Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
31015/16.6T8LSB.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INSOLVÊNCIA
CREDITOS LITIGIOSOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– Qualquer credor constitui sujeito legitimado para requerer a abertura do processo de insolvência, consequentemente, também o titular de crédito litigioso.

II– No processo de insolvência requerido por credor litigioso só tem que se apurar se esse crédito existe e está vencido quando esse credor se configure como único. Nessas circunstâncias deixa de estar em causa a simples legitimidade processual, passando a exigir-se-lhe legitimidade substantiva.

III– Verificando-se, em função da acção em que se controverta o crédito, que o apuramento do mesmo muito provavelmente implicaria o arrastar processual do processo de insolvência, deverá absolver-se da instância o devedor, em função da excepção dilatória de ilegitimidade do requerente para o pedido de declaração de insolvência.

IV– Nas normais situações em que o credor litigioso não constitua o único (e discutível) credor do devedor, não tem que se apurar previamente, na fase que antecede a declaração ou não da insolvência, se o mesmo é, ou não, efectivamente, credor. O legislador basta-se com a sua legitimidade processual, admitindo que a insolvência venha a ser declarada em função do requerimento de quem possa não ser efectivamente credor, dando primazia aos interesses indiscutivelmente públicos da insolvência.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

              
Relatório:


I– Tânia ……., Luís …………. e Pedro ……, intentaram acção requerendo que seja declarada a insolvência da sociedade “S…………., Lda.

Requerem também que, declarada a insolvência, seja considerada a necessidade de o Administrador da Insolvência, que vier a ser nomeado, promover a resolução imediata dos negócios correspondentes aos contratos de compra e venda e de leasing titulados pelos documentos nºs 10 e 11 juntos, em benefício da massa insolvente, na medida em que correspondem, inequivocamente, a actos prejudiciais à massa, nos termos legalmente definidos; mais devendo oportunamente ser aberto o incidente pleno de qualificação da insolvência, na medida em que o caso presente corresponde a um caso manifesto de insolvência culposa, (dolosa), da responsabilidade dos sócios e da gerente da Requerida, atento o disposto no artigo 186º do CIRE, designadamente da alínea d) do seu nº 2; devendo ainda, e a título cautelar, precedendo a citação da devedora, ser designado um Administrador Judicial Provisório, com poderes exclusivos para a administração do património da Requerida.

Alegaram para o efeito, e no essencial, terem instaurado em 23/10/2015 contra a sociedade Requerida e os seus sócios, uma acção declarativa de processo comum, na qual formularam os seguintes pedidos:
a)– Serem os RR., solidariamente, condenados a pagar ao A. Pedro ......., a quantia de 200 000,00€, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a data da suacitação até efectivo pagamento;
b)– Ou, caso assim se não atenda, serem os RR., solidariamente, condenados a pagar ao A. Pedro ......., a quantia de 162 000,00€, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a data da sua citação até efectivo pagamento;
c)– Serem os RR. Abel e Maria Alexandrina condenados a ceder ao A. Pedro ....... uma quota correspondente a 25% do capital social da sociedade R.;
d)– Ou, caso assim se não atenda, serem os mesmos RR. condenados a indemnizar o A. Pedro ....... pelos danos por este sofridos em virtude da culpa in contrahendo que sobre eles recai, em indemnização cujo valor deverá ser fixada pelo Tribunal segundo um juízo de equidade;
e)– Ser o R. Abel condenado a indemnizar o A. Pedro ......., pelos danos por este sofridos, na quantia que vier a ser liquidada, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 609º do CPC.
Admitem, de imediato, estar em causa um crédito litigioso por ter sido contestado pela aqui Requerida na acção supra referida, o que do seu ponto de vista não afecta a legitimidade do requerente Pedro para requerer a declaração de insolvência, e referem estar este acompanhado dos co-Requerentes Tânia e Luís, a fim de assegurar, em toda e qualquer circunstância, a legitimidade processual activa, atenta a forma como se encontra configurada a relação material controvertida no referido processo.
Alegam factos de que entendem resultar que a Requerida liquidou o bem de maior valor que detinha no seu património, de forma absolutamente ruinosa, procedendo à venda do mesmo por um valor muito abaixo do seu valor de mercado e permitindo a subsequente “aquisição” do mesmo, em regime de locação financeira imobiliária, pelos seus sócios, concluindo, em face dos mesmos, estar verificado o facto-índice constante da alínea d) do nº 1 do art 20º do CIRE.
Referem crer que o que os sócios da mesma pretenderam foi provocar o “esvaziamento” e a “inviabilização” intencionais da Requerida, isto é, a sua insolvência culposa (dolosa), para que, no caso de esta vir a ser condenada nos pedidos formulados na mencionada acção, os eventuais créditos resultantes dessa condenação se revelarem incobráveis. E porque temem que outros actos de má gestão estejam planeados e/ou venham a ser praticados, relativamente à Requerida, requerem ao abrigo do disposto no artigo 31º do CIRE, que seja nomeado, como medida cautelar, e previamente à citação da devedora, um Administrador Judicial Provisório, com poderes exclusivos para a administração do património da Requerida.
Citada a Requerida, opôs-se a mesma à declaração de insolvência, contestando quer o crédito invocado, quer a situação de insolvência, tendo terminado a oposição requerendo que fosse julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade dos Requerentes para o presente pedido de declaração de insolvência e, em consequência fosse ela absolvida da instância; caso assim não se entenda, seja declarada suspensa a instância nos presentes autos até à decisão final proferida na acção declarativa, a fim de então se aferir da legitimidade dos requerentes para o presente pedido; ainda assim não se entendendo, seja o pedido de declaração de insolvência julgado totalmente improcedente, por manifestamente infundado, e por ela ter demonstrado a sua situação de solvência, sendo de qualquer forma os requerentes condenados ao pagamento de um montante a fixar equitativamente pelo tribunal, a titulo de indemnização pelos prejuízos causados à requerida por dedução infundada do pedido de insolvência. Mais refere não existirem à data quaisquer credores cujos créditos sejam líquidos, vencidos e exigíveis, não estando ela em incumprimento com qualquer dos seus fornecedores, trabalhadores ou financiadores.

Por lapso do Exmo Juiz, apenas foi apreciada a referida medida cautelar após a citação e oposição da Requerida, tendo sido indeferida a requerida nomeação de administrador provisório à Requerida por se entender existir «apenas um receio abstracto, ao que acresce o facto de os próprios Requerente assumirem que o único bem já foi vendido».
A Requerida juntou certidão da sentença proferida na referida acção pendente no Juízo Central Cível de Lisboa com o nº 29174/15.4T8LSB, a qual julgou totalmente improcedente a acção e absolveu os RR do pedido, vindo a apurar-se ter sido interposto recurso da mesma, o qual se mostra pendente.

Foi proferido despacho, no qual, referindo-se que «a decisão a proferir nestes autos passará, num primeiro momento, pela verificação da existência do crédito invocado (que garante a legitimidade substantiva dos requerentes) e apenas num segundo momento a determinação da situação de insolvência da requerida», pelo que, «é manifesto que a decisão definitiva daquele processo releva sobremaneira para o desfecho destes autos, sob pena de neles se poder vir a proferir uma decisão contraditória com a que se alcance naqueloutro processo», foi ordenada a notificação das partes «para, querendo, se pronunciarem sobre o prosseguimento destes autos».

Os Requerentes, em resposta, sustentaram a sua legitimidade substantiva para intentarem a acção, e requereram o prosseguimento dos autos, e a Requerida defendeu a ilegitimidade dos requerentes, pedindo a sua absolvição da instância.

Foi então proferida decisão que julgou a acção improcedente, tendo absolvido a Requerida do pedido, mais absolvendo os Requerentes do pedido de condenação no pagamento de indemnização à Requerida pela dedução de pedido infundado.

II– Inconformados, apelaram os Requerentes, tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos:
a)– Tendo havido oposição da devedora teria “logo” de ser marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, em cumprimento do disposto no nº 1 do citado artigo 35º do CIRE;
b)– O Tribunal a quo, errou ao ter proferido imediatamente a sentença recorrida sem antes ter designado dia para a audiência de julgamento e realizado a mesma;
c)– Ao proceder como procedeu o Tribunal a quo violou o disposto mo artigo 35º
do CIRE;
d)– Estamos assim perante uma irregularidade com incontestável influência na decisão da causa e, por isso, geradora de nulidade (artigo 195º do CPC), tendo os recorrentes legitimidade para a invocar (artº 197º) e estando em tempo (artigo 199º);
e)– A “fundamentação” constante da sentença recorrida contém insanáveis contradições e erros de julgamento, além de se mostrar ofensiva de alguns institutos jurídicos;
f)– Por força do princípio da suficiência, a circunstância de se encontrar pendente acção onde o crédito invocado pelo requerente está a ser discutido não impede que a sua legitimidade seja discutida no âmbito da fase declarativa do processo de insolvência;
g)– Não se coloca, pois, a possibilidade de se estar perante uma situação de prejudicialidade, muito menos de litispendência, nem tão-pouco se afigura relevante a possibilidade de ocorrerem contradições entre a decisão definitiva a proferir na acção onde o crédito é contestado e na acção de declaração de insolvência;
h)– Enquanto uma decisão respeita à legitimidade para pedir a insolvência, a outra
respeita ao mérito da própria relação jurídica;
i)– Tanto assim que a sentença que reconheça, noutro processo, o crédito ao requerente da insolvência, não determina, ipso facto, o seu reconhecimento no confronto com os demais credores do insolvente (cfr. no nº 5 do artigo 128º do CIRE);
j)– A celeridade processual constitui um princípio basilar e transversal a todo o sistema processual judicial, designadamente e também no domínio do processo civil e do processo de insolvência, o qual se traduz na organização deste, como de todos os demais processos, em moldes a permitir a sua rápida e natural conclusão;
k)– No processo de insolvência, acima de tudo, o que se pretende é, mais do que
saber se o requerente é ou não titular do crédito de que se arroga, concluir se o requerido está ou não numa situação de insolvente;
l)– No processo de insolvência procede-se apenas a uma verificação sumária do crédito do requerente;
m)– Não está demonstrado, nem o poderia estar, nem se pode concluir que se antevê como certo que a prova sumária do crédito invocado depende de uma profunda indagação de facto e de direito;
n)– Ao invés, dos elementos constantes dos autos resulta que os ora recorrentes se propunham fazer uma prova sumária do crédito, consentânea com as regras e com o espírito que enformam o CIRE;
o)– Além disso, sempre o Mmo. a quo, fazendo bom e adequado uso do disposto
nos artigos 11º e 35º do CIRE, pode e deve obviar a uma indagação que envolva grande complexidade factual e jurídica, atentos os fins em vista (“prova sumária” - verificação sumária do crédito do requerente – e “legitimidade ad causam”);
p)– O Tribunal recorrido deveria ter promovido a realização da audiência de julgamento e só depois decidir do mérito e, face à prova produzida, concluir sumariamente pela existência ou não do crédito invocado;
q)– Por outro lado, é absolutamente errada a afirmação proferida pelo Tribunal a
quo de que pelo facto de o recurso interposto naquele outro processo ter efeito meramente devolutivo, “neste momento, no nosso ordenamento jurídico, os requerentes não são credores da requerida, pois o crédito que invocam não lhes foi reconhecido na acção judicial em que foi largamente discutido”;
r)– O efeito devolutivo significa a transferência do poder jurisdicional do juízo a
quo para o juízo ad quem, recaindo sobre este último o dever legal de proferir nova decisão: é a reiteração do exercício jurisdicional sobre a causa;
s)– Em tal contexto é absolutamente errado concluir que os requerentes não são credores da requerida, nem o contrário;
t)– Além disso, estamos em presença de duas situações perfeitamente distintas;
u)– Enquanto uma decisão respeita à legitimidade para pedir a insolvência, a
outra respeita ao mérito da própria relação jurídica, pelo que em caso algum se pode falar de litispendência, ou sequer, de qualquer situação subsumível a tal figura;
v)– Também não se trata de repetição de atos já praticados, nem reapreciação dos
mesmos;
w)– No caso vertente pede-se ao Tribunal que se pronuncie sobre a legitimidade do requerente para requerer a insolvência e não que decida sobre o mérito da relação jurídica;
x)– Também não se aceita que no caso resulta manifesto que os requerentes não lograram indiciar/justificar o seu crédito, na medida em que foi o Tribunal recorrido que, ao agir da forma descrita, obstando à realização da audiência de julgamento, impediu os requerentes de indiciar/justificar o seu crédito;
y)– Os requerentes da insolvência, previamente a requerer a declaração judicial da insolvência da devedora, instauraram uma ação declarativa para ver o seu direito de crédito judicialmente reconhecido;
z)– Não existem nem na letra nem no espírito da lei razões que impeçam o direito dos requerentes de virem pedir em momento posterior a declaração de insolvência, pelo facto de o seu crédito estar controvertido;
aa)– A “fundamentação” desenvolvida pelo Mmo. a quo, para além dos erros e das ofensas já assinaladas, surge ainda manifesta e intrinsecamente contraditória pois sustenta fundamentos entre si incompatíveis;
bb)– Simultaneamente, sustenta que a questão da existência do crédito é de natureza manifestamente complexa e que a condensação nestes autos da matéria complexa que já foi discutida no processo referido, não só vai frontalmente contra aquilo que o legislador pretendeu para o processo de insolvência, como geraria um julgamento que certamente se arrastaria por várias sessões, e isto apenas para aferir a existência ou não do crédito em causa, sendo certo que, adicionalmente, seria necessária prova de um dos índices de insolvência e ainda da solvência da requerida ou a falta dela, para depois afirmar que neste momento, no nosso ordenamento jurídico, os requerentes não são credores da requerida, pois o crédito que invocam não lhes foi reconhecido na acção judicial em que foi largamente discutido para depois sustentar que no caso, em face de tudo o sobredito, resulta manifesto que os requerentes não lograram indiciar/justificar o seu crédito;
cc)– A fundamentação da sentença padece de contradições que a tornam obscura
e ambígua, diríamos mais, padece de falta de fundamentação válida;
dd)– A sentença recorrida é, por isso, nula, atento o disposto no artigo 615º do  PC;
ee)– A nulidade ora invocada serve de fundamento ao presente recurso, atento o disposto no nº 4 do citado artigo 615º do CPC.;
ff) A douta sentença recorrida violou, entre outros os artigos 11º, 35º do CIRE.

Nestes termos e nos mais que douta e superiormente venham a ser supridos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via dele:
a)– Ser julgada procedente a invocada nulidade decorrente da irregularidade cometida com incontestável influência na decisão da causa e, por isso, geradora de nulidade (artigo 195º do CPC), com todas as consequências legais;
b)– Ser julgada procedente a invocada nulidade da douta sentença recorrida,
também neste caso, com todas as consequências legais daí decorrentes;
c)– Ser, sempre e em qualquer caso e sem prejuízo das invocadas nulidades, revogada a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que ordene o cumprimento do disposto no nº 1 do artigo 35º do CIRE, procedendo-se à marcação da audiência de discussão e julgamento nos autos.

A requerida ofereceu contra alegações nelas defendendo o decidido.

III–A matéria de facto a ter em consideração para a apreciação do recurso emerge do acima relatado.
Não obstante, não se deixará aqui de se referir que, para tal efeito, releva considerar que na acção declarativa acima referida os aqui Requerentes pedem a condenação solidária da aqui Requerida e dos seus sócios a pagarem, ao aqui Requerente Pedro, a quantia de 200 000,00€, ou a de 162 000,00€, num caso e noutro acrescida de juros desde a citação, ou ainda a indemnização, a fixar segundo um juízo de equidade, pelos danos por este sofridos em virtude de culpa in contrahendo; que os aí RR. contestaram e reconvieram; que o julgamento nessa acção se prolongou por nove sessões; que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os aí RR. dos pedidos; que os AA nessa acção apelaram, e que nesse recurso impugnaram grande parte da matéria de facto, não tendo a apelação sido ainda decidida.

Utilizando a sintetização da temática daquela acção feita pela aqui Requerida na oposição aos presentes autos, envolve a mesma um negócio celebrado entre os ora Requerentes e os atuais sócios da Requerida, cujo objecto foi a totalidade das participações sociais da Requerida Sucesso 2004, estando em causa um acordo celebrado em Abril de 2012, através do qual foi feita a cedência, pelo preço de € 50.000,00, da integralidade do capital social da ora Requerida — na altura detida pelos aqui Requerentes Tânia ....... e Luís Marques — aos seus atuais sócios, Abel e Maria Alexandrina Matos – sendo  que os aqui Requerentes entendem que a cedência das quotas da Requerida e a sua contraprestação, correspondente à quantia de € 50.000,00, foram apenas uma parte de um negócio jurídico mais abrangente, que incluiria, alegadamente, o pagamento pelas participações sociais da Requerida de € 250.000,00, a cedência ao Requerente Pedro de uma quota representativa de 25% do capital social da Requerida e ainda o pagamento ao mesmo de uma “renda” mensal.
AA. e RR. nessa acção são familiares entre si.

IV–Do confronto das conclusões das alegações com a decisão recorrida, resultam para apreciação as seguintes questões: se a sentença é nula por conter contradições que a tornam ambígua ou obscura; se a circunstância de não ter sido dado cumprimento ao disposto no art 35º do CIRE implicou nulidade do processo.
Estas questões têm subjacente a mais genérica de saber se o credor de crédito litigioso tem legitimidade para requerer a insolvência desse seu devedor, e serão adiante resolvidas em função da posição que se venha a tomar a respeito desta questão, na medida em que, pelo menos a referente à nulidade do processo, se configura, essencialmente, como corolário da mesma.
O ponto de vista dos Requerentes/apelantes nessa questão nuclear é o de que lhes assiste legitimidade processual para requererem a insolvência da Requerida em função da (mera) invocação do crédito litigioso a que aludem na petição, e que a legitimidade substantiva a que se reporta o art 20º CIRE, pressuporia, necessariamente, que a mesma tivesse sido aferida, ainda que sumariamente, em audiência de julgamento, em função da prova aí produzida. Por isso referem na conclusão p) que «O Tribunal recorrido deveria ter promovido a realização da audiência de julgamento e só depois decidir do mérito e, face à prova produzida, concluir sumariamente pela existência ou não do crédito invocado» e na conclusão x), que «foi o Tribunal recorrido que tendo obstando à realização da audiência de julgamento, impediu os requerentes de indiciar/justificar o seu crédito»

O ponto de vista do Tribunal foi, em termos sintéticos, o de que aos Requerentes lhes assistia legitimidade processual para requererem a insolvência da Requerida ainda que a sua qualidade de credora daquela se mostre controvertida na acção declarativa ainda pendente, mas, a circunstância dessa qualidade não poder ser aferida nos presentes autos sem colocar em crise as características e objectivos de celeridade próprios do processo de insolvência, determina a ilegitimidade substantiva dos Requerentes na acção, implicando a absolvição do pedido da Requerida.

Em rigor, o ponto de vista da Requerida/apelada não coincidirá totalmente com o do Tribunal a quo, por esta parecer entender que a ilegitimidade que resulta para os Requerentes da não adequação dos autos de insolvência para a aferência da existência daquele crédito em função da complexidade da controvérsia que o envolve na acção declarativa pendente, é ainda uma ilegitimidade processual implicante da sua absolvição da instância.

As diferenças de tramitação e resultados na acção de insolvência que resultam das posições enunciadas, denunciam, de imediato, as dificuldades da questão em apreço, e a circunstância de grande parte delas resultarem da transposição para este domínio da já bem conhecida controvérsia que envolve a legitimidade enquanto pressuposto processual ou pressuposto de mérito.

È ainda essa problemática que justifica em grande parte a não integral coincidência entre a sistematização a que procedem os Requerentes apelantes e a  Requerida /apelada relativamente às posições adoptadas na doutrina e na jurisprudência sobre a questão em apreço.

É assim que esta refere a existência de três posições –uma primeira  que designa por  uma Legitimidade Ampla, «nos termos da qual o credor litigioso terá sempre legitimidade processual, na medida em que o problema da existência do crédito se prende com o mérito da causa subjacente à acção declarativa onde o seu crédito é discutido»; uma segunda, que intitula de tese Intermédia, «nos termos da qual o credor litigioso tem, em princípio, legitimidade processual por via do disposto no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, mas devendo esse crédito ser discutido em foro próprio caso não seja susceptível de um juízo superficial e célere no processo de insolvência»; e uma terceira, que designa por tese da Legitimidade Restritiva, que «representa o entendimento de que o credor litigioso não tem qualquer legitimidade para requerer a insolvência do seu pretenso credor, porquanto nos termos no n.º 1 do artigo 3.º do CIRE apenas serão credores aqueles que forem titulares de créditos exigíveis».

Já os Requerentes/apelantes bipartem as correntes doutrinais e jurisprudenciais  a respeito da legitimidade em apreço, referindo a tese da legitimidade restrita (substantiva), «para a qual o credor requerente da insolvência tem de ser detentor de um título executivo, sob pena de, não sendo assim, ser afectada a segurança jurídica», e uma outra que apelidam de legitimidade ampla (ad causam), «para a qual que não há razão objectiva para obstaculizar que o titular de um crédito litigioso interponha um pedido de declaração de insolvência, pois tal circunstância não lhe retira legitimidade processual nem material.»

Não se pretende tomar posição a respeito de qual das sistematizações é a mais correcta/perfeita/ou abrangente, mas apenas, como acima já se referiu, chamar a atenção para a circunstância de na matéria me apreço a legitimidade, (poder) assumir  cambiantes diversos ligados à distinção entre forma e fundo, entre  pressuposto processual e mérito.

O que com maior facilidade se afigura recolher da jurisprudência é a clara tendência da mesma para atribuir legitimidade ao titular de crédito litigioso para requerer a declaração de insolvência do respectivo devedor, colocando tal legitimidade   em termos gerais – entendendo «como titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida  tal como é configurada pelo autor», nos termos do  art 30º/3 CPC .

O que quer dizer, ao nível da legitimidade activa que está em apreço que, como é referido no AC STJ 29/3/2012 [1], será dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência, «quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não – necessariamente – quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado», por ser (…)  «de natureza processual ou “ad causam” e não substantiva a legitimidade para requerer a declaração de insolvência de um devedor, nos termos previstos no corpo do nº 1 do art. 20º».

E os argumentos utilizados para essa conclusão pela jurisprudência antecedente [2] e a subsequente [3] ao acima referido aresto do STJ, são, essencialmente, os que este acórdão adequadamente condensa:
– o da interpretação da lei, na consideração de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e na da regra de que  ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”-  assim a  própria redacção do art 20º/1 (quando nela se refere que e “A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida…por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito…”) inculca, à partida, que o legislador «não coloca qualquer entrave a que a declaração de insolvência do devedor possa ser requerida pelo titular de crédito litigioso sobre o mesmo, uma vez que proclama a indiferença, em tal perspectiva, da natureza do crédito cuja titularidade é invocada como pressuposto de legitimação do requerente de tal declaração (…)», para além, de que «o entendimento contrário traduziria um tratamento discriminatório em desfavor do titular de crédito litigioso relativamente aos credores condicionais (…) sem que qualquer atendível razão material o justificasse. Com efeito, em tal tese, o titular de crédito litigioso seria sempre desprovido de legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu invocado devedor apenas em consequência da verificada litigiosidade do crédito cuja existência real não se poderia ter por excluída, enquanto que ao titular de um crédito sujeito a condição suspensiva que acabasse por não se verificar ou ao titular de um crédito sujeito a condição resolutiva que viesse a verificar-se (…) assistiria, sempre, tal legitimidade. O que, além do mais, violaria o princípio da “par conditio creditorum” (Cfr. art. 194º), conquanto na antecâmara do processo de insolvência;»
– o princípio da auto-suficiência do processo de declaração de insolvência, «quer na vertente da tutela provisória da aparência, quer na perspectiva da extensão da correspondente competência material para o conhecimento de todas as questões cuja decisão se mostre imprescindível para a sentença a proferir no processo de insolvência (Cfr. art. 96º, nº1, do CPC)»;
– «o afunilamento grave e sem correspondente justificação plausível do acesso à tutela jurisdicional dos direitos de crédito prosseguida pelo processo de insolvência» que a tese contrária encerra, «pois bastaria  que o devedor contestasse, em juízo, ainda que sem qualquer fundamento, o crédito invocado pelo requerente da insolvência, para retirar a este a correspondente legitimidade», o que só poderia implicar o início tardiamente indesejável do  processo de insolvência. 
– a não ocorrência de julgados contraditórios, entre o processo de insolvência e aquele em que tivesse sido  suscitada a litigiosidade do crédito, em função do «o simples reconhecimento da legitimidade processual» operada no processo de insolvência,acrescentando-se que «serão, certamente, nulos ou muito residuais os casos em que, atento o disposto no art. 20º, nº1, al. b), o incumprimento de uma só obrigação determine, por si só, a declaração da insolvência do devedor. Além de que a magra vantagem conferida ao credor requerente pelo art. 98º, nº1 para pagamento do respectivo crédito, de longe é superada pela desvantagem da sua eventual responsabilização cível pela dedução de pedido infundado de declaração de insolvência (art. 22º), o que, sem dúvida, funcionará como grandemente inibidor daquela dedução.»

No sentido absolutamente contrário ao evidenciado, consequentemente, no sentido de que o de que o titular de crédito litigioso não tem “tout court” legitimidade para requer a insolvência daquele que entende seu devedor, na medida em só têm legitimidade (processual e substantiva) para requerer a insolvência, os credores  com créditos vencidos e exigíveis, são efectivamente poucos os acórdãos que se conhece.

Apenas o Ac RL 5/6/2008 (Arnaldo Silva), o Ac RL 15/10/2009 – em que se refere que «para que se possa considerar preenchido o facto índice de presunção de insolvência previsto na al b) do art 20º CIRE é necessário que o crédito seja exigível pelo credor, ou seja, o crédito tem que estar na titularidade do requerente em termos de poder ser, na data do requerimento da insolvência, exigido ao devedor»- e o Ac RP 20/4/2009 (Anabela Dias da Silva), cujo sumário é o seguinte: «Carece de legitimidade para requerer a insolvência quem, arrogando-se credora daquela por créditos salariais, justifica a existência dos mesmos, pelo facto de ter intentado no Tribunal competente a necessária acção laboral para o reconhecimento desse direito onde a existência do crédito foi contestada sem ter sido proferida sentença».

Entre um entendimento e outro situam-se entendimentos“ intermédios”, em que se destaca aquele a que os Recorrentes aludem, segundo o qual o credor requerente da insolvência tem de ser detentor de um título executivo, sob pena de, não sendo assim, ser afectada a segurança jurídica, de que apenas se encontrou expressão no  Ac STJ de 4/7/2002 (Araújo de Barros) no qual – ainda no âmbito do CPEREF  - é, entre o mais, referido: «Não é o caso de ser indispensável que o seu alegado crédito esteja judicialmente reconhecido para justificar o requerimento e declaração da falência (…). Sempre, no entanto, a sua alegação sobre a existência do crédito, a sua origem, natureza e montante – art 17º/1 CPEREF - necessita de ser comprovada, no mínimo, através da prova de primeira aparência, em similitude com o que acontece em processo de execução». (…) «Só, pois, através da prova, ainda que indiciária ou de primeira aparência (que não significa a mera alegação, tanto mais quando impugnada pela requerida quanto aos factos e efeitos jurídicos pretendidos) se pode chegar à consideração de que o crédito existe tal como dessa prova resulta, de que é exigível pelo credor requerente, e, por último, que se verifica o respectivo incumprimento, um dos factores índices mencionados no art 8º/1 do CPEREF».

Também o entendimento utilizado pela decisão recorrida pode ser visto como  “intermédio”.

No que lhe respeita, dando-se por adquirido que o titular de crédito litigioso tem legitimidade processual para requerer a insolvência daquele que pretende ser seu devedor, é-lhe retirada depois tal legitimidade -  no entendimento do tribunal a quo, mesmo a substantiva  - para aquele efeito, perante a constatação, feita em fase mais ou  menos precoce do processo de insolvência, de que a «a controvérsia a respeito da existência do crédito é tal que, objectivamente, permita antever que só mediante uma aprofundada indagação, quer de facto quer de direito o assunto pode ser esclarecido; indagação só compatível com as garantias próprias de um processo declarativo autónomo; e que supera a natureza da (mera) justificação (sumária) própria do processo de insolvência. Deve então concluir-se que o requerente não preenche a necessária condição de legitimação que o habilita a requerer a concernente declaração» [4]

Ou, nas palavras do Ac R L de 2/11/2010 [5], «o facto do crédito ser litigioso não lhe retira legitimidade processual para requerer a insolvência do pretenso devedor, devendo-lhe ser permitido, em regra, no processo de insolvência a produção de prova com vista à demonstração do seu crédito. Contudo, a prova a produzir no âmbito de tal processo com vista à determinação da existência do crédito do requerente não poderá deixar de ser uma prova sumária, sendo que por força dos princípios de urgência e celeridade que lhe subjaz, o processo não atribui às partes as garantias de um processo declarativo comum».

Ou, ainda como o refere o recente Ac RG 10/11/2016[6],a que faz especial referência a decisão recorrida: «O titular de um credito litigioso pode, por regra, pedir a insolvência do respectivo devedor se, verificados os demais pressupostos, essa situação se verificar. Porém, só um crédito que possa ser célere e sumariamente justificado no processo de insolvência pode servir de fundamento para aquele pedido. Assim, se um credito é alegado e questionado em tais termos (…) se a sua existência não se pode ter como justificada pelo sobredito modo, carece o titular desse pretenso credito da necessária condição de legitimação que o habilita a requerer a insolvência do respectivo devedor».

Há ainda que fazer notar que no entendimento que se designou pelo da “legitimidade ampla” se podem descortinar duas vertentes – uma mais ampla do que outra – as quais se mostram susceptíveis de implicarem tramitações e resultados diversos no processo de insolvência.

Para uma, a menos ampla, partindo do pressuposto (que afinal, se mostra praticamente consensual), de que o titular de credito litigioso tem legitimidade (processual) para requerer a insolvência daquele que pretende ser seu devedor, se da prova que  vier a ser produzida na audiência não resultar que o mesmo é efectivamente credor, a insolvência improcederá por ilegitimidade substantiva daquele.

Para outra, muito mais ampla, a conclusão de que afinal aquele credor não o é efectivamente, em nada interferirá com a iniciada insolvência que, em princípio, prosseguirá os seus termos.

Para uma e outra destas vertentes, e como é fácil descortinar, resulta obrigatório que, tendo havido oposição do devedor, o juiz tenha de fazer prosseguir o processo, designando dia para a audiência de julgamento – ali, para potenciar ao requerente que faça prova da existência do seu crédito; aqui, porque o processo irá de qualquer modo prosseguir.

O Ac RP de 3/11/2010 [7] e o da mesma Relação de 3/11/2014 [8], bem como o da RL 16/3/2010[9] inserem-se naquela primeira linha, destacando-se no primeiro que «a lei não coloca na disponibilidade do tribunal a decisão de realizar ou não a audiência de julgamento, sendo esta obrigatória sempre que seja deduzida oposição».

É esta a posição dos apelantes nos autos.

Não se conhecem decisões jurisprudenciais que defendam a referida segunda linha, mais abrangente, mas o ponto de vista em causa é claramente defendido por Catarina Serra no estudo “O Fundamento Público do Processo de Insolvência e a Legitimidade do titular de Crédito Litigioso para Requerer a Insolvência do Devedor”, in Revista do Ministério Público, Ano 34, nº 133, Janeiro-Março/2013, págs. 97 a 133.

Não pretendendo este Tribunal ser fastidioso, vê-se interesse numa referência mais estruturada ao ponto de vista desta autora.
A mesma, depois de frisar que a insolvência é o requisito (único) do processo de insolvência e que este processo é (também) um instrumento de tutela jurisdicional  dos interesses dos credores em sentido objectivo, logo, do interesse público, faz relevar que o poder de requerer  a declaração de insolvência «não é poder executivo mas poder de acção declarativa» - «aquilo que o credor pretende é a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência e desencadeie o funcionamento dos mecanismos  jurisdicionais adequados às necessidades especiais de tutela criadas por aquela situação», e é, quando reclamam créditos, que os credores estão a exercer «o seu poder de execução» no processo de insolvência. De tal modo que, «provando-se a inexistência do direito invocado, a insolvência deve deixar de correr no interesse do sujeito que o invocou, o que implica no contexto do processo de insolvência, que o credor reclamante não seja pago pelo crédito alegado. A apreciação desta faculdade ocorre, todavia, em momento posterior – na fase da reclamação e verificação de créditos – e não pode confundir-se com o momento da apreciação do início do poder de acção declarativa em que se consubstancia o pedido de declaração da insolvência». Pondo em relevo que o que está em causa na norma do art 20º/1 do CIRE é a legitimidade processual e não a substantiva e que, por isso, «a relação jurídico processual estabelece-se entre as partes tal como elas são identificadas no requerimento de insolvência», refere que a lei consente que o requerente possa não ser efectivamente titular da relação material, repetindo que, «provando-se a inexistência do direito alegado, a acção deve deixar de correr no interesse do sujeito que a invocou, o que implica no processo de insolvência, que o credor não seja pago pelo credito que alegou» sendo que, «uma vez declarada judicialmente a insolvência a (indesejável) descoberta de que o requerente não é, afinal, credor deverá considerar-se irrelevante - o processo deve continuar o seu curso, com o fito de satisfazer os múltiplos interesses (restantes) que a insolvência convoca». Destaca que para a lei basta que o credor proceda à justificação do seu crédito, fazendo corresponder a essa justificação a simples menção da origem, da natureza e do montante do seu crédito (art 25º/1 CIRE): «Trata-se rigorosamente de o credor requerente justificar a sua legitimidade processual, ou seja de demonstrar a sua qualidade de credor, que é requisito do seu direito de acção judicial». E discorda veementemente de «quem (ainda) sustenta a tese de que a legitimidade do credito afecta a legitimidade do requerente», entendendo antes que a lei «aceita bem o risco do credor não ser afinal credor», não deixando, no entanto, de acentuar que «havendo já, antes da declaração de insolvência, sinais evidentes que permitam ao juiz concluir, sem lugar para dúvidas, que o alegado credor não é titular do direito credito, dever (o mesmo) conhecer oficiosamente da excepção». Não se deixa impressionar pelo argumento de que o requerente pode estar a instrumentalizar o processo de insolvência utilizando-o para alcançar fins alheios a esse processo, considerando que esse risco é comum a muitos outros exercícios de direitos, e menos ainda se impressiona com o argumento do «excesso de litigiosidade», (ao nível da legitimidade processual para iniciar o processo de insolvência) formulando, no final do dito estudo, as seguintes conclusões: «1ª) Os titulares de créditos litigiosos não estão inibidos de requerer a declaração de insolvência do devedor, ao abrigo da norma do art. 20.°, n.°1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; 2.ª) O hipotético “excesso de litigiosidade” do crédito não tolhe a legitimidade do credor para pedir a declaração de insolvência do devedor».

Vistas assim em termos gerais as posições que se postulam na matéria em apreço, é tempo de tomar posição.

Pelas (mesmas) razões acima expostas e em função das quais, como se mencionou, a grande maioria da jurisprudência assim o entende, é-se de opinião que o titular de crédito litigioso tem legitimidade para requerer a insolvência do devedor do controvertido crédito. Qualquer credor constitui sujeito legitimado para requerer a abertura do processo de insolvência e – deixando-nos impressionar pelo estudo de Catarina Serra – não tem, em princípio, que se apurar previamente, na fase que antecede a declaração ou não da insolvência, se o mesmo é ou não efectivamente credor. O legislador basta-se, em princípio, com aquela legitimidade processual, admitindo que a insolvência venha a ser declarada em função do requerimento de quem possa não ser efectivamente credor, dando primazia aos interesses indiscutivelmente públicos da insolvência.

Sucede que, salvo melhor opinião, não pode manter-se a mesma posição relativamente às situações, como as dos autos, em que o credor requerente da insolvência, e que o faz enquanto titular de crédito litigioso, constitui o único credor do devedor cuja insolvência requer.

Note-se que nos autos os Requerentes não indicaram a existência de outros credores –  e nem sequer requereram que a Requerida procedesse a essa indicação -  e a requerida negou essa existência.
Se é certo que a insolvência pode decorrer do incumprimento de uma única obrigação, é também seguro que não há insolvência sem pelo menos uma obrigação vencida.

Pelo que sendo a insolvência requerida por um credor de crédito litigioso que constitui o único (possível) credor do (pretendido) devedor, a insolvência, necessariamente restringida, na sua parte inicial, a um processo de partes, não poderá prosseguir afim de vir a ser ou não declarada, sem que se apure a existência desse único crédito e do seu vencimento.

Deixa de estar em causa uma simples legitimidade processual e deve passar a exigir-se legitimidade substantiva. 

È neste contexto, e só neste - que é, no entanto, o dos autos  – que haverá que admitir que  o processo de insolvência possa não se configurar como o adequado para apurar aquela legitimidade substantiva, o que sucederá quando em função da necessariamente precedente acção  em que se discuta o crédito [10], se possa concluir – aí sim – pela “excessiva litigiosidade” do mesmo.

Carvalho Fernandes e João Labareda - ainda que não colocando a questão ao nível em que a estamos a colocar, de estar em causa um único credor e este ser litigioso – pronunciando-se previamente no sentido de «ser mais coerente que se reconheça também ao credor litigioso legitimidade para a promoção da acção, naturalmente transportando para a fase antecedente à sentença a discussão da matéria que ela julgará» [11], não deixam, subsequentemente, de afirmar que, «sem embargo, justificam-se considerações complementares», referindo a esse título que, «a arquitectura do processo de insolvência e o ritmo que legalmente lhe é imprimido fazem com que ele não se vocacione para longas discussões nem ofereça os meios e garantias apropriados para indagações aprofundadas sobre a existência ou não do direito que o requerente se arroga – cfr. v.g., o art.º 35.º - diferentemente do que sucede nos meios comuns.
Por isso, se um crédito foi previamente ajuizado em tribunal competente e aí a sua existência é questionada em termos tais que só uma averiguação típica do processo comum autónomo o pode esclarecer, não estão reunidas as condições para que tal crédito, na situação em que se encontra legitime a acção de insolvência – note-se que na reclamação a verificação de créditos, havendo litigio, segue-se o modelo do processo comum (cfr. artºs 136.º e segts (…)»
e por isso, entendem que «merece ser sufragada a orientação acolhida  pelo TRL no seu acórdão de  22/11/2011 (…[12]

Reconhece-se que a distinção referente à “excessiva litigiosidade” para justificar que a existência do crédito seja ou não conhecida no próprio processo de insolvência – sempre, do nosso ponto de vista, apenas quando esteja em causa a situação do credor litigioso requerente se configurar como único (possível) credor – oferece fronteiras muito fluidas, por ser discutível, em ultima análise, o que seja o tal “excesso de litigiosidade”. 

O critério será sempre o de obviar a que um processo que se pretende célere e até urgente se converta num arrastar processual, o que na situação a que os autos se refere teria muitas condições para suceder, desde o momento em que o julgamento na acção pendente ocupou nove sessões.

Por isso, mas em função da distinção que aqui se operou, sempre haverá que confirmar, no essencial, a decisão recorrida.

E diz-se, no essencial, na medida em que, desde o momento em que não se veio a concluir pela ilegitimidade substantiva dos Requerentes – que só podia ser afirmada perante a conclusão de que os mesmos (ou mais precisamente o Requerente Pedro) não são credores da Requerida - o que se impunha era a respectiva absolvição da instância e não a do pedido.

Ora, em decorrência directa da posição que se tomou na dita questão essencial,  surge evidente, do nosso ponto de vista, a falta de razão dos apelantes relativamente à  nulidade processual que entendem que resultou do facto do Exmo Juiz a quo não ter procedido em consonância com o disposto no art 35º/1 do CIRE, isto é, não ter logo após a oposição da Requerida designado dia para audiência de discussão e julgamento, de modo a potenciar-lhes a prova da titularidade do crédito de que se arrogam .

Num processo em que se manteve o indeferimento liminar do pedido «quando seja manifestamente improcedente (o pedido de declaração de insolvência) ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que se deva conhecer oficiosamente» - art 27/1 al a) do CIRE - não faz sentido que se recuse ao Juiz a possibilidade de obviar à realização de uma audiência de julgamento, quando, conhecida a oposição do devedor, se torne para o mesmo segura a manifesta improcedência daquele pedido ou a existência evidente de excepções dilatórias .
O Juiz só estaria obrigado a proceder em conformidade com o art 35º/ 1 do CIRE se o entendimento que viesse a demonstrar a respeito daquela que se teve como a questão essencial, fosse um dos acima indicados como correspondentes ao da “legitimidade ampla”.

Repare-se ainda que, na concreta situação dos autos, o Exmo Juiz a quo, com o conteúdo que deu ao despacho em que possibilitou às partes que se pronunciassem a respeito da prossecução do processo,  como que anunciou previamente o entendimento que viria a ter relativamente àquela questão, tornando-se óbvio perante o mesmo, que não iria designar dia para a audiência de julgamento.

Assim, se da acima referida nulidade se pudesse falar – e já se viu que não pode – a mesma a ter-se-ia sanado com a sua não arguição pelos Requerentes nos 10 dias subsequentes ao da notificação daquele despacho.

Por outro lado, a decisão recorrida não se mostra ambígua ou obscura como o pretendem os apelantes. Que, aliás, note-se, não chegam a atribuir à ambiguidade e/ou obscuridade que atribuem à decisão o que verdadeiramente poderia conduzir, em função desses vícios, à nulidade da mesma, e que é, segundo a 2ª parte da al c) do nº 1 do art 615º CPC, a respectiva ininteligibilidade.

Com efeito, a decisão não se torna ininteligível porque o juiz tenha referido  (conclusão bb), que «a questão da existência do crédito é de natureza manifestamente complexa», afirmando subsequentemente «que neste momento, no nosso ordenamento jurídico, os requerentes não são credores da requerida, pois o crédito que invocam não lhes foi reconhecido na acção judicial em que foi largamente discutido», acabando por entender que «resulta manifesto que os requerentes não lograram indiciar/justificar o seu crédito». Afinal a ininteligibilidade só se verifica quando um declaratário normal não possa retirar da parte decisória (e só desta) um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar, e nada disso se passa em função das considerações atrás referidas.

Assim, a apelação deve ter-se como improcedente, ainda que se entenda que ao invés de se julgar a acção improcedente absolvendo-se a Requerida do pedido, como foi feito na 1ª instância, se deve julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade dos Requerentes para o pedido de declaração de insolvência e, em consequência, absolver a Requerida da instância.

V– Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e julga  procedente a excepção dilatória de ilegitimidade dos Requerentes para o pedido de declaração de insolvência, absolvendo,  em consequência, a Requerida da instância.

Custas pelos Apelantes.



Lisboa, 20 de Dezembro de 2017


Maria Teresa Albuquerque
Vaz Gomes
Jorge Leal
                                                   
                 

[1]Relator, Fernandes do Vale. Constando do respectivo sumário: «I -O titular de crédito litigioso encontra-se legitimado ao abrigo do preceituado no art 20º/1 do CIRE, para requerer a declaração de insolvência do respectivo devedor; II «Trata-se , in casu, de legitimidade processual ou ad causam, não contendente com o mérito da causa a que diz respeito a existência ou inexistência do controvertido crédito».
[2]–Ac. do TRP de 26.01.2010: «1- A atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdicional do direito crédito — seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido - representado pela insolvência. 2 -É ao autor ou requerente que compete assegurar o preenchimento dos pressupostos processuais, desde logo a legitimidade ad causam e para isso é indispensável que se lhe assegure a possibilidade de realização da prova, no processo de insolvência, dos factos correspondentes, se estes forem controvertidos»
Ac T R L 16/3/2010 ( Manuel Marques): «A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, não se exigindo que o credor possua título executivo. 2. A lei não coloca na disponibilidade do tribunal a decisão de realizar ou não a audiência de julgamento, sendo esta obrigatória sempre que seja deduzida oposição».
Ac. TRP de 03.11.2010 (Filipe Caroço): «1 – A contestação, pelo requerido, do crédito do requerente da insolvência, ainda que também o conteste previamente ao início do processo de insolvência, em acção declarativa comum, não afecta a respectiva exigibilidade, nem obsta à legitimidade ad causam do último para apresentar o pedido de declaração de insolvência.11 – Formulado este pedido e contestada a existência do crédito, o processo de insolvência tem que prosseguir, designadamente para que o requerente possa fazer prova da existência daquele seu direito».
Ac R C 2/3/2011 (Helder Almeida): «Tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência qualquer credor que alegue a existência do crédito, não se exigindo que o mesmo esteja vencido, ou que haja título executivo.

Ac R L Ac R P 3-11-2014 ( Manuel Domingos Fernandes)
Se o devedor deduzir oposição ao requerimento do pedido de declaração de insolvência, o tribunal não pode dispensar a realização da audiência de discussão e julgamento.
II - A lei não coloca na disponibilidade do tribunal a decisão de realizar ou não a audiência de julgamento, sendo esta obrigatória sempre que seja deduzida oposição.
III - O problema da legitimidade do credor para deduzir o pedido de insolvência tem dado lugar a uma jurisprudência divergente a nível da segunda instância, sustentado uns que só é dotado de legitimidade para promover o procedimento de insolvência o credor cujo crédito não é controvertido ou litigioso e advogando outros que mesmo o credor de crédito litigioso dispõe daquela legitimidade.
IV - A razão está, porém, do lado de quem entende que o carácter litigioso ou controvertido do crédito não tolhe a legitimidade do credor para requerer a declaração de insolvência.
V – No plano do processo de insolvência a legitimidade a que lei se refere é, nitidamente, não a legitimidade substantiva, mas a legitimidade processual, ad causam (artigo 20.º, nº 1 do CIRE), portanto, essa legitimidade é aferida nos termos gerais (artigo 17.º do CIRE).
Ac R C 29/2/2012  (Henrique Antunes) : «I O problema da legitimidade do credor para deduzir o pedido de insolvência tem dado lugar a uma jurisprudência desencontrada das Relações, sustentado uns que só é dotado de legitimidade para promover o procedimento de insolvência o credor cujo crédito não é controvertido ou litigioso e advogando outros que mesmo ao credor de crédito litigioso dispõe daquela legitimidade.
II - A razão está, porém, do lado de quem entende que o carácter litigioso do crédito não tolhe a legitimidade do credor para requerer a declaração de insolvência. III – No plano do processo de insolvência a legitimidade a que lei se refere é, nitidamente, não a legitimidade substantiva – mas a legitimidade processual, ad causam (artº 20 nº 1 do CIRE). Portanto, essa legitimidade é aferida nos termos gerais (artº 17 do CIRE). IV - Assim, e de harmonia com esses termos, é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer, com procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (artº 26 nºs 1 e 3 do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE). V - Nestas condições, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado. VI - A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade ad causam para deduzir o pedido de insolvência, que apenas respeita ao preenchimento de um pressuposto processual positivo e, portanto, a uma excepção dilatória imprópria. VII - Do mesmo modo, parte legítima no processo de insolvência não é credor e o devedor, mas quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou - um e outro são partes legítimas. VIII - Se todavia, vem a apurar-se mais tarde que o primeiro era credor aparente e o segundo devedor suposto, portanto, que na realidade nunca o primeiro fora titular do direito de crédito e nunca o segundo fora o devedor, a consequência é não a absolvição da instância do demandado, por ilegitimidade ad causam do primeiro, mas a absolvição do segundo do pedido. IX - A atribuição de legitimidade para deduzir o pedido de insolvência apenas ao credor cujo crédito não tenha sido contestado, restringiria, grave e injustificadamente, o meio de tutela jurisdicional do direito crédito – seja do requerente da insolvência seja dos demais credores do requerido - representado pela insolvência: é que bastaria ao devedor, ainda que de forma patentemente infundada, contestar o crédito do requerente para se concluir pela ilegitimidade do requerente e, consequentemente, para se obviar à declaração de insolvência. X - Está adquirido à certeza que o carácter condicional do crédito – seja a condição suspensiva ou resolutivo – não tolhe a legitimidade do requerente da insolvência.XI - Portanto, admite-se a requerer a insolvência ao credor cujo crédito ainda nem sequer se mostra constituído – dado que essa constituição depende da verificação de um facto futuro e incerto. XII - O facto de entre as partes se encontrar pendente acção que tem também por objecto a questão da resolução do contrato promessa de compra e venda e a imputabilidade do não cumprimento definitivo das prestações de facto jurídico positivo que dele emergem, não constitui obstáculo a que, no contexto de insolvência, se conheça de tais questões. XIII - Por esta razão: a da auto-suficiência do processo de insolvência, tomada aqui com o significado de que esse processo é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar - a declaração de insolvência (artº 96 nº 1 do CPC)»
Ac RL 16/1/2014 (Carla Mendes): «O titular de crédito litigioso tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu devedor, ex vi art. 20/1 Cire.2 – A legitimidade em questão é processual/ad causam e não se confunde/contende com a questão de mérito respeitante à existência ou inexistência do crédito»
Ac STJ 17/11/2015 (Fonseca Ramos) :«. O art. 20º, nº1, do CIRE legitima a requerer a insolvência “qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”, o que bem se coaduna com a natureza do processo de insolvência, e a sua matriz de processo especial de execução universal e concursal do património do devedor insolvente – art. 1º, nº1. II. Mais incerto que o crédito litigioso é o crédito “condicional”, sobretudo, se a condição for suspensiva – art. 270º do Código Civil – mas, tendo o credor cujo crédito está sujeito a tal condição, legitimidade para requerer a insolvência, por maioria de razão o credor de crédito litigioso dispõe de igual legitimidade ad causam. (…)»
Ac RL 12/1/2016 (Mª do Rosário Morgado):«O titular de crédito litigioso tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu devedor, ex vi art. 20/1 CIRE;A legitimidade em questão não se confunde com a questão de mérito relativa à existência ou inexistência do crédito invocado
Ac RC 6/6/2017 (Arlindo Oliveira):«O titular de crédito litigioso tem legitimidade para instaurar acção de insolvência contra o pretenso (discutido) devedor».
[4]-Ac RL 22/11/2011 (Luís Lameiras)
[5]-Relatora, Mª João Areias
[6]-Relator, João Diogo Rodrigues
[7]-Relator, Filipe Caroço
[8]-Relator, Manuel Domingos Fernandes
[9]-Relator, Manuel Marques 
[10]Veja-se que crédito litigioso é, nos termos do nº 3 do art 579º do CC, o que corresponda ao «direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado»
[11]Nota 6 ao art 20º do «Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado» , Quid Juris, 2ª ed , 2013, p 203
[12]-Anotação 7 ao art 20º, obra e lugar atras referidos