Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5140/2007-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: RENÚNCIA
TRANSFERÊNCIA DO DIREITO AO ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- A renúncia traduz-se na perda voluntária de um direito que o renunciante demite de si, sem atribuir ou ceder a outrem.
II- O art.º 88º do R.A.U. não contempla a via de renúncia à transmissão do arrendamento, a não ser “mediante comunicação feita ao senhorio nos trinta dias subsequentes à morte do arrendatário…”.
III- O abuso de direito, na modalidade do tu quoque, obsta a que aquele que viole uma norma jurídica possa tirar partido da violação exigindo a outrem o acatamento das consequências daí resultantes.
IV- Perante uma comunicação tardia da morte do primitivo arrendatário – como perante o conhecimento do assumir da transmissão, em via outra que não a da comunicação – não deixa o senhorio de poder proceder à aplicação do regime de renda condicionada.
V- Nem na ausência de comunicação, deixa de poder o senhorio, em prazo contado do conhecimento, documentado, do óbito do primitivo arrendatário e da pessoa do transmissário, exercer o direito alternativo à denúncia do contrato.
VI- Quando assim se não entenda, sempre se tratarão os “prejuízos” emergentes da impossibilidade de exercer o direito de denúncia do contrato, de danos derivados da omissão de comunicação, ou de comunicação tempestiva, abrangidos pela obrigação de indemnização do “transmissário”, estabelecida no art.º 89º, n.º 3, do R.A.U.
(E.M.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação

D C P, intentou acção de despejo, com processo sob a forma ordinária, contra M C F e C C N F, pedindo seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre o A. e M F, relativo ao 2º andar Esq.º   do prédio que identifica e as RR. Condenadas a despejar imediatamente o locado, bem como condenadas solidariamente a pagar ao Autor a quantia mensal de  500, desde Outubro de 2003 e até efectiva entrega do locado livre e devoluto.
Alegando, para tanto e em suma, que anteriormente a 1986 deu de arrendamento ao referido M F o andar em causa, para habitação, e que em 8 de Abril de 2003 a 1ª R. comunicou o falecimento do primitivo arrendatário, seu marido, renunciando à transmissão da posição de arrendatária, pedindo que o arrendamento fosse transmitido para sua filha e ora 2ª R.
A qual por carta de 28-07-2003, solicitou que os recibos fossem emitidos em seu nome.
Ao que o A. respondeu, por nova carta enviada à 1ª R., declarando a caducidade do arrendamento e solicitando a entrega do locado livre e devoluto.
Caso tivesse podido colocar o locado no mercado de arrendamento logo em Outubro de 2003, obteria o A. o valor de renda de € 500 por mês.

Contestaram as RR. Alegando ter a 1ª, enquanto cabeça de casal, comunicado ao A. que o direito a suceder no arrendamento era exercido por parte de sua filha ora 2ª R. – e vivendo no locado – renunciando ela a tal direito.
Também a 2ª R. o tendo comunicado ao A. por carta de 28-07-2003.
Tendo inclusive aquela pago ao A., que a recebeu, a renda em Setembro de 2003 (correspondente ao mês de Outubro).
Devendo assim a 2ª R. considerar-se arrendatária do imóvel.
A não ser assim, e em reconvenção, são as RR. credoras do A. pelo valor das benfeitorias necessárias realizadas no locado, no valor de 3.750, que deverá ser pago...à segunda R., que  assim goza do correspondente direito de retenção sobre o imóvel.

Rematam com a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido, ou, se assim não suceder, com a procedência do pedido reconvencional, condenando-se o A. a pagar à 2ª R. o valor de € 3.750 acrescido0s de juros de mora que se vençam na pendência da acção, reconhecendo-se o direito de retenção da 2ª R. sobre o imóvel, até integral pagamento.
 
Houve réplica do A., suscitando questão prévia relativa ao valor da causa, arguindo a contradição entre o pedido e a causa de pedir, na deduzida reconvenção, e concluindo como na  p. i. e com a sua absolvição da instância quanto ao pedido reconvencional, ou com o improcedente do mesmo.

Na sequência de despacho nesse sentido, vieram as RR. prestar esclarecimento quanto à matéria da realização das invocadas benfeitorias e quanto ao por elas apurado valor da acção.

O processo seguiu seus termos, com saneamento – admitindo-se a reconvenção – e condensação.
Vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo as RR. dos pedidos, e prejudicada a apreciação do pedido reconvencional formulado a título subsidiário.

Indeferida aclaração da sentença, entretanto requerida pelo A., recorreu este, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

"1. São duas as questões a dilucidar no presente recurso, a primeira reside em saber se a lei fere de caducidade o contrato de arrendamento, não quando inexiste, de todo, falta de declaração de vontade da intenção de transmissão da posição de inquilino, ou sua comunicação extemporânea, mas quando aqueles a que, em concreto, a lei atribui tal direito o não querem exercitar, enquanto a segunda consiste em analisar se a conduta da 2ª Ré é susceptível de configurar abuso de direito.
2. É inegável que a Ré M renunciou válida e expressamente ao direito à transmissão da posição de inquilina que a lei preferencialmente lhe atribuía, por se tratar do cônjuge do falecido arrendatário.

2.


3. Todavia, a Ré M não se limitou a exercer esse seu legitimo direito, "pediu" que o arrendamento fosse transmitido para a sua filha, a Ré C.
4. Ora, não se verificando qualquer situação, de resto não invocada, de incapacidade de exercício, tal declaração, produzida por quem para tanto não tinha legais poderes, não podia produzir o efeito jurídico pretendido, a saber, o da transmissão de inquilina.
5. Poderia objectar-se, contudo, que a mesma poderia ter incorrido num equívoco, por ter erroneamente pressuposto que tal declaração seria válida e eficaz.
6. Porém, as declarações vertidas na prova documental supra transcrita demonstram o contrário, uma vez que o Recorrente, em obediência ao princípio da boa-fé, fez questão de deixar expresso que a Ré C, pese embora detivesse o direito a "suceder" na posição de inquilino do seu falecido pai, não exercitou tal faculdade (alínea H).
7. Perante tal assentimento, cujo conhecimento por parte da Ré C ninguém ousará questionar, doutro modo ficaria por explicar a razão de ser da sua resposta constante do escrito vertido na alínea J dos Factos, aquela mais não fez do que reafirmar o que anteriormente tinha expresso, ou seja, que por a sua mãe ter "pedido" para si a transmissão do arrendamento, a nada mais estava obrigada.
8. Ou seja, a Ré C, caso estivesse equivocada, poderia ter desfeito o equívoco, donde só se poderá concluir que a mesma, estando ciente da necessidade de manifestar tal declaração de vontade, sponte sua, entendeu omiti-la.
9. Nesta concreta situação, isto é, em que um dos titulares do direito renuncia ao seu exercício e o outro, apesar de formalmente avisado para a necessidade do seu exercício o não exercita, impunha-se declarar a caducidade do contrato de arrendamento.
1O. Uma vez que, e sem querer analisar a querela da pretensa inconstitucionalidade da alteração pelo Dec. Lei 278/93, do art° 89°, do RAU, de que a Jurisprudência citada faz eco, é insofismável que a protecção do inquilino que através desse preceito se pretendia salvaguardar, se confinava às duas situações contadas em que o titular do direito, ou não o exercia atempadamente, ou simplesmente o não exercia por desconhecer essa obrigatoriedade.
11. Não é essa, contudo, a situação dos autos, em que a Ré C, verdadeiramente ciente e informada da necessidade de assim proceder, entendeu voluntária e conscientemente não o fazer.
12. Aliás, esta conduta intencional da Ré C subsume-se a um exercício abusivo e eticamente reprovável do direito à transmissão da posição de arrendatária, que constitui a segunda das questões a apreciar nesta sede.
13. Com efeito, a Ré C, pese embora ter tido pleno e perfeito conhecimento da interpretação feita pelo Recorrente do teor das missivas subscritas por sua mãe, a saber, de que ninguém havia manifestado efectivamente vontade de exercer o direito à transmissão da posição de inquilino, refugiou-se, sempre e só, nas manifestações de vontade que sua mãe, inválida e ineficazmente sublinhe-se, efectuou em seu nome.
14. E nem se opine que o Recorrente se tenha tentado aproveitar da eventual ignorância ou do infortúnio da Ré C por não possuir rigoroso das leis para conseguir obter a caducidade do contrato de arrendamento, muito pelo contrário, o comportamento que adoptou é objectivamente revelador de urna irrepreensível transparência.
15. Certo é, que em face daquilo de que expressamente teve conhecimento, a Ré C remeteu sempre para o que foi declarado por sua mãe, furtando-se à emissão da declaração pessoal de vontade, única que poderia produzir o efeito translativo da posição de inquilina.
16. E essa conduta, consciente e intencional, não foi ingénua ou irreflectida, antes teve em vista um único fim, qual fosse, o de impedir que o Recorrente e senhorio deitasse mão ao procedimento constante dos artigos 890 A e 890 B, do RAU.
17. Na verdade, a Ré C, que à data dos factos possuía 56 anos de idade (alínea M) por bem saber que manifestando pessoalmente o direito à transmissão da posição de arrendatária poderia ser confrontada com a invocação da denúncia do contrato por parte do Recorrente e senhorio, não se limitou a omitir tal declaração.
18. Fez com que fosse sua mãe, a Ré M, a "pedir" para si a transmissão da posição de inquilina, impedindo desse modo que o senhorio e Recorrente pudesse manifestar a sua intenção de ver declarada a caducidade do contrato de arrendamento.
19. Aliás, e apesar de ser unânime que o abuso de direito é de conhecimento oficioso, ainda assim o Recorrente não deixou de o invocar como se colhe do que alegou no artigo 14 da petição inicial.
20. Verifica-se, por isso, que a Ré C excedeu manifestamente o fim económico e social do direito à transmissão da posição de arrendatária que a lei lhe reconhecia, dado que ao exercê-lo, imprópria e invalidamente, por interposta pessoa, impediu que o Recorrente usasse de uma faculdade que a lei também lhe conferia.
22. Impõe-se deste modo, e em face do reprovável exercício do direito à transmissão da posição de inquilina por parte da Ré C, que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento constante do autos, uma vez ser inegável que a outra titular desse direito, no caso a Ré M, renunciou válida e expressamente ao seu exercício.
21. O carácter antijurídico dessa actuação resulta da circunstância de, não obstante e ainda assim a ré C ter logrado obter através desse procedimento, objectivamente lesivo da consciência social dominante, o resultado por si intencionalmente pretendido, ou seja, o de lhe ver ser reconhecida a qualidade de transmissária da posição de inquilina
23. E que, em consequência, a Ré C seja condenada a pagar ao Recorrente o montante dado como provado na alínea O) dos Factos, pedido do qual a Ré M deverá ser absolvida por parecer não existir relativamente a si o nexo de imputação subjectiva, elemento indispensável da obrigação de indemnizar.
24. Tudo visto e ponderado, resulta manifesto que ao decidir como decidiu, a douta sentença em crise é merecedora de objectiva censura, por ter infringido o disposto nos artigos 89°, 89°-A, e 89° B do RAU, e no artigo 334°, do Cód. Civil, motivo pelo qual não se espera outra decisão que não seja a da sua revogação e substituição por outra, que julgando procedente o presente recurso, declare a caducidade do contrato de arrendamento dado aos autos, condene as Rés a despejarem o locado livre e devoluto, e só a Ré C a indemnizar o Autor na quantia de € 400,00 mensais desde Outubro de 2003 até efectiva entrega daquele, doutro modo será feita desconforme aplicação da Lei e, como tal haverá fundada razão para afirmar não ter sido feita JUSTIÇA.".

Contra-alegaram as Recorridas, pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. artºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:
- se ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre o ª e M F.
- se o arrogo da 2ª R. à transmissão do arrendamento integra abuso de direito.
                            Considerou-se assente, na 1ª instância, sem impugnação a propósito, e nada impondo diversamente, a factualidade seguinte:
                            A) Encontra‑se inscrito a favor do Autor o prédio urbano sito na  Freguesia de São João de Deus, Concelho de Lisboa, no 15° Bairro Fiscal de Lisboa. (alínea A) dos factos assentes).
                            B) Anteriormente a 1986, o Autor deu de arrendamento a M F o segundo andar esquerdo do referido prédio, como consta do mapa de inquilinos para efeitos de Contribuição Predial apresentado pelo Autor em 31 de Janeiro de 1986 cuja cópia foi junta como doc. 1 da petição inicial. (alínea B) dos factos assentes)
                            C) O contrato foi celebrado pelo prazo de seis meses, sucessivamente renovável por iguais períodos, mediante o pagamento da renda mensal de € 1,65 (esc. 330$00) que, após sucessivas actualizações, é, desde 1/01/03, de € 21,00 mensais. (alínea C) dos factos assentes)
                            D) E destinava‑se exclusivamente a habitação do inquilino. (alínea D) dos factos assentes)
                            E) Em 8 de Abril de 2003, M C F enviou ao Autor o escrito cuja cópia consta de fls. 12 e onde escreveu: "Eu, M C F, venho por este meio e na qualidade de cabeça de casal, comunicar o falecimento do meu marido M F, arrendatário de propriedade de V. Exa. Sita em  Lisboa. Mais informo que a transmissão do arrendamento deverá ser feita para a minha filha C  C N F, renunciando eu à referida transmissão. Sem outro assunto, subscrevo‑me com os melhores cumprimentos. Junto envio dois documentos: Certidão de óbito; Certidão de nascimento.". (alínea E) dos factos assentes)
                            F) O Autor tomou conhecimento do referido escrito, enviando à Ré M C F uma carta registada, em 14 de Julho de 2003, cuja cópia consta de fls. 15, onde escreveu: "Assunto: Carta de 8 de Abril 2003 (...) Exma Senhora (...) Em resposta à carta acima identificada, venho pela presente informar que tomei a devida nota de que a Srª M C F renunciou à transmissão do arrendamento referente à  (.. .) Com os meus melhores cumprimentos,". (alínea F) dos factos assentes)
                            G) A que respondeu a Ré C F, por carta datada de 28 de Julho, onde refere "Ex.mo Senhor D C P (...) Tomei conhecimento da v. carta enviada à minha mãe, em resposta aquela que esta enviara na qualidade de cabeça de casal a V.Ex,as. De acordo com o que foi transmitido então e Certidão de Nascimento que fora junta igualmente com a referida missiva; solicito que o recibo de renda seja passado em meu nome de ora em diante. Sem outro assunto, subscrevo‑me com os melhores cumprimentos (...)". (alínea G) dos factos assentes)
                            H) Em 22 de Setembro, o Autor dirigiu nova carta registada à Ré M C F, cuja cópia consta de fls. 18, onde declarou: "Face à renúncia à transmissão da posição de arrendatária, por falecimento do primitivo inquilino, veiculada por V.Exa na carta datada de 8 Abril do corrente, e dada a ausência de manifestação de vontade por parte de quem poderia estar em condições de exercer tal direito, no caso, a filha de V.Exa, o contrato de arrendamento celebrado com vosso falecido esposo , M F, caducou nos termos do disposto na alínea d ) do n° 1 , do art° 1051 ° , do Código Civil. Aliás, não será alheio ao facto da filha de V.Exa não ter querido manifestar intenção de exercer o direito à transmissão da posição do falecido inquilino, a faculdade que a lei conferiria ao senhorio, nos termos do artigo 89°‑ A, do RAU, de poder optar pela denúncia do contrato de arrendamento. Deste modo, e uma vez que no passado dia 8 de Agosto se esgotou o prazo de três meses legalmente estabelecido no art° 1053°, do Código Civil, para a entrega do locado, solicito que V. Exa faça a entrega do mesmo livre e devoluto, bem como da respectiva chave, até ao final do corrente mês de Setembro (...)". (alínea H) dos factos assentes)
                            I) A Ré M C F enviou ao Autor o escrito datado de 1/10/2003, cuja cópia foi junta a fls. 19, onde se refere: "(...) Arrendamento:  (...) Ex.mo Senhor Acuso a recepção da sua carta. datada de 22 de Setembro de 2003. Venho por este meio informar V.Exa que discordando em absoluto do seu conteúdo por não corresponder à verdade, cabendo a posição de arrendatária à minha filha C F, qualquer assunto relativamente ao imóvel de V. Exa deve ser doravante tratado com ela. Sem outro assunto, subscrevo‑me com os melhores cumprimentos (...)". (alínea I) dos factos assentes)
                            J) A Ré C F enviou ao autor o escrito datado de 1/10/2003, cuja cópia foi junta a fls. 20, onde se refere: "(...) Arrendamento:  (...) Ex.mo Senhor (...) Tomei conhecimento de nova carta enviada à minha mãe, datada de 22 de Setembro de 2003. V. Exa persiste em ignorar o que lhe foi transmitido por carta, por minha mãe, e por mim dito à pessoa do seu procurador e ao seu Advogado; no sentido de que renunciando a minha mãe ao arrendamento o mesmo me foi transmitido por força da Lei; já que tal vos comuniquei igualmente. Assim, tendo sido recusado o recebimento da renda passarei a depositar a mesma na C G D, nos termos legais. Sem outro assunto, subscrevo‑me com os melhores cumprimentos (...)". (alínea J) dos factos assentes)
                            K) A Ré C F pediu que os recibos de renda fossem emitidos em seu nome com o fito de lhe ver ser reconhecida, tacitamente, a qualidade de arrendatária. (alínea K) dos factos assentes)
                            L) As Rés não procederam à entrega ao Autora do andar do prédio  em Lisboa até ao final do mês de Setembro de 2003. (alínea L) dos factos assentes)
                            M) A Ré C  C N F nasceu no dia 7 de Fevereiro de 1947. (alínea M) dos factos assentes)
                            N) O Autor recusou o recebimento da renda que se venceria em 1 de Outubro de 2003. (ponto 1 da base instrutória)
                            O) O valor do arrendamento do 2° Esquerdo do prédio em Lisboa, transversal da Avenida de Roma, e composto por quatro assoalhadas, cozinha e casa de banho, é de € 400 mensais. (ponto 2 da base instrutória)
                            P) A Ré M C F foi viver para o 2° Esquerdo do prédio  quando casou com o primitivo inquilino M F. (ponto 3 da base instrutória)
                            Q) A Ré C F desde que nasceu, sempre viveu no mesmo com os seus pais. (ponto 4 da base instrutória)
                            R) A Ré C F pagou a renda em Setembro de 2003 (correspondente ao mês de Outubro) e que o Autor a recebeu nos termos que constam do documento junto a fls. 37 que se dá por reproduzido. (ponto 5 da base instrutória)
                            S) A Ré C F passou a depositar a renda na CGD, nos termos que constam dos comprovativos de depósitos de renda juntos a fls. 38/41 e 123/144. (ponto 6 da base instrutória)
                            T) A Ré M C F e o falecido M F suportaram o custo da pintura da totalidade da casa, da substituição da janela da cozinha, da substituição da janela da marquise, da mudança da canalização da cozinha, da mudança da louça sanitária e do chão da casa de banho e da reparação da casa de banho. (ponto 7 da base instrutória)
                            U) Tais reparações eram necessárias. (ponto 8 da base instrutória)
                            *
                            Vejamos:
                            II-1- Da caducidade do "primitivo" arrendamento.
                            1. Nos termos do art.º 66º do, aqui aplicável, R.A.U., “…o arrendamento caduca nos casos fixados pelo artigo 1051º do Código Civil, e, logo, entre outros, “Por morte do locatário…”, cfr. n.º 1, al. d), deste último artigo.
                            Porém, de acordo com o disposto no art.º 85º, n.º 1, do mesmo R.A.U., “O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto; b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;……”.

                            Sendo que “O transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por carta registada com aviso de recepção, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, enviada nos 180 dias posteriores à ocorrência.”, cfr. art.º 89º, n.º 1, do mesmo R.A.U.
                            E a inobservância de tal ónus “não prejudica a transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão”, vd. n.º 3 do citado art.º 89º, repristinado pela declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art.º 1º do Decreto-Lei n.º 278/93, de 10 de Agosto, na parte em que eliminou o referido n.º 3, operada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/97, de 23-05-1997, in B.M.J. 467º, 229.

                            2. Não se questiona, nos presentes autos, a validade da renúncia à transmissão por parte do cônjuge sobrevivo, a saber, a ré M C F – que o art.º 88º do R.A.U. expressamente contempla e se mostra aceite pelo A. – nem a possibilidade de, nesse caso, a transmissão do arrendamento se poder operar para a descendente do falecido, in casu, a Ré C  C N F, vivendo no locado desde que nasceu, no dia 7 de Fevereiro de 1947, com seus pais.

                            Tendo-se considerado, a propósito, na sentença recorrida, que:
                            Quem nunca renunciou à transmissão foi a Ré C, que se seguia à sua mãe renunciante, na ordem legalmente indicada dos titulares do direito à transmissão do arrendamento.
                            É certo que também não procedeu atempadamente à comunicação aludida no art° 89°/1 do R.A.U.
                            Todavia, como já vimos, a falta desta comunicação não conduz à caducidade do direito à transmissão mas somente à obrigação de indemnização de todos os danos derivados de omissão.
                            Desta feita improcede a acção quanto à declaração de caducidade do contrato de arrendamento e à condenação das Rés a despejar o locado.”.

                            Sustentando o Recorrente que, no contexto fáctico apurado, se deverá entender não ter querido a Ré C exercer o direito à transmissão da posição de inquilino.
                            E, assim, designadamente quando conclui que “a primeira (questão) reside em saber se a lei fere de caducidade o contrato de arrendamento, não quanto inexiste, de todo, falta de declaração de vontade da intenção de transmissão da posição de inquilino, ou sua comunicação extemporânea, mas quando aqueles a que, em concreto, a lei atribui tal direito o não querem exercitar”, e “a mesma (2ª Ré), estando ciente da necessidade de manifestar tal declaração de vontade, sponte sua, entendeu omiti-la.”.
                            Verificando-se, nessa sua perspectiva, a caducidade do arrendamento.

                            3. Salvo o devido respeito não é de acolher a linha de raciocínio seguida pelo Recorrente para alcançar uma tal conclusão quanto ao sentido e alcance do comportamento da 2ª Ré.
                            Desde logo a pretendida “omissão deliberada” da declaração de vontade em causa, aponta, ao fim e ao cabo, para uma renúncia implícita no dito comportamento.
                            Ora a renúncia traduz-se na perda voluntária de um direito que o renunciante demite de si, sem atribuir ou ceder a outrem.[1]
                            E conquanto o actual Código Civil tenha deixado de considerar a renúncia, em geral, como negócio formal,[2] o citado art.º 88º do R.A.U. não contempla a via de renúncia à transmissão, a não ser “mediante comunicação feita ao senhorio nos trinta dias subsequentes à morte do arrendatário…”.[3]
                            Como anota Aragão Seia,[4]Decorrido o prazo consolida-se, em si, (beneficiário da transmissão) a qualidade de arrendatário. Tem, ainda, a possibilidade de denunciar o contrato, que já não se transmitirá a outrem”.
                            Mas uma tal comunicação de renúncia não teve lugar, por parte da 2ª Ré, e designadamente nos trinta dias seguintes à data do falecimento de seu pai. 
                            Note-se que aquele decesso teve lugar – de acordo com o Assento de óbito respectivo, enviado com a missiva referida em E dos factos assentes e junta, por fotocópia, a folhas 12 a 14 – em 26 de Outubro de 2002, ocorrendo os comportamentos “indiciários” da 2ª Ré, invocados pelo A., no ano de…2003. 

                            4. E, mais se assinalará, conquanto assim apenas marginalmente, a 2ª Ré não quis, manifestamente, omitir declaração de vontade no sentido de se pretender assumir como transmissária da posição de inquilina, no contrato de arrendamento em causa.
                            Quando assim fosse não teria respondido à carta do A., de 14 de Julho de 2003, dirigida a sua mãe e 1ª Ré, nos termos em que o fez na sua carta datada de 28 de Julho desse mesmo ano, onde refere: "Exmº Senhor D C P (...) Tomei conhecimento da v. carta enviada à minha mãe, em resposta aquela que esta enviara na qualidade de cabeça de casal a V.Ex,as. De acordo com o que foi transmitido então e Certidão de Nascimento que fora junta igualmente com a referida missiva; solicito que o recibo de renda seja passado em meu nome de ora em diante. Sem outro assunto, subscrevo‑me com os melhores cumprimentos…”.
                            Nem, posteriormente, na carta datada de 1/10/2003, dirigida ao A. e junta por cópia a fls. 20, teria referido: "…Tomei conhecimento de nova carta enviada à minha mãe, datada de 22 de Setembro de 2003. V. Exa persiste em ignorar o que lhe foi transmitido por carta, por minha mãe, e por mim dito à pessoa do seu procurador e ao seu Advogado; no sentido de que renunciando a minha mãe ao arrendamento o mesmo me foi transmitido por força da Lei; já que tal vos comuniquei igualmente. Assim, tendo sido recusado o recebimento da renda passarei a depositar a mesma na Caixa Geral de Depósitos, nos termos legais.”.

                            5. Tenha-se presente, de resto, que já na 1ª das missivas dirigidas pela 2ª Ré ao A. se faz referência a documentação prevista no n.º 2 do R.A.U., interessando à comprovação do direito de transmissária da Ré C, enviada com a carta da 1ª Ré, de 08 de Abril de 2003 (a certidão do registo de nascimento respeita à 2ª Ré).
                            Não sendo em qualquer caso exigível à 2ª Ré que, assim assumindo a aceitação da qualidade de transmissária da posição de inquilina enviasse novamente ao A. os documentos de que aquele já dispunha.

                            Dir-se-á então que por via de tais missivas da 2ª Ré, remetendo para a pertinente documentação já anteriormente disponibilizada ao A., e manifestando a aceitação da transmissão para si da posição de inquilino, sempre teria de se considerar consumada a comunicação prevista no art.º 89º do R.A.U.


                            Tudo isto sem se conceder que, como pretendem as Recorridas nas suas contra-alegações, tenha ocorrido “ratificação” pela 2ª Ré de acto praticado pela 1ª Ré em representação, sem poderes, da 1ª.
                            E isto, assim, pela simples razão de que a 1ª Ré, na sua carta de 08 de Abril de 2003, enviada ao A., não manifestou actuar em nome da 2ª Ré, apenas invocando a sua qualidade de cabeça de casal, necessariamente reportada à herança aberta por óbito de seu falecido marido e primitivo arrendatário do locado, M F.
                            Sendo que o cabeça de casal, e como é sabido, tem poderes de administração da herança, até à sua liquidação e partilha, cfr. art.º 2079º, do Código Civil.
                            Não lhe competindo já, porém, representar os sucessores do de cujus.  
                            E deste modo, para lá de o acervo hereditário do falecido inquilino não ser integrado por qualquer direito ao arrendamento do locado…e muito menos por um direito à transmissão daquele…por parte da 2ª Ré.
                            Ora, como referem P. Lima e A. Varela,[5] em anotação ao art.º 269º, do Código Civil, relativamente à ratificação, “Em qualquer caso, porém, importa que o representante tenha agido em nome do representado…”.
                            *
                            Deste modo, a comunicação operada pela 2ª Ré foi já depois do prazo legal de 180 dias após o decesso do primitivo arrendatário.
                            O que, em qualquer caso, e como visto já, não obsta à transmissão do arrendamento.
                                  
                            *
                            Não se verificou pois, nesta conformidade, a caducidade do arrendamento respectivo.
                            Improcedendo, nesta parte, as conclusões do Recorrente.

                            II-2- Do pretendido abuso de direito, de banda da 2ª Ré.
                            Aquele verificar-se-ia, segundo o A., na circunstância de a 2ª Ré ter tido em vista – ao não ter querido, “de forma consciente e intencional…manifestar vontade expressa de exercitar tal direito” à transmissão da posição de inquilina – unicamente “impedir o aumento da renda, ou a denúncia do contrato, conferidos pelo disposto nos art.ºs 89º-A e 89º-B, do R.A.U.”.
                            Assim exorbitando “os limites da boa-fé, dos bons costumes e do fim económico e social do direito à transmissão da posição de inquilina de que era titular, prevalecendo-se do expediente de formular tal declaração de vontade por interposta pessoa…”.

                            O Cód. Civil, no seu art.º 334º, dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económica desse direito”.
                            De entre as várias categorias de actos inadmissíveis por abuso, doutrinariamente autonomizadas, a saber, a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque, e o desequilíbrio no exercício, interessaria ao caso em apreço, em vista do assim invocado pelo Recorrente, o tu quoque.
                            Cuja ideia básica, e como ensina Menezes Cordeiro,[6] reside no seguinte: “aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo a outrem o acatamento das consequências daí resultantes: turpitudinem suam allegans non auditur.”.


                            Como decorre, inelutavelmente, de quanto se vem de expender supra, em II-1-, carece de base factual a assim afirmada intencionalidade de banda da 2ª Ré.

                            Tudo o que se poderá concluir do comportamento das RR. – mãe e filha, recorde-se – é o mais que natural desconhecimento da radicação/natureza do direito à transmissão do arrendamento, por parte do descendente do falecido inquilino (direito transmitido em via hereditária/direito nascido na esfera jurídica da sucessora, na sequência do óbito do inquilino), bem como dos poderes do cabeça de casal e do funcionamento do instituto da representação.

                            Não se vendo – para além disso, e certo não exigir a categoria considerada mais do que a violação da norma jurídica, a intencionalidade dessa violação – que perante uma comunicação tardia – como perante o conhecimento do assumir da transmissão, em via outra que não a da comunicação – deixe o senhorio de poder proceder à aplicação do regime de renda condicionada.
                            Nem que, na ausência de comunicação, e quando fosse esse o caso, deixasse de poder o senhorio, em prazo contado do conhecimento, documentado, do óbito do primitivo arrendatário e da pessoa do transmissário, exercer o direito alternativo à denúncia do contrato, vd. art.º 89º-A, n.º 2, do R.A.U., por interpretação extensiva.

                            Quando assim se não devesse entender – o que se nos não afigura curial – então sempre poderá sustentar-se que se tratariam, os “prejuízos” emergentes da impossibilidade de exercer o direito de denúncia do contrato, de danos derivados da omissão de comunicação, ou de comunicação tempestiva, abrangidos pela obrigação de indemnização do “transmissário”, estabelecida no citado art.º 89º, n.º 3, do R.A.U.
                            Não operando a figura do abuso de direito, figura subsidiária de conforto do intérprete-aplicador, onde se verificar existir solução adequada de Direito estrito,[7] como, deste modo, assim seria o caso.

                            Não sendo pois, e a qualquer luz, configurável a pretendida situação de abuso de direito de banda da 2ª Ré.

                            Com improcedência, também aqui, das conclusões de recurso.

                            III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

                            Custas pelo Recorrente.


                                     Lisboa, 2007-07-12
                                                                  
                                                                          (Ezagüy Martins)
                                                                            (M José Mouro)
                                                                               (Neto Neves)
                            _____________________________________________________________

                            [1] cfr. neste sentido Acórdão da  Relação de Coimbra, de 22-6-1977, in Col. Jur., 1977, tomo II, pág. 737.
                            [2] Neste sentido, vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-10-1972, in BMJ 220º 163, e da Relação de Coimbra, de 22-6-1977, citado supra em nota 1.
                            [3] Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-04-93, proc. 9210366, in www.dgsi.pt/jtrp.nsf.
                            4 In “Arrendamento Urbano”, 6ª Ed., Almedina, 2002, pág. 572.

                            [5] In “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra Editora, Lda., 1982, pág. 248.
                            [6] In “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, 1999, Almedina, págs. 191-212.
                            [7] Cfr. Menezes Cordeiro, in op. cit. págs. 197-198.