Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2347/2008-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
PESSOA COLECTIVA
PESSOA SINGULAR
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFORMADA A DECISÃO
Sumário: 1 – Pretendendo o autor o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de crédito ao consumo, tendo, para o efeito, demandado duas rés, sendo a primeira uma sociedade comercial com sede na Maia, e a segunda uma pessoa singular, também com domicílio na Maia, figurando aquela como devedora principal e esta como fiadora por todas as obrigações assumidas no referido contrato pela Ré/Sociedade, o Tribunal territorialmente competente para a apreciação da acção será o da Comarca da Maia, apesar de uma das rés ser uma pessoa colectiva.
2 – O artigo 87º, n.º 1 CPC, apenas, será aplicável, havendo mais de um réu na causa, contanto que se trate de pessoas singulares, com distintos domicílios, e fora da área metropolitana de Lisboa.
3 - Se forem demandadas várias pessoas colectivas, nada impede que em relação a elas o autor opte pela Comarca de Lisboa, atenta a 1ª excepção prevista na norma do n.º 1 do artigo 74º CPC.
4 – Sendo demandadas pessoas singulares, todas residentes na área metropolitana de Lisboa, embora em distintas comarcas, também em relação a elas pode o autor, enquanto credor, com sede em Lisboa, escolher o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, atenta a 2ª excepção da norma do n.º 1 do artigo 74º do CPC.
G.F.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
Na acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de crédito ao consumo, nos termos do DL 269/98, de 1 de Setembro, que [Banco], intentou contra S L. da , com sede na Maia e contra [Maria], esta na qualidade de fiadora, com domicílio na Maia, o Exc. mo Juiz da 1ª Secção do 3º Juízo Cível de Lisboa, onde a acção foi instaurada, considerou verificada a excepção dilatória de incompetência relativa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e, consequentemente, julgou este Tribunal incompetente em razão do território para apreciação da acção e determinou a remessa do processo para distribuição no Tribunal Judicial da Comarca da Maia, por ser o tribunal territorialmente competente.

Inconformado, agravou o autor, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O Exc. mo Juiz a quo, ao julgar o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa territorialmente incompetente para conhecer da presente acção pelos motivos e razões que nele se consigna, tendo-se ordenado a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca da Maia, por se ter considerado ser o competente, violou o disposto nos artigos 74º, n.º 1 e 87º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.
2ª – Porque a 1ª Ré é uma pessoa colectiva, o Autor, ora Recorrente, optou pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, como sendo o competente, aliás de harmonia com o disposto no artigo 74º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril e como lhe assiste e permite consequentemente o artigo 87º, n.º 1, do mesmo normativo legal.
3ª – Impõe-se, pois, como se requer, a procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos onde o mesmo foi proferido.

Não houve contra – alegação.

Foi proferido despacho de sustentação.
2.
Para além do que consta do relatório, têm relevância para a decisão a proferir os seguintes factos:
1º - A presente acção deu entrada no Tribunal Judicial de Lisboa, aos 19 de Julho de 2007.
2º – Através desta acção pretende o Banco Mais “o cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato nos termos do Decreto – Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro”.
3º - Tal contrato foi celebrado aos 16 de Outubro de 2006.
4º - A Lei 14/2006, de 26 de Abril, entrou em vigor em 1 de Maio de 2006.
6º - A 1ª Ré, que é uma sociedade comercial e figura como devedora principal, tem a sua sede na área da Comarca da Maia e a 2ª Ré, pessoa singular, que figura como fiadora por todas as obrigações assumidas no contrato referido pela Ré sociedade para com o Autor, tem o seu domicílio também na área da mesma Comarca da Maia.
3.
Tendo em conta as conclusões do Recorrente, que delimitam afinal o âmbito do recurso, a questão que cumpre apreciar e conhecer no presente recurso é a seguinte:

Tendo a acção sido proposta, na Comarca de Lisboa, contra duas rés, sendo a primeira uma sociedade comercial, com sede na Maia, e a segunda uma pessoa singular, também com domicílio na Maia, figurando aquela como devedora principal e esta como fiadora por todas as obrigações assumidas no contrato referido pela Ré sociedade para com o Autor, pretende-se saber qual será o Tribunal territorialmente competente para conhecer da presente acção.
4.
O artigo 1º da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, alterou a redacção de diversos preceitos do Código de Processo Civil, entre eles a dos artigos 74º, n.º 1 e 110º, n.º 1, alínea a).

O artigo 74º, n.º 1, tendo como epígrafe «competência para o cumprimento da obrigação», passou a dispor que “a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.

E o artigo 110º passou a incluir as causas a que se refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 74º, na alínea a) do seu n.º 1, o que significa que nelas o conhecimento da incompetência relativa passou a ser de conhecimento oficioso, vedando, assim, a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, como resulta do disposto no artigo 100º.

Por fim, dispõe o artigo 6º da Lei 14/2006, de 26 de Abril, que «a presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instaurados ou apresentados depois da sua entrada em vigor» (pelo que, nada dispondo sobre a data desta última, coincidiu a mesma com o quinto dia após a publicação – artigo 2º, n.º 2 da Lei 74/98, de 11 de Novembro -, isto é, a nova redacção dos referidos artigos do CPC entrou em vigor no dia 1 de Maio de 2006).

In casu, a acção foi proposta em juízo no dia 19 de Julho de 2007, ou seja, quando já se encontrava em vigor a Lei 14/2006, pelo que é esta a aplicável e, consequentemente, as normas por ela alteradas, nomeadamente o artigo 74º, n.º 1, com a alteração introduzida CPC.

Com esta acção, pretende a Autora exigir o cumprimento coercivo do contrato de crédito ao consumo que diz ter celebrado com a 1ª Ré, ou seja o cumprimento de obrigações pecuniárias, figurando a 2ª Ré como fiadora.

E pretende que seja considerado competente para decidir o pleito o Tribunal da Comarca de Lisboa, com o fundamento de que uma das rés é uma pessoa colectiva.

Para melhor podermos analisar a questão, interessará reler a Proposta de Lei n.º 47/X, que esteve na origem da Lei 14/2006, que introduziu a actual redacção do artigo 74º do Código Processo Civil.

Tal proposta foi discutida na generalidade na Assembleia da República, em 2/02/2006. Na exposição de motivos dessa Proposta de Lei refere-se, no que aqui interessa, o seguinte:
“A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a protecção de bens jurídicos que efectivamente mereçam a tutela judicial e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função, constitui um dos objectivos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, de 30 de Maio de 2005, que, aprovando um Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais, previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência territorial do tribunal de comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto».

A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente concentrada.

Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções, reforça-se, também, o valor constitucional da defesa do consumidor, - porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permitindo-lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo – e obtém-se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.

O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a excepção justifica-se por estar ausente o referido valor constitucional de protecção do consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade. Com efeito, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, não se afigura especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser demandado em qualquer das demais comarcas da área metropolitana em que reside, nem se descortinam especiais necessidades de redistribuição do volume processual hoje verificado em cada uma das respectivas comarcas”.

Resulta desta exposição de motivos, ter sido propósito do legislador, ao impor a regra da competência do tribunal do demandado para este tipo de acções – as destinadas (i) a exigir o cumprimento de obrigações, (ii) a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e (iii) a resolução do contrato por falta de cumprimento – obviar à concentração geográfica da litigância de massa, buscando um maior equilíbrio na distribuição territorial das acções e execuções cíveis, e visando, ao mesmo tempo, um reforço do valor constitucional da protecção do consumidor.

Mas foram, desde logo, excepcionadas duas situações em que o demandante – credor pode optar pelo tribunal do lugar onde a obrigação deve ser cumprida: (i) se o réu for uma pessoa colectiva; (ii) se tanto o autor como o réu tiverem ambos domicílio na mesma área metropolitana, seja ela a de Lisboa ou do Porto e quer se trate de pessoas singulares ou colectivas, pelas razões atrás realçadas.

No caso, foram demandas duas Rés: uma das Rés é sociedade e a outra é pessoa singular.
Esta situação não é subsumível em qualquer das hipóteses em que a lei permite ao Autor optar pelo tribunal da sua sede para intentar a acção.

Atendendo ao fim prosseguido pelo legislador com a alteração introduzida no artigo 74º, n.º 1 CPC, consideramos que a competência do tribunal não pode definir-se com base num critério puramente formal, tomando em consideração, apenas, que estamos perante duas rés, sendo uma delas uma pessoa colectiva e outra uma pessoa singular, aplicando-se, então, como pretende a Recorrente, o artigo 87º, n.º 1 CPC. A razão seria apenas formal, sem qualquer fundamento substancial a determiná-lo.

Como vimos, a lei impõe, como regra e de forma imperativa, sem possibilidade, portanto, de afastamento por vontade das partes, que a acção seja proposta no tribunal do domicílio do demandado, salvo quando este tenha domicílio na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, aí se situando também o domicílio do credor.

Se for unicamente demandada uma sociedade, justifica-se a excepção prevista na lei, por nesse caso, não se verificarem as referidas exigências constitucionais de protecção do consumidor, como se afirmou na transcrição da exposição de motivos. Mas havendo pluralidade de demandados, entre os quais uma sociedade e uma pessoa singular, já se podem sentir, naturalmente, tais exigências de protecção do consumidor, salvo no referido caso do autor e réus terem ambos domicílio na área metropolitana de Lisboa e do Porto.

A interpretação da norma deve acolher o sentido que mais se ajuste ao objectivo primordial prosseguido pelo legislador.

Ora, como principal motivo, pretendeu o legislador obter um maior equilíbrio na distribuição territorial da litigância cível, aliviando-se a distribuição nos tribunais de Lisboa e do Porto, e, em segundo lugar, pretendeu-se reforçar o valor constitucional da defesa do consumidor, aproximando-se a justiça do cidadão.

Assim, a opção pelo tribunal do lugar onde deva ser cumprida a obrigação constitui excepção àquela primeira regra, pelo que, por argumento a contrario, não deve ser estendida a situações nela não contempladas, nem desejadas pelo legislador.

Portanto, tendo sido demandados dois réus, sendo um deles uma pessoa singular com residência fora da área metropolitana de Lisboa, o que só por si implica que a acção seja proposta no tribunal do domicílio do réu, o facto do outro ser uma pessoa colectiva não pode derrogar a regra geral. Ou seja, não se encontrando contemplada a situação nas excepções prevista na norma do n.º 1 do artigo 74º CPC, aplicar-se-á, pois, necessariamente a regra geral contemplada no n.º 1 do mesmo preceito.

O argumento retirado do artigo 87º, n.º 1 CPC não colhe. Esta norma, apenas, será aplicável, havendo mais de um réu na mesma causa, com distintos domicílios, contanto que se trate de pessoas singulares com domicílio fora das áreas metropolitanas de Lisboa ou do Porto, pois que, se forem demandadas várias pessoas colectivas, nada impede que em relação a elas o autor faça funcionar a primeira excepção da norma do n.º 1 do artigo 74º, propondo a respectiva acção na comarca onde tem a sua sede que é Lisboa, como naturalmente proporá a acção na área da Comarca de Lisboa, fazendo funcionar a segunda excepção, se os demandados, sendo pessoas singulares, residirem todos nessa área metropolitana, onde o autor tem a sua sede, nada impedindo que os respectivos domicílios possam ser em diferentes comarcas, contanto que da mesma área metropolitana.

Não oferece, pois, dúvidas que, tal como se decidiu, será competente para conhecer e julgar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca da Maia.
5.
Pelo exposto, negando provimento ao agravo, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.

Lisboa, 10 de Abril de 2008
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela Santos Gomes