Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
448/07.0TBRMR.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
DIREITOS
TITULARIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (da relatora).

I – O mandato sem representação é o contrato pelo qual uma pessoa (mandante) confia a outra (mandatário) a realização, em nome desta mas no interesse e por conta daquela, de um acto jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse acto.

II- Opõe-se ao mandato com representação, sendo que neste o mandante conferiu poderes de representação ao mandatário, pelo que este tem o dever de agir, não só por conta, mas também em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada (art 1178º/2).

III -Não modifica a natureza ao mandato sem representação a circunstância do terceiro com quem contrata o mandatário ter conhecimento da pessoa por conta de quem este age, embora seja lícito ao mandatário sem representação ocultar junto do mesmo, se for do seu interesse, a sua posição em relação ao mandante.

IV - O mandatário que age em nome próprio fica sendo titular dos direitos adquiridos em execução do mandato, sendo já num segundo momento que, e, em cumprimento das suas obrigações contratuais com o mandante, deve transferir para este a titularidade desses direitos. Se adquiriu coisas, deve entrega-las ao mandante, transferindo simultaneamente os respectivos direitos reais; se adquiriu créditos, deve cedê-los.

V - O nº 2 do art 1181º confirma, em relação aos créditos, a tese de que a execução do mandato sem representação produz os seus efeitos na esfera do mandatário e não do mandante, pois só assim se compreende a possibilidade da substituição: o direito é do mandatário, enquanto não for transferido.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – C…, Lda, intentou a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, contra M…– Aluguer e Comércio de Veículos e Peças, S.A. (anteriormente designada por …), pedindo que a mesma seja condenada a devolver-lhe o valor do automóvel que lhe vendeu, acrescido do valor que despendeu na revisão geral do mesmo e do lucro que deixou de realizar, tudo no valor total de € 19.385,00, acrescido de juros à taxa legal, desde 19/9/2006, até efectivo pagamento.

Referindo dedicar-se à compra e venda de automóveis usados para venda e a R. à venda de automóveis usados em sistema de leilão, alegou que, no dia 2/11/2005, comprou, num leilão organizado e realizado pela R., um veículo automóvel de marca Audi pelo preço global de € 14.957,30, tendo-o vendido, em Dezembro de 2005, a V…, pelo valor de € 19.385,00, sendo que no dia 19/9/2006 o mesmo foi apreendido pela PJ por existirem “fortes indícios” de que o mesmo se encontrava falsificado quanto ao número do chassis e da matrícula. Acedeu a A. ao pedido da referida V…no sentido da resolução da venda que lhe fizera do referido veiculo, pelo que lhe entregou um outro Audi, ficando, pois, ela prejudicada quanto ao custo do veiculo inicial e ainda quanto às despesas de revisão geral do mesmo, bem como ao lucro da sua actividade, tudo no montante de € 19.385,00. Refere, entre o mais sem relevo para este recurso que, porque um automóvel viciado está impedido de circular, não pode também ser objecto de um negócio jurídico, pelo que a aludida compra e venda é nula nos termos do art 280º/1 CC.

            A R. defendeu-se requerendo a suspensão da instância até decisão definitiva do processo crime então pendente referente à viciação do veículo, entendendo tal acção como prejudicial e salientou, entre o mais sem relevo para este recurso, que pese embora  tenha alterado a sua denominação social e objecto social, a verdade é que à data dos factos era uma sociedade organizadora de leilões de veículos a quem “A…. &  Lda”, que adquirira o veiculo  ao concessionário “C…”, encarregou de proceder à respectiva venda, o que ela fez pelo sistema de leilão cujas condições gerais foram aceites quer pela vendedora quer pela compradora, pelo que concluiu ter  funcionado como mera  intermediária no negócio,  tendo cobrado uma taxa de admissão à vendedora e uma taxa de aquisição à compradora. Terminou requerendo a intervenção acessória da referida “A.  & Lda”  invocando o disposto no art 330º/1 ACPC e ter direito de regresso sobre a mesma pelo valor pelo qual venha a ser eventualmente condenada na presente lide.

            A A. respondeu às excepções tendo-se oposto à suspensão da instância por entender que o negócio jurídico em causa nos autos não é apenas nulo mas também anulável nos termos do art 251 CC por erro nos motivos determinantes da vontade.

Admitida a requerida intervenção de “A &  Lda”, esta defendeu-se globalmente nos mesmos termos da R., terminando por requerer a intervenção acessória da sociedade “C….” a quem, por sua vez, adquirira o veiculo  pelo preço de € 13.250,00.

Admitida a intervenção desta sociedade, interveio a mesma nos mesmos termos, acabando por requerer a intervenção acessória de João… a quem comprara o veiculo e, mais uma vez admitida esta intervenção, este chamou a intervir, nos mesmos termos, Nuno…, que referiu não ter sido ele quem vendeu o veículo ao referido João…, mas sim a “M…, Unipessoal Lda”, de quem ele é gerente.

 

Foi declarada suspensa a instância até decisão definitiva no referido processo crime, no qual resultou provada a falsificação da matrícula e do chassis do veículo em causa nos autos.

Foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto e tendo tido lugar o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, declarando nula a venda do veículo automóvel efetuada pela R. à A., condenando a R. a restituir à A. o montante de € 14.957,30  e  juros de mora sobre tal quantia, vencidos desde a data da citação, à taxa supletiva de juros moratórios sucessivamente em vigor relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, até efetivo e integral pagamento.

II – Do assim decidido, apelou a R que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:

1.ª Encontra-se provado que a Sociedade A. & , Lda., solicitou à Ré a venda em leilão do veículo e que as condições de venda dos veículos em leilão, pela Ré, eram conhecidas dos respectivos adquirentes e participantes no leilão, interessados na respectiva aquisição.

2.ª Mais se encontra provado que a viatura apresentava toda a sua documentação em ordem, incluindo a respeitante às inspecções periódicas a que estava sujeito e por isso o veículo foi posto à venda pela Ré nas condições em que a sociedade A. & , Lda., o entregou.

3.ª Provado está igualmente que o veículo foi vendido à Autora já viciado, e sabendo-se que não foi a vendedora que o viciou.

4.ªA Recorrente emitiu a factura n.º 8024, no valor global de € 14.957,30 e que entregou à sociedade A. &  Lda o preço recebido da recorrida.

5.ª Entre a Recorrente e a sociedade A.  &. Lda foi acordado um contrato de mandato na sua modalidade de mandato sem representação.

6.ªNos termos do artigo 1182.º do Código Civil, o “mandante deve assumir (…)

as obrigações contraídas pelo mandatário na execução do mandato; se não puder fazê-lo, deve entregar ao mandatário os meios necessários para as cumprir ou reembolsá-lo do que este houver despendido nesse cumprimento.”

7.ªA Recorrente não era a real proprietária do veículo e a sua responsabilidade contratual resumiu-se a promover a venda do veículo e tal foi inteiramente cumprido. Era esse o objecto do mandato acordado entre a recorrente e a sociedade A.  &  Lda.

8.ªNão é na esfera jurídica da ora recorrente que se repercutem os efeitos da nulidade do negócio jurídico.

9.ªNão é de todo justo que seja a recorrente a restituir à recorrida, ali autora, aquilo que foi por esta prestado com a aquisição do veículo até porque nunca usufruiu dessa quantia já que a entregou à sociedade A. &  Lda, logo na altura.

10.ªFace ao exposto, o douto Acórdão de que ora se recorre padece do vício de erro na aplicação da lei substantiva, devendo a Recorrente ser absolvida do pedido por aplicação do disposto nos arts. 1182.º do Código Civil.

Não foram apresentadas contra alegações.

III-  O tribunal  de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1. No dia 22 de outubro de 2003, o veículo automóvel de marca Audi, modelo A3 1.9, com a matrícula SS-9906-BJ e com o número de chassis WAUZZZ8LYAO96678, foi furtado em Tolosa, Espanha;

2. Após a data referida em 1., aquele veículo deu entrada na Direção Geral de Alfândegas, em Portugal, para legalização, ostentando o número de matrícula SS- 4826-BK e o número de chassis WVWZZZ8LZYA149805;

3. (…) onde, no dia 13 de novembro de 2003 lhe foi atribuída a matrícula portuguesa nº 56-59-VX;

4. O veículo automóvel de marca Audi, modelo A3 1.9, ostentando a matrícula 56- 59-VX, foi adquirido no dia 13 de março de 2004 por João… à sociedade M… Unipessoal, Lda., representada por Nuno…, pelo preço de € 19.000,00;

5. No dia 20 de outubro de 2005, a C…, que então se dedicava, além do mais, à importação, exportação e comercialização de veículos automóveis, vendeu a João… o veículo automóvel de marca Audi, modelo A3 SPB 2.0 TDI Sport, com a matrícula 87-AS-78, pelo preço de € 37.107,32;

6. (…) tendo recebido deste, a título de retoma e pelo valor de € 13.000,00, o veículo automóvel referido em 4.;

7. No dia 26 de outubro de 2005, a C… vendeu o veículo referido em 4. À sociedade A. &  Lda., pelo preço de € 13.250,00;

8. (…) após o que a A. &  Lda. solicitou à S…que no âmbito da atividade de organização de leilões de veículos automóveis a que esta se dedicava, procedesse à venda, por conta daquela, do veículo automóvel referido em 4.;

9. (…) na sequência de tal solicitação, a S… colocou em venda, num leilão por si organizado e realizado no dia 2 de novembro de 2005, o veículo referido em 4., constituindo o lote 142;

10. (…) o qual veio ser adquirido nesse leilão pela autora, sociedade que se dedica à atividade de compra de veículos automóveis usados para revenda;

11. Nessa mesma data, a S…emitiu e entregou à autora a fatura nº 8024, no valor global de € 14.957,30, que esta pagou àquela, correspondendo: - a quantia de € 14.800,00 ao preço da venda do veículo, e que a S…, por sua vez, posteriormente entregou à sociedade A. &  Lda.; - a quantia de € 130,00, acrescido do IVA à taxa de 21%, no montante de € 27,30, a título de taxa de aquisição, pela compra daquele veículo no leilão organizado e realizado pela S…;

12. A S… colocou o veículo referido em 4. em venda nesse leilão, no estado em que para o efeito lhe foi entregue pela sociedade A.  &  Lda.;

13. Entre a data em que a sociedade A. & , Lda. o entregou à S…ara que esta o pusesse em venda em leilão e a data referida em 9., o veículo referido em 4. não foi submetido a qualquer inspeção;

14. (…) o que era do conhecimento da autora;

15. O leilão referido em 9. realizou-se com sujeição às condições que constam  o

documento de fls. 55 a 60;

16. (…) as quais se encontravam afixadas no local onde o mesmo se realizou;

17. Tais condições foram conhecidas e aceites tanto pela autora como pela sociedade “A. &  Lda.”, antes da realização do leilão;

18. No mês de dezembro de 2005 a autora vendeu o veículo referido em 4. a V…pelo preço de € 19.385,00;

19. Após o ter adquirido no leilão referido em 9. e antes de o vender a V… a autora procedeu:- à lavagem e limpeza exterior e interior;- à inspeção ao bom funcionamento do motor, dos órgãos de travagem, da embraiagem e do sistema elétrico e eletrónico; ao polimento do veículo referido em 4.;

20. (…) no que despendeu uma quantia global em dinheiro não concretamente apurada;

21. No dia 19 de setembro de 2006, encontrando-se o veículo referido em 4. em poder e V…, a polícia judiciária procedeu à sua apreensão no âmbito do UIPC 424/04.4JDLSB, por «existirem fortes indícios que o mesmo se encontra falsificado a nível dos respetivos elementos identificativos de Número de Chassis e do Número de Matrícula com o qual deu entrada na D. G. das Alfândegas para legalização), bem assim de que o mesmo tem uma anterior proveniência ilícita»;

22. (…) após o que nem V…, nem a autora, voltaram a entrar em poder veículo referido em 4.;

23. Em consequência da apreensão referida em 13., V… solicitou à autora a devolução da quantia indicada em 12. ou, em alternativa, que esta lhe entregasse, em substituição do referido em 4., um outro veículo com as mesmas características  o mesmo valor;

24. (…) na sequência do que a autora entregou a V… em substituição do referido em 4., o veículo automóvel de marca Audi, modelo A.3 1.9, com a matrícula 34-32-QZ, contra a entrega, por esta, da quantia adicional de € 1.500,00, correspondente à diferença de valores entre as duas viaturas.

IV – Das conclusões das alegações resulta para apreciação, constituindo o objecto do presente recurso, saber se ao contrário do que foi decidido, os efeitos da nulidade da compra e venda referente ao veículo em causa nos autos se deveriam repercutir na esfera jurídica da “A. &  Lda” e não na da R./ apelante, pelo que a obrigação de restituição do preço seria daquela e não desta.

Com efeito, aceitando a R./apelante que entre ela e a sociedade “A. & Lda” intercedeu um contrato de mandato na modalidade de mandato sem representação pretende que, porque a sua responsabilidade contratual se resumiu a promover a venda do veículo, o que cumpriu, tendo logo na altura entregue àquela a quantia decorrente da venda, e porque, nos termos do art 1182º CC é, em última análise, o mandante quem deve assumir as obrigações contraídas pelo mandatário na execução do mandato, será sobre essa sociedade que impende a obrigação de restituição  à A. do preço por ela pago pelo referido veiculo.

Outro foi, efectivamente, o entendimento do Exmo Juiz a quo que concluiu no sentido dessa obrigação de restituição impender sobre a R, com base na disciplina do art 1180º CC.

Adianta-se desde já que se entende que a razão está com a sentença recorrida, sendo, efectiva e essencialmente do disposto neste art 1180º CC que resulta esse entendimento.

Diz-se nessa norma: «O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes».

È sabido e repetido que «no mandato sem representação, o mandatário, apesar de intervir por conta e no interesse do mandante, não aparece revestido da qualidade de seu representante, agindo, pelo contrário, em nome próprio, e não em nome do mandante, pelo que é ele, mandatário, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra» [1].

É também costume fazer uso da definição de mandato sem representação a que chega Pessoa Jorge quando finaliza a sua dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas [2], aí referindo que o mandato sem representação  é o contrato «pelo qual uma pessoa  (mandante) confia a outra (mandatário) a realização, em nome desta mas no interesse e por conta daquela, de um acto jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse acto; ou, dada a noção de interposição de pessoas, como o contrato pelo qual alguém se obriga para com outrem a intervir, como interposta pessoa, na realização de um acto jurídico que ao segundo respeita».

Noutras palavras, (estas de Araújo de Barros), [3] também elas muito expressivas: «Configura-se um mandato sem representação, nos termos e para os efeitos do art 1180º e ss CC, quando, concertadamente, e sem outorga de procuração específica, o mandatário celebra um dado negócio jurídico em seu próprio nome (nomine próprio) mas por conta do mandante, ocorrendo em tal situação uma interposição real de pessoas».

Opõe-se o mandato sem representação ao mandato com representação, sendo que neste o mandante conferiu poderes de representação ao mandatário, pelo que este tem o dever de agir, não só por conta, mas também em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada (art 1178º/2).

Não modifica a natureza ao mandato sem representação a circunstância do terceiro com quem contrata o mandatário ter conhecimento da pessoa por conta de quem este age, embora seja lícito ao mandatário sem representação ocultar junto do mesmo, se for do seu interesse, a sua posição em relação ao mandante.

 

Comentando o art 1180º CC dizem Pires de Lima /Antunes Varela [4]:

 «Em vez, assim, de os actos produzirem os seus efeitos na esfera jurídica do mandante (cfr art 258º), produzem-nos na esfera do mandatário».

E citando Pessoa Jorge na obra acima mencionada, prosseguem: «O alcance da actuação em nome próprio é o de fazer projectar sobre a esfera jurídica do agente, além dos efeitos característicos da situação de parte, os de natureza pessoal: é ele quem tem legitimidade para exigir e receber o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato, é contra ele que a outra parte se deve dirigir, não só para reclamar os seus créditos, como para fazer valer quaisquer acções pessoais derivadas do contrato, nomeadamente a respeitante à sua validade ou eficácia».

Acrescentando muito explicitamente para o efeito que se pretende aqui destacar:

«A situação do mandante é, pois, em princípio, estranha às pessoas que contratam com o mandatário, e estas pessoas, por seu turno, também não é com o mandante, mas com o mandatário, que estabelecem relações negociais. Estas não passam de terceiros em relação ao mandato». (…) «A gestão do mandato move-se exclusivamente na esfera jurídica do mandatário e de terceiros e não do mandante».

Também não modifica a exclusividade destas relações entre o mandatário e os terceiros com quem o mesmo contrate, a circunstância daquele ter (já) transferido para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.

Com efeito, nos termos do art 1181º/1 CC, o «mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato».

O que significa que, posto que, como se viu, o mandatário que age em nome próprio fica sendo titular dos direitos adquiridos em execução do mandato, é já num segundo momento que, agora «em cumprimento das suas obrigações contratuais com o mandante, deve transferir para este a titularidade desses direitos. Se adquiriu coisas, deve entrega-las ao mandante, transferindo simultaneamente os respectivos direitos reais; se adquiriu créditos, deve cedê-los».

Resulta deste art 1181º – maxime do seu nº 1  - o acolhimento pelo nosso legislador da “tese da dupla transferência”: «do terceiro para o mandatário e deste para o mandante, e consequentemente, a tese do carácter obrigacional dos direitos deste até à segunda transferência, em relação à gestão que tenha por objecto a aquisição de um direito».

Mas também quando se trate de gestão que tenha por objecto uma alienação  – como no caso dos autos, em que houve um mandato da “A. Vasconcelos & Filhos, Lda” para venda  - se deve entender que este art 1181º - agora no seu nº 2 -  confirma, em relação aos créditos, a tese de que a execução do mandato sem representação produz os seus efeitos na esfera do mandatário e não do mandante. «Só assim, na verdade, se compreende a possibilidade da substituição: o direito é do mandatário, enquanto não for transferido». È que este nº 2 do art 1181º implica a admissibilidade de uma acção directa, pois que «em relação aos créditos, independentemente da transferência, o mandante pode exigir, para si, a entrega da prestação».

Já o terceiro que se mostre credor em consequência de negócio jurídico em que tenha intervindo mandatário sem poderes não goza de acção directa em relação ao mandante, valendo aqui o disposto no art 1182º CC: «O mandante deve assumir, por qualquer das formas indicadas no nº 1 do art 595º (que se reporta à assunção de dívida), as obrigações contraídas pelo mandatário em execução do mandato; se não puder fazê-lo, deve entregar ao mandatário os meios necessários para as cumprir ou reembolsa-lo do que este houver despendido nesse cumprimento».

Esta norma, no contexto das antecedentes, anda bem longe de permitir o resultado pretendido na situação dos autos pelo apelante.

Pelo contrário, o que dela resulta é que «em harmonia com o disposto no art 1180º, segundo o qual o mandatário assume, perante terceiros, todas as obrigações decorrentes da execução do mandato, é aquele o único responsável, perante estes, por essa execução. Não se constituem quaisquer direitos de terceiros sobre o mandante, que, é, em consequência das regras gerais, estranho aos efeitos jurídicos da gestão do mandatário».

De tal modo o mandante é estranho aos efeitos jurídicos da gestão do mandatário que querendo o mesmo assumir as dívidas contraídas por aquele na execução do mandato, havendo de o fazer, segundo a norma agora em apreço, «por qualquer das formas indicadas no nº 1 do art 595º», carecerá sempre do acordo desse terceiro, que pode não ocorrer (o credor contratou com o mandatário e não com o mandante e pode tê-lo feito pela especial confiança que o mesmo lhe inspira «e por isso não se justificaria a transmissão da divida para o mandante sem consentimento do credor»).

Quando não haja esse acordo do terceiro, «é responsável perante o credor, o mandatário, e, perante este, o mandante.

A responsabilidade do primeiro deriva da gestão em próprio nome; a do segundo, do contrato de mandato».

Está-se em condições de se concluir: em função do que se disse, responsável perante a A. pela obrigação de restituição advinda da nulidade do negócio de compra e venda do veiculo falsificado é a aqui R., não obstando a essa conclusão a circunstância de há muito a mesma ter entregue à “A. &  Lda” o preço desse veículo.

E, é, porque cumpriu as obrigações que para ela advinham do mandato para com a referida “A. & Lda”, tendo-lhe entregue o preço do veículo vendido, que tem direito de regresso sobre ela, e por isso se justificava o chamamento da mesma por intervenção acessória. Se, perante o A. fosse responsável a referida A. & Lda, não se teria justificado a intervenção acessória, devendo antes aquela, perante a defesa da R, ter provocado a intervenção principal passiva da dita “A. &  Lda” nos termos do art 325º/2 ACPC ( art 316º/2 NCPC).

Mas não é esse o caso – a R. é, perante a A., o único responsável pelo contrato de compra e venda do Audi falsificado, e por isso também o único responsável pelas consequências da nulidade desse contrato.

A apelação improcede.

V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2014
Maria Teresa Albuquerque

José Maria Sousa Pinto

Jorge Vilaça

 
[1] - Nos mesmos termos e entre tantos outros, Ac STJ  12/1/2012 (Serrão Batista) invocado na sentença recorrida, mas também  Ac STJ 11/5/2000 (Abílio Vasconcelos) e de 22/1/2008 e 22/6/2004   (ambos Azevedo Ramos), todos acessíveis em www dgsi
[2] - Cfr «Mandato sem Representação»
[3]  - Ac STJ 9/10/2003, in www dgsi
[4]  - «Código Civil Anotado», 2ª ed, II, 663 e ss, pertencendo a esta obra as subsequentes transcrições que se farão no texto