Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ONDINA CARMO ALVES | ||
Descritores: | LETRA DE CÂMBIO CLÁUSULA SEM DESPESAS APRESENTAÇÃO A PAGAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/19/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO | ||
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Sumário: | 1. A apresentação a pagamento de uma letra implica - a) A exibição do título perante o devedor principal; b) A reclamação da soma na sede do pagamento; c) Estar o portador do título habilitado a restituí-lo, com a respectiva quitação – e deve ser efectuada pelo portador perante o sacado. 2. A letra domiciliária, isto é, pagável no domicílio de terceiro, designadamente, numa determinada agência bancária, deve ser aí apresentada a pagamento. 3. A cláusula “sem despesas” não dispensa o portador da letra da sua apresentação a pagamento dentro do prazo prescrito, apenas faz a inversão do ónus da prova da apresentação tempestiva ao obrigado principal. 4. É sobre o opoente, na qualidade de sacador, que incumbe o ónus de alegação e prova dos factos concretos para se poder concluir pela inobservância do prazo para apresentação da letra a pagamento, não bastando invocar que dela não consta a aposição de anotação da sua apresentação a pagamento. (OCA) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I. RELATÓRIO JOSÉ, veio deduzir contra BANCO, S.A., , por apenso aos autos de processo executivo para pagamento de quantia certa, que este contra si deduziu e também contra Manuel, oposição tendente a obter a sua absolvição do pedido executivo. Fundamentou o opoente, no essencial, esta sua pretensão na inexequibilidade do título executivo, por as letras em causa nunca terem sido apresentadas a pagamento. Mais invoca a seu favor o benefício da excussão prévia por, enquanto sacador, não ser o responsável principal pelo seu pagamento, mas sim o aceitante, devendo este último responder primariamente à execução. Notificada, veio a exequente deduzir contestação, referindo que a oposição deve improceder, uma vez que as letras sacadas pelo opoente e aceites por Manuel foram descontadas no banco da exequente, não tendo sido pagas na data dos respectivos vencimentos. Mais invoca que o benefício da excussão prévia, não tem aplicação ao caso dos autos. O Tribunal a quo proferiu desde logo decisão final, por entender que seria possível fazê-lo, julgando a oposição improcedente, dada a plena exigibilidade das letras apresentadas como título executivo na acção executiva com o nº ...., determinando a prossecução da instância executiva. Inconformado com o assim decidido, o opoente interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada. São as seguintes as CONCLUSÕES do recorrente: i) A apresentação a pagamento de um título de crédito é um acto típico no direito cartular que consiste na apresentação do título e reclamação do pagamento da quantia dele constante, no local convencionado para o pagamento, no dia do vencimento, ou num dos dois dias úteis subsequentes; ii) “Para que o sacado possa pagar a letra é necessário que o portador lha apresente para esse fim." (Abel Delgado, in Lei Uniformesobre Letras e Livranças, Livraria Petronv, Lisboa, 1980, pp. 194); iii) A apresentação a pagamento de uma letra ou livrança é um dever do portador da mesma e indispensável à efectivação do crédito cambiário; iv) São requisitos da apresentação a pagamento dos títulos de crédito, designadamente da letra e livrança - DELGADO, Abel. Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Livraria Petrony, Lisboa, 1980, pp. 198: a. a exibição do titulo perante o devedor principal; b. a reclamação da soma na sede do pagamento, no dia do vencimento ou num dos dois dias úteis seguintes; c. estar o portador do título habilitado a restituí-lo, com a respectiva quitação; v) O apelado nunca apresentou as letras a pagamento, nem na data de vencimento, nem posteriormente, porque se o tivesse feito e não tivesse recebido, teria sido aposta no título de crédito a indicação de devolvido por falta de pagamento: Quod non est in cambio non est in Inundo... vi) Deve ser dado como provado que "As letras dadas a execução e referidas em 1. não foram apresentadas a pagamento.”; vii) As letras dadas à execução perderam a sua natureza cambiária, por falta de um requisito essencial (a apresentação a pagamento): viii) Perdendo a sua natureza cambiária, as letras dadas a execução valem apenas como um documento particular assinado pelo devedor que importa a constituição ou reconhecimento de uma obrigação pecuniária, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 46° n°1 al. c) do CPC; isto é, valem apenas como meros quirógrafos; ix) O quirógrafo por si só não basta para fundar uma execução, devendo ser acompanhado da referência descritiva da sua causa, ou seja, da relação subjacente, da qual emerge a obrigação; x) No caso em apreço, como resulta da análise do requerimento executivo, o apelado não invocou qualquer relação subjacente, sendo certo que a simples junção aos autos das letras sem indicação do tipo de transacção, dos transaccionantes e da respectiva posição, não consubstancia a invocação de uma verdadeira e própria relação substancial que crie direitos e deveres entre duas pessoas que são agora apelante, apelado e executado Manuel; xi) Ao exequente faltou a alegação de uma verdadeira e própria causa de pedir, ou seja, o alinhamento «de acto ou facto jurídico - simples ou complexo, mas sempre concreto - donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer» - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 111; xii) Não valendo a letra como título de crédito, mas como mero quirógrafo e não tendo o exequente alegado qualquer relação subjacente é o requerimento executivo nulo, por falta de causa de pedir, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 193° n° 2 alínea a) e 810° do CPC; xiii) A ineptidão do requerimento executivo, por falta de causa de pedir, é de conhecimento oficioso, nos termos do disposto no art. 818°, n° 2, 820°, 202° e 206°, n° 2, todos do CPC; xiv) O acórdão recorrido viola os artigos 193° n° 2 alínea a), 202°, 206º, n° 2 e 810° n° 3, 818º, n° 2, 820°, todos do CPC; Pede, por isso, o recorrente, que seja dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue procedente a oposição à execução e, em consequência, ordene a extinção da execução. Respondeu o Banco recorrido, defendendo a manutenção do decidido e formulando as seguintes CONCLUSÕES: i) Nos presentes autos, o recorrido intentou contra o recorrente processo executivo com base em duas letras, no valor de € 5.002,40 e € 14.621,61, conforme resulta dos títulos executivos juntos com o requerimento inicial; ii) Tendo sido interpelado para proceder ao pagamento dos referidos títulos cambiários, nem sacador nem sacado procederam ao seu pagamento, o que igualmente não veio a suceder no momento da sua apresentação a pagamento; iii) Notificado nos presentes autos para proceder ao pagamento, o recorrido, sacador nas letras, não nega serem as mesmas devidas, apenas invoca que as mesmas não foram apresentadas a pagamento, o que não corresponde à verdade; iv) Por douto despacho saneador-sentença de 05/05/2008, veio o Tribunal de Primeira Instância sublinhar devidamente que "as características da letra como título de crédito têm pleno funcionamento quanto às que são apresentadas como título executivo na execução apensa, pelo que não fica, nem ficou, colocada em causa, quer a sua exequibilidade extrínseca característica atribuída à pretensão pelo título executivo; ela é um corolário da documentação do respectivo dever de prestar nesse título executivo" – Miguel Teixeira de Sousa, A Exequibilidade da Pretensão (...), Estudos sobre o Novo Processo Civil (...) – dada a sua suficiência/aptidão para funcionar como título executivo – quer a intrínseca (conformidade entre o título executivo e a obrigação exequenda subjacente – cfr. ob. cit. (...) e Lebre de Freitas, a Acção executiva (...).”; v) Concluindo que, "assim, mantendo a letra a qualidade de título executivo (...) a acção executiva haverá de prosseguir normalmente seus termos – quanto ao opoente – e a presente oposição haverá de improceder."; vi) Conforme resulta do artigo 38° da LULL, a letra pagável em dia fixo deve ser apresentada a pagamento ao aceitante no dia em que é pagável ou num dos dois dias seguintes, no local indicado na letra: ora, as letras aqui em causa foram apresentadas a pagamento nas respectivas datas de vencimento (08/01/2004 e 12/01/2004); vii) Resumindo, o recorrente não nega o crédito do recorrido, reconhece a data do vencimento das letras por si assinadas, igualmente não nega que tenha sido interpelado para proceder à liquidação das letras (o que só poderia suceder no contexto da sua apresentação a pagamento) – aliás, vem agora, ex novo, alegar em sede de recurso que desconhecia quem era o portador das letras (sem não obstante negar as interpelações para pagamento do recorrido); viii) Uma vez que as letras sub judice são letras domiciliadas no BIC, agora Banco, ora recorrido, estas foram apresentadas a pagamento nos balcões de todas as agências BIC, onde o aceitante e/ou sacador poderiam liquidar as mesmas ou reformá-las, na data do vencimento das mesmas ou nos dois dias subsequentes; ix) Apesar de ter conhecimento da data da apresentação a pagamento da letra, o recorrente ainda foi, por diversas vezes, interpelado por parte dos funcionários da agência do exequente sita na Atalaia – nomeadamente por parte da sua gerência – nos dias que se seguiram ao vencimento das letras, quer por telefone, quer presencialmente, sem que o recorrente tenha revelado disponibilidade para proceder ao pagamento ou reforma das referidas letras; x) Para além disso, uma vez que as referidas letras não foram pagas pelo aceitante, as mesmas foram sujeitas a débito na conta do sacador, ora recorrente, que não se encontrava provisionada para o efeito, pelo que, as referidas letras não foram liquidadas. xi) Resulta assim que as letras foram apresentadas a pagamento e que não foram pagas, de forma consciente, nem pelo aceitante nem pelo sacador, até à data; xii) Por fim, esclareça-se ainda que, quer o sacador recorrente, quer o aceitante foram, posteriormente e por várias vezes, interpelados pelos serviços jurídicos do recorrido no sentido de regularizarem as suas responsabilidades, nunca o tendo feito, até à data; xiii) Resumindo, o recorrente não nega o crédito do recorrido, reconhece a data do vencimento das letras por si assinadas, igualmente não nega que tenha sido interpelado para proceder à liquidação das letras (o que só poderia suceder no contexto da sua apresentação a pagamento) – aliás, vem agora, ex novo, alegar em sede de recurso que desconhecia quem era o portador das letras (sem não obstante negar as interpelações para pagamento do recorrido); xiv) Alega tão somente que não consta do verso das letras qualquer indicação da devolução por falta de pagamento – que aliás, nem tampouco tinha de constar (note-se que nunca alegou, por outro lado, que existisse uma qualquer conta do aceitante ou de qualquer um dos sacados com provisão que permitisse a liquidação das referidas letras – desta forma, não faltando à verdade); xv) Perante estes factos, o Douto Tribunal Judicial do Montijo concluiu, e bem, que o julgamento dos factos constantes da oposição à execução em nada poderia alterar o curso dos presentes autos de execução; xvi) As letras apresentadas a pagamento, como bem sabe o recorrente e resulta dos argumentos invocados nas peças processuais redigidas pelo próprio executado oponente, pelo que nunca poderia ser considerado provado o contrário, como pretende o recorrente; xvii) De todo o modo, fazendo nossas as doutas palavras do Insigne Tribunal da Relação de Lisboa, "Não é requisito da exequibilidade de uma letra a aposição de anotação da sua apresentação a pagamento, não modificando nem estipulando a obrigação ou obrigações nelas incorporadas" — cfr. Acórdão de 30/05/1996, no Processo n.° 0011776; xviii) Acresce que, as letras estavam domiciliadas no BIC, pelo que, competia aos executados no presente pleito — nestes se incluindo o recorrente comparecerem junto de balcão do recorrido, para procederem ao pagamento da letra ou livrança; xix) Nesse sentido, as doutas palavras do Insigne Supremo Tribunal de Justiça "O pagamento de uma livrança deve efectuar-se pela comparência, no lugar de pagamento nela constante, de quem tem por obrigação solvê-la (...) Improcede, pois, a excepção da falta de apresentação a pagamento do título, deduzida pelos avalistas que não compareceram para o efeito no referido lugar — certo estabelecimento do banco portador — pretendendo impender sobre o banco a obrigação dessa apresentação" — vide Acórdão deste Alto Tribunal de 22/11/88, no processo n.° 076723, e também o Acórdão de 14/04/1999, tirado no Processo n.° 99A260; xx) Como decorre da Lei, e como sublinha o Tribunal da Relação do Porto, no seu Douto Acórdão de 01/06/1993, tirado no processo n.° 9230997, "Constando da livrança o lugar do pagamento, é nesse lugar que ela deve ser apresentada ao devedor e não noutro."; xxi) Porém, ainda que assim não fosse, o que se admite sem conceder, mesmo que as letras não tivessem sido apresentadas a pagamento (o que, como referido, se verificou) a sua não apresentação não afasta a sua exequibilidade relativamente aos Executados nos presentes autos, incluindo o ora recorrente; xxii) Este tem sido o entendimento perfilhado pela Jurisprudência, que tem entendido que "a não oportuna apresentação a pagamento da letra não extingue os direitos do portador contra o aceitante e seu avalista." – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/02/1995, tirado no processo n.° 0075926, o Acórdão de 13/02/1992, do mesmo Tribunal, no Processo n.° 0034386 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/03/1995, no Processo n.° 9440512; xxiii) Note-se que o recorrente apenas invoca a seu favor o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/11/1991, no processo n.° 081241, que deliberadamente transcreve de forma incompleta: na verdade, este explica tão-somente o que é a apresentação a pagamento – não se diz que a mesma é essencial para que a letra constitua título executivo – aliás, muito pelo contrário, o que aí se sustenta é que “Provando-se que o portador das letras as não apresentação (artigo 38º da LULL), o aceitante não caiu em mora nas datas dos respectivos vencimentos, mas apenas quando foi citado para os termos da execução”; xxiv) Ou seja, ainda que a letra não tivesse sido apresentada a pagamento – o que, como referimos supra, aconteceu – sempre serviria como título executivo, integralmente válido e completo, entendendo-se que a apresentação a pagamento apenas poderia, quanto muito, alterar a data da constituição em mora; xxv) Curioso ainda é que, no referido Acórdão, invocado pelo rcorrente em desespero de causa, considerando a total inexistência de fundamentação séria para a tese que vem propugnar, se refere que a apresentação a pagamento da letra seria a realizar diante do sacado, o executado Manuel, e não diante do sacador, ora recorrente, pelo que, de todo o modo, sempre seria o sacado e não o sacador recorrente quem eventualmente poderia invocar a não apresentação a pagamento; xxvi) Salvo melhor entendimento, fica assim demonstrada a cabal falta de fundamento do recurso interposto pelo recorrente, que levianamente vem tentar evitar o pagamento daquilo que sabe que é devido, constituindo uso manifestamente indevido e reprovável dos meios processuais ao seu alcance inclusivamente, tentando deturpar jurisprudência com o intuito de iludir o julgador, impondo-se que o mesmo seja julgado totalmente improcedente. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Assim, e face ao teor das conclusões formuladas é apenas questão controvertida apurar: Ø se os títulos dados à execução perderam a sua natureza cambiária, por falta de apresentação a pagamento e, se assim se entender, se podem os mesmos valer como documentos particulares nos termos do nº 1, alínea c) do artigo 46º do CPC. A solução a alcançar pressupõe a ponderação: i) Do regime do negócio jurídico cambiário no que concerne á letra de câmbio; ii) O protesto e a cláusula “sem despesas”; iii) A apresentação a pagamento da letra; iv) O direito do portador da letra de câmbio: v) Princípio da solidariedade dos obrigados cambiários; vi) a acção de regresso. III . FUNDAMENTAÇÃO A - OS FACTOS Foram dados como provados na decisão recorrida os seguintes factos: 1. A exequente, intentou a presente acção executiva a 07.01.2005, munida de dois documentos onde se inscreve a frase "no seu vencimento pagará/(ão) por esta única via de letra a mim ou à minha ordem a quantia de cinco mil e dois euros e quarenta cêntimos" (na primeira), "catorze mil, seiscentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos "(na segunda) com datas de "emissão", de 08.10.2003 (a primeira) e 12.10.2003 (a segunda) e de “vencimento", de 08.01.2004 (a primeira) e 12.01.2004 (a segunda) (docs. Fls. 19 e 20 do processo principal); 2. Os documentos referidos em 1. encontram-se, também, subscritos pelo opoente no local destinado, ao sacador e por Manuel no local destinado ao aceitante e no verso com a expressão “sem despesas” e rubrica do opoente sob (doc. Fls.19 e 20 do processo principal); 3. Os documentos referidos em 1., constituiu a reforma de outras letras. B - O DIREITO i) Do regime do negócio jurídico cambiário no que concerne á letra de câmbio; A execução de que a presente oposição constitui Apenso está titulada por duas letras de câmbio, as quais incorporam o direito a uma prestação. Tal direito é literal, no sentido de que a letra do título é decisiva para a determinação do conteúdo, limites e modalidades do direito, o que significa que a obrigação cambiária não poderá ser contestada com o auxílio de elementos estranhos ao título. Acresce que o direito incorporado no título é autónomo. O seu portador que, em consequência da circulação do título, o recebeu, adquire tal direito, de modo originário, i.e., independentemente da titularidade do seu antecessor e dos possíveis vícios dessa titularidade. A obrigação cambiária é, assim, de natureza formal e abstracta, independente de qualquer "causa debendi". É válida por si e pelas estipulações nela expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título - v. Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, 2º - Fascículo II, As Letras, 45. E, no campo das acções cambiárias podem distinguir-se dois domínios: o das relações imediatas e o das relações mediatas. No domínio da primeira, a letra não entrou ainda em circulação. Tudo se passa entre os subscritores originários da letra. No domínio das relações mediatas, o título já entrou em circulação. Há um tráfico cambiário que importa proteger, assegurando a boa fé do título. Este desempenha aqui a sua função, com as acima enumeradas características - literalidade, abstracção e autonomia - o que conduz a que a relação cambiária seja independente da causa que deu lugar à sua assunção. De harmonia com o disposto no artigo 1º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças – LULL - a letra é um título de crédito à ordem cujo conteúdo envolve a expressão letra, o mandato puro e simples de pagar um quantia determinada, o nome daquele que a deve pagar, a data e o lugar de pagamento, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a data em que e do lugar onde é passada e a assinatura de quem a passa. Enuncia uma ordem de pagamento dirigida pelo sacador ao sacado que, se a acatar, passa a denominar-se aceitante. De acordo com o artigo 11º da LULL “Toda a letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso”, sendo que, de harmonia com o disposto no artigo 16º da LULL, o detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. E, decorre do artigo 17º da LULL que as pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor. No caso vertente estamos perante duas letras de câmbio que foram dadas à execução como títulos executivos. Ficou demonstrado que as letras se encontram subscritas pelo executado/opoente, no local destinado ao sacador, e por Manuel, igualmente executado, no local destinado ao aceitante, sendo o exequente o portador da letra. O saque é uma declaração cambiária do emitente do título e que enuncia uma ordem de pagamento a um terceiro – o sacado – e que concomitantemente, se apresenta como promessa do sacador, dirigida ao tomador e aos sucessivos portadores da letra, promessa de que o sacado assumirá a responsabilidade cambiária do pagamento. E, em virtude da promessa feita, o sacador fica obrigado, ele próprio, a pagar a letra se o sacado a não aceitar ou se, aceitando-a, não a pagar – v. A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, 143-144. O opoente é, consequentemente, sacador das letras que constituem títulos executivos, o que nos termos do artigo 9º da LULL, significa que é o garante tanto da aceitação como do pagamento da letra. Por outro lado, por força do artigo 28º da LULL O sacado obriga-se pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento. E, na falta de pagamento, o portador, mesmo no caso de ser ele o sacador, tem contra o aceitante um direito de acção resultante da letra, em relação a tudo o que pode ser exigido nos termos dos artigos 48º e 49º. No caso vertente verifica-se que as letras eram pagáveis em dias fixados - 08.01.2004 e 12.01.2004 – v. Nº 1 dos Fundamentos de Facto. Nos termos do artigo 27º da LULL “ Quando o sacador tiver indicado na letra um lugar de pagamento diverso do domicílio do sacado, sem designar um terceiro em cujo domicílio o pagamento se deva efectuar, o sacado pode designar no acto do aceite a pessoa que deve pagar a letra. Na falta desta indicação, considera-se que o aceitante se obriga, ele próprio, a efectuar o pagamento no lugar indicado na letra. Se a letra é pagável no domicílio do sacado, este pode, no acto do aceite, indicar, para ser efectuado o pagamento, um outro domicílio no mesmo lugar. ii) O protesto e a cláusula “sem despesas”; Decorre do preceituado no artigo 44º da LULL que a recusa de aceite ou de pagamento deve ser comprovada por um acto formal (protesto por falta de aceite ou falta de pagamento). (…) O protesto por falta de pagamento de uma letra pagável em dia fixo (…)deve ser feito num dos dois dias úteis seguintes àquele em que a letra é pagável. Sucede, porém, que estatui o artigo 46 ºda LULL que O sacador, um endossante ou um avalista pode, pela cláusula "sem despesas", "sem protesto", ou outra cláusula equivalente, dispensar o portador de fazer um protesto por falta de aceite ou falta de pagamento, para poder exercer os seus direitos de acção. In casu consta no verso das letras a expressão “sem despesas” e a rubrica do opoente – v. Nº 2 dos Fundamentos de Facto. Tal significa que o portador se mostra dispensado de fazer o protesto por falta de pagamento, para poder exercer os seus direitos de acção. E, conforme esclarece Paulo Sendin, Letra de Câmbio, Vol. II, pág. 807, a cláusula relativa à dispensa do protesto produz os seus efeitos em relação a todos os signatários das letras em causa. iii) A apresentação a pagamento da letra; Dispõe o artigo 38º da LULL que O portador de uma letra pagável em dia fixo (…) deve apresentá-la a pagamento no dia em que ela é pagável ou num dos dois dias úteis seguintes. Mas será que a aposição da cláusula “sem despesa” dispensa o portador das letras de proceder à apresentação da mesma dentro do prazo prescrito na lei. Vejamos. Como é sabido são requisitos da apresentação a pagamento de uma letra: a) A exibição do título perante o devedor principal; b) A reclamação da soma na sede do pagamento; c) Estar o detentor do título habilitado a restituí-lo, com a respectiva quitação - v. Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 5ª ed., pg. 235. Com se refere no Ac. R. P. de 05.12.2006, acessível na Internet, no síito www.dgsi.pt (Pº 0625652) A apresentação a pagamento deve ser feita pelo portador perante o sacado. Ele, sacado, é em quem o sacador e cada um dos demais signatários do direito de crédito cambiário confiam que o reconhecerá pontualmente no vencimento, satisfazendo o seu valor patrimonial subscrito na confiança manifestada desse reconhecimento. Estando em causa letras domiciliárias, isto é, pagáveis, consoante estipula o artigo 4º LULL, no domicílio de terceiro, a sua apresentação a pagamento deverá ser feita a esse terceiro – v. Abel Pereira Delgado, . ob. cit. 60, nota 2. Refere-se igualmente nos Ac. STJ de 23.11.99, acessível no supra referido sítio da Internet, e no Ac. R.E. de 11.10.2001, C.J. 2001, 4, 268 que constando das letras como local de pagamento uma determinada agência bancária é aí que as letras devem ser apresentadas a pagamento. Estatui o artigo 46 ºda LULL que a clausula “sem despesa” não dispensa o portador da apresentação da letra dentro do prazo prescrito nem tão-pouco dos avisos a dar. Com efeito, resulta do artigo 45º de LULL que o portador deve avisar da falta de aceite ou de pagamento o seu endossante e o sacador dentro dos quatro dias úteis que se seguirem ao dia do protesto ou da apresentação, no caso de a letra conter a cláusula "sem despesas". A pessoa que tenha de enviar um aviso pode fazê-lo por qualquer forma, mesmo pela simples devolução da letra. Essa pessoa deverá provar que o aviso foi enviado dentro do prazo prescrito. O prazo considerar-se-á como tendo sido observado desde que a carta contendo o aviso tenha sido posta no correio dentro dele. A pessoa que não der o aviso dentro do prazo acima indicado não perde os seus direitos; será responsável pelo prejuízo, se o houver, motivado pela sua negligência, sem que a responsabilidade possa exceder a importância da letra. A prova da inobservância do prazo incumbe àquele que dela se prevaleça contra o portador. Ora, como é sabido, na oposição à execução o ónus da prova obedece às regras gerais. E, como nesta se deduz, em geral, defesa por excepção, como vem definida no nº 2º do artigo 487º CPC, será sobre quem arguiu tal excepção que recairá o ónus da prova dessa alegação, em conformidade com o disposto no nº 2º do artigo 342º do Código Civil. Como explica Antunes Varela, Manual de Processo Civil ", 2ª ed., 456, e RLJ 117º, 30 e 31, na teoria das normas, assente na relação entre regra e excepção, " incumbe à parte cuja pretensão se apoia em determinada norma alegar e provar que os pressupostos dessa norma se verificam no caso concreto litigado ". De harmonia com esta doutrina, cabe em regra ao autor - neste caso, ao exequente - a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido. Ao devedor demandado incumbe, por sua vez, a prova da ocorrência de factos considerados pelo direito substantivo aplicável impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão da contraparte, determinados de acordo com a norma em que assenta a excepção por ele invocada. Salienta Abel Delgado, ob. cit, 290, que a cláusula “sem despesas” não dispensa o portador da apresentação da letra dentro do prazo prescrito nem tão-pouco dos avisos, elimina, sim, o protesto como diligência cambiária e como condição de regresso. Faz a inversão do ónus da prova da apresentação tempestiva ao obrigado principal. É que, a lei presume a tempestividade da apresentação a pagamento, incumbindo ao demandado a alegação e prova do contrário – v. art. 46º, § 2º da LULL. E, tendo sido a dita cláusula escrita pelo sacador – v. Nº 2 dos Fundamentos de Facto - produz os seus efeitos em relação a todos os signatários da letra. Resulta do artigo 53º da LULL que o portador perde os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante, depois de expirados os prazos fixados para: i) A apresentação de uma letra à vista ou a certo termo de vista; ii) Fazer o protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento; iii) A apresentação a pagamento no caso da cláusula "sem despesas"; Ora, no caso dos autos estamos perante esta última situação. Mas, as letras em causa resultam de reformas de outras letras – v. Nº 3 da fundamentação de Facto. A letra de reforma consiste em substituir uma velha letra por outra nova, tendo realmente por fim diferir o pagamento da obrigação constante da letra renovada, traduzindo-se afinal numa espécie de pagamento. Cfr. Abel Delgado, ob. cit. 212, e Gonçalves Dias, Da letra e da Livrança, vol. 1º, 401. A reforma de uma letra significa, portanto, a substituição de uma letra vencida e não paga por uma outra de igual ou inferior valor, com nova data de vencimento. O caso mais frequente de reforma de letras é o de ter havido pagamento parcial, dando-se então uma redução da obrigação cambiária e uma dilação do seu pagamento, o que poderia ser obtido através da menção na letra inicial do pagamento parcial – v. artigo 39º da LULL. E, sendo as letras dadas à execução resultantes de reformas de outras letras sacadas pelo opoente, não é crível o desconhecimento, pelo opoente, a falta de pagamento das letras, por parte do aceitante, e que o Banco exequente não lhe haja dado conhecimento desse facto. Sucede que, presumindo a lei, como acima ficou dito, a tempestividade da apresentação a pagamento, a verdade é que, não alegou o opoente factos concretos susceptíveis de se concluir pela inobservância do prazo para apresentação das letras a pagamento, sendo certo que não basta invocar que não consta da letra a aposição de anotação da sua apresentação a pagamento, já que esta não é requisito de exequibilidade – v. neste sentido Ac. R.L. de 30.05.1996, acessível no supra citado sítio da Internet (Pº 0011776). iv) O direito do portador da letra de câmbio: Ø Princípio da solidariedade dos obrigados cambiários e a acção de regresso. Decorre do artigo 43º da LULL que o portador pode exercer os seus direitos de acção contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados se o pagamento não foi obtido do sacado na data do vencimento. É o que se designa por direito de regresso. O pagamento da letra no regresso é, assim, o pagamento da letra não aceite ou não paga. Nos termos do artigo 47º da LULL, Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador. O portador tem o direito de accionar todas estas pessoas, individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram. O mesmo direito possui qualquer dos signatários de uma letra quando a tenha pago. A acção intentada contra um dos co-obrigados não impede de accionar os outros, mesmo os posteriores àquele que foi accionado em primeiro lugar. Os subscritores de uma letra são, pois, solidariamente responsáveis para com o portador. Este tem o direito de accionar todas essas pessoas, singular ou colectivamente, sem estar adstrito a observar o ordem por que elas se obrigaram. O mesmo direito possui qualquer dos signatários da letra, quando a tenha pago. Ora, respondendo todos os intervenientes no título cambiário solidariamente pela obrigação incorporada no título, sempre poderá o portador das letras exigir o pagamento das mesmas a qualquer desses intervenientes. Acresce que, como acima ficou dito, não resulta que o exequente, na qualidade de portador das letras, haja perdido o direito de acção contra o opoente/sacador, ou como refere o opoente, que as letras dadas à execução hajam pedido a sua natureza cambiária, por falta de um requisito essencial. Mas, mesmo que assim se não entendesse, constituem títulos executivos, nos termos do artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil, os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético. E, independentemente de valerem ou não como títulos cambiários, as letras consubstanciam-se em documentos particulares previstos na alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil. Ademais, sempre decorre do preceituado no nº 1 do artigo 458º do C.C. a presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental. É que, dispõe o nº 1 do art. 458º citado que “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”. A este propósito refere Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., 387, que “a lei consente que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e validade da relação fundamental. É consagrada, todavia, uma simples presunção, pelo que a prova em contrário produzirá as consequências próprias da falta, ilicitude ou imoralidade da causa dos negócios jurídicos”. Improcede, pois, o que consta das conclusões das alegações de recurso do apelante, inexistindo qualquer ineptidão do requerimento executivo. Assim sendo e, pese embora com fundamento diverso, mantém-se a decisão recorrida. Vencido, é o recorrente responsável pelas custas respectivas - artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. IV. DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida, ainda que com diferentes fundamentos. Condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas. Lisboa, 19 de Fevereiro de 2009 Ondina Carmo Alves – Relatora Ana Paula Boularot Lúcia Sousa |