Decisão Texto Integral: | ACORDAM no Tribunal da Relação de Lisboa:
I) RELATÓRIO
M..., com os sinais dos autos, ré nos autos de ação declarativa comum com processo ordinário de que estes são apenso, veio interpor recurso da decisão que indeferiu o seu requerimento de prestação de depoimento de parte pelo seu co-réu, R.., com os sinais dos autos, na referida ação que lhe move A..., com os sinais dos autos.
A Recorrente apresentou alegações que concluiu como segue:
«1. A Recorrente e o do-Réu apresentam, nos autos, posições divergentes no que toca à intervenção da primeira no contrato promessa sub judice, recebimento do sinal e respetivos reforços;
2. Para além do atrás mencionado, só a dedução da defesa em separado e constituição de Mandatários distintos, já indiciariam, sem margem para dúvidas essa divergência e a existência de interesses próprios a salvaguardar.
3. Pelo que, discorda a ora Recorrente do Despacho em crise, o qual efende que tais posições divergentes não acontecem nos Autos.
4. Assim sendo, sempre será de admitir o depoimento de parte do co-Réu aos factos atrás referidos.
Pelo exposto, e sempre com o Douto suprimento de V. Exas. Deve ser o presente recurso julgado procedente, revogando-se o aliás douto Despacho proferido em 1.ª instância, na parte em que indefere o requerido depoimento de parte do co-Réu, e em consequência substituído por outro que admita o requerido depoimento, assim se fazendo a costumada Justiça!».
Não consta que a parte contrária tenha contra-alegado.
O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais[1], cumpre apreciar e decidir.
II) OBJECTO DO RECURSO
Tendo em atenção as conclusões da Recorrente e inexistindo questões de conhecimento oficioso - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, todos do CPC vigente -, é objeto do recurso a apreciação da admissibilidade do requerido depoimento de parte.
III) FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
São pertinentes à decisão os seguintes factos que resultam dos autos:
1. Na sua contestação a Ré ora Recorrente alegou o seguinte:
a) «Artigo 10.º - Regra geral [a Ré] só conhecia os compradores [dos imóveis que o seu ex-marido e co-Réu vendia] no dia das escrituras por ser legalmente necessário que outorgasse as mesmas»;
b) «Artigo 12.º - A 2.ª Ré não teve qualquer intervenção nas negociações que antecederam a celebração do contrato promessa, nem outorgou o mesmo»;
c) «Artigo 20.º - E, quando necessita [o co-Réu] de financiamento recorre às entidades legalmente habilitadas para conceder créditos, que são os bancos, como se pode constatar pela certidão que ora se junta como doc. N.º 2, da qual consta uma hipoteca de € 200.000,00 e outra de € 75.000,00 registadas a favor da Caixa Económica do Montepio Geral em 13/10/2005 e 09/03/2010, respetivamente»;
d) «Artigo 30.º - No decurso da conversa [com o autor], o A. disse à ora R. que tinha em seu poder uma chave da moradia a qual lhe tinha sido entregue pelo 1.º R. o que também não corrobora a sua [do autor] versão dos factos…»;
e) «Artigo 43.º - Essa é a versão do A., no entanto, nunca a ora R. teve conhecimento por tal lhe ter sido transmitido por seu ex-marido e ora 1.º R., de que os factos se teriam passado dessa forma»;
f) «Artigo 44.º - Aliás, insiste no facto já alegado de que o que o 1.º R. lhe transmitiu foi que a moradia atrás descrita estava prometida vender ao Sr. Raposo»;
g) «Artigo 58.º - O A. pretende demonstrar que é pessoa inexperiente e que foi enganado pelo 1.º R. que o levou a “assinar de cruz” um documento que este lhe apresentou e “…o A. ouviu e olhou, confirmando nos locais indicados a dedo pelo 1.º R…”».
2. A Ré ora Recorrente requereu ao tribunal que sobre os factos constantes dos artigos da contestação referidos em 1. fosse prestado depoimento de parte pelo co-Réu.
3. Os Réus apresentaram contestações distintas e estão representados nos autos por mandatários forenses diversos.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Depoimento de parte: sede legal
O meio de prova “depoimento de parte” encontra-se previsto no artigo 452.º do CPC, norma que se integra na secção epigrafada “prova por confissão das partes” e no capítulo “prova por confissão e por declarações das partes”.
Nos termos desse referido artigo é estabelecido o enquadramento geral do instituto:
«1 - O juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa.
2 - Quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair».
Seguidamente, a lei processual indica no artigo subsequente (n.º 3) de quem pode ser exigido o depoimento de parte, estabelecendo nomeadamente no que aos autos respeita, que «cada uma das partes pode requerer não só o depoimento da parte contrária, mas também o dos seus compartes».
Finalmente, na parte pertinente à decisão, o artigo 454.º rege sobre os factos que podem ser objeto de depoimento de parte, estatuindo:
«1 - O depoimento só pode ter por objeto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
2 - Não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida».
2. Depoimento de parte: o caso dos autos
Não existe controvérsia, na lei ou nos autos, quanto à possibilidade de a Ré requerer o depoimento de parte do seu co-Réu.
Todavia, o despacho recorrido considerou que os factos indicados (os que acima constam em 1.) não podiam ser objeto de depoimento de parte por o mesmo se destinar a obter a confissão, não tendo os Réus nos autos posições divergentes.
A Recorrente, ex adverso, entende que a apresentação de contestações separadas e a representação forense diversa indica ou indicia a divergência processual dos Réus, a qual se exprime em posições diversas por o co-Réu nunca referiu “qualquer intervenção da mesma nas negociações que antecederam a celebração do contrato promessa de compra e venda, ou na outorga do mesmo» bem como o que se refere a prejuízo da Ré por encargos num negócio em que não interveio e cujo sinal não recebeu.
Por outro lado, argumenta que o depoimento de parte pode não conduzir à confissão, sendo apenas uma das vias da sua obtenção, podendo ser livremente valorado pelo tribunal em tal caso.
Apreciando se dirá desde logo que o antagonismo das posições dos co-réus não resulta da apresentação separada das suas contestações ou da diversidade de mandatários. Resulta do teor das posições que assumem nos autos.
No caso concreto, as posições assumidas pelos co-Réus não se revelam antagónicas entre si mas diversas e, ambas, sem contradição entre si, antagónicas à do Autor. Não existe qualquer antagonismo ou contradição entre a posição da Ré de que não teve participação nas negociações ou de que não recebeu o sinal e a do Réu que se não pronuncia quanto a esses factos. Antagonismo existiria se um afirmasse uma coisa e o outro a outra.
A situação é assim a de cada uma das partes passivas assumir autonomamente a sua defesa em confronto com a imputação feita pelo Autor, não a de um e outro assumirem defesa antagónicas ou contraditórias.
Mas, mais do que isso, importa atender aos factos concretos sobre os quais se pretende recaia o depoimento de parte (referidos em 1. supra) para determinar se os mesmos se enquadram na previsão do artigo 454.º citado: factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
Enquadramento que pressupõe a teleologia do instituto – obter a confissão – e a coerência com o disposto no artigo 352.º do CC que caracteriza a confissão como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
Cumpre em consequência apreciar da matéria factual sobre a qual a Recorrente pretende que incida o depoimento de parte para determinar se da sua admissão pode resultar confissão do co-Réu de facto desfavorável a si próprio e favorável à Recorrente.
Para concluir que assim não acontece quanto a nenhum dos indicados factos, antecipando-se a nossa conclusão.
Assim, com referência aos factos em causa:
a) «Artigo 10.º - Regra geral [a Ré] só conhecia os compradores [dos imóveis que o seu ex-marido e co-Réu vendia] no dia das escrituras por ser legalmente necessário que outorgasse as mesmas».
Este facto é perfeitamente inócuo à defesa do Réu e a sua admissão nunca poderia enquadrar-se no conceito de confissão antes referido, destinando-se antes a contrariar a tese expressa pelo autor na petição.
b) «Artigo 12.º - A 2.ª Ré não teve qualquer intervenção nas negociações que antecederam a celebração do contrato promessa, nem outorgou o mesmo».
O mesmo se diga quanto a este facto, sendo certo que o co-Réu nunca afirmou o contrário, nem o facto lhe é de modo algum desfavorável no contexto concreto da ação.
c) «Artigo 20.º - E, quando necessita [o co-Réu] de financiamento recorre às entidades legalmente habilitadas para conceder créditos, que são os bancos, como se pode constatar pela certidão que ora se junta como doc. N.º 2, da qual consta uma hipoteca de € 200.000,00 e outra de € 75.000,00 registadas a favor da Caixa Económica do Montepio Geral em 13/10/2005 e 09/03/2010, respetivamente».
Quanto a este facto, nem sequer é inócuo à defesa do co-Réu, integra-a, constituindo facto que lhe é favorável e adverso apenas à tese do Autor.
d) «Artigo 30.º - No decurso da conversa [com o autor], o A. disse à ora R. que tinha em seu poder uma chave da moradia a qual lhe tinha sido entregue pelo 1.º R. o que também não corrobora a sua [do autor] versão dos factos…».
Também quanto a este facto se pode dizer o mesmo do anterior, sendo a própria alegação que o indica.
e) «Artigo 43.º - Essa é a versão do A., no entanto, nunca a ora R. teve conhecimento por tal lhe ter sido transmitido por seu ex-marido e ora 1.º R., de que os factos se teriam passado dessa forma».
Este facto é perfeitamente inócuo à defesa do Réu e a sua admissão nunca poderia enquadrar-se no conceito de confissão antes referido, destinando-se antes a contrariar a tese expressa pelo autor na petição.
f) «Artigo 44.º - Aliás, insiste no facto já alegado de que o que o 1.º R. lhe transmitiu foi que a moradia atrás descrita estava prometida vender ao Sr. Raposo».
Mais uma vez o facto constitui a própria defesa do co-Réu.
g) «Artigo 58.º - O A. pretende demonstrar que é pessoa inexperiente e que foi enganado pelo 1.º R. que o levou a “assinar de cruz” um documento que este lhe apresentou e “…o A. ouviu e olhou, confirmando nos locais indicados a dedo pelo 1.º R…”».
O mesmo se diga quanto ao agora referido que assume a mesma tese do co-Réu.
Em conclusão, os factos em causa nunca poderiam, caso o Réu os admitisse como verdadeiros, integrar confissão por ele de factos a si desfavoráveis. Destinando-se o depoimento de parte a possibilitar essa confissão, conclui-se pela adequação da decisão de indeferimento.
Certo é que a Recorrente invoca a possibilidade de o depoimento de parte ser livremente apreciado quando não tenha carácter confessório.
Assim é, como decorre do artigo 361.º do CC. Mas a questão que nos ocupa não é a da apreciação do valor probatório de um depoimento prestado, mas a da admissibilidade da sua prestação. Ora a admissibilidade pressupõe a possibilidade de confissão decorrente da natureza dos factos sobre que incide, nada tem a ver com a força probatória de depoimento de que a confissão (possível ab initio) não decorra.
Aliás, a prestação de declarações pelas partes fora do regime da confissão está expressamente prevista no artigo 466.º, do CPC, embora apenas a requerimento da própria parte, e no artigo 452.º, n.º 1, do CPC, que, estabelecendo embora a iniciativa do juiz, não obsta a que o requerimento lhe seja endereçado pelas partes[2].
Termos em que se conclui que bem andou a Ex.ma Senhora Juiz ao indeferir o requerimento de prestação de depoimento de parte pelo co-Réu à matéria indicada.
IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
*
Lisboa, 20 de Novembro de 2014
(Ana de Azeredo Coelho)
(Tomé Ramião)
(Vítor Amaral)
[1] Considera-se que a presente decisão se enquadra, pela sua simplicidade e ausência de controvérsia jurisprudencial, na previsão do artigo 656.º do CPC. Na prática, excetuadas situações em que inexiste controvérsia envolvendo as partes, tal opção implica, na generalidade dos casos, maior dilação na estabilização da decisão, pelo recurso à reclamação para a conferência. Em consequência, por questões unicamente de gestão processual, opta-se pela decisão em conferência (nesse sentido, cf. Cons. Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil - novo regime”, Coimbra, 2010, p. 290, em anotação à norma correpondente do anterior regime processual).
[2] Estabelecendo a distinção entre o depoimento de parte e as declarações de parte, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de abril de 2014, proferido no processo 2022/07.1TBCSC-B.L1-2 (ONDINA CARMO ALVES) em cujo sumário se lê: «1. O Código de Processo Civil de 2013, que entrou em vigor no dia 01.09.2013, introduziu com um carácter inovador, ao lado da prova por confissão, a figura da prova por declarações de parte que, todavia, não pode ser requerida pela parte contrária, nem pode ser ordenada oficiosamente.2. Sendo o novo Código de Processo Civil imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes, por força do artigo 5º, nº 1 da Lei nº 41/2013, de 26/6, pode este novo meio de prova ser requerido durante a audiência de julgamento, no decurso da produção de prova.3. Mesmo estando em causa uma acção em que se discutem direitos indisponíveis, não pode ser rejeitado o requerimento para declarações de parte, com fundamento na sua inutilidade, por ser susceptível de levar a uma eventual confissão de factos, posto que, neste caso, tal meio de prova é ineficaz para produzir confissão, já que esta nunca poderia ser valorada com os inerentes efeitos de irretratabilidade e força probatória plena».
|