Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5990/2006-3
Relator: PEDRO MOURÃO
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
REMISSÃO
NULIDADE
DIREITO DE DEFESA
BURLA INFORMÁTICA
BURLA NAS COMUNICAÇÕES
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - A redacção do actual art. 307.º, n.º 1, do CPP, foi introduzida pelo DL nº 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que estabeleceu medidas de simplificação e combate à morosidade processual, passando aquele a prever que o juiz de instrução criminal pode remeter a fundamentação do despacho de pronúncia para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, muito embora seja aplicável àquele despacho o disposto no art. 283º, nº 3, do referido Código.
II - Consequentemente, a decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos mesmos factos e pelo crime que lhe é imputado no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, por remissão, nos termos do art. 307º, nº 1, do CPP, não enferma de qualquer nulidade, nem viola qualquer direito de defesa do arguido.
III - O art. 221º, do CP, contempla duas figuras tipo de delito: a “burla informática”, no n.º 1 e a “burla nas comunicações”, no n.º 2.
IV - O crime de burla informática é um crime de dano, em que o bem jurídico protegido é o património. A sua consumação depende da efectiva ocorrência de um prejuízo patrimonial de outra pessoa. Sendo um delito material ou de resultado, só se perfaz com a verificação do ‘evento’ consistente na saída dos bens ou valores da esfera da disponibilidade fáctica da vítima, independentemente da efectiva verificação do benefício económico do sujeito activo da infracção ou de terceiro.
V - Quanto ao elemento subjectivo do tipo, a burla informática constitui um crime doloso.
VI - Qualquer alteração ou impedimento do normal funcionamento do sistema de telecomunicações, por quem interfira ou intercepte o fluxo de chamadas internacionais, desviando-as do fluxo normal de difusão, tem como resultado o total desvirtuamento do sistema informático como este se encontra configurado, e a perturbação do normal funcionamento ou exploração dos serviços de telecomunicações, já que o mesmo tem efeitos negativos para os operadores, quanto à respectiva qualidade de serviço, qualidade da entrega, interconexão entre custos e receitas, comissões pagas e descontos contratualmente aplicáveis, falha na prestação do serviço de roaming, dificuldade no registo de clientes estrangeiros nas redes das operadoras e no programa de exclusividade de contratado de interligação.
VII - Procedendo a sociedade de que o arguido é administrador ao desvio do tráfego (sobretudo internacional) com destino aos clientes da operadora móvel, para equipamentos localizados em território Português e que se encontravam nas instalações daquela sociedade, entregando-o directamente aos mesmos clientes, tendo para o efeito utilizado, para além do mais, cartões SIM fornecidos pela mesma operadora, impedindo esta de receber a respectiva contrapartida pela entrega do mesmo tráfego, é tal factualidade subsumível ao art. 221.º, n.ºs 1 e 2, do CP.
Decisão Texto Integral: Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa - 5º Juízo

Acordam, precedendo Conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
1.1. A TMN – Telecomunicações Móveis Nacionais, SA, identificada nos autos, em 5 de Dezembro de 2004, apresentou no D.I.A.P. de Lisboa, participação crime contra os administradores da “AD…, SA”, imputando factos integradores de um crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221º, do Código Penal, …
1.2. Instaurado o respectivo inquérito, realizadas as diligências de prova, findo o mesmo, o MºPº ao abrigo do disposto no art. 277º, nº 2, do CPP, proferiu despacho de arquivamento com o fundamento de que não foram constituídos arguidos por se desconhecer o seu paradeiro e identificação completa. As testemunhas inquiridas não permitem com segurança incriminar os denunciados, não existindo outros meios de prova que permitem concluir que os mesmos cometerem o crime denunciado.
1.3. Inconformada com o despacho de arquivamento a queixosa que entretanto se constitui assistente, veio em 23de Agosto de 2005 (fls. 44 a 54) requerer a abertura de instrução, alegando no essencial o constante da participação crime e indicou elementos tendentes à identificação do arguido A… e requereu a reinquirição do legal representante da TMN e a realização de buscas e revistas nas moradas constantes dos autos.
1.4. O Mm.º JIC declarou aberta a instrução, tendo indeferido as diligências requeridas pela assistente, nos termos do art. 291° do CPP, e ordenou que a assistente juntasse aos autos certidão da conservatória do Registo Comercial relativamente à sociedade AD…, SA, o que veio a suceder a fls. 206 a 210, e designou data para interrogatório do arguido …
1.5. Realizado o debate instrutório o Mm.º JIC proferiu decisão instrutória de pronúncia do arguido A…, a fim de ser submetido a julgamento em processo comum e por tribunal colectivo, pelas razões de facto e de direito enunciadas no requerimento de abertura de instrução … que, nos termos do art. 307° n.° 1 do C.P.P., deu por integralmente reproduzido.
1.6. Inconformado com esta decisão o arguido veio dela interpor recurso, …
***
3. O Direito
3.1. O objecto do presente recurso atentas as conclusões da respectiva motivação, prende-se, em suma, com as seguintes questões:
- se a decisão instrutória é ou não nula, por omissão do ilícito criminal pelo qual o recorrente foi pronunciado, em violação do disposto na alínea c) do nº 3 do art. 283° do Código de Processo Penal,
- não se verificam indícios suficientes de o arguido haver praticado o crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221º, do CP, uma vez que não se verifica o elemento subjectivo do mesmo.
3.1.1. Analisando a primeira questão suscitada, ou seja, da invocada nulidade da decisão instrutória de pronúncia.
Como é sabido, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, e tem carácter facultativo (art. 286º, nº 1, do CPP).
A abertura de instrução pode ser requerida, pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação, ou pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art. 287º, nº 1, do CPP).
O art. 287º, nº 2, do CPP, determina que “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283º, nº 3, als. b) e c)”, dispondo o nº 3, do citado normativo que “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.
Importa ter presente que, o requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta de imputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta de pressupostos de objecto, do arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente.
Na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (arts. 308º e 309º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim se respeita material e formalmente a acusatoriedade do processo. (…) No requerimento de instrução o assistente tem de indicar os factos, mas a indiciação desses factos pode resultar dos actos de instrução requeridos. Essencial é apenas que os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia tenham sido objecto do inquérito, sob pena de nulidade processual e consequente inadmissibilidade legal da instrução.
A instrução a requerimento do arguido é uma manifestação do direito de defesa, disponível, que exercerá conforme entender, mas a instrução a requerimento do assistente é fundamentalmente uma garantia para o arguido que não será submetido a julgamento senão quando não se verifiquem os pressupostos legais e garantia da decisão do Ministério Público, findo o inquérito (1)
3.1.2. De harmonia com o disposto no art. 283º, nº 3, do CPP, «A acusação contém, sob pena de nulidade:
a)...
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis»
De harmonia com o disposto no art. 307º, nº 1, do CPP, “Encerrado o debate instrutório. O juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, (…), podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução».
A redacção deste preceito foi introduzida pelo DL nº 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que estabeleceu medidas de simplificação e combate à morosidade processual, e no que se refere à instrução, tal como vem referido no Preâmbulo do mencionado diploma legal, «o juiz de instrução criminal pode remeter a fundamentação do despacho de pronúncia para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução».
Com efeito comparando a redacção deste preceito com a redacção originária, verifica-se que o legislador do DL nº 320-C/200, acrescentou a expressão «podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução», que não constava do texto inicial do mencionado preceito.
Ou seja, enquanto que no texto originário do art. 307º, nº 1, do CPP, se consagrava que «Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, o qual é imediatamente lido. A leitura equivale à notificação dos presentes», na actual redacção, visando precisamente a simplificação processual, o juiz pode no despacho de pronúncia remeter a fundamentação para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, ou seja, por remissão pelos factos e pelas normas constante na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.
E, não há dúvida que o art. 308º, nº 1, do mesmo diploma legal consagra que “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, caso contrário profere despacho de não pronúncia», dispondo o nº 2, do citado normativo que «É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no art. 283º, nºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1, do artigo anterior».
Ou seja, muito embora, seja aplicável ao despacho de pronúncia o disposto no art. 283º, nº 3, do CPP, no entanto, a lei faz uma ressalva, ao consagrar sem prejuízo do disposto na segunda parte do nº 1, do art. 307º, do CPP, isto é, sem prejuízo da fundamentação por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.
3.1.3. No caso subjudice, analisando a decisão instrutória, verifica-se que o Mm.º Juiz “a quo” depois de apreciar e analisar a prova indiciária, existente nos autos, conclui pela pronúncia do arguido A…, a fim de ser submetido a julgamento em processo comum e por tribunal colectivo, pelas razões de facto e de direito enunciadas no requerimento de abertura de instrução de fls. 44 a 54, remetendo e dando como reproduzido o mesmo, nos termos do art. 307° n° 1 do C.P.P.
Ora no requerimento de abertura de instrução é imputado ao arguido a prática de um crime de burla informática, p. e p., pelo art. 221º, do Código Penal, dele constando os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito imputado ao arguido, bem como expressamente a norma que integra tal crime, ou seja, o mencionado art. 221º, do CP.
A nulidade da decisão instrutória vem regulada no art. 309º, nº 1, do CPP, ou seja, a pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente.
No caso dos autos, obedecendo o requerimento de abertura de instrução aos requisitos formais previstos no art. 283º, nº 3, do CPP, a decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos mesmos factos e pelo crime que lhe é imputado no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, por remissão, nos termos do art. 307º, nº 1, do CPP, não enferma de qualquer nulidade, não tendo sido violado qualquer direito de defesa do arguido.
Assim sendo improcede nesta parte o recurso.
3.2. Vejamos, agora a segunda questão que emerge no presente recurso, a saber: se se verificam ou não indícios suficientes de o arguido haver praticado o crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221º, do CP, designadamente quanto ao elemento subjectivo do mesmo.
3.2.1. O art. 221º, do CP, contempla duas figuras tipo de delito:
- a burla informática, e
- a burla nas comunicações.
A primeira descrita no nº1, «Quem com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizado no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
A segunda burla nas comunicações vem prevista no nº 2, do mesmo art. 221º, do CP: «A mesma pena é aplicável a quem com intenção de obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo, causar a outrem um prejuízo patrimonial, usando programas, dispositivo electrónico ou outros meios que, separadamente ou em conjunto, se destinem a diminuir, alterar ou impedir, total ou parcialmente, o normal funcionamento ou exploração de serviços de telecomunicações», sendo a pena agravada em função do valor do prejuízo: até 5 anos de prisão ou pena de multa até 600 dias, se o valor do prejuízo for elevado, (nº 5, al. a), do art. 221º), e de 2 a 8 anos de prisão se o valor do prejuízo for consideravelmente elevado (nº 5, al. b), do art. 221º).
No crime de burla informática o bem jurídico protegido é o património, sendo um crime de dano, tal como resulta da norma incriminadora, cuja consumação depende da efectiva ocorrência de um prejuízo patrimonial de outra pessoa, sendo um delito material ou de resultado que só se perfaz só com a verificação do “evento” consistente na saída dos bens ou valores da esfera da “disponibilidade fáctica” da vítima. (2)
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, a burla informática constitui um crime doloso. Como refere, A. M. Almeida Costa, (3) «O preenchimento do elemento subjectivo não se basta, porém, com a produção do dano patrimonial da vítima, exigindo ademais, que o agente actue com a intenção de obter para si ou para outrem, um enriquecimento ilegítimo. Trata-se, portanto, de um delito de intenção, ou vistas, as coisas de outro ângulo de um delito de resultado parcial ou cortado, caracterizado por uma “descontinuidade” entre os tipos subjectivo e objectivo, em que se requer o aludido animus de enriquecimento, mas que se consuma com o dano patrimonial da vítima, independentemente da efectiva verificação do benefício económico do sujeito activo da infracção ou de terceiro.»
3.2.2. No caso subjudice, não há dúvida que os autos contêm prova indiciária bastante de que o arguido utilizando o interface entre PPCA e rede GSM logrou entregar o tráfego destinado à operadora móvel TMN, directamente nos telemóveis dos clientes finais a quem se destinavam as chamadas, sem entregar este tráfego directamente na central da queixosa TMN, para que desta forma fosse por esta reencaminhado para os clientes (desta). Agindo desta forma logrou o arguido obter, mediante a utilização de tal equipamento, e no que concerne ao valor da chamada, um custo de ligação mais reduzido do que aquele que é normal e em vigor para a interligação. Custo esse que seria devido à operadora queixosa, e que corresponde ao prejuízo efectivo das queixosa, (receita de interligação/receita de interconect).
Esta actividade levada a cabo pelo arguido através da AD…, SA, bem como os equipamentos por eles utilizados para esse efeito, não está autorizada pela ANACOM, sendo que a ANACOM não licenciaria tal actividade porque susceptível de integrar ilícitos criminais e contra-ordenacionais.
Com efeito, tal como se refere na decisão recorrida resulta indiciariamente provado nos autos que:
A TMN é uma operadora de rede pública de telecomunicações, e presta outros tipos de serviços de telecomunicações.
O exercício dessas actividades está sujeito a licença ou a registo, nos termos da lei, competindo tanto os actos de registo quanto a licença à competência da ANACOM.
Enquanto operadora de telecomunicações móveis, a assistente TMN realiza operações que permitem aos respectivos clientes, efectuar ou receber chamadas de ou para qualquer parte do mundo.
Como condição para que essas queixosas possibilitem a realização e recepção de chamadas internacionais ou de roaming aos seus clientes, têm que estabelecer, com empresas dedicadas ao transporte e entrega de tráfego de chamadas, (os designados "Carriers"), contratos que permitam a difusão e recepção de chamadas.
Os designados "Carriers" podem definir-se, como empresas autorizadas pela ANACOM, a operar no território nacional com a função de transportar e entregar o tráfego, móvel ou fixo, que seja destinado aos clientes da operadora queixosa, ou transportar o tráfego gerado em Portugal, pelos clientes da operadora TMN, para outros operadores, sejam estes fixos ou móveis, existentes fora do território nacional.
Tal complexo sistema – associado aos acordos de roaming celebrados entre a operadora queixosa e outros operadores móveis - destina-se também a assegurar que os clientes dessa denunciante, quando se desloquem ao estrangeiro, possam realizar ou receber chamadas, o que poderá ocorrer de e para todos os destinos móveis ou fixos.
Assim, pelas chamadas realizadas, são cobrados os respectivos custos, pela operadora TMN, ora, assistente, custos estes cujo valor depende de a chamada ser efectuada, para dentro ou para fora do território nacional para qualquer rede, móvel ou fixa, ou de, a chamada ser realizada fora do território nacional, em Roaming para qualquer rede, móvel ou fixa, para qualquer parte do mundo.
Por isso, um cliente da operadora assistente, quando efectua uma chamada, dentro ou fora do território nacional, para uma qualquer rede ou operador, paga o respectivo custo, cobrando a operadora denunciante em causa a denominada "Receita de Retalho".
Mecanismo mais complexo é, contudo, aquele que sucede quando um cliente da operadora denunciante, encontrando-se ou não em Portugal, recebe uma chamada vinda do estrangeiro.
Neste caso o pagamento da chamada é realizado por quem efectua a chamada, mas a operadora denunciante em causa recebe um valor por cada chamada que termine na sua rede, a denominada "Receita de Interligação/receita de interconect".
Os números dos clientes TMN são marcados com o prefixo + 35196 e o operador estrangeiro onde a chamada é gerada; entrega a mesma a um Carrier, que tem por primeira função transportar a mesma até ao operador de destino.
O Carrier, para transportar a chamada, cobra o valor de cerca de € 0,21 por minuto ao operador que lhe entrega o tráfego para transporte.
Para que a chamada possa terminar na rede da TMN o Carrier entrega a chamada no switch desta operadora, isto é, no sistema informático que faz a gestão das chamadas efectuadas e recebidas de todos os clientes dessa empresa, sendo esta a sua segunda função, cabendo à operadora assistente encaminhar a chamada para o cliente final.
Por este serviço efectuado pelo Carrier, a entrega da chamada, este tem que pagar à operadora TMN cerca de € 0,187 por minuto. Esse valor de € 0,187 corresponde assim à receita que a operadora denunciante recebe por cada chamada terminada na sua rede, seja esta chamada gerada, ou iniciada de um móvel da operadora TMN, ou de outro operador, ou mesmo de um serviço fixo, desde que, em qualquer dos casos, a chamada se efectue a partir do estrangeiro.
Nestes casos, em que a chamada é gerada no estrangeiro e se destina a terminar na rede da operadora denunciante, o Carrier recebe como lucro da sua actividade, cerca de € 0,023 por minuto.
Ora, o sistema ora descrito, vigente em Portugal para todas as operadoras móveis terrestres, é o único que assegura o normal funcionamento ou exploração dos serviços de telecomunicações e foi configurado após minucioso estudo técnico e de qualidade, e análise tanto das condições tecnológicas, como do próprio espectro radioeléctrico e bem assim das expectativas financeiras, sob a tutela da autoridade administrativa competente, - a ANACOM -, e é através dessa sua configuração técnica que fica assegurada a qualidade dos serviços a prestar aos clientes de todas as redes móveis, estejam estes em território nacional ou no estrangeiro, ficando também assim assegurada a previsibilidade e segurança dos serviços prestados, a nível de expectativas empresariais e de custos financeiros previsíveis.
Pelo que qualquer alteração ou impedimento do normal funcionamento deste sistema, por quem interfira ou intercepte o fluxo de chamadas internacionais, desviando-as do fluxo normal de difusão, tem como resultado o total desvirtuamento do sistema informático como este se encontra configurado, e a perturbação do normal funcionamento ou exploração dos serviços de telecomunicações, já que o mesmo tem efeitos negativos para os operadores, quanto à respectiva qualidade de serviço, qualidade da entrega, interconexão entre custos e receitas, comissões pagas e descontos contratualmente aplicáveis, falha na prestação do serviço de roaming, dificuldade no registo de clientes estrangeiros nas redes da operadora denunciante e no programa de exclusividade de contratado de interligação.
Decorre do exposto que numa situação normal, o tráfego deve ser entregue na rede do operador móvel nacional em pontos de interligação de rede específicos através de "carrier's" (transportadores de tráfego), que se encontram interligados a esses pontos com os quais o operador tem acordos de interligação nos quais se encontram definidas as condições técnicas e comerciais da entrega de tráfego internacional.
Normalmente, após recepção e processamento das comunicações, as chamadas devem ser encaminhadas pela rede do operador nacional até ao seu destino final.
No caso em apreço, o tráfego (sobretudo internacional) com destino aos clientes da referida operadora móvel foi pelo arguido desviado para equipamentos localizados em território Português e que se encontravam nas instalações da sociedade AD…, SA, da qual era administrador o ora arguido.
Assim sendo, poderemos afirmar que os autos contem efectivamente indícios fortes de que com vista ao desenvolvimento de tal actividade o arguido desviou tráfego destinado à assistente, operadora TMN, tendo para o efeito utilizado para além do mais cartões SIM.
Na verdade, com vista à aquisição dos cartões o arguido celebrou com a operadora assistente contratos de serviço móvel terrestre ("STM").
Tais contratos consubstanciavam-se em termos gerais na possibilidade de o arguido poder utilizar os seus cartões (números de telefone), para uma utilização normal de realização e recepção de chamadas e acesso aos demais serviços disponibilizados pela operadora queixosa.
Veio-se assim a apurar que os cartões SIM pelo arguido adquiridos à assistente foram por este utilizados para receber e entregar tráfego internacional e de rede fixa a clientes da operadora TMN.
Como se referiu, a distinção (tráfego de retalho e internacional) resulta numa diferença de receitas para a operadora queixosa.
Para o tráfego internacional a receita devida à assistente TMN por cada chamada que é transportada pelo Carrier e entregue à TMN, que por sua vez a encaminha para o destinatário, é de cerca de € 0,187, já para o tráfego de retalho (móvel - móvel), o custo médio associado, isto é, a receita que reverte para a assistente TMN é de cerca de € 0,076.
A assistente veio a apurar que o processo que possibilitava o "desvio"das chamadas internacionais, que seriam em condições de normal funcionamento, entregue à TMN para serem reencaminhadas por esta ao cliente final, destinatário da chamada, ocorria na maioria dos casos do seguinte modo:
1- A chamada era efectuada do estrangeiro, com o prefixo +35196;
2- A operadora local, no país de origem, identificava o prefixo e entregava a chamada ao Carrier;
3- Por sua vez, o Carrier transportava a chamada, por Satélite ou Cabo submarino, para Portugal;
4- Uma vez chegada a Portugal, o arguido desviava a chamada transportada pelo carrier, e em vez de entregar a chamada à TMN, estabelecia uma nova chamada que entregava directamente aos destinatários das chamadas, clientes assistente e oferecia por esta chamada, um valor abaixo do que é pago pela assistente, ou seja cerca de € 0,187.
5- Para o efeito o arguido utilizava o equipamento referido nos autos, (Phonne Cell's/Vierling/PPCA's/Servidores/Router's e antenas GSM, que recebiam as chamadas, (interceptando-as antes de as mesmas chegarem aos switch TMN, pelo que ficava a operadora TMN impedida de receber o respectivo "Custo de Interligação".
6- Por sua vez, as chamadas passavam do Carrier para os clientes finais através do referido equipamento do arguido, que estabelecia uma nova chamada.
7- e era assim que através de tal equipamento procedia o arguido ao envio das chamadas com o prefixo +35196 completando-as e pagando para o efeito o custo Retalho.
Ou seja o arguido recebia as chamadas originadas no estrangeiro que não lhes era dirigidas;
- verificava quais os números de destino dessas chamadas; e
- estabelecia uma segunda chamada para esses números de destino, a partir de terminais da rede do operador móvel em que estavam situados os destinatários das chamadas, para o que utilizavam SIM BOX's/PHONNE CELL's/equipamento Vierling, acoplados a essas máquinas;
Assim sendo, mostra-se suficientemente indiciado que o arguido através da contratação do serviço telefónico móvel, e utilizando as ligações atrás referidas e outras, manipulando o fim de utilização desses equipamentos, lograva fazer entrega de tráfego, "transformando" tráfego fixo-móvel e internacional com destino à rede móvel da queixosa, tráfego esse que na rede desta aparecia como sendo tráfego móvel-móvel , ou seja, a entrega desse tráfego aparecia como tendo sido efectuado através de telemóvel para telemóvel e não através dos circuitos de interligação.
Lograva dessa forma o arguido impedir que a operadora queixosa reconhecesse a terminação do tráfego nas suas redes, já que todo o tráfego pelo arguido cursado era na rede da assistente identificado como sendo tráfego intra-rede, ou seja, o tráfego internacional e de rede fixa não foi entregue como tráfego internacional e de rede fixa, mas como tráfego nacional transitado dentro da rede da operadora TMN uma vez que esta não recebeu esse tráfego, internacional e de rede fixa, pelos meios a eles dedicados, [circuitos de interligação e acordos estabelecidos com outros operadores], deixando consequentemente de receber as receitas associadas a esta terminação de tráfego nas suas redes, tendo sido o arguido que mediante a utilização dos cartões SIM da operadora queixosa nos termos descritos passou a receber essas receitas que cabia à operadora queixosa, recebendo esta apenas as receitas de retalho [tarifário aplicável ao consumidor final], relativas a uma chamada de telemóvel para telemóvel no território nacional.
Para além disso, logrou o arguido através da referida actuação utilizar nos termos descritos e abusivamente a rede da assistente, sem conhecimento e consentimento desta, fazendo com que o tráfego por ele cursado nunca passasse pelos pontos de interligação da operadora assistente, não sendo por isso esse tráfego tratado pela operadora, ora assistente, nem técnica nem comercialmente, como tráfego internacional ou tráfego da rede fixa, consoante a situação.
Assim, enquanto nos dados de tráfego da assistente um cartão da rede desta aparecia como gerando tráfego para outro cartão dessa mesma rede, o que na verdade acontecia e decorria da descrita actividade do arguido é que o número originador pertencia a uma rede fixa ou estava a ser utilizado numa qualquer rede estrangeira.
Pelo que quando um cliente da assistente recebia uma chamada "encaminhada" pelo arguido, aparecia-lhe no visor do seu telemóvel o número da rede da assistente TMN, correspondente a cartões pós-pagos ou pré-pagos do arguido que cursavam a chamada, apesar de o cliente da operadora saber que a chamada em causa era uma chamada internacional.
Lograva assim o arguido com a descrita conduta "mascarar" o tráfego por ele cursado, já que os números originadores destas comunicações não eram os números da rede da operadora queixosa quer parecia como as tendo efectuado, mas sim números da rede fixa e de redes internacionais.
Com a descrita conduta o arguido recebeu tráfego que não lhe era destinado pelo chamador, na medida em que o chamador pretendia que a sua comunicação terminasse na rede da operadora assistente, e processou comunicações sem para tal estar legal e regulamentarmente habilitado.
Logrou ainda o arguido com a descrita conduta distribuir tráfego a clientes da operadora assistente TMN, quando deveria ser esta a receber esse tráfego nos seus pontos de interligação e a entregá-lo aos números chamados.
Em consequência da descrita conduta do arguido, a assistente deixou de receber a terminação do tráfego cursado pelo arguido nos termos descritos na sua rede e passou tão só a receber receitas correspondentes a chamadas móvel - móvel dentro da sua rede, como se desse tipo de chamadas se tratasse, o que se traduziu em prejuízos de € 31.814,49.
Para além disso, a descrita actuação do arguido pôs em causa a qualidade dos serviços prestados pela assistente TMN em determinados locais, pois que em certas zonas da Figueira da Foz os clientes da TMN viram-se totalmente impedidos de efectuar comunicações com utilização das respectivas redes atento o elevado número de chamadas reencaminhadas pelo arguido em todas as horas do dia e da noite, acarretando graves prejuízos para a assistente
3.2.3. A lei define no art. 283º, nº 2, do CPP, o que se considera indícios suficientes, ou seja, o conjunto de elementos dos quais resulte a probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
«É clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se imediatamente aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. Assim, se o facto probatório (meio de prova) se refere imediatamente ao facto probando, fala-se em prova directa, se, porém, se refere a outro do qual se infere o facto probando, fala-se em prova indirecta ou indiciária(4)
A prova indiciária não conduz a um julgamento de certezas. A prova indiciária contém, apenas um conjunto de factos conhecidos que permitirão partir para a descoberta de outro ou outros que deixarão de se mover no campo das probabilidades para entrarem no domínio das certezas. Contudo, o indício é (em si) um facto certo do qual, por interferência lógica baseada em regras da experiência, consolidadas e fiáveis, se chega à demonstração do facto incerto a provar segundo o esquema do chamado silogismo judiciário.
“A exigência de prova sobre a ocorrência dos factos não é a mesma nas diferentes fases do processo. Enquanto para acusar importa a convicção do MºPº sobre a indiciação suficiente, e para pronunciar também a indiciação suficiente é bastante, já para a condenação importa a prova.
Por indiciação suficiente entende-se a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança, a prova é a certeza dos factos.
(…) A natureza indiciária da prova significa que não se exige prova plena, a prova, mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal. (5)
3.3. Aplicando os princípios e conceito supra enunciados ao caso subjudice, verifica-se que existe nos autos prova indiciária suficiente de ao arguido vir a ser aplicada uma pena.
Com efeito, os elementos carreados para os autos, quer os vários documentos juntos, quer os depoimentos das testemunhas ouvidas no inquérito e na instrução, quer das declarações do arguido, conjugados entre si, e com as regras da experiência comum, permitem concluir, em termos de probabilidade, de o arguido ter praticado factos integradores do crime de burla informática e nas comunicações, p. e p., pelo art. 221º, nºs 1, 2, e 5, al. b), do CP.
Ora, se para pronunciar a indiciação suficiente é bastante, e se por indiciação suficiente se entende a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança, no caso dos autos existe prova indiciária suficiente que permite concluir que o comportamento do arguido é susceptível de integrar a prática do crime supra mencionado.
Assim sendo também quanto a esta questão improcede o recurso do arguido.
4. Dispositivo
Termos em que, acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso, e em consequência, confirmar a decisão instrutória de pronúncia do arguido pela prática de um crime de burla informática e nas comunicações, p. e p., pelo art. 221º, nºs 1, 2 e 5, al. b), do Código Penal.
Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 6 UC's.
D.n.
Lisboa,
(Pedro Mourão)
(Ricardo Silva)
(Rui Gonçalves)



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1.-Vide Prof. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", III, 2ª Edição, Ed. Verbo, 2000, págs. 135 e 140, 141.

2.-Vide A. M Almeida Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Parte Especial, Tomo II, Coimbra Ed. 199, pág. 329

3.-In ob. cit., pág. 331

4.-Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal II", 2ª Ed., 1999, pág. 96

5.-Germano Marques da Silva, in ob. cit., pág. 99 e 100.