Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
Maria
Instaurou acção sob a forma de processo comum sumário contra:
1. PALME II – COMERCIALIZAÇÃO DE CARTÕES DE DESCONTO, S.A. e
2. BANCO CREDIBOM, S.A.
Alegando, em síntese, o seguinte:
· Em Maio de 2008, a solicitação da 1.ª Ré e invocando que tinham uma viagem para lhe oferecer, a Autora compareceu num Hotel em Beja, onde um colaborador da 1.ª Ré tentou convencê-la a adquirir um produto – cartão Key Club – que lhe permitiria viajar e usufruir de alojamento a preços especiais, não tendo conseguido convencê-la;
· No entanto, o colaborador convenceu a Autora a entregar as seus documentos e a preencher e assinar um formulário, o que fez pensando que estava a assinar um formulário para poder usufruir da estadia de 4 dias e 3 noites num hotel e 10.000 pontos;
· O colaborador entregou uma pasta à Autora, que esta recebeu e levou para casa, arrumando-a, sem verificar o que continha;
· Só em Agosto de 2008 é que foi verificar os documentos que estavam na pasta, após um telefonema da Key Club;
· Contactou o seu Banco e verificou que existia um levantamento em nome da KEY CLUB / CREDIBOM, no valor de € 163,36;
· Só no contacto com a CREDIBOM é que percebeu que tal valor era referente a um crédito para aquisição de um produto à Key Club, cuja cópia não possuía;
· A Autora nunca usufruiu de qualquer serviço prestado pela 1.ª Ré, nunca outorgou com a Key Club qualquer contrato, nem sequer com a CREDIBOM.
Concluiu pedindo:
a) que declare nulo e sem efeito o alegado “contrato” aparentemente outorgado entre a Autora e a 1.ª Ré, já que esta não o assinou, sendo a assinatura ali constante falsa, sequer alguma vez teve intenção de contratar;
b) que declare também nulo e sem efeito o “contrato de crédito ao consumo” que parece ter sido “celebrado” entre a Autora e a Ré Instituição de Crédito – BANCO CREDIBOM, S.A.;
c) que condene a 2.ª Ré a devolver à Autora todas as quantias debitadas na conta desta e que, no momento, ascendem a € 2.123,68 (dois mil e cento vinte três Euros e sessenta oito cêntimos), bem como na devolução das que entretanto forem debitadas, acrescidas de juros de mora desde a data de cada um dos débitos, a uma taxa igual à que a Instituição cobra nos seus empréstimos, até integral restituição dos referidos débitos;
d) que condene as Rés, solidariamente, a pagarem à Autora, a título de indemnização por danos não patrimoniais, o montante de € 3.000,00 (três mil Euros).
Citadas regularmente, as rés apresentaram contestação.
A 1ª ré alegou, além da impugnação dos factos alegados pela autora, em suma, o seguinte
· A 1.ª Ré prestou a informação sobre a forma de usufruir das vantagens associados ao cartão Key Club, nomeadamente as condições de aquisição do cartão do de desconto;
· A Autora assinou de livre vontade e sem qualquer meio de coacção o contrato Key Club;
· Face ao preço do contrato € 4.641,00, a Autora acordou com a 1.ª Ré que o pagamento do preço do contrato seria feito com recurso a crédito bancário, tendo para isso recorrido à 2.ª Ré, fornecendo a documentação e informações pessoais indispensáveis à aprovação do crédito;
· À Autora foram entregues os exemplares dos contratos celebrados;
· Todas as cláusulas foram lidas e detalhadamente clarificadas;
· Foi atribuído à Autora um bónus de 10.000 pontos que poderiam ser convertidos em descontos em bens e serviços.
A 2ª ré alegou, além da impugnação dos factos alegados pela autora, em suma, o seguinte:
· O abuso de direito, porquanto a Autora liquidou 16 das 36 mensalidades, não tendo fazer chegar qualquer reclamação ou intenção de requerer a nulidade do contrato;
· Tendo assinado os documentos, a Autora ficou na posse de todos os elementos, não tendo procedido à revogação do contrato no prazo de 14 dias contados da data da sua celebração;
· Foram prestadas informações e esclarecimentos à Autora relativamente ao contrato de compra e venda, bem como ao contrato de crédito;
· A Autora forneceu o seu NIB para além dos seus elementos de identificação.
Foi proferida despacho saneador e organizada a condensação da matéria de facto.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e decidindo:
"a) Declarar a nulidade do contrato de crédito celebrado entre a Autora Maria e a Ré BANCO CREDIBOM, S.A. e a nulidade do contrato celebrado entre a Autora e a Ré PALME II – COMERCIALIZAÇÃO DE CARTÕES DE DESCONTO, S.A. e, em consequência, condenar-se a 2.ª Ré BANCO CREDIBOM, S.A. na restituição à Autora da quantia de € 2.123,68 (dois mil e cento e vinte e três Euros e sessenta e oito cêntimos), acrescida de juros que se vençam a partir da data do trânsito em julgado desta decisão até pagamento contados à taxa legal.
b) Absolver as Rés do pedido de condenação na quantia de € 3.000,00 (três mil Euros) peticionada a título de danos não patrimoniais."
Não se conformando com aquela sentença, dela recorreu a ré Banco Credibom, que nas suas alegações de recurso formulou as seguintes “CONCLUSÕES:
1ª – A Sentença recorrida padece de dois vícios: o primeiro, uma incorrecta valoração de um facto dado como provado, que consubstanciou numa incorrecta subsunção do Direito aplicável,
2ª - e o segundo uma incorrecta subsunção dos factos ao Direito, ao desconsiderar a excepção de abuso de direito alegada e, no entender do Recorrente, provada.
3ª - Quanto ao primeiro vício, ficou patente que, ao contrário do exposto na Sentença recorrida, foi alegado (art.ºs 65.º e 66º da P.I.) e dado como provada (ponto D) dos factos assentes) a entrega do capital mutuado pelo Recorrente à entidade prestadora de serviços, 1.ª Ré.
4ª - Assim, e após ter referido que face à nulidade do contrato de crédito seria nulo o contrato celebrado entre a Autora e a 1.ª Ré Palme II “a restituição apenas poderia impender sobre a entidade prestadora de serviços, no caso em concreto, a 1.ª Ré”,
5ª - outra conclusão não poderia ter chegado se não pela da condenação da referida 1.ª Ré na restituição à Recorrida.
6ª - Mas se isso não bastasse ou não procedesse,
7ª - o certo é que ficou provado que o comportamento da Recorrida, ao invocar a nulidade do contrato de crédito,
8ª - um ano e três meses após a sua outorga, sem qualquer reclamação ou justificação perante o Recorrente
9ª - é abusivo e violador dos mais elementares princípios da boa-fé, protegidos pelo art.º 334.º do Código Civil.
10ª - Isto é, a Recorrida actuou em manifesto abuso de direito, pois o seu comportamento (pagamento de 15 mensalidades), em consonância com a total ausência de reclamação, questão, revogação, o que seja, durante o referido período,
11ª - foi objectivamente apto a criar (como criou) no Recorrente a convicção inabalável de que o contrato não apresentava qualquer vício e, como tal, que nenhuma nulidade seria invocada,
12ª - porquanto o comportamento da Recorrida perante o Recorrente convenceu este que o contrato era do agrado da Recorrida e que esta iria manter o seu cumprimento.
13ª - Assim, e para terminar, e caso não considere o primeiro vício alegado, o que apenas por cautela se admite, por o comportamento da Recorrida ser abusivo, e como tal contrário ao Direito, deverá o presente recurso ser dado provimento e em consequência julgar procedente a excepção de abuso de direito, absolvendo-se nestes termos do pedido o ora Recorrente.
II- Factos
Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
Constantes dos factos assentes:
1) No dia 7 de Maio de 2008, a solicitação da primeira Ré, a Autora compareceu em Beja, num Hotel da Cidade (A).
2) Na data e local referidos em 1), o colaborador da primeira Ré, de nome Silva, apresentou à Autora um produto – um cartão Key Club – que lhe permitiria viajar e usufruir de alojamento a preços especiais (B).
3) Após mais de uma hora, o colaborador da primeira Ré não tinha conseguido convencer a Autora a adquirir o alegado produto, porque esta lhe referiu sempre que não tinha condições para tal (C).
4) Em virtude dos documentos de fls. 18 e 21, cujo teor se dá por integralmente reproduzidos, a Ré CREDIBOM entregou à Ré PALME II o montante de € 4.641,00, tendo atribuído a tal empréstimo o n.º 80003023084 (D).
5) Apesar de o número de prestações consignado nos documentos de fls. 18 e 21 ser igual, o valor de cada prestação e respectivo montante final apurado não o são em ambos os documentos (E).
6) A Ré PALME II contactou a Ré CREDIBOM, solicitando-lhe o empréstimo do montante referido em 5) a favor da Autora, indicando a esta o valor pretendido, o respectivo prazo de amortização, os elementos pessoais identificativos da Autora e respectivos dados financeiros, os quais foram processados informaticamente e, nessa sequência, a Ré CREDIBOM comunicou-lhe o número de prestações, o valor unitário de cada uma, bem como a taxa nominal de 14,25%, a TAEG de 17,33%, e a comissão de dossier no valor de € 60,00 e imposto de selo no valor de € 23,62, tendo o empréstimo solicitado sido concedido (F).
Constantes da resposta aos quesitos:
7) No momento referido em 3), o colaborador da primeira Ré levou a Autora a entregar-lhe alguns documentos para fotocopiar (resposta positiva ao quesito 1.º).
8) O que fez com a justificação e que eram necessários para lhe oferecer um voucher com direito a 4 dias e 3 noites de estadia num hotel e 10.000 pontos gratuitos (resposta positiva ao quesito 2.º).
9) Tendo, para tal, assinado um formulário (resposta positiva com correcção ao quesito 3.º).
10) O colaborador da primeira Ré saiu, então da sala e regressou poucos minutos depois com uma pasta onde se encontrava o formulário (resposta positiva ao quesito 4.º).
11) Solicitou à Autora que preenchesse a parte dos seus dados pessoais (resposta positiva ao quesito 5.º).
12) E, pegando no formulário, voltou-o e solicitou-lhe que assinasse (resposta positiva ao quesito 6.º).
13) O que a Autora fez, pensando que estava a assinar um formulário para poder usufruir da estadia, quando e se o entendesse e tivesse condições e que estava a assinar o verso do formulário (resposta positiva ao quesito 7.º).
14) O colaborador da primeira Ré entregou à Autora uma pasta, que esta recebeu e levou para casa, arrumando-a sem verificar o que continha (resposta parcialmente positiva ao quesito 8.º).
15) Em 14 de Agosto de 2008, a Autora foi contactada telefonicamente pela Key Club, questionando-se porque não tinha ainda utilizado os serviços, uma vez que era sócia e não utilizava o cartão (resposta positiva ao quesito 9.º).
16) Ao chegar a casa e verificar os documentos, a Autora constatou que o número de bilhete de identidade e o número de contribuinte não tinham sido preenchidos por si no documento de fls. 18 (resposta positiva ao quesito 10.º).
17) E o número de contribuinte não coincide com o seu (resposta positiva ao quesito 11.º).
18) Bem como que o colaborador da primeira Ré tinha colocado uma data no referido documento e indicado uma modalidade de pagamento, assinalado com a letra B (resposta positiva ao quesito 12.º).
19) Em 18 de Agosto de 2008, a Autora contactou com a CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA DE CUBA e foi-lhe referido que desde 26 de Junho se verificava um levantamento da conta de que é titular em nome da Key Club/CREDIBOM, no valor de € 163,36 (resposta positiva ao quesito 14.º).
20) A Autora contactou a CREDIBOM, tendo-lhe sido explicado que se referia a um crédito para aquisição de um produto Key Club e que seguramente tinha consigo um contrato (resposta positiva ao quesito 16.º).
21) A Autora solicitou da CREDIBOM o envio de uma cópia de tal contrato (resposta positiva ao quesito 17.º).
22) A qual foi enviada em Setembro de 2008 e que constitui o documento de fls. 21 dos autos (resposta positiva ao quesito 18.º).
23) Tendo a Autora constatado que em tal cópia se encontrava aposta a sua assinatura (resposta positiva ao quesito 19.º).
24) A Autora nunca usufruiu de qualquer serviço prestado pela Ré (resposta positiva ao quesito 21.º).
25) A Autora nada preencheu no documento referido em 10), 12), 13), 20), 21) e 23) (resposta parcialmente positiva ao quesito 24.º).
26) A Autora não exerce funções junto da CCD – Casa do Pessoal (resposta parcialmente positiva ao quesito 25.º).
27) O seu vencimento não corresponde ao referido no documento de fls. 21 (resposta positiva ao quesito 26.º).
28) Bem como não corresponde à verdade a informação ali aposta relativamente ao tipo de habitação (resposta positiva ao quesito 27.º).
29) Nenhum empregado da CREDIBOM esteve com a Autora na reunião de 7 de Maio, ou em qualquer outro dia (resposta positiva ao quesito 28.º).
30) Desde 26 de Junho de 2008, a CREDIBOM tem debitado da conta n.º 40165410707, da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Cuba o montante mensal de € 163,36 (resposta positiva ao quesito 30.º).
31) Perfazendo em Julho de 2009 o montante de € 2.123,68 (resposta positiva ao quesito 31.º).
32) A PALME II informou a Autora de que o preço do contrato era de cerca de 4 mil Euros (resposta parcial positiva e com correcção ao quesito 21.º).
33) Foi entregue à Autora o contrato Key Club (resposta parcial positiva ao quesito 41.º).
34) Bem como o respectivo cartão de sócio destacável do contrato (resposta parcial positiva ao quesito 42.º).
Factos não provados:
a) Constatou, ainda, que a sua assinatura não foi aposta por si no referido documento (resposta negativa ao quesito 13.º).
b) Atentos os seus compromissos bancários e para que não ficasse com registo no Banco de Portugal, o que a impediria a ter acesso a crédito, se dele necessitasse, não procedeu ao cancelamento de tal levantamento (resposta negativa ao quesito 15.º).
c) Percebendo, então, que o verso do documento que assinou como referido em 7.º foi o daquele documento (resposta negativa ao quesito 20.º).
d) Pois que jamais celebrou com a Key Club qualquer acordo (resposta negativa ao quesito 22.º).
e) Bem como não o fez com a Ré CREDIBOM (resposta negativa ao quesito 23.º).
f) Uma vez que a Autora não podia despender tal quantia de uma só vez, acordou com a Palme II que o pagamento do preço do contrato seria feito com recurso a crédito bancário (resposta negativa ao quesito 39.º).
g) Optando pela opção B, que consubstancia um financiamento pago em 36 prestações (resposta negativa ao quesito 40.º).
h) E, ainda, o documento que titula contrato de crédito ao consumo celebrado com a CREDIBOM (resposta negativa ao quesito 43.º).
i) Todas as cláusulas dos contratos referidos em 41. E 43. Foram lidas e detalhadamente clarificadas (resposta negativa ao quesito 44.º).
j) Foi explicada e explicitada a cláusula 17, que prevê a cobrança anual de uma quantia a título de suporte de despesas administrativas (resposta negativa ao quesito 45.º).
k) Bem como foi, ainda, esclarecido o prazo e respectiva forma de livre resolução do contrato (resposta negativa ao quesito 46.º).
l) A Autora solicitou a cartão Key Club Mastercard (resposta negativa ao quesito 47.º).
m) A Autora conhecia o teor do documento que titula o contrato referido em 43.º e aceitou a celebração do contrato de crédito em causa (resposta negativa ao quesito 48.º).
n) Tendo emitido as declarações negociais subjacentes ao mesmo de livre e espontânea vontade (resposta negativa ao quesito 49.º).
o) Através de carta remetida em 28 de Maio de 2008 pela CREDIBOM, esta deu a conhecer à Autora o código da entidade credora e referência da cobrança da autorização de débito em conta para efeitos de alteração, substituição ou revogação desta através sistema de débitos bancários (resposta negativa ao quesito 50.º).
p) O documento constante de fls.21 foi preenchido com base nas informações referidas em F) (resposta negativa ao quesito 51.º).
q) Na presença da Autora e por ela assinado na data que o mesmo se encontra aposta (resposta negativa ao quesito 52.º).
III- Fundamentação
Cumpre apreciar e decidir.
O objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação dos recorrentes, pelo que as questões a conhecer no âmbito do recurso interposto são as seguintes:
1. Abuso de direito;
2. Efeitos da declaração de nulidade do contrato de crédito.
1. Abuso de direito
A apelante defende que a apelada/autora ao invocar a nulidade do contrato mais de um ano após a sua outorga, sem qualquer reclamação ou justificação perante o Banco, actuou em manifesto abuso de direito.
O abuso do direito encontra-se previsto no art.º 334º do Código Civil, onde se estipula que é “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”
Os normativos contidos nos artºs 334º e 762º do Código Civil referem-se à boa fé no segundo sentido referido por Jorge Coutinho de Abreu.
Mas, como refere Jorge Coutinho de Abreu, a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem vindo a estudar a boa fé no âmbito de várias figuras, das quais destacamos “a proibição de venire contra factum proprium, impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente; aquilo que os alemães designam por Verwirkung, com que se veta o exercício de um direito subjectivo ou duma pretensão, quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável).” (in Do Abuso de Direito, 1999, pág. 59/60).
Para Fernando Cunha de Sá, “O abuso do direito traduz-se, pois, num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido. Não é, aliás, qualquer excesso a esses limites que confere ao exercício do respectivo direito carácter abusivo, mas somente o excesso que seja manifesto.” (in Abuso do Direito, 2005, pág. 103/104).
Retomemos e esclareçamos o conceito venire contra factum proprium referido por Coutinho de Abreu e atrás mencionado.
De acordo com António Menezes Cordeiro, “só se considera como venire contra factum proprium a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor.” (in “Tratado de Direito Civil Português”, I – Parte Geral – tomo IV, 2005, pág. 280).
Mais adiante, o mesmo autor refere “… Von Craushaar atesta que ‘O comando de que ninguém deve colocar-se em contradição com o seu comportamento tem a sua origem, finalmente, na protecção da confiança’. Canaris, começando por apoiar a afirmação de Wieacker, …, formula uma construção desenvolvida do venire baseado na confiança. Luhmann, não obstante omitir referências expressas ao venire, associa a necessidade de identidade do comportamento próprio com a confiança. Erman/Sirp escrevem que ‘quando o titular através das suas declarações ou pelo seu comportamento, consciente ou inconsciente, tenha provocado que a outra parte se pudesse confiar em si e, também, que o tenha feito, então não deve esta ser desiludida. Atentaria contra a boa fé e minaria a confiança no tráfego jurídico que o titular se permitisse incorrer em contradição com as suas declarações ou comportamentos anteriores’” (pág. 286), bem como “a doutrina é uniforme em tomar a previsão de venire contra factum proprium por meramente objectiva: não se requer culpa, por parte do titular exercente, na ocorrência da contradição. Não se pode, contudo, ir tão longe nessa via que, ao factum proprium, se dê mais consistência do que ao próprio negócio jurídico: também este, afinal e por maioria de razão, suscita, no espaço jurídico, confiança digna de protecção e, não obstante, cede perante vectores que, em casos determinados, se apresentem com peso maior.” (pág. 287).
Entendemos, contra alguma jurisprudência deste tribunal, que a situação não é enquadrável no âmbito do abuso do direito.
Os factos só por si podem permitir uma conclusão diferente, logo à partida.
Para melhor compreensão da nossa conclusão de inexistência de tal abuso chamamos a atenção para o seguinte excerto retirado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 2010, proferido no processo n.º 08B3798, em que foi relatora a Conselheira Maria dos Prazeres Beleza (in http://www.dgsi.pt):
“…não é significativo, por si só, o tempo que decorreu entre a celebração dos contratos e a propositura da presente acção (ou da citação da recorrente); a nulidade pode ser invocada a todo o tempo (naturalmente com o limite, genérico, da prescrição), nos termos do disposto no artigo 286º do Código Civil. Se o legislador pretendesse a sanação do vício pelo decurso do tempo tê-lo-ia provavelmente sancionado com a anulabilidade, como fez para os casos previstos no nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 359/91.
Assim sendo, haveria de ter sido alegada e provada matéria de facto que permitisse concluir que o não exercício anterior do direito de invocar a nulidade por falta de entrega oportuna de um exemplar da proposta de contrato tinha sido acompanhado de uma actuação dos consumidores apta a, objectiva e justificadamente, criar na recorrente a confiança de que a nulidade não seria suscitada, tornado claramente inaceitável que, ao arrepio dessa sua atitude, a viessem invocar, em violação da confiança que eles próprios (objectivamente, repete-se) criaram (cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Novembro de 2006, 3 de Julho de 2008, 18 de Dezembro de 2008 ou de 31 de Março de 2009, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 06A3441, 08B2002, 08B3154 e 09A0537).
Com efeito, para ocorrer abuso de direito é imperioso que o modo concreto do seu exercício, objectivamente considerado, se apresente ostensivamente contrário “à boa fé, (a)os bons costumes ou (a)o fim social ou económico” do direito em causa (artigo 334º do Código Civil).”
O próprio comportamento da autora, no sentido de colocar questões relativas ao próprio contrato revela que não se lhe possa incutir ter criado confiança em qualquer das rés de não invocação de qualquer nulidade.
De acordo com os factos apurados, só em Agosto de 2008, ou seja, mais de três meses após o contacto estabelecido entre a autora e a 1ª ré, é que a apelada/autora se apercebeu da existência dos contratos e do levantamento na sua conta bancária de em nome da Key Club/Credibom e então lhe sendo explicado pela apelante que se tratava de um crédito para aquisição de um produto Key Club.
Além disso, também se apurou que a autora nunca usufruiu de qualquer serviço prestado pela ré.
De qualquer modo, quer o regime da nulidade, quer o abuso do direito têm uma natureza de protecção de ordem pública, pelo que nenhuma pode ser usada como forma de inviabilizar a invocação da outra.
Note-se que a nulidade em causa tem uma natureza muito especial de protecção dos consumidores, pelo que permitir a neutralização da nulidade através da figura do abuso do direito, nos termos invocados, seria manter-se " o risco que o legislador pretende evitar e, portanto, ficaria praticamente sem campo de aplicação o normativo sancionatório em apreço”, conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado.
Deste modo, concluímos pela não verificação do abuso de direito invocado, improcedendo esta questão levantada na apelação.
2. Efeitos da declaração de nulidade do contrato de crédito
Não se discute no âmbito do presente recurso a nulidade do contrato mas apenas no que à mesma respeita os efeitos da sua declaração, nomeadamente a restituição da quantia mutuada.
Na sentença recorrida escreveu-se o seguinte:
"… a restituição apenas poderia impender sobre a entidade prestadora de serviços, no caso concreto, a 1.ª Ré. No entanto, não foi alegado (e não se deu como provado) que o mutuante tenha pago alguma quantia à entidade prestadora de serviços em consequência da celebração dos referidos contratos.".
A recorrente entende que a restituição devia ter sido ordenada por ter sido provado no ponto D) dos factos assentes a entrega do capital à 1ª ré.
Nos termos do art.º 289º, n.º 1, do Código Civil, tanto “a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.
Por força da jurisprudência do STJ uniformizada a partir do assento n.º 4/95, publicado no DR - 1ª série, de 17-05-1995, a declaração de nulidade importa a condenação na restituição do recebido com fundamento no n.º 1 do artigo 289 do Código Civil.
Este efeito estabelecido na referida norma é independente do pedido de restituição da quantia mutuada mas tão só no âmbito das relações imediatas, ou seja, no âmbito das relações internas do contrato e não no das relações externas.
No âmbito das relações externas do contrato de mútuo, a restituição tem que ser pedida contra aquele que recebeu a quantia a que se reporta o contrato cuja nulidade é declarada, e que no caso quem recebeu foi a prestadora do serviço.
A restituição que a 2ª ré na sua contestação formulou foi contra a demandante e não contra a co-ré.
De qualquer forma, só por via de acção própria a 2ª ré poderia pedir da 1ª ré a restituição da quantia entregue, de forma a que esta pudesse invocar, eventualmente, alguma excepção que lhe pudesse ser reconhecida.
Retomando, o raciocínio, a restituição por força da declaração de nulidade imposta pelo art.º 289º, n.º 1, do Código Civil, só deve ser determinada no âmbito das relações internas do contrato e não das relações externas ao mesmo, na medida em que no caso a prestadora do serviço é parte externa ao contrato de mútuo, apesar da relação de conexa existente entre ambos os contratos.
Assim, improcede também esta segunda questão do recurso, o que implica a improcedência total da apelação.
IV– Decisão
Em face de todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 9 de Março de 2017___________________________
Jorge Vilaça ___________________________
Vaz Gomes ___________________________
Jorge Leitão Leal
SUMÁRIO
I – O pagamento das prestações durante um certo período de vigência do contrato de mútuo não impede a invocação da nulidade pelo mutuário, nem configura, só por si, abuso do direito nos termos do art.º 334º do Código Civil.
II - A restituição do que foi prestado na sequência da celebração de um contrato de mútuo declarado nulo só deve ser ordenada, independentemente do pedido, à contra-parte no contrato, no âmbito das relações internas, e não à parte co-demandada com o mutuante e que recebeu tal quantia relacionada com contrato de prestações de serviços conexo com o de mútuo. |