimento dos RR.; 14. O A. reconstruiu as paredes caídas e arrancou as silvas do prédio descrito em 1.; 16. Por não ser possível construir no prédio, o A. semeou trevo e emprestou o prédio a B, a I e R, para nele apascentarem o seu gado e comer a erva com o objectivo e obrigação destes manterem o prédio limpo.; 17. O A. semeou o trevo e emprestou o prédio referido em 1. sempre à vista de toda a gente, sem qualquer oposição de quem quer que seja e na convicção de que era o verdadeiro dono e que não lesava quaisquer direitos de terceiros e 20. O pai de J e O teve o prédio descrito em 1. arrendado ao pai da R. L. – Atenta a prova gravada o tribunal não poderia ter dado como provado os factos 13, 14, 16, 17 e 20.
– Pois o depoimento das testemunhas pois o depoimento que o Mº juiz considerou fundamental para formação da convicção do Tribunal foram as testemunhas R e I.
– Ora, os depoimentos destas testemunhas foram imprecisos e inseguros, não permitindo que, com base neles, se deem como provados aqueles factos.
– Mas mesmo que o tribunal tivesse interpretado/julgado bem a matéria de facto produzida em julgamento nunca poderia à condenação dos RR. Na petição inicial, o A. peticiona a condenação dos RR em sentença que produza os efeitos da sua declaração negocial relativamente à compra e venda do prédio objecto dos presentes autos Ou seja, o próprio A. vem invocar como sua causa de pedir a existência/celebração de um contrato promessa de compra e venda e a execução específica do mesmo.
– No entanto, na sua douta decisão a meritíssima juíza entende algo completamente distinto e considera que, "no caso dos autos, importa concluir que estamos perante um contrato de compra e venda e não e um contrato-promessa, mediante o qual a compra e venda é meramente o contrato prometido. Entende isto porque e passamos a citar "De facto, se atentarmos aos factos provados - e tendo presente que estamos perante um contrato sinalagmático - constatamos que foram cumpridas as obrigações ou prestações que recaiam sobre ambas as partes. Com efeito, o A. pagou de imediato a totalidade do preço acordado e os RR. entregaram a coisa uma vez que facultaram e consentiram que o A. entrasse na posse imediata do prédio, pelo que operou a transmissão da propriedade do prédio rústico, automaticamente, por mero efeito do contrato conforme explanado supra. Efectivamente, não se verifica no caso dos autos que as partes tenham convencionado um outro contrato num momento ulterior, uma vez que ambas as partes, naquela altura, realizaram integralmente a prestação que incumbia a cada uma delas."

– Ora com o devido respeito, isto não nos parece ser de sufragar. Em primeiro lugar, a própria lei prevê que o sinal possa constituir o pagamento da totalidade do preço (artigos 440.° (entrega do todo) e 441.° do C. Civil, que preveem a situação de antecipação do preço). Por outro lado, também o artigo 442.° do C. Civil prevê a possibilidade de tradição da coisa ao promitente comprador.
– Ao ter tal entendimento a sentença é nula por violação do disposto nos artigos art. 264.° e 668.°, nº 1, alínea d) do C.P.C .. Por outro lado a sentença viola expressamente, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 410.°, 440.°, 441.° e 442.° do Código.
– A correcta interpretação e aplicação destas normas imporiam o afastamento da condenação dos RR. e, quanto muito, o pagamento em dobro da quantia que deveria ser considerada como sinal nos termos do artigo 441.° do C. Civil.
– Ainda que se dê de barato o preenchimento do requisito objectivo da posse, como pode a douta sentença dar como reunidos o elemento subjectivo ou animus da posse? É o próprio Autor que vem dizer claramente que celebrou um contrato promessa de compra e venda e que interpelou várias vezes os RR. para cumprir com a sua promessa, ou seja, é o próprio A. que está convencido que é apenas titular de um direito de natureza obrigacional e não de um direito real. Assim, como pode estar reunido o elemento subjectivo da posse? Ora se não há posse não pode haver declaração da aquisição do direito de propriedade com base na aquisição originária baseada na convicção do exercício de um direito real.
– Ao decidir declarar que o A. o A. adquiriu, por usucapião, a propriedade do prédio descrito em 1. dos factos provados, nos termos do disposto nos artigos 1259.° a 1262.°, 1287.° e 1296.° do Código Civil, direito esse que retroage ao inicio da posse (vide artigo 1317.° alínea c) do mesmo diploma, a sentença recorrida viola expressamente por erro de interpretação e aplicação essas mesmas normas que invoca ou arroga aplicar correctamente.
– Mas não é verdade que o A tivesse exercido posse pacífica, pública e de boa fé durante quinze anos, porquanto a testemunha R diz expressamente no seu depoimento: “Entre 2003 e 1 de Novembro de 2007, foi o dia que vieram falar comigo a dizer que havia um problema qualquer com o prédio”. Ora em 1 de Novembro de 2007, não se verificaram os quinze anos a que fala a lei e a que sentença entende subsumida à norma legal.
– Mas mesmo que entendêssemos que teriam decorrido quinze anos, essa posse nunca seria titulada e como tal se presumiria de má fé. É que a mulher do A. e testemunha ouvida nos presentes autos refere no seu depoimento, a instâncias da advogada dos RR que "que sabe que enquanto não ser faz a escritura de compra e venda não se é dono". pelo que sabe que lhe falta o título e não exerce poderes sobre a coisa como possuidora, mas como mera detentora. E não havendo título a posse é não titulada e presume-se de má fé.
– A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1259.° a 1262.°, 1287.° e 1296.°, a correcta interpretação destes preceitos, levariam ao afastamento do exercício do usucapião por parte do A. e nunca levariam à condenação dos RR. no pagamento da quantia a que foram condenados.
– Aliás a própria sentença declara que "uma vez que não havia sido celebrada qualquer escritura, é legitimo concluir que os RR desconheciam que o terreno era alheio, pelo que actuaram de boa fé.
– Ora em face desta conclusão é manifesta uma contradição que implica a consideração que a posse dos RR. não era titulada e de má fé.

O A contra-alegou defendendo a bondade da sentença recorrida.

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Foram dados como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrito na matriz predial rústica, a aquisição a favor da R. L, casada com V, por partilha e sucessão hereditária, sob os seguintes dizeres: "terra, com a área de setecentos e vinte e seis metros quadrados (726 m2), ".
2. Em Março de 2007 é aprovado o Plano Director Municipal (PDM).
3. No dia 13 de Abril de 2008 os RR. colocaram no prédio um painel de madeira com o seguinte aviso:"Aviso - Está em fase de licenciamento de obras um projecto de L. "
4. O projecto referido em 3. foi aprovado, tendo os RR., entretanto dado início à construção.
5. Os RR casaram um com o outro, com convenção antenupcial, em que se convencionou o regime geral de bens, no dia 07 de Agosto de 1975.
6. O prédio descrito em 1. encontra-se avaliado no valor de € 20.550,00. 7. O A. é dono e legítimo proprietário da uma oficina de bate chapa e mecânica automóvel.
8. Em data não apurada mas em 1992 e no âmbito da sua actividade, o A. foi contactado pelos RR. a fim de proceder à reparação da chapa do seu veículo automóvel.
9. A reparação ascendeu ao montante de 70.000$00.
10. Os RR. não pagaram tal serviço prestado.
11. Em data não concretamente apurada mas pelo menos há mais de 10 anos, os RR tinham à venda o prédio descrito em 1.
12. Em data não concretamente apurada mas em 1992 o A. acordou com os RR. a compra do prédio descrito em 1, pelo preço de 320.000$00 (1.600,00 €), tendo sido entregue de imediato os 70.000$00 da reparação efectuada na viatura dos RR e, em 26 de Outubro de 1992, por cheque o restante preço de 250.000$00.
13. O A. ficou de marcar a escritura pública de compra e venda quando o entendesse, tendo entrado de imediato, em Agosto de 1992, no gozo, uso, fruição e plena disposição do prédio descrito em 1. com autorização e consentimento dos RR.
14. O A. reconstruiu as paredes caídas e arrancou as silvas do prédio descrito em 1.
15. O prédio estava inserido na Zona de Reserva Agrícola Regional antes da entrada em vigor do PDM referido em 2.
16. Por não ser possível construir no prédio, o A. semeou trevo e emprestou o prédio a B, a I e R, para nele apascentarem o seu gado e comer a erva com o objectivo e obrigação destes manterem o prédio limpo.
17. O A. semeou o trevo e emprestou o prédio referido em 1. sempre à vista de toda a gente, sem qualquer oposição de quem quer que seja e na convicção de que era o verdadeiro dono e que não lesava quaisquer direitos de terceiros.
18. Em data não apurada mas há cerca de 2 anos, os RR. foram à oficina do A. dizer-lhe que não queriam cumprir o contrato e que o que podiam fazer era dar-lhe o dobro do dinheiro.
19. Os RR. exercem a actividade comercial de exploração de um supermercado.
20. O pai de J e O teve o prédio descrito em 1. arrendado ao pai da R. L.
21. No prédio descrito em 1., os RR. edificaram uma construção de habitação tipo T2 composto por casa de moradia com dois pisos, um rés-da-chão e um sótão, com a superfície coberta total de 124 m2, contendo no rés-do-chão cinco divisões, com uma sala com 28 m2, uma cozinha com 15 m2, uma dispensa com 2,05 m2, um quarto com 14 m2 e outro quarto com 13 m2, uma casa de banho com 5 m2 e um corredor de 2m2, sendo que no exterior da casa há um alpendre de 24m2 e o sótão tem uma sala com 28 m2 e um quarto pequeno com 3,94 m2.
22. O valor da construção referida em 21. corresponde a € 65.750,00.

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Cumpre apreciar.
O presente recurso incide quer na decisão atinente à matéria de facto quer na sua fundamentação e integração jurídicas.
Uma vez que os recorrentes deram cumprimento ao disposto no art. 690º-A nºs 1 e 2 do CPC nada obsta à reapreciação da prova efectuada.
Haverá contudo que ter presente que, como sublinhou o STJ no seu Acórdão de 27/9/2005 – disponível no endereço www.dgsi.pt - “a plenitude do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto sofre naturalmente a limitação que a inexistência de imediação necessariamente acarreta, não sendo, por isso, de esperar do tribunal superior mais do que a sindicância de erro manifesto na livre apreciação das provas (..) E assim, o Tribunal da Relação só em casos de manifesto erro de julgamento deve alterar a matéria de facto dada como provada com base em depoimentos gravados”.

.Assim, relativamente aos artigos 8º, 9º, 10º e 12º da matéria dada como provada e relativa ao aludido acordo de compra e venda, cumpre dizer que não vemos motivo algum de censura na decisão tomada pela Mª juiz a quo.
Tal matéria foi pormenorizadamente elucidada pela mãe do A, M e pela mulher dele, C. M, nomeadamente, esclareceu as circunstâncias em que os RR propuseram o negócio ao filho – que estava relutante em aceitar – circunstâncias relacionadas com a dívida da reparação da carrinha no valor de 70.000$00. Mais referiu ter sido ela própria a emprestar o dinheiro ao filho.
Outras testemunhas ouviram a Ré L dizer ao A que quando quisesse fariam a escritura – depoimento de D – e, posteriormente, ouviram o Réu marido declarar ao A que já não pretendia fazer a escritura e que lhe devolveria o dinheiro que ele pagara, em dobro – depoimentos de D e P.
Ouvida a prova fica-nos a convicção de que os RR venderam o prédio ao A por voltas de 1992, altura em que o tinham à venda, com um letreiro nesse sentido, facto confirmado por quase todas as testemunhas, quer do A quer dos RR.
Não se trata, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, de fundamentar a resposta a quesitos nos depoimentos da mãe e da mulher do A. Primeiro, estes depoimentos mostraram-se seguros, convincentes – nomeadamente os de M. Mas, para lá disso, foram corroborados no essencial pelas outras testemunhas mencionadas, e os depoimentos destas foram inteiramente credíveis.
Acrescente-se ainda que a testemunha O – que, de resto, confirmou ter visto a tabuleta a anunciar a intenção de vender o prédio – e que sistematicamente negou ter visto o A no prédio até ao ano de 2007, afirmando ser ele que tomara de arrendamento o prédio, mantendo tal arrendamento até 2007, prestou um depoimento duvidoso, não só porque pouco explícito e circunstanciado limitando-se a repetir meia dúzia de frases idênticas ao longo do extenso depoimento, como porque em vários aspectos se mostrou pouco credível. Com efeito – e de resto a Mª juíza salientou esse ponto durante o interrogatório da testemunha – não se compreende como uma pessoa que tomou um terreno de arrendamento há longos anos vê uma tabuleta a anunciar a venda do mesmo e não pergunta aos proprietários quais as condições dessa venda. Mas pior: logo que tirada a tabuleta, supondo-se assim que o terreno já estaria vendido, continuou a não perguntar aos RR fosse o que fosse, sem mesmo mostrar qualquer interesse ou preocupação quanto à sua situação de arrendatário ou se havia um novo proprietário a quem tivesse de pagar a renda. Acresce que, num meio tão pequeno como aquele em que decorre o litígio é altamente improvável, a roçar o impossível, que alguém desconheça se o terreno foi vendido e a quem.
A tudo isto, respondia invariavelmente a testemunha “como não estava interessado em comprar não perguntei nada”.
Quando referiu ter visto um tractor – que veio a saber pouco depois ser do A – no terreno, referiu que achou que tal atitude fora um abuso do A, que nem lhe pedira autorização. Mas, apesar disso, apesar de ser evidente que estava um tractor no terreno que ele próprio arrendara há muitos anos, nunca foi perguntar ao A o que se passava. Isto, no seu dizer, “para evitar chatices”.
É manifesto que um depoimento destes, tão defensivo, tão pouco credível, não pode contribuir para fundamentar qualquer convicção dos julgadores quanto à matéria quesitada.
De resto, o próprio O refere que não sabe se o terreno havia sido vendido e a quem.

Não existem pois motivos para pôr em causa a decisão tomada pelo tribunal a quo e expressa nos nºs 8, 9, 10, 12 e 13.

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Quanto à matéria dada como provada e constante dos artigos 14º, 16º, 17º e 20º.
J referiu ter ido trabalhar no terreno, por conta do A, umas 5 ou 6 vezes para arrancar silvas e reparar uma parede.
I (cunhado do A) referiu que em 1992 pediu ao A para levar o gado a pastar no terreno, o que viria a fazer durante 2 ou 3 anos.
R depôs afirmando que o A o autorizou a levar o gado a pastar no prédio entre 2002 ou 2003 e até 2007.
V (cunhado do A) afirmou que o A alugava o terreno para pasto.
D referiu que sempre ouviu dizer que o prédio era do A e que este o alugara ao I.

Em sentido oposto, temos apenas o depoimento do já mencionado O, o qual, pelas razões atrás expostas – e tendo em consideração a dificuldade de apreciar em toda a sua multiplicidade o depoimento de uma testemunha pela mera audição de uma gravação – não é convincente.
J – irmão do O – referiu que o pai fora arrendatário do terreno e que depois da sua morte, os seus dois irmãos tomaram tal terreno de arrendamento. Contudo também referiu que só lá viu o O uma vez há 2 ou 3 anos. Estranhamente, diz que nunca perguntou aos irmãos se tinham o focado terreno de arrendamento. De salientar que esta testemunha também esclareceu que raramente passa pelo terreno, desde que casou – há 29 anos ...
As testemunhas O e Q de prestaram depoimentos irrelevantes, uma vez que embora refiram nunca lá terem visto o A, o I ou o R, também referiram que eles poderiam lá ter estado em dias ou até horas em que não passam pelo terreno.

Como ficou bem esclarecido ao longo do julgamento, quer por testemunhas do A quer dos RR, o terreno era usado para pasto e produzia tal pasto umas 3 vezes por ano.. É evidente que, quem passa raramente pelo terreno, dificilmente poderia ter visto gado a pastar numa das três vezes por ano em que isso acontecia. Sendo que, dada a extensão do terreno – e dependendo, como é óbvio, do tipo de gado e número de cabeças – o pasto ficava esgotado, de cada vez, em menos de uma semana.
Assim e face ao exposto, entendemos adequada a decisão da matéria de facto, também nos pontos nºs 14, 16, 17 e 20.
Improcedendo o recurso no tocante a tal decisão fáctica.

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Quanto à matéria de direito.
Diga-se, desde já, que a sentença não incorre em nulidade ao considerar o contrato como de compra e venda, quando o A alegou tratar-se de um contrato-promessa de compra e venda.
Nos termos do art. 664º do CPC, o juiz não está sujeito ao alegado pelas partes, no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Tem é de se manter nos limites da factualidade articulada pelas partes.
Se o juiz entender que essa factualidade conduz a uma integração e qualificação jurídicas diversas das alegadas, é livre de o fazer sem incorrer na nulidade prevista no art. 668º nº 1 d) do CPC, invocada pelo recorrente. A discussão poderá então centrar-se sobre tal perspectiva jurídica, mas não numa qualquer nulidade decorrente do excesso de pronúncia.

Ora, dos factos provados nada resulta que aponte para a celebração de um contrato-promessa. E isto não se fica só a dever ao facto de o A ter pago desde logo a totalidade do preço.
Como sublinha Ana Prata - “O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil”, pág. 573 - “o contrato-promessa produz, em princípio, meros efeitos obrigacionais. Ele gera, necessariamente, uma ou duas obrigações de contratar, uma ou duas obrigações de celebrar um contrato. O objecto dessas obrigações é (...) uma prestação de facere jurídico, a emissão da declaração negocial integradora do contrato prometido.”
Ora, no caso dos autos, as partes não se comprometeram a celebrar um outro contrato, que seria o definitivo contrato de compra e venda. As partes comprometeram-se, por um lado a pagar o preço do terreno, por outro lado a entregá-lo ao comprador. E fizeram-no.
A escritura pública que ficava por celebrar não seria o conjunto de novas declarações negociais mas sim a formalização das declarações negociais já efectuadas e, materialmente, concretizadas.
Pelo menos é isto que teremos, forçosamente, de retirar da matéria dada como provada, da qual não consta que o negócio celebrado consistisse no compromisso mútuo de vir a celebrar um dado negócio.
Assim, o que houve foi um contrato de compra e venda meramente verbal, com o pagamento do preço e a entrega da coisa.
Uma vez que estamos perante uma compra e venda de bem imóvel, sujeita nos termos do art. 875º do Código Civil a escritura pública, a celebração meramente verbal do mesmo determina a sua nulidade, nos termos do art. 220º do mesmo diploma.
Uma vez que estamos perante um contrato de compra e venda – ademais nulo - e não um contrato-promessa de compra e venda, decidiu-se e bem na sentença recorrida ter de improceder o pedido de execução específica formulado pelo A.

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Quanto ao pedido subsidiário de aquisição do prédio por usucapião.

Está provado que aquando do acordo verbal de compra e venda, em 1992, os RR entregaram o prédio ao A, que pagou o respectivo preço.
O A alugou ou emprestou o prédio a outras pessoas para o utilizarem como pasto para gado, semeou trevo, limpou as ervas e reconstruiu uma parede no dito terreno. Trata-se de actos que, vistos na sua globalidade, mostram que o A actuou de forma correspondente ao direito real de propriedade e consequentemente, que era titular da posse do prédio (art. 1251º do Código Civil).

As características da posse, no âmbito da matéria dada como provada, mostram que a mesma não pode ser considerada como titulada, nos termos do art. 1259º nº 1 do Código Civil, por invalidade formal dos sucessivos actos de transmissão – contrato de compra e venda por acordo verbal.
É exactamente o que referem Pires de Lima e Antunes Varela - “Código Civil Anotado”, III, pág. 17 – relativamente aos vícios formais: “esses ficaram claramente afastados. Se o acto é nulo por vício de forma, como se, por exemplo, se compra um prédio por escrito particular ou verbalmente, a posse que daí deriva não é titulada”.
Em contrapartida, o facto de os possuidores actuarem na convicção de serem donos do prédio, nele praticando os actos correspondentes ao exercício do direito real (de propriedade), torna a posse de boa fé, nos termos do art. 1260º nº 1 do mesmo diploma. Além disso, a posse é pacífica e pública – arts. 1261º e 1262º.
Assim o prazo para aquisição do terreno por usucapião seria de 15 anos, de acordo com o art. 1296º do Código Civil.

Há que salientar que o facto de não ter sido celebrada a escritura pública não afecta, em si mesmo, o acto possessório. Impede apenas que este se considere titulado. E, sendo certo que a posse não titulada se presume de má-fé, nada impede que tal presunção seja ilidida - ver Acórdão do STJ de 29/1/80, in BMJ nº 293, pág. 378.
Ora, tendo o A pago o preço do terreno e sendo-lhe este entregue pelos RR, justifica-se plenamente a matéria dada como provada no nº 17 da decisão fáctica: o A actuou na convicção de ser o dono do prédio, uma vez que a escritura pública a realizar não visava consagrar um novo acordo de vontades e um novo contrato – caso, como vimos, que seria aplicável a um contrato-promessa, que aqui não ocorre – mas apenas formalizar o negócio já realizado.
O A não só ignorava, ao exercer a posse sobre o terreno, que lesava o direito de outrem, como tinha a plena convicção de que tal direito era seu, até porque haviam sido os RR a entregar-lhe a posse do terreno contra o pagamento da totalidade do preço.
Assim a posse é de boa fé, nos termos do art. 1260º nº 1.

A posse continuada de uma coisa, pelo período legalmente previsto, faculta ao possuidor a aquisição da respectiva propriedade por usucapião, nos termos do art. 1287º do Código Civil.
Como vimos, no caso dos autos, a usucapião só pode ocorrer ao cabo de 15 anos, nos termos do art. 1296º do mesmo diploma.
Ora, os AA iniciaram a posse em 1992 e mantiveram-na até 13/4/2008, altura em que os RR afixaram no terreno um painel anunciando estar em fase de licenciamento um projecto de obra da Ré L.
O facto de os RR terem dito ao A, algum tempo antes, que já não queriam fazer a escritura pública e que se prontificavam a devolver-lhe o preço que ele havia pago, em dobro, não afectou em nada a posse do A. Primeiro porque não está provado que nessa altura tenham os RR praticado qualquer acto que afectasse materialmente a posse do A sobre o prédio. Depois, a mera vontade de incumprir o contrato, contra a vontade do A que recusou a proposta dos RR, não afecta o animus possessório. É necessário insistir que não estamos perante um contrato-promessa mas sim perante um contrato de compra e venda, embora nulo por inobservância da forma legal.


Assim, de 1992 a Abril de 2008 decorreram mais de 15 anos o que significa que a aquisição originária se deu em favor do A.

Na sentença recorrida, contudo, entende-se que o pedido do A de restituição do prédio não pode proceder, por ter entretanto ocorrido um fenómeno de acessão industrial imobiliária.
Na sua contestação, os RR não invocaram a acessão. Contudo, alegaram que o terreno em causa era apenas “um pedaço de terra com a área de 726m2” e um valor € 5.000,00 e agora, integra um prédio urbano construído pelos RR com um valor de € 58.310,00.
Diga-se, de passagem, que a mudança de atitude dos RR relativamente à celebração de escritura pública relativa à venda do prédio ao A não terá sido alheia ao facto de entretanto, o prédio deixar de estar abrangido na Reserva Agrícola Regional, face ao novo Plano Director Municipal. Ou seja, a partir de data indeterminada de 2007 ou inícios de 2008 passou a ser possível construir no terreno.
Tendo os RR construído o prédio urbano mencionado.

Não há dúvida de que tal construção representa um caso de acessão industrial imobiliária, ou seja, “união ou incorporação em prédios (imóveis) de coisas alheias por acção do homem” - Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, pág. 501.
Estamos perante uma incorporação feita em terreno alheio com materiais próprios.
Daqui não se segue, contudo, a total aplicabilidade do disposto no art. 1340º do Código Civil, preceito que prevê ainda que tal incorporação ou construção seja efectuada de boa fé.
Na sentença recorrida entendeu-se que os RR, ao empreenderem a construção da casa o fizeram de boa fé.
De acordo com o nº 4 do art. 1340º, “entende-se que houve boa fé, se o autor da obra (...) desconhecia que o terreno era alheio (...)”.
Ora, é indubitável que os RR não podiam ignorar que o estava na posse do terreno, que lho haviam vendido verbalmente e recebido o respectivo preço.
Contudo, os RR sabiam igualmente que o negócio jurídico não fora celebrado mediante escritura pública sendo assim nulo. Daí que tenham declarado ao A que já não pretendiam celebrar a escritura e que estavam na disposição de lhe devolver a quantia paga, em dobro.

É verdade que, ao publicitarem a construção e depois ao realizarem-na, violaram deliberadamente a posse do A. Sendo que, à data da prática dos actos ofensivos da posse já o A adquirira a propriedade do mesmo terreno por usucapião. Mas não existem elementos nos autos que nos permitam concluir que os RR tivessem conhecimento de tal aquisição originária, até porque, até então, o A nunca a invocara.
Há que salientar que o facto de os RR terem iniciado a construção em data pouco posterior ao decurso do prazo de aquisição pelo exercício continuado da posse, nada teve a ver com esta mas sim com a entrada em vigor do novo PDM, que viabilizou a construção no terreno em apreço.
Não custa assim aceitar que os RR, cientes de que o contrato de compra e venda era nulo sem a escritura pública, entendessem serem eles os donos do prédio, independentemente das consequências indemnizatórias decorrentes do incumprimento contratual.

Nesta medida, podemos acatar a conclusão da sentença recorrida, no sentido de tornar aplicável ao caso o disposto no art. 1340º do Código Civil. De resto, não nos deixa de surpreender o facto de os RR recorrerem da decisão, nesta parte, quando é óbvio que a construção jurídica elaborada pelo Mº juiz a quo visa, além do mais, possibilitar uma sentença dotada de equidade, ou seja, evitar uma decisão mais drástica que implicaria a demolição da casa construída pelos RR.
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Estamos cientes de que não deixa de ser discutível a invocação feita na sentença do próprio instituto da acessão. Esta constitui um modo de aquisição de propriedade e como tal deveria ter sido invocada pelos RR, mediante pedido reconvencional, peticionando a declaração de tal direito de propriedade por acessão. Já tem sido entendido que a acessão industrial imobiliária é potestativa, e não uma forma de aquisição automática de propriedade, pelo que, para que se adquira a propriedade mediante a acessão será necessária “uma manifestação de vontade do beneficiário” - Acórdão da Relação de Évora de 22/5/80, in CJ 1980, T. III, pág. 23. No mesmo sentido ver Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, pág. 503.

Sendo certo que, como de resto já atrás referimos, o julgador não está vinculado à qualificação e integração jurídica feitas pelas partes relativamente aos factos que alegam, também é verdade que o julgador, salvo situações excepcionalmente previstas na lei, terá de circunscrever tal integração e qualificação jurídicas ao âmbito factual que resulta das alegações das partes.

Os RR, indiscutivelmente, invocaram a construção do prédio urbano e o seu valor incomparavelmente superior ao do terreno que haviam vendido ao A. Não o fizeram, contudo, como pressuposto ou elemento constitutivo de aquisição do direito de propriedade, uma vez que pretendem terem sido sempre os donos de tal terreno.
Contudo, também se poderá argumentar que, tendo os RR defendido sempre, não só durante a construção da casa como na presente acção, serem os proprietários do terreno – e daí o considerar-se que estavam de boa fé – não faria sentido virem invocar a aquisição de tal propriedade por acessão industrial.

Numa situação que, como se vê, não deixa de levantar dúvidas qualquer que seja a solução adoptada, não poderemos deixar de ter em conta que o fim último da sentença é “a justa composição do litígio”.
Pelas razões já aduzidas, a solução dada na sentença recorrida permite uma composição mais justa e equitativa, até porque o A peticiona, em primeira linha, a restituição do prédio e a demolição da casa construída pelos RR.

Daqui resulta pois o entendimento de que deverá ser sufragada a decisão recorrida.

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Conclui-se assim que:
– Celebrado um contrato mediante o qual o autor compra um determinado terreno aos Réus, pagando desde logo a totalidade do preço e entrando de imediato na posse de tal terreno, deverá qualificar-se tal contrato como de compra e venda e não como um contrato-promessa de compra e venda.
– O facto de o negócio ter sido realizado verbalmente nada tem a ver com a qualificação do contrato mas apenas com a sua validade formal.
– Não tendo sido o contrato celebrado mediante escritura pública, a posse do autor/comprador deverá ter-se como não titulada, embora a decorrente presunção da má fé possa ser, como foi, ilidida pelo possuidor.
– Tendo o autor mantido a posse continuada e de boa fé, pública e pacífica, durante mais de 15 anos, adquire a propriedade do terreno por usucapião.
– O facto de os Réus, posteriormente, terem construído uma casa no dito terreno, de valor incomparavelmente superior ao deste, pode integrar o conceito de acessão industrial imobiliária.
– Tendo a construção sido realizada de boa fé, os Réus adquirem a propriedade do terreno nos termos do art. 1340º do Código Civil, estando obrigados a pagar ao autor uma compensação correspondente ao valor do terreno antes da construção nele incorporada.

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Nestes termos, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 8 de Julho de 2010

António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais