Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5736/2004-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
TRANSITÁRIO
TRANSPORTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I - O contrato de transporte marítimo é aquele pelo qual uma das partes - o carregador ou expedidor - encarrega outra - o transportador -, que a tal se obriga, de deslocar, por mar, determinada mercadoria e de entregá-la - ao destinatário -, pontualmente, mediante retribuição. Pode, pois, afirmar-se que o contrato de transporte tem, por regra, como vértices: aquele que pretende ver as coisas transportadas (expedidor ou carregador); o que se encarrega de fazer o transporte (transportador); aquele a quem as mercadorias são consignadas (destinatário).
II - Apesar de as actividades de transitário e de transportador serem diferenciadas, frequentemente aquele assume, perante interessados, os deveres próprios de transportadores. Sendo o transitário simultaneamente transportador não tem cabimento falar-se em mandato sem representação.A relação jurídica estabelecida insere-se num quadro negocial definido, que é o do contrato de transporte.
III - No contrato de transporte, o transitário/transportador vincula-se para com o expedidor nos precisos termos desse contrato. Só se configuraria um mandato sem representação se a empresa transitária se tivesse obrigado a celebrar um contrato de transporte por conta do expedidor-mandante.
(FG)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1. Relatório :
Companhia de Seguros, S.A, intentou, em 9 de Junho de 2003, no Tribunal Marítimo de Lisboa acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra E…, Lda., T…, SA, pedindo a condenação destas no pagamento da quantia de € 8.310,35 (1.666.076$00), acrescida de juros à taxa legal de 12% ao ano desde a citação até integral pagamento. Para tanto alegou que se encontra sub-rogada no direito de indemnização do seu segurado António, ao qual pagou a quantia peticionada a título de indemnização pelas avarias verificadas em bens transportados, no mês de Janeiro de 2001, pela ré T… a bordo do navio “F”, entre os portos do Funchal e de Lisboa. Mais alegou que o seu referido segurado encarregou a transitária B, Lda., de providenciar os meios necessários ao dito transporte, a qual, por seu turno, encarregou a ré E, Lda., de efectuar tal transporte, tendo sido emitido o competente conhecimento de embarque onde a transitária, agindo em nome próprio, figura como carregadora. A E, Lda., viria a encarregar a T, SA, da execução material do transporte, tendo a avaria ocorrido durante o referido transporte marítimo.
Na contestação a ré T, SA, defendeu-se por excepção, invocando a caducidade do direito de acção da autora, e por impugnação, pugnando pela sua absolvição do pedido.
A ré E, Lda., contestou, igualmente, alegando que emitiu o conhecimento de embarque, apesar de ter sido a T, SA, que efectivamente transportou a mercadoria constante do mesmo, sendo alheia às condições materiais em que o transporte foi efectuado, que desconhece, bem como os invocados danos, pelo que, a existir responsabilidade, assiste-lhe direito de regresso sobre aquela transportadora de facto, que deverá reembolsá-la de tudo o que vier a pagar.
Na resposta a autora pugnou pela improcedência da excepção peremptória da caducidade.

No saneador concluiu-se pela caducidade do direito da autora relativamente à ré T, SA, que foi absolvida do pedido. Quanto à ré E, Lda., considerou-se que, em face da matéria de facto alegada na petição inicial, o segurado da autora e, consequentemente, a própria autora apenas beneficiam de direito de acção contra a empresa transitária B para efeito de ressarcimento das avarias verificadas na mercadoria transportada, pelo que foi a mesma absolvida do pedido.

Inconformada com a absolvição da ré E, Lda., apelou a autora, sustentando na respectiva alegação as seguintes conclusões:
1ª Entre o segurado da ora apelante e a B foi celebrado um contrato de trânsito nos termos do qual aquele encarregou esta de celebrar de sua conta um contrato de transporte por mar de certas mercadorias que lhe pertenciam.
2ª Em execução desse contrato de trânsito, a B celebrou com a ora apelada E, em nome próprio mas por conta do segurado da ora apelante, tal contrato de transporte, nos termos do doc. 2 junto com a p.i.
3ª A B agiu assim, e quanto a esse contrato de transporte, como mandatário mas sem representação do segurado da ora apelante.
4ª Porque o contrato de transporte foi defeituosamente cumprido pela ora apelada, nasceu na esfera jurídica da B um crédito indemnizatório.
5ª Crédito indemnizatório que foi transmitido da B, mandatário sem representação, para o segurado da ora apelante, mandante, em cumprimento do contrato entre ambos celebrado.
6ª Ainda que se não tivesse operado tal transmissão do crédito indemnizatório da B para o segurado da ora apelante, sempre este poderia substituir-se àquela no exercício desse direito.
7ª O que tudo se transmitiu para a ora apelante por via sub-rogatória com o pagamento ao seu segurado dos danos por este sofridos por efeito do cumprimento defeituoso do contrato de transporte pela aqui apelada.
8ª De resto, nunca a B poderia ser demandada com sucesso findos dez meses da conclusão do contrato de trânsito e dentro dos dois anos do prazo de caducidade dos direitos resultantes da execução defeituosa do contrato de transporte, com o que sempre careceria de acerto e de razoabilidade a interpretação dada pelo Mmo. Juiz a quo às normas jurídicas em confronto nos presentes autos.
9ª Foram violadas as normas dos arts. 9° e 1180º e seguintes do C. Civil, 13°, 15° e 16° do Decreto-Lei n° 225/99, de 7 de Julho, e 27º , n° 2, do Decreto-Lei n° 352/86, de 21 de Outubro.
Termos em que deve ser revogado o saneador-sentença recorrido e proferido Acórdão que ordene a prossecução dos autos.

Na contra alegação pugnou a ré E, pela confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos :
Centram-se as conclusões da alegação da recorrente numa única questão fundamental e que consiste em saber se a B, Lda., agiu como mandatária sem representação do segurado da ora apelante e, consequentemente, o crédito indemnizatório se transmitiu para aquele (mandante), ficando a apelante nele sub-rogada por força do pagamento que efectuou ao mesmo.

A apelante veio a juízo demandar as apeladas enquanto seguradora e sub-rogada nos direitos do lesado (segurado), que indemnizou, fundados no cumprimento defeituoso pelas rés de um contrato de transporte marítimo de mercadorias.
Trata-se de sub-rogação legal fundada no disposto no artigo 441º do Código Comercial.
Através da sub-rogação, legal ou voluntária, o terceiro que cumpre a obrigação (sub-rogado) adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam, incluindo as suas garantias e outros acessórios, que não sejam inseparáveis da pessoa do primitivo credor (sub-rogante) (artigos 593º nº 1, 594º e 582º do Código Civil).
Considerou-se na sentença recorrida que a falta de fundamento jurídico da pretensão da autora, ora apelante, decorre da factualidade alegada na petição inicial, porquanto esta evidencia que a empresa transitária B actuou em nome próprio e não em representação do segurado do autor, tendo o contrato de transporte de mercadorias por mar titulado pelo conhecimento de embarque junto aos autos contado com a intervenção negocial exclusiva daquela empresa e da ré E, Lda., sem que o segurado da autora tivesse assumido qualquer relação contratual com esta transportadora ou mesmo com a subtransportadora T, SA, relativamente ao transporte marítimo da mercadoria dos autos, pelo que não se constituiu qualquer direito de indemnização na esfera jurídica do segurado da autora contra estas duas transportadoras susceptível de ser transmitido para a mesma pelo instituto da sub-rogação.
Na tese da autora, ora apelante, resulta da matéria de facto por si alegada que entre o seu segurado e a B foi celebrado um simples contrato de expedição ou de trânsito, pelo que esta actuou junto da ré E, Lda, como mandatário sem representação, o que conferia ao segurado da autora o direito de demandar esta transportadora pelos prejuízos sofridos, direito que se transmitiu para a autora por via da sub-rogação.
Embora não esteja legalmente definido, pode entender-se o contrato de transporte marítimo como aquele pelo qual uma das partes - o carregador ou expedidor - encarrega outra - o transportador -, que a tal se obriga, de deslocar, por mar, determinada mercadoria e de entregá-la - ao destinatário -, pontualmente, mediante retribuição.(1) Pode, pois, afirmar-se que o contrato de transporte tem, por regra, como vértices: aquele que pretende ver as coisas transportadas (expedidor ou carregador); o que se encarrega de fazer o transporte (transportador); aquele a quem as mercadorias são consignadas (destinatário).
A figura do transportador distingue-se da figura do transitário, como o evidenciava o DL nº 43/83, de 25 de Janeiro, que consagrava o “estatuto de agente transitário”, ao dispor no artigo 1º que “são consideradas empresas transitárias as sociedades comerciais que, tendo por objecto a prestação de serviços a terceiros, no âmbito da planificação, controle, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens ou mercadorias, obedeçam aos requisitos estabelecidos no presente diploma e nas disposições regulamentares.”
Na mesma linha o DL nº 255/99, de 7 de Julho, que revogou o DL nº 43/83, determina no artigo 1º nº 2 que “A actividade transitária consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias ...”.
Os transitários são, assim e em princípio, auxiliares que funcionam como intermediários de transportes.
Apesar de as actividades de transitário e de transportador serem diferenciadas, frequentemente aquele assume, perante interessados, os deveres próprios de transportadores. Com efeito, é pacífico o entendimento, na doutrina e na jurisprudência, de que nada obsta a que as chamadas empresas transitárias celebrem e executem contratos de transporte, executando-os directamente ou com recurso a terceiros (2).
É o que resulta do disposto no artigo 367º do Código Comercial e no artigo 13º nºs 1 e 2 do DL nº 255/99, de 7 de Julho. Com efeito, decorre expressamente deste último preceito que as empresas transitárias podem celebrar contratos com terceiros em nome próprio, por conta do expedidor ou do dono da mercadoria, estabelecendo o artigo 15º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Responsabilidade das empresas transitárias”, que estas respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso (nº 1).
No caso vertente, alegou a autora na petição inicial que o seu segurado encarregou o transitário B de providenciar os meios necessários ao transporte de diversos bens, tendo esta encarregue a ré E, Lda, de efectuar tal transporte, como resulta do conhecimento de embarque nº 3 COUV emitido por esta em 9 de Janeiro de 2001, a qual, por sua vez, encarregou a ré T, SA, de executar materialmente todas as operações de transporte.
O contrato de transporte marítimo tem a documentá-lo o conhecimento de carga, documento emitido pelo transportador e entregue ao carregador ou expedidor, mais conhecido pela designação anglo-saxónica bill of landing, o qual reveste, entre outras, a função de recibo de entrega das mercadorias ao transportador, bem como do respectivo embarque.
E do conhecimento de embarque referido pela autora, cuja cópia se encontra junta a fls. 6, resulta que nele figura como carregador B, Lda, como transportador a ré E, Lda, e como recebedor Bs, Lda.
De todo omissa na petição inicial a referência à intermediação que caracteriza a actividade transitária, dela emerge, antes e ao contrário, que o segurado da autora encarregou o transitário B de providenciar os meios necessários ao transporte dos bens, ou seja, efectuar o transporte da mercadoria em questão, outorgando em seu próprio nome no contrato que firmou com a ré E, Lda, e não em representação do segurado da ré.
Este é, em face do articulado inicial, alheio ao referido contrato de transporte de mercadorias por mar titulado pelo aludido conhecimento de embarque, nenhum vínculo contratual tendo estabelecido com esta ré. Na verdade, tal como a autora desenhou a acção na petição inicial, a ré E, Lda, apresenta-se na veste de um terceiro a que o transitário B – transportador – recorreu para cumprir as obrigações emergentes do contrato que celebrou com o segurado da autora.
À luz da petição inicial e do conhecimento de embarque junto com a mesma foi o transitário B que assumiu, como transportador, perante o segurado da autora a obrigação de proceder à deslocação dos bens, bem como de os entregar ao destinatário nos termos convencionados, pelo que só este responde perante o segurado da autora e, consequentemente, perante esta, por via do instituto da sub-rogação, pelos danos eventualmente causados nos bens durante o transporte marítimo realizado.
Efectivamente, sendo o transitário simultaneamente transportador não tem cabimento falar-se em mandato sem representação. A relação jurídica estabelecida insere-se num quadro negocial definido, que é o do contrato de transporte. E é neste âmbito que têm de regular-se os direitos e os deveres dos contraentes, não sendo o caso susceptível de reconduzir-se à figura do mandato sem representação regulado nos artigos 1180º a 1184º do Código Civil.
A representação indirecta ou mandato sem representação tem inerente a interposição do mandatário e só numa fase ulterior, em cumprimento da relação de mandato, o mandante tem o direito de exigir do mandatário (e não do outro interveniente no contrato) a transmissão dos direitos e obrigações que advieram deste, assumindo nessa altura toda a posição do contraente.
No contrato de transporte não há essa interposição, vinculando-se o transitário/ transportador para com o expedidor nos precisos termos desse contrato. Só se configuraria um mandato sem representação se da alegação da autora resultasse que a empresa transitária B se havia obrigado a celebrar um contrato de transporte por conta do expedidor-mandante, ou seja, do segurado da autora.
Donde decorre que este não podia demandar a ré E, Lda, com vista ao ressarcimento dos eventuais danos sofridos nos bens transportados por via marítima, apenas podendo fazê-lo relativamente à B, uma vez que esta actuou na veste de transportadora e não na de transitário, caso em que não impenderia sobre a mesma qualquer responsabilidade pelo incumprimento defeituoso do contrato de transporte.
Logo, não pode reconhecer-se à autora, à luz da alegação contida na petição inicial, o direito que se arrogou por dela não constar a factualidade integradora da invocada sub-rogação no direito (inexistente) do seu segurado relativamente à ré, ora apelada.
E não impressiona o argumento contido na conclusão 8ª da alegação da autora, uma vez que ali se confunde o prazo de prescrição (10 meses) do direito de indemnização resultante da responsabilidade do transitário estabelecido no artigo 16º do DL nº 255/99, com o prazo de prescrição mais alargado fixado na lei para o direito de indemnização resultante da responsabilidade do transportador. Efectivamente, será aplicável um ou o outro prazo consoante o transitário tenha actuado como transitário ou como transportador.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação da apelante.

3. Decisão:
Termos em que acordam os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
17 de Fevereiro de 2005
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)