Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
0010456
Nº Convencional: JTRL00020493
Relator: FLORES RIBEIRO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
RESTITUIÇÃO DO SINAL EM DOBRO
MORA
Nº do Documento: RL199006070010456
Data do Acordão: 06/07/1990
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: CCIV66 ART442 N2 ART798 ART799 ART804 N2 ART808 N1.
Sumário: I - O contrato-promessa é ele próprio um contrato sujeito ao regime da generalidade dos contratos designadamente do não cumprimento e mora.
II - A restituição do sinal em dobro só é de decretar em caso de incumprimento e não de simples mora.
III - A não celebração do contrato prometido no prazo convencionado só traduz incumprimento se, objectivamente, houver perda de interesse do promitente comprador.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
Sasseti - Sociedade Portuguesa de Música e Som, SARL propôs na Comarca de Lisboa contra Imobiliária Construtora Grão-Pará SARL, acção de condenação com processo ordinário, em que pede seja a ré condenada a pagar-lhe a quantia de 6359000 escudos e juros vencidos e vincendos. Fundamenta tal pedido no incumprimento do contrato-promessa entre ambos celebrado, imputável à ré pelo que tem esta de devolver o sinal em dobro.
Os fundamentos de tal pedido foram impugnados pela ré, que pede afinal a condenação da A. como litigante de má fé.
Proferido o despacho saneador, especificação e questionário, realizou-se audiência de discussão e julgamento.
Da sentença que condenou a ré a pagar à A. o sinal em dobro e não também os juros, resume aquela, que conclui as suas alegações do seguinte modo e em resumo: a apelada violou a cláusula 2, número 3 do contrato-promessa, ao não liquidar atempadamente as prestações de reforço do sinal; tal incumprimento foi justamente invocado pela apelante, através de cartas juntas aos autos; a apelante, "deu sem efeito" a carta de 31/10/83 através da sua carta de 14/10/83, apenas pelos motivos invocados pela apelada na sua carta junta a folhas 21; ao peticionar a devolução do sinal em dobro por violação da cláusula 7 do contrato-promessa, a apelada violou o princípio da boa fé, excedendo manifestamente os fins que a lei e o contrato visavam tutelar; agiu, assim, em manifesto abuso de direito; a apelada mais não pretende do que um enriquecimento à custa da apelante; o abuso de direito não necessita de invocação pela parte no processo, pois é de conhecimento oficioso; pelo facto de a apelada não ter liquidado atempadamente as prestações a título de reforço de sinal, não se poderá admitir, como o fez o tribunal recorido, que a promitente-compradora cumprira pontualmente o contrato-promessa; terá havido, quando muito, cumprimento defeituoso; antes da data fixada para a celebração da escritura, a apelada tinha já entrado na posse da fracção prometida vender, pelo que em nada esta ficou prejudicada pelo retardamento da mesma;
"admitindo como mera hipótese que o incumprimento se deveria à apelante e tendo em conta a não existência de prejuízos por parte dos promitentes-compradores e a violação dos princípios de boa fé e abuso de direito por parte da apelada, deveria neste caso o Tribunal a quo reduzir a pena convencionada para a entrega singela dos valores prestados, nos termos do artigo
812 do Código Civil".
A decisão recorrida violou os artigos 334, 405, 406, número 1 e 812, número 1, todos do Código Civil.
A apelada não contra-alegou.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada; por escrito de 18/04/83 a A. prometeu comprar e a R. prometeu vender, por 6359000 escudos, a fracção autónoma que viesse a corresponder à loja número 11 do prédio sito em Lisboa, na Rua Castilho, 50, em cujo rés-do-chão se encontrava instalado um centro comercial denominado "Drugstore Grão-Pará (documento folhas 4 e 5 que se dá por reproduzido) alínea A); na data da outorga do dito acordo a A. pagou à
R. a título de sinal e princípio de pagamento,
1271800 escudos e, posteriormente, para os mesmos fins, a A pagou à R. a quantia de 1907700 escudos alínea B); com data de 11/10/83 a A. enviou à R. a carta de folha 21 alínea C); em 29/10/84 a ré enviou à autora a carta de folha 6, que se dá por reproduzida, notificando-a para comparecer no dia 16/11/84, pelas 4 horas
30 minutos no 9 andar da Rua Castilho 50, em Lisboa, para a realização da escritura alínea D); a A. enviou à R. em 12/11/84, a carta de folha 3 dizendo que se considerava desvínculada da obrigação de outorgar o contrato de compra e venda, por este não ter sido efectuado até 18/04/83, como determinava a cláusula 7 do contrato- -promessa, considerando este incumprido alínea E): com o fim de lavrar protesto notarial até porque a A. não outorgaria a escritura para que fora notificada, duas pessoas ligadas à A. compareceram no local e ocasião indicados na carta aludida em D. alínea F); a A. apenas pagou as prestações referidas na cláusula 2, número 3 (alínea A), uma em Agosto e duas em Outubro de 1983 - (quesito 1); em 26/09/83 e 03/10/83 a ré enviou à A. as cartas de folhas 19 e 20 - (2); em 14/10/83 a R. enviou à A. a carta de folhas 22 -(3); as pessoas referidas na alínea F aguardaram no local e hora aí mencionados por mais de duas horas, sem que qualquer representante do R. ou notário tivesse aparecido - (4); o atraso foi longo e quando a notária apareceu ao fim da manhã já não se encontrava ninguém ligado
à A. - (6); em 01/10/84 a ré remeteu à A. a carta de folhas
- (9); a A. propôs à R. a alteração do destino da loja para "croissanterie" - (10); o que não foi aceite pela ré por violar o regulamento aprovado em assembleia geral de lojantes - (11); em 14/11/84 a ré enviou à A. o telex de folha
31 - (15); a A. fundamenta o seu pedido, como já vimos, na situação de incumprimento em que a ré se colocou ao não respeitar o prazo estabelecido no contrato-promessa para a celebração do contrato definitivo.
Diz o artigo 442, número 2 do Código Civil:
"Se quem constitui o sinal deixou de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato foi devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou...".
Como refere Diez-Picazo, "ainda que a terminologia possa resultar equívoca, o chamado pré-contrato
(o contrato-promessa segundo a nossa terminologia)
é, ele próprio, um contrato". (Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial - 1972, vol. 1, pág. 205).
Por isso, tem toda a justificação o aplicar-se-lhe o regime legal próprio da generalidade dos contratos.
É esta posição igualmente defendida no acordão do
STJ de 02/05/85, no BMJ 347, página 375; em Calvão da Silva - Sinal e contrato-promessa, 1987, página 83; e Antunes Varela, em vários estudos, nomeadamente na Rev. Legis. Jurisp. ano 119, página 217.
No artigo acima transcrito fala-se em "deixar de cumprir" e "não cumprimento". Por isso, estas expressões têm de ser entendidas dentro do contexto em que se integra o instituto do não cumprimento, nomeadamente o estabelecido nos artigos 798, 804 número 2 e 808 número 1 (ver Galvão Telles - Direito das Obrigações, 2 edição página 96).
Como ensina Antunes Varela, a expressão deixar de cumprir, tal como as fórmulas afins - falta de cumprimento, não cumprimento da obrigação usados nestes artigos aponta para o não cumprimento definitivo e não para o simples retardamento no cumprimento da obrigação (RLJ ano 119 pag. 217).
E concretizando esta ideia em outro estudo, diz que só ao não cumprimento (definitivo) corresponde a sanção prevista no número 2 do artigo 442, uma vez que à mora só podia corresponder a obrigação de indemnizar o dano moratório (artigo 804, número 1) - "Sobre o contrato-promessa, página
70, nesta (1).
Também para Galvão Telles o sinal vale como cláusula penal compensatória, que supõe a rescisão do contrato-promessa por incumprimento definitivo
- Direito das Obrigações, 5 edição página 95 nesta (2).
Igualmente para Calvão da Silva o sinal reveste uma natureza compensatória que não se coaduna, nos termos do artigo 442, com a simples mora no cumprimento. - (Cumprimento e sanção pecuniária compulsória página 297).
E ainda no mesmo sentido o já citado acordão do STJ.
Podemos assim concluir que a perda de sinal se verifica apenas em caso de não cumprimento definitivo e não também em caso de mora.
Porém, há situações de mora que acabam por se transformar em casos de imcumprimento (definitivo).
A este respeito, convem ter presente o artigo
808 que determina o seguinte:
1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.
Resulta deste comando legal que há incumprimento definitivo, em caso de mora a) quando o credor perder o interesse que tinha na prestação e b) quando esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.
A respeito da situação prevista na alínea a) há que ter em consideração o disposto no número 2 do artigo.
Daí resulta que "é necessário que a perda - a perda e não a simples diminuição - do interesse na prestação seja justificada à luz de circunstâncias objectivas".
- Antunes Varela no Rev. Legis. Jurisp. ano 118, folha 55.
Conjuguemos agora o que consta dos autos com os princípios atrás delineados.
A celebração da escritura pública de compra e venda é sempre possível realizar, pelo que não se está, em primeira linha, numa situação de incumprimento definitivo. Desenha-se, antes, com um caso de mora.
Terá a A. perdido o interesse que tinha na prestação?
Em parte alguma da petição inicial a A. faz referência à circunstância de ter perdido o interesse na prestação. Apenas e como resulta da alínea E) da especificação, se limita a dizer à ré, quando foi notificada da data da celebração da escritura que se considerava desvinculada da obrigação, por não ter sido respeitado o prazo convencionado para a celebração da escritura.
A A. poderia ter perdido, na verdade, o interesse na celebração do contrato. Só que a perda de tal interesse tem de ser analizada à luz de circunstâncias objectivas. Mas não foi alegado na petição inicial qualquer facto que permitisse fundamentar essas circunstâncias.
E nem em abstracto o não cumprimento de um prazo é só por si suficiente para fazer perder tal interesse.
Como se escreve no citado acordão, não integra um caso de falta de interesse para efeitos do artigo 808 um mero interesse subjectivo do promitente-comprador em não intervir no contrato definitivo, devido à inobservância do prazo estabelecido (página 318).
De acordo com a cláusula 7 do contrato-promessa, a escritura deveria ser celebrada dentro de um prazo máximo de um ano a contar da data da assinatura do contrato. Assim deveria ser celebrada até ao dia 18/04/84 (ver folhas 5 volume).
Porém, este prazo foi ultrapassado e só em 29/10/84 a ré escreve à A. a indicar qual a data, hora e local da celebração da escritura.
Durante o lapso de tempo que decorreu entre 18/04/84 e 29/10/84 a A. não tomou qualquer atitude perante a ré, nomeadamente fixar um prazo para tal celebração. Como escreve Antunes Varela, "... para satisfazer este compreensível interesse do credor, o artigo 808 número 1 atribui-lhe o poder de fixar ao devedor, que haja incorrido em mora, um prazo para além do qual declara já não lhe interessar a prestação... e em termos de claramente deixar transparecer a intenção do credor" - Das obrigações no qual, volume 2, 2 edição página 119.
E não se diga que o facto da cláusula 7 prever um prazo máximo de um ano vem atribuir a este a natureza de essencial que, violado, implique necessariamente uma situação de incumprimento definitivo. Nem a letra nem o espírito do contrato permitem tal interpretação.
Podemos assim concluir que a mora existente por parte do promitente-vendedor não se transformou em situação de incumprimento (definitivo). A matéria dos autos enquadra, pois, para e simplesmente uma situação de mora.
Nestes termos, acordam neste Tribunal em dar provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, absolvendo-se a ré do pedido.
Custas pela apelada, nesta e na 1 instância.
Os artigos sem referência a diploma, são do Código Civil.
Lisboa, 7 de Julho de 1990.