Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS DEFEITOS INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA INCUMPRIMENTO DEFINITIVO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/19/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Em princípio, a compra e venda de coisa defeituosa não confere ao adquirente o direito de exigir o pagamento da quantia necessária para proceder à sua reparação por via directa. 2. Todavia, tanto a doutrina como a jurisprudência têm enunciado, em circunstâncias diversas, outras respostas encontradas a partir de especiais circunstâncias casuisticamente verificadas. 3. Assim acontece sempre que o vendedor (ou o empreiteiro) se encontre numa situação de incumprimento definitivo quanto á obrigação de efectuar a reparação, designadamente depois de ter sido admonitoriamente interpelado a cumprir, de ter emitido declaração de recusa de reparação ou em situações de urgência incompatível com a natural demora na resolução do diferendo. 4. Tratando-se de contrato de compra e venda de consumo, o direito a obter o pagamento imediato da quantia correspondente às despesas com a reparação dos defeitos decorre ainda do Dec. Lei nº 67/03, de 8-4, em transposição da Directiva nº 1999/44/CE, e do art. 12º da Lei de Defesa do Consumidor, direito esse que apenas está limitado, nos termos gerais, pela cláusula do abuso de direito. (ASAG) | ||
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Decisão Texto Integral: | I – M… demandou M…, Ldª. Considera que tem o direito de exigir da R. a reparação de defeitos que existem na fracção autónoma que lhe comprou e, em caso de incumprimento, que tem direito ao pagamento de uma indemnização correspondente ao custo da sua reparação. Alegou que em Abril de 2004 a A. detectou defeitos numa fracção que adquiriu à R. em 2002, tendo solicitado aos serviços da C. M. de …a realização de uma vistoria para sua identificação. Desde Dezembro de 2004 que a A. vem solicitando à Ré a reparação dos defeitos, tendo o gerente da Ré visitado a fracção, sem que todavia tenha realizado a reparação. Em Fevereiro de 2005, a A. solicitou um orçamento para reparação daqueles defeitos, no montante de € 8.078.,78., acrescidos de IVA. A Ré conhecia os defeitos pois foi quem construiu o prédio de que faz parte a fracção vendida à Autora. Concluiu pela condenação da Ré no pagamento da quantia de € 8.078,00 acrescida de IVA.
A R. contestou, negando a existência de alguns dos defeitos apontados pela A.; quanto a outros, alegou que as deficiências se devem ao uso que vem fazendo da fracção, desde que a adquiriu; e quanto à pintura de elementos metálicos nas varandas alega que só não foi efectuada porque a A. não deixou entrar as pessoas que a R. enviou para o efeito.
Durante a audiência de discussão e julgamento a A. desistiu do pedido de eliminação do vício referente à distribuição de água quente e declarou, com a concordância da Ré, que esta procedeu à reparação dos defeitos enumerados sob os n°s 2, 3, 6, 8, 12 e 14 do art. 3° da petição inicial.
A acção foi julgada improcedente, considerando que a A., não tem o direito de exigir da Ré o pagamento do valor orçamentado, sem passar pelas exigências que decorrem da regulamentação do contrato de compra e venda de imóveis com defeitos, designadamente pela transformação de uma situação de mora na efectivação da reparação em situação de incumprimento definitivo.
Apelou a A. e concluiu que:
a) A Ré foi notificada dos defeitos existentes no imóvel por ela vendido e em Dezembro de 2004 foi solicitado pessoalmente ao seu gerente a sua reparação e na data em que foi instaurada a presente acção não os havia reparado; Houve contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Factos provados: 1. No dia 28-8-02, foi celebrado o instrumento notarial em que Ma…, na qualidade de sócio gerente e em representação de M…, Ldª, declarou vender a M…, e esta declarou aceitar, a fracção … correspondente ao … andar esq. do prédio urbano sito na … 2. A referida aquisição encontra-se descrita na … CRP de …a favor da A., desde 3-12-02. 3. Na fracção da A. verifica-se: - Desafinação dos móveis da cozinha e das torneiras, - Pavimentos de madeira do hall com uma mancha escura; - Desafinação do portão da garagem e não funcionamento sistema de fecho; - Existência de estores danificados. - Os elementos metálicos das varandas encontram-se em mau estado de conservação; - Os vidros da sala encontram-se com sujidade proveniente da obra. 4. Foi a R. quem construiu o imóvel propriedade da A.; 5. A R. foi notificada da verificação dos factos referidos em 3., tendo em Dezembro de 2004 sido pessoalmente solicitada a reparação ao seu gerente que visitou a fracção; 6. Para reparação dos defeitos referidos em 3. a A. obteve um orçamento com os preços constantes de fls. 23 a 25 (datado de 14-2-05), a que deverá acrescer IVA.
III – Decidindo: 1. De todos os defeitos invocados pela A. na petição inicial e depois de a R., no decurso da acção, ter executado a reparação de alguns deles, a controvérsia está confinada aos seguintes defeitos: - Desafinação dos móveis da cozinha e das torneiras, - Existência de mancha escura no pavimento de madeira do hall; - Desafinação do portão da garagem e não funcionamento sistema de fecho; - Estores danificados. - Elementos metálicos das varandas em mau estado de conservação; - Vidros da sala com sujidade proveniente da obra.
Quanto às consequências, importa apurar se se verificam os pressupostos que determinem a condenação da R. no pagamento das quantias necessárias para que a A. proceda, pelos seus próprios meios, à reparação dos defeitos que persistem
2. Na sentença recorrida, o tribunal admitiu que estamos perante uma situação de compra e venda de imóvel com defeitos, mas que a R. está apenas perante uma situação de mora, não tendo sido convertida em incumprimento definitivo que proporcionaria à A. o direito de obter da R. o pagamento (proporcional) do valor orçamentado. Considera a apelante que a R. deve ser condenada no pagamento das despesas necessárias para reparação dos referidos defeitos, segundo orçamento que apresentou, tendo em consideração que a R. se negou a executar a reparação que oportunamente lhe foi solicitada, encontrando-se em situação de incumprimento definitivo.
3. No iter decisório em que os poderes da Relação estão circunscritos pelo objecto do recurso, mas em que podem ser aplicados poderes oficiosos em tudo o que constitua matéria de direito (arts. 664º e 713º, nº 2, do CPC), debruçar-nos-emos sobre as seguintes questões essenciais: a) Apreciação do direito invocada pela A. em face do disposto nos arts. 913º e segs. do CC e ainda do art. 1225º, nº 4, do CC; b) Complementarmente, apreciação do direito invocado pela A. em face do disposto sobre o contrato de compra e venda de bem de consumo, nos termos do Dec. Lei nº 67/03, de 8-4, sequencial à Directiva 1999/44/CE, do Parlamento Europeu.
4. Subjaz a esta acção um contrato de compra e venda da fracção de um edifício que a R. vendeu na qual se revelaram certos defeitos que ainda persistem e que não foram reparados. Nos termos da regulamentação constante do Código Civil, em face de defeitos que sejam detectados no objecto do contrato de compra e venda, seja móvel ou imóvel, entre outros direitos previstos nos arts. 913º, 915º e 909º, é conferido ao adquirente o direito de exigir do vendedor a reparação dos defeitos. Além disso, por via do art. 1225º, nº 4, do CC, que, apesar de inscrito na regulamentação do contrato de empreitada, visa os casos em que o vendedor tenha sido o construtor do edifício, resulta ainda a possibilidade de invocação do direito de indemnização pelos danos decorrentes da situação. Decorre da matéria de facto provada que, dentro do período de garantia contra defeitos, ou seja, dentro dos 5 anos subsequentes à entrega da fracção, a A. detectou uma série de defeitos que comunicou à R. para que esta procedesse à reparação. A R., através do seu gerente, visitou a fracção, mas não deu sequência ao pedido formulado e que estava apoiado num relatório elaborado pelos serviços camarários. Em face da inércia da R., a A. avançou para a propositura da presente acção, mas em vez de pedir a condenação da R. na reparação dos defeitos, pretende obter o valor correspondente ao custo da reparação.
4.1. O pedido de pagamento formulado pela A. não corresponde directamente a qualquer indemnização, antes ao custo provável da reparação dos defeitos. Ora, sem embargo da aludida indemnização por danos colaterais, em situações em que se verifiquem defeitos de construção, a lei não atribui, em regra, ao comprador o direito de exigir de imediato a prestação pecuniária correspondente ao custo da reparação. Ao invés, à previsão do direito de reparação corresponde a obrigação do vendedor de proceder, pelos seus meios, à reparação dos defeitos. Todavia, nem sempre a realidade que subjaz aos litígios se mostra compatível com o cumprimento do ritual para que aponta textualmente o quadro normativo do contrato de compra e venda ou de empreitada. Tanto a doutrina como a jurisprudência têm enunciado, em circunstâncias diversas, outras respostas encontradas a partir de especiais circunstâncias casuisticamente verificadas. Trata-se, em boa verdade, de um esforço no sentido de ajustar a resposta que se extrai do ordenamento jurídico, abstracto, generalizante e complexo, à realidade social, ponderando, designadamente, a incompletude de uma resposta estruturada em juízos de valor estritamente formais. Se é verdade que a intervenção dos tribunais não deve sobrepor-se à lei, não podem ignorar-se totalmente as circunstâncias que rodeiam frequentemente os conflitos que surgem a partir da celebração de contratos de compra e venda de imóveis, designadamente quando se constata a deterioração das relações entre o comprador e o vendedor ou se revela uma situação de desconfiança de onde decorre, por exemplo, uma incompatibilidade com os trâmites abstractamente previstos para outras situações. Os trâmites formalmente prescritos pelo legislador devem ser respeitados nos casos inequivocamente cobertos pelo âmbito de aplicação das normas. Como a jurisprudência e a doutrina em geral o defendem (Ac. do STJ, de 11-5-93, CJSTJ, tomo II, pág. 97, Ac. da Rel. de Lisboa, de 18-5-99, CJ, tomo III, pág. 102, Ac. da Rel. de Évora, de 19-1-95, CJ, tomo I, pág. 274, Ac. da Rel. de Coimbra, de 9-10-01, CJ, tomo IV, pág. 24, todos relacionados com a empreitada), para situações normais, admite-se que o interessado deve obedecer aos parâmetros definidos pelo legislador, sem poder ultrapassar etapas na resolução do diferendo. Mas não deve ignorar-se que outras situações que emergem da vida real, porque rodeadas de um específico circunstancialismo, não se ajustam aos espartilhos formais, exigindo esforço no sentido de procurar uma diversa solução. Assim acontece sempre que o vendedor (ou o empreiteiro) se encontre numa situação de incumprimento definitivo, com o desenho diversificado que emerge do ordenamento jurídico e que tem sido desenvolvido pela doutrina e pela jurisprudência, designadamente depois de ter sido admonitoriamente interpelado a cumprir. Trata-se de questão que, relativamente ao contrato de empreitada, foi desenvolvidamente tratada por Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 2ª ed., págs. 145 e segs. com extensas referências jurisprudenciais. O mesmo objectivo de procurar no ordenamento jurídico complexo a resposta mais correcta para solicitações sociais se prossegue quando, como se refere no Ac. da Rel. de Lisboa, de 29-11-01, CJ, tomo V, pág. 95 (que incidiu sobre contrato de empreitada de reparação de veículo automóvel), se considera dispensável o pedido de eliminação de defeitos de construção em face de situações em que o empreiteiro emite declaração de recusa. Nestes casos, a recusa no cumprimento de uma obrigação legal, quando reúna as características sintetizadas por Menezes Cordeiro em O Direito, ano 138º, tomo I, em artigo intitulado “Declaração de não cumprimento”, pág. 38 (“pura séria, definitiva, consciente e juridicamente possível”), mostra-se suficientemente reveladora de uma situação de incumprimento definitivo, tornando desnecessário (e injustificado) que se “percorra o caminho do Calvário” mediante a preliminar instauração de uma acção declarativa para obtenção de sentença de condenação na prestação de facto, a que porventura se seguiria a execução para prestação de facto positivo, com eventual conversão de em obrigação de pagamento de quantia certa, nos termos do art. 934º do CPC. Semelhante solução tem sido defendida para casos de urgência incompatível com a natural demora na resolução do diferendo (Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, pág. 388, e Direito das Obrigações – Parte Especial, pág. 450, Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 2ª ed., pág. 148, com citação de vasta jurisprudência, ou o comentário de Henrique Mesquita ao Ac. da Rel. de Coimbra, de 10-12-96, RLJ, ano 131º, pág. 113 e segs.).
4.2. Vejamos o caso concreto: - A A. solicitou pessoalmente a Ré, em Dezembro de 2004, a reparar defeitos que existiam na fracção vendida a que aludiu no art. 3º da petição; - O sócio-gerente da Ré visitou então a fracção, não tendo sido efectuada qualquer reparação; - Com data de 14-2-05 a A. solicitou a realização de um orçamento de reparação desses e de outros defeitos que invocava, o qual se encontra junto a fls. 23 e 24; - Até Setembro de 2005 nada a R. adiantou, levando a que a A. tenha instaurado a acção, com invocação da existência daqueles defeitos; - Já no âmbito da acção, a R. negou ter alguma responsabilidade pela reparação da generalidade dos defeitos; - A posição assumida pela R. foi no sentido de os defeitos que lhe foram apontados ou não existem ou são consequência do mau uso que a A. deu à fracção (art. 9º da contestação); acrescenta no art. 51º que “a maior parte do que aconteceu e acontece na fracção da A. tem a ver com o mau uso das instalações”. Relativamente a cada um dos defeitos enunciados, declarou o seguinte: a) Quanto à desafinação dos móveis da cozinha e torneiras, “é uma consequência normal do seu uso e da forma como se comportam os utilizadores dos equipamentos” (art. 14º); uma vez que “estamos em presença de uma situação de uso durante cerca de 2 anos, a Ré rejeita liminarmente qualquer obrigação de afinar portas de móveis e torneiras” (art. 15º); Depois de uma diligência inserida no decurso da acção, que levou à eliminação de alguns dos defeitos alegados pela A., a R. veio esclarecer quanto a este específico defeito que “não efectuou quaisquer afinações, pois tal como foi dito, as «desafinações» existentes se devem ao uso e desgaste normais” (fls. 164). b) Quanto à mancha escura existente no pavimento do hall alegou que se deve a urina de cão, recusando a sua reparação (art. 9º); Depois de efectuada a referida diligência, a R. veio declarar que, “feita a peritagem, que confirma a qualidade do pavimento e do processo de instalação e que conclui no sentido de que as manchas existentes se devem a acidente doméstico (confirmado pela Autora), provocado por produto líquido que não água” (fls. 165). Neste particular, decorre da decisão da matéria de facto que não se provou que “as manchas existentes no hall sejam provenientes de urina de cão” (fls. 204). c) Quanto à desafinação do portão da garagem, alegou que “estamos na presença duma situação que tem a ver com o mau uso, pelo que a responsabilidade de reparação não incumbe à R. (certamente por lapso foi alegado que “incumbe à Ré”) (art. 20º). Depois de efectuada a referida diligência no decurso da acção, veio a R. declarar que “não foi feita qualquer afinação” (fls. 165). d) Quanto aos estores danificados, alegou que já procedeu ao seu afinamento, mas que se estiverem danificados, exige-se a sua reparação (art. 22º). Depois de efectuada a referida diligência no decurso da acção, veio a R. declarar que “não se fez qualquer reparação” (fls. 165). e) Quanto aos elementos metálicos das varandas em mau estado de conservação, alegou que só “não pintou os referidos elementos metálicos apenas e só porque a A. não deixou entrar os seus empreiteiros, exigindo-lhes que se entrassem pintassem igualmente a fracção toda” (art. 23º). Depois de efectuada a referida diligência no decurso da acção, veio declarar que “não se fez qualquer reparação” (fls. 165). f) Finalmente quanto aos vidros alegou que “não aceita substituir os vidros que tenham sujidade proveniente da obra porque não foi a Ré que os sujou” (art. 39º). - Na pendência da acção, a R. procedeu à reparação de defeitos que correspondiam aos pontos 2, 3, 6, 8, 12 e 14 do art. 3º da petição (nos termos da declaração de fls. 200); - Todavia, recusa a obrigação de reparar os seguintes defeitos cuja existência se comprovou: a) Desafinação dos móveis da cozinha e das torneiras; b) Pavimentos de madeira do hall com uma mancha escura; c) Desafinação do portão da garagem e não funcionamento sistema de fecho; d) Existência de estores danificados; e) Elementos metálicos das varandas encontram-se em mau estado de conservação; f) Vidros da sala encontram-se com sujidade proveniente da obra.
4.3. Neste contexto, podemos concluir que, relativamente aos referidos defeitos cuja existência se comprovou, se verifica uma efectiva situação de incumprimento definitivo, decorrente não apenas da inércia da R., quanto a tais defeitos, depois de ter sido notificada pessoalmente em Dezembro de 2004, como ainda da análise do seu comportamento processual. Se em relação a alguns dos defeitos, inicialmente negados, acabou por assumir a responsabilidade pela sua reparação, tendo-os efectivamente reparado, a manutenção da mesma posição relativamente aos outros defeitos comprovados e, mais do que isso, a análise daquilo que declarou especificamente em relação a cada um deles permite concluir pela desnecessidade de uma interpelação admonitória no sentido da concessão de um prazo suplementar para cumprir a obrigação. E permite ainda concluir pela desnecessidade de obter a sua prévia condenação na reparação de tais defeitos cuja reparação se encontra orçamentada. Se nada justificava que, em face da dilação existente entre o momento da denúncia dos defeitos e a propositura da acção, existisse uma diligência complementar da A. no sentido de fixar à R. um prazo para cumprir, estando esta ciente, pelo menos quanto aos danos que acabaram por se comprovar, da sua obrigação, também se não se mostra exigível que, decorrido um prazo de cerca de um ano com inércia da R. relativamente à reparação dos defeitos, a A. ainda tivesse de começar por pedir a sua condenação nessa reparação, sujeitando-se depois a todas as vicissitudes sem um fim à vista.
5. Mas, como acima anunciámos, a revogação da sentença encontra no ordenamento jurídico um outro fundamento alternativo bem mais evidente, o qual se extrai do Dec. Lei nº 67/03, de 8-4, com que o legislador nacional, em aplicação da Directiva da União Europeia nº 1999/44/CE, mas com efeitos ainda mais dilatados, procurou regular situações, como a presente, em que o litígio em torno de um imóvel adquirido para habitação tem como sujeitos o vendedor que o construiu e o comprador, com natureza de consumidor.
5.1. É verdade que o contrato foi celebrado em 2002 e que o referido diploma apenas entrou em vigor a 9-4-03. Tal não obsta, porém, à sua aplicabilidade ao caso concreto, tendo em conta que o mesmo traduz uma modificação do conteúdo da relação jurídica de compra e venda de bens de consumo, abstraindo dos factos que lhe deram origem, sendo, por isso, de aplicação imediata mesmo aos contratos anteriormente celebrados, nos termos do art. 12º, nº 2, do CC. Trata-se, aliás, de uma solução incontroversa, como decorre do que refere Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 2ª ed., pág. 245, citando Romano Martinez, em Empreitada de bens de consumo, publicado em Estudos do Instituto de Direito de Consumo, vol. II, págs. 23 e 24.
5.2. Decorre dos autos, por um lado, que a R. se dedica à actividade de construção civil e, por outro, que foi nessa qualidade que vendeu à A. a fracção autónoma, a qual nela instalou a sua habitação. Estamos, assim, perante uma situação que se enquadra na previsão normativa do referido diploma, em cujo art. 1º se refere que visa regular “certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas”. Ainda que a Directiva de que o referido Dec. Lei é resposta se reporte apenas a bens móveis destinados ao consumo, o legislador nacional, se bem que obrigado a integrar no direito interno o que foi aprovado ao nível mais geral da União Europeia, não estava limitado na sua capacidade de regulamentação de outras situações, tendo, por isso, aproveitado para regular em termos mais garantísticos para o consumidor o contrato de compra e venda ou de empreitada de bens imóveis desde que o vendedor seja profissional e o comprador tenha a qualidade de consumidor definida pela Lei nº 24/96, de 31-7: todo aquele a quem sejam fornecidos bens ou transmitidos quaisquer direitos destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça, com carácter profissional, uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios (art. 2º, nº 1), A aplicabilidade do diploma aos bens imóveis não suscita, aliás, qualquer divergência, tendo em conta o que se dispõe nos arts. 3º, nº 2, e 5º, nºs 1 e 3, e o que, por exemplo, é referido por Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, pág. 48, ou por Cura Mariano, ob. cit.
5.3. Atento o exposto anteriormente, verifica-se que a legislação específica sobre venda de bens de consumo, ainda que de natureza imóvel, beneficia de um regime menos exigente do que aquele que decorre do Cód. Civil. Assim, nos termos do art. 5º, nº 1, “em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a esta seja resposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”. Direitos esse que, nos termos do nº 5 do mesmo artigo, podem ser exercidos indiscriminadamente, “salvo se tal se manifestar impossível ou de constituir abuso de direito, nos termos gerais”. Reconhece-se ainda, por via da alteração introduzida no art. 12º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31-7), o “direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestação de serviços defeituosos”. Incidindo sobre estes preceitos, ainda que no tratamento específico do contrato de empreitada de bens de consumo, Cura Mariano assevera que se verificam diferenças substanciais de regime quando se estabelece a comparação com a regulamentação constante do CC “quanto ao modo de articulação dos diferentes direitos”, pois que se no “CC vigoram regras rígidas que estabelecem relações de precedência e subsidiariedade entre aqueles direitos, que condicionam severamente o seu exercício, no âmbito do Dec. Lei nº 67/03, os direitos do dono da obra consumidor são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso de direito” (ob. cit., pág. 231), concluindo mais adiante que “não se pode falar na existência de um direito do empreiteiro a proceder à reparação das faltas de conformidade da obra” (pág. 233). Concretamente, reportando-se ao direito de indemnização, assevera que “não deve ser encarado com a função meramente subsidiária ou residual do direito previsto no art. 1223º do CC, podendo ser livremente exercido pelo dono da obra consumidor, tendo apenas os limites impostos pela figura geral do abuso de direito”, de modo que “desde que as circunstâncias em que este direito de indemnização é exercido não revelem uma ofensa àqueles princípios, pode o dono da obra utilizá-lo sem que primeiro tenha esgotado os outros meios de satisfazer os seus interesses (págs. 233 e 234).
5.4. Atento este novo quadro normativo, torna-se bem mais fácil sustentar a solução que acima procurámos justificar. Afinal, ao reclamar da R. o pagamento da quantia orçamentada para a reparação dos defeitos, a A. acaba por expressar a sua vontade de exigir a reposição da situação por outros meios que não implicam a intervenção da R. Trata-se de compensar a A. por uma via diversa da reparação natural por parte da R., ficando com as mãos livres para procurar outras vias de alcançar a reparação dos defeitos. Nada indicia, por outro lado, que se verifique uma situação de abuso de direito. O inverso é o que emerge do factualismo provado, sendo que a R. teve diversas oportunidades de efectuar a reparação e não o fez, apesar das diligências empreendidas pela A. Não o fez quando foi notificada do relatório camarário. Tão pouco o fez no período intercalar até à interposição da acção. Na pendência da acção efectuou algumas reparações (reconhecendo, afinal, a justeza da reclamação da A. a esse respeito), mas deixou outras por fazer, apesar de se provar que decorrem de defeitos de construção.
6. É altura de concluir. Por qualquer das referidas via se atinge o mesmo resultado. Uma vez que a A. apresentou um orçamento de reparação dos defeitos que nem sequer sofreu contestação, será com base em tal orçamento que se determinará a quantia em que a R. deverá ser Deste modo, seguindo o orçamento que foi apresentado pela A. e adaptando-o aos defeitos que ainda persistem e cuja reparação deve ser imputada à Ré, podemos concluir o seguinte: a) Desafinação dos móveis da cozinha e das torneiras: € 149,64; b) Pavimentos de madeira do hall com uma mancha escura: inexiste qualquer valor que se reporte especificamente a esta parte da fracção, englobando o orçamento apresentado a globalidade dos pavimentos em madeira; c) Desafinação do portão da garagem e não funcionamento sistema de fecho: € 174,58; d) Existência de estores danificados: inexiste qualquer valor orçamentado que englobe este aspecto; e) Elementos metálicos das varandas em mau estado de conservação: € 598,56; f) Vidros da sala com sujidade proveniente da obra: inexiste qualquer valor orçamentado que englobe este aspecto. Suprindo, com fundamento em juízos de equidade, a falta de especificação ou as lacunas de orçamento relativas aos defeitos das als. b), d) e e), considera-se ajustado a tais defeitos o montante global de € 500,00, atingindo-se o montante global de € 1.427,78, a que acrescerá ainda IVA à taxa de 21%.
IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando a R. no pagamento da quantia de € 1.427,78, acrescido de IVA. Custas da acção e da apelação a cargo da A. e da Ré na proporção de metade para cada. Notifique. Lisboa, 19-2-08
António Santos Abrantes Geraldes Manuel Tomé Soares Gomes Maria do Rosário Oliveira Morgado |