Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1805/10.0YXLSB.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: SEGURANÇA SOCIAL
UNIÃO DE FACTO
PENSÃO POR MORTE
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I - A L 23/2010 de 30/8 modificou as condições para se aceder ao reconhecimento do direito às prestações por morte do outro membro da união, ampliando a protecção jurídica da união de facto, equiparando-a, para o efeito em questão, à conjugalidade legalmente instituída.
II- Nem por isso, porém, essa circunstância permite a sua aplicação retroactiva.
III -Por um lado, porque não é aceitável que se lhe atribua carácter interpretativo, pois, nem a mesma o declara expressamente, nem os interessados (os membros das uniões de facto com mais de dois anos e a segurança social), podiam contar com a solução que veio nela a ser consagrada.
IV- Por outro, porque, deverá concluir-se que a lei nova – L 23/2011 - contém uma norma de direito transitório sectorial, correspondendo a mesma à do art 15º do DL 322/90 de 18/10, diploma que não foi objecto de quaisquer alterações pela L 23/2011.
V- Dessa norma resulta que quando esteja em causa atribuir prestações por morte no âmbito do regime geral da segurança social, não apenas ao ex-cônjuge, mas também ao sobrevivo de união de facto – aqui por remissão do art 3º al e) da L 7/2001 de 11/5, depois de alterada pela L 23/2011 - se haverá de recorrer, para se determinarem as respectivas condições, ao regime legal em vigor no momento da morte do beneficiário, e portanto exclui a aplicação retroactiva do art 6º da L 23/2011.
VI -De todo o modo, qualificada a norma do art 6º da L 23/2011 à luz das diferentes categorias admitidas no art 12º/2 CC, não seria possível concluir que o preceito em causa «dispõe directamente sobre o conteúdo da relação jurídica» que advém da união de facto protegida, pois que, por definição, tal relação se extinguiu pelo facto morte, antes estando claramente em questão a regulamentação de um dos efeitos da união de facto protegida - a protecção social por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social, como decorre do nº 1 do seu art 6º e da sua remissão para a al e) do seu art 3º.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I- “A”, em 2/8/2010, propôs a presente acção declarativa, com processo sumário, contra o Instituto da Segurança Social IP, Centro Nacional de pensões, pedindo que seja reconhecida a sua união de facto com “B”, bem como o direito a receber as prestações por morte deste, invocando que o falecido, embora pertencendo ao regime não contributivo, era beneficiário da segurança social.
Alegou ser casada, embora se encontre separada de facto, e que viveu maritalmente com o falecido “B” desde 1965 até à sua morte, sendo certo que não dispõe de meios económicos,  que não lhe foi possível obter alimentos por parte das pessoas a que se refere o art 2009º CC, e tão pouco o falecido deixou qualquer herança.
O R. contestou referindo que a acção deve correr termos com processo ordinário e que sendo a A. casada, não está preenchido o condicionalismo do nº 2, al c) da Lei 7/2001, afirmando desconhecer se a factualidade alegada corresponde à verdade.
A A. respondeu à contestação, referindo que a exigência sobre o estado civil, para efeitos do reconhecimento do direito às prestações por morte, recai somente sobre o “de cuius”, consoante resulta do art 2º do Decreto Regulamentar nº 1/94 de 18/1.

A fls. 60 foi decidido alterar-se o valor da acção e a forma do processo, que passou a ser a ordinária.

Dispensada a realização de audiência preliminar, elaborou-se despacho saneador no qual foi apreciada a excepção com que o R. se defendeu referente ao estado civil da A., decidindo-se que a exigência do art 7º/2 al c) da Lei 7/2001 de 11/5 respeita ao falecido e não ao membro sobrevivo, sendo, de seguida, seleccionada a matéria de facto.
O Exmo Juiz a quo procedeu a essa selecção tendo em consideração que iria julgar a acção em função da aplicação à situação dos autos do disposto na L 23/2010 de 30/8.

Realizado o julgamento, veio a ser proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando reconhecida à A., a qualidade de titular das prestações por morte no âmbito dos regimes da segurança social – por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto – relativas ao falecido “B”, a serem processadas pelo R.

II – Do assim decidido, apelou o R., que concluiu as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 – Pela sentença ora recorrida, que correu termos na 9ª Vara – 2ª Secção. Processo n.° 1805/10.OYXLSB, o ora recorrente foi condenado a reconhecer à A. o direito às prestações por morte de “B”, beneficiário n.° ..., para efeitos do disposto no art 6° da Lei n° 7/2001 de 11 de Maio, do Dec. Regulamentar 1/94, de 18/01 e Dec. Lei 322/90, de 18/10.
2- Porém, não se podendo com ela conformar, o ora Recorrente veio interpor recurso de Apelação para a Relação de Lisboa, nos termos do art. 691º do CPC.
3 – Com efeito, o "ponto da discórdia" do ora R. reside na, salvo o devido respeito, errónea aplicação da Lei (aplicação da Lei no tempo – Lei 23/2010 de 30/08) e, consequentemente, na prolação da sentença como procedente.
4 - O Mmo Juiz "a quo" proferiu Sentença nos seguintes termos: "As alterações da Lei 23/2010 de 30 de Agosto são o culminar de todo este processo evolutivo em termos sociais culturais e jurídicos.
5- Pois com esta base e com este enquadramento, que se encarará e abordará o litígio espelhado nos presentes autos. (… )Sucede que, todos estes normativos foram alterados pela Lei 23/2010, de 30/08, que lhes deu nova redacção, alterando substancialmente o seu regime. (… ) A entrada em vigor da Lei 23/2010 de 30/08, tem colocado alguns problemas de aplicação da lei no tempo, podendo colocar-se em causa – como faz a Ré – que a nova Lei tenha imediata aplicação à situação dos presentes autos. Cremos, todavia, que sem razão. De facto e como temos vindo a decidir desde Setembro de 2010, o art 12/2 2ª parte do CC, impõe outra conclusão. Repare-se que a Lei 23/2010, de 30/08, regula a união de facto e o direito do membro sobrevivo a exigir alimentos, sem referência ao facto que lhe dá origem (que se mantém, por natureza, à data da sua entrada em vigor): a lei é nova, altera o conteúdo do direito a exigir os alimentos, mas abstrai por completo do facto que lhe dá origem (a morte do membro da união de facto). A Lei que vigorava à data da morte era, de facto, distinta. (...).Postas estas considerações, só temos de aplicar a nova Lei e constatar a presença de todos os requisitos para a procedência deste tipo de acção, tal qual ela veio configurada. (.. Decisão- Com o poder fundado no art 202°/1 e 2, da CRP, decide-se nesta 9ª Vara Cível de Lisboa, em face da argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas julga-se a presente acção procedente e, em consequência. declara-se reconhecida à autora, a qualidade de titular das prestações por morte no âmbito dos regimes da segurança social – por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto – relativas ao falecido “B”. a serem processadas pelo R.»
5 – Está aqui em causa o problema da sucessão de Leis no tempo, que, o Mmo. Juiz "a quo", salvo o devido respeito, erroneamente aplicou de imediato (Lei 23/2010), quando assim o não o deve ser.
 6 - Sobre esta matéria dispõe o art. 12° do CC que ora transcrevemos:"1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.       
7 - O princípio geral é, portanto, o de que a lei só dispõe para o futuro (n° 1 1ª parte – Princípio da irrectroactivìdade), embora o legislador lhe possa atribuir expressamente eficácia retroactiva (n° 1 2ª parte).
8 - No caso da Lei 23/2010, o legislador apenas se pronunciou expressamente quanto à produção de efeitos de algumas normas (as que tiverem repercussão orçamental) nada dizendo quanto à retroactividade da lei.
9 - Subsiste assim a dúvida: será que a lei apenas produz efeitos para o futuro ou terá também eficácia retroactiva?
10 - Para resolver esta questão fundamental temos que lançar mão do n° 2 do art 12° o qual encerra duas previsões e, consequentemente, duas estatuições:
11 - Por um lado, refere que quando a lei dispõe sobre quaisquer factos ou sobre os seus efeitos (previsão) só se aplica aos factos novos (estatuição) – n° 2, 1ª parte. Ou seja, quando a lei dispõe sobre determinados efeitos em função dos factos que lhes deram origem, entende-se que só visa os factos novos.
12 - Por outro lado, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas abstraindo dos factos que lhe deram origem (previsão), entende-se que a lei se aplica às próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (estatuição) – n° 2, 2ª parte.
13 - Ora, analisando a Lei 7/2001, na redacção que lhe foi dada pela Lei 23/2010, à luz desta interpretação, resulta que a sua aplicação no tempo se fará da seguinte forma: Art. 6° n° 1: Só beneficiarão dos direitos previstos nas alíneas e), f) e q) do art 3°, independentemente da necessidade de alimentos, os membros sobrevivos de união de facto cujo óbito do beneficiário tenha ocorrido após a entrada em vigor da Lei 23/2010, nos termos do disposto no n° 2, 1ª parte, do art. 12° do CC, e nesta medida não tem eficácia retroactiva; Art. 2°-A: Quanto à prova da união de facto, porque a lei dispõe sobre o conteúdo de uma relação jurídica determinada, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entende-se que se aplica às situações (uniões de facto) já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor, nos termos do n° 2, 2ª parte, do art. 12° do CC, e nesta medida tem eficácia retroactiva.
14 - Ainda relativamente ao art. 6°, n° 1, reforçando a tese que defendemos da sua não retroactividade, não há qualquer dúvida, para nós, de que a lei dispõe sobre os efeitos (os direitos previstos nas al. e). f) e g) do art. 3°) em função dos factos que lhes deram origem (óbitos de beneficiários unidos de facto). Pelo que, só pode visar os factos novos, ou seja, os óbitos ocorridos após a sua entrada em vigor.
15 - Aliás, o próprio elemento literal do n° 2, 2ª parte do art. 12° apoia esta nossa posição quando refere "...a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor", sublinhado nosso.
16 - Ora, sabendo-se que um dos factores de dissolução da união de facto é a morte de um dos membros, os outros são a vontade de um dos membros e o casamento de um dos membros – art. 8°, n° 1 da Lei 7/2001, não pode aplicar-se o regime previsto no art. 6°, n° 1 a uma relação que já estava extinta, e portanto não subsistia, à data da sua entrada em vigor.
17 - Defender posição contrária, atribuir retroactividade a esta norma, seria violar quer o espírito quer a letra do art.12° n° 2, 2ª parte.
18 - Ademais, não olvidemos uma disposição normativa importante, o art.° 15° do Dec. Lei 322/90 – diploma que define e regulamenta a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social – dispõe que as condições de atribuição das prestações são definidas à data da morte do beneficiário – no caso, o Sr. “B” faleceu em 19/02/2010. Nessa data os art° 6.° n.° 1 da Lei 7/2001, de 11/05, art.° 8.° do Dec. Lei n.° 322/90 e 2020º do CC, tinham as redacções acima indicadas, as quais foram alteradas pela Lei 23/2010, de 30/08. Este diploma introduziu alterações profundas, mas como por força do estabelecido no art° 15.° do DL 322/90, de 18/10, os requisitos para a atribuição da pensão são os exigidos em 19/02/2010, data do falecimento do beneficiário, alegado companheiro da A., ou seja, não é aplicável a Lei 23/2010, pelo que é destituído de sentido a prolação da sentença ora posta em crise.
19 - Tecidas estas considerações, no caso vertente, é de aplicar o quadro normativo pretérito, ou seja, com a redacção anterior à Lei 23/2010, de 30/08, não podendo a presente acção culminar nos termos em que culminou, porquanto in casu devia ter a Autora/ora recorrida alegado e provado todos os requisitos exigidos à luz da Lei vigente à data da morte do alegado companheiro, o que não aconteceu (Com efeito, não logrou a autora provar a impossibilidade de obtenção de alimentos dos seus irmãos, dos filhos, a necessidade de alimentos, nem a impossibilidade de os obter da herança por esta ser inexistente ou insuficiente). A este propósito vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. 141/06, de 21/02/2011, Ac. do STJ, Proc. 7116/06, de 24/0212011; Ac. do Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.° 11087/08, de 03102/2011; Trib Rel Porto, Proc. 10027/09, de 17/03/2011; Ac. da Relação de Lisboa, Proc. 5993/08, de 14/12/2010, Ac. T Relação de Évora, Proc. 53/10, de 22/02/2011 e Proc. 709/09, de 26/04/2011; Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. n.° 1523/08, de 28/06/2011, entre outros, todos disponíveis em www. dgsi.pt
.20 - No quadro normativo pretérito aplicável ao caso sub judice, se inicialmente existia divergência na jurisprudência em relação aos requisitos essenciais a provar nestas acções intentadas contra a Segurança Social, tornou-se entretanto pacífica a orientação jurisprudencial que se vinha impondo, nomeadamente, aquela que resulta do Plenário do Tribunal Constitucional, que proferiu o Acórdão n° 614/2005, de 09/11/2005, no qual, maioritariamente, entendeu ser de manter a orientação seguida no Acórdão n° 159/2005, de 29/05, bem como dos Acórdãos n° 195/2003, de 09/04 e n° 233/2005, de 05/04, ou seja, não considerar, discriminatório ou desproporcional exigir à companheira sobreviva, para além da convivência em condições análogas à dos cônjuges por mais de dois anos, o reconhecimento judicial do direito a receber alimentos, nos moldes previstos pelo art° 2020° do Civil, por remissão efectuada para aludidos artigo 8° do DL n° 322/90 de 28/10 e artigo 3° do Dec. Regulamentar n° 1/94 de 18/01.
21 – Está assim, a sentença ora em crise em manifesta contradição com o que vem decidido num douto Aresto do Tribunal da Relação do Porto de 01.02.2011 (proferido no Proc. n° 11087/08.8TBVNG.P1. 2ª Secção), no qual se diz que "as condições de atribuição das prestações são definidas à data da morte do beneficiário" e mais adiante acrescenta "os requisitos para a atribuição da requerida pensão são os exigidos em 7/4/2008, data do falecimento ... a nova legislação não é aplicável, permanecendo o decidido na sentença recorrida".
22 - E já antes, um outro douto Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.12.2010 (proferido no Proc. n° 1404/08.6TBSCR.L1. 1ª Secção) dizia sobre a aplicação da nova LUF (alterações propostas pela Lei n° 23/2010, de 30/08), que "Mas tendo em consideração o disposto no art. 12° do Código Civil, continua a aplicar-se aos presentes autos a lei que vigorava à data da morte de ... pois a lei só dispõe para o futuro e não foi atribuída eficácia retroactiva às referidas alterações legislativas", e mais dizia "não estava a autora, ora apelada, dispensada de alegar e provar a necessidade de alimentos".
24 - Com efeito, para a Segurança Social, o facto morte, é essencial e determinante para atribuir prestações, para a decorrência de prazo da prescrição do direito ao recebimento de prestações, para determinação dos habilitandos a essas mesmas prestações, enfim, o facto morte pode envolver todo um conjunto de circunstâncias que podem implicar ou não atribuir e pagar prestações.
25 - Podemos quase afirmar que em todo este universo, o facto morte, determina praticamente quase tudo, sendo a partir dele que todo um serviço administrativo complexo se organizou e que tem vindo ao longo dos anos a responder aos inúmeros pedidos solicitados de todos os pontos do País.
26 – Ora, insistimos, sabendo nós que um dos factores de dissolução da união de facto é a morte de um dos membros, os outros são, a vontade de um dos membros da união de facto e o casamento de um dos membros – artigo 8° n°1 da Lei n° 7/2001, não podemos, em bom rigor, aplicar o regime previsto no artigo 6°, n°1, a uma relação que já estava extinta e portanto não subsistia, à data da sua entrada em vigor.
27 - Argumentar e tentar defender solução contrária ao proposto, seria, na nossa modesta opinião, tentar atribuir eficácia retroactiva a esta norma, violando-se, assim, quer o espírito, quer a letra do artigo 12. n° 2. 2ª parte do C. Civil.
28 - Por fim, falta referir que, como resulta do disposto no art° 342° n° 1 do C. Civil, “aquele que invoca um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
29 - Pelo que, insistimos, cabia à Autora alegar e provar os requisitos exigidos pela Lei pretérita: a) que o de cujus" era pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens; b) factos demonstrativos ou integrados do conceito união de facto há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges (art° 2020° C. Civil); c) factos demonstrativos da inexistência ou insuficiência de bens da herança (n° 2 do art° 3° do Dec. Reg. N° 1/94); d) factos demonstrativos de não obter alimentos nos termos das alíneas a) a d) do art° 2009° C. Civil; e) factos demonstrativos da necessidade de alimentos e da impossibilidade de ele próprio prover à sua subsistência.
30 – Donde, mal decidiu o Tribunal a quo ao concluir da forma como o fez, aplicando a nova LIJF à situação jurídica em análise, e, nessa sequência, reconheceu à autora/recorrida a titularidade do direito às prestações por morte de “B”, pelo que foram violadas as normas constantes no art° 8° do DL n° 322/90 de 18/10, art° 2° e 3° do Dec. Reg. N° 1/94 de 18/01 art°s 1° e 6° da Lei n° 7/2001, de 11/05, art° 2009° do C. Civil.
31 – Não obstante a discordância do ora Recorrente quanto à aplicação imediata da nova LUF (Lei 23/2010) acresce frisar que, ainda que a Autora lograsse provar todos os requisitos enunciados sempre a presente acção soçobraria, porquanto, insiste-se, sendo a autora casada, não está preenchido o condicionalismo previsto na alínea c) do art.° 2° da Lei 7/2001, de 11/05, sendo irrelevante a separação de facto. Neste sentido. vd Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. 9557/05, 6.ª Secção. de 17/09/2010 que se junta como Doc. 1, no seguimento dos Arestos do STJ. Proc. 2003/07. de 26/06/2007 e Rev. 3880/08 de 03/02/2009. disponíveis em www dgsi pt). Com efeito. dois dos requisitos para o reconhecimento da qualidade de titular das prestações por morte são justamente "que o requerente da pensão vivia com o falecido há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges" e o "estado civil de não casado" ou, sendo-o, se encontrar separado judicialmente de pessoas e bens". (Ac. do STJ. 6ª secção. Proc. 9557/05. que se junta como Doc. 1, no seguimento dos Arestos do STJ. Proc. 2003/07. de 26/06/2C07 e Rev. 3880/08 de 03/02/2009).
A A apresentou contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – O tribunal de 1ª instância, julgou como provados os seguintes factos:
1 - “B”, com 70 anos, faleceu a 19 de Fevereiro de 2010, no estado civil de solteiro (A e documentos de fls. 17 e 20).
2 - “C” nasceu a 17 de ... de 1968, filho de “B” e “A” (B e documento de fls. 15).
3- “D” nasceu a 01 de ... de 1966, filho de “B” e “A” (C e documento de fls. 14).
4- “E” nasceu a 31 de ... de 1965, filho de “B” e “A” (D e documento de fls. 13).
5-”B” era beneficiário da Segurança Social nº ... (E).
6- “A” aufere do Réu uma pensão de velhice no montante de € 335,60 (F).
7- A Autora viveu com o falecido “B” desde 1965, até à sua morte, na mesma morada (1º).
8- E fê-lo como se marido e mulher fossem, em comunhão de cama, mesa e habitação (2º).
9- E fizeram sempre a sua vivência diária em comum. (3º).
10 - “A” nasceu a .../.../1940 e casou em .../.../1964 com “F” (documentos de fls. 82 e 84).

IV - Das conclusões das alegações resultam para apreciação duas questões:
- Em primeiro lugar, saber se à situação dos autos, ao contrário do entendimento perfilhado na decisão recorrida, não deverá aplicar-se (retroactivamente) a Lei 23/2010 de 30/8, mas antes a Lei 7/2001 de 11/5 (na redacção anterior à daquela Lei 23/2010), por ser a vigente à data do óbito do falecido;
- Em segundo lugar – e quando se conclua no sentido da não aplicação retroactiva da Lei 23/2010 – saber se a prossecução da acção para apurar da necessidade de alimentos da A. e da não possibilidade de os poder obter das pessoas a que se refere o art 2020º CC, sempre seria inútil na medida em que não se mostra preenchido o condicionalismo da al c) do art 2º da L 7/2001 de 11/5, sendo irrelevante para esse preceito que a A. se encontre separada de facto.

1 - Iniciar-se-á à análise das referidas questões por esta segunda, visto que a mesma – e independentemente do mérito das considerações da apelante a seu respeito que, aliás, se subscrevem [1] - tem de ser tida como liminarmente improcedente.
Pela simples razão, mas inultrapassável, de ter sido apreciada no despacho saneador em sentido desfavorável ao entendimento da ora apelante, sem que esta, não obstante, dela tenha interposto recurso.
Com efeito, disse-se no despacho saneador a respeito da excepção arguida pelo R, ora apelante:
«Excepciona o R. com a circunstância de a A. se afirmar como casada, donde decorreria que, à face do art 2º c) da L 7/2001 de 11/5, estaria impedida de obter o efeito pretendido com a presente acção.
 Sobre a matéria veio a A. referir que a exigência sobre o estado civil recai apenas sobre o de cuius.
 Tem razão a A.
 A exigência de não se ser casado, ou de, sendo-o, se estar separado judicialmente de pessoas e bens, está na lei feita para o beneficiário falecido e não para o membro sobrevivo, o que decorre da conjugação do art 2º al c) da citada Lei 7/2001 com o art 2º do Decreto Regulamentar nº 1/94 de 18/1 nada obstando portanto ao prosseguimento da presente acção».

De acordo com o art 691º/2 al h) CPC, na redacção que a esse preceito foi dada pelo DL 303/2007 de 24/8, aplicável aos presentes autos, «cabe recurso de apelação do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa».
Trata-se de um dos despachos que, enumerado como foi no nº 2 do art 691º, o legislador da Reforma admitiu como impugnável por apelação autónoma, ao contrário do que acontece nos casos residuais não elencados nesse nº 2 que são abrangidos pelo nº 3. 
Dizem a respeito desta alínea do nº 2 do art 691º Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes [2] :«(…) O despacho saneador que contenha uma decisão de mérito, sem pôr termo ao processo, é impugnável por apelação, que segue, quanto ao prazo de interposição do recurso, o regime das decisões finais( nº 5)». E noutro passo: «Também as decisões de mérito contidas no despacho saneador que não põe termo ao processo (decisão sobre parte do pedido ou decisão de improcedência duma excepção peremptória: art 510º/1 al b) são recorríveis, nos mesmos prazos do recurso das decisões finais (nº 2 –h) e nº 5 a contrario).

Estando em causa decisão no despacho saneador referente à improcedência de uma excepção peremptória, para que tal decisão não transitasse, teria sido necessário que o R, ora apelante, dela tivesse recorrido, para o que dispunha do prazo de 30 dias.
Não o tendo feito então, não pode agora atacar o caso julgado material que se formou, estando impedida a reapreciação da questão em apreço.

2- Afastada a referida questão, mais relevo assume a primeira, que é a de saber se, não obstante à data do óbito de “B” vigorar a L 7/2001 de 11/5 na sua redacção original, se haverá de apreciar o pedido formulado na acção - de reconhecimento judicial, em termos de simples apreciação positiva, da qualidade da A. de titular do direito às prestações do regime da segurança social, em função de à data daquele óbito se mostrar a viver em união de facto com o falecido há mais de dois anos-  – à luz da L 23/2010 de 30/8, tendo-a como aplicável.

Questão que se coloca, como é evidente, na medida em que esta Lei modificou as condições que a anterior, vigente ao tempo daquele óbito, estabelecia, para se aceder ao reconhecimento do direito às prestações por morte do outro membro da união, deixando, por um lado, de exigir a necessidade de alimentos por parte do convivente de facto sobrevivo e a impossibilidade do mesmo os obter dos familiares referidos no art 2020º CC ou da herança do falecido, e por outro, a instauração de acção para lhe ver reconhecido o direito àquelas prestações, fazendo recair o ónus da instauração judicial da acção sobre a entidade responsável pelo pagamento quando existam fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto.

Menores exigências estas que, como é óbvio, ampliaram a protecção jurídica da união de facto, equiparando-a, para o efeito em questão, «à conjugalidade legalmente instituída» [3].

É justamente esta conclusão – indiscutível – do maior favor para o convivente sobrevivo da união de facto na obtenção no reconhecimento da qualidade de titular de direito às prestações do regime da segurança social, e da equiparação a que conduz desse unido, no aspecto em apreço, ao “estatuto” do ex-cônjuge, que parece conduzir ao entendimento de alguma jurisprudência - em que se insere a decisão recorrida – da aplicação retroactiva da  Lei 23/2010 de 30/8, sustentando-se serem de aplicar estas menores exigências às uniões de facto em que o decesso do beneficiário da segurança social seja anterior à entrada em vigor desta lei.

Veja-se, entre outros, o Ac STJ 16/6/2011 [4], onde se diz: «Na verdade, se a lei veio permitir – um regime mais favorável, note-se – a obtenção da pensão de sobrevivência – um direito social – ao unido sobrevivo em novos moldes (não fazendo depender a sua aplicação da data da morte do beneficiário, insiste-se) parece-nos, salvo o devido respeito, sem suporte legal, o entendimento que só se aplica o novo regime nocaso do decesso ser posterior à entrada em vigor da nova lei. Importa considerar que o que está em causa é um direito social reconhecido ao unido sobrevivo, a todo o unido sobrevivo que reúna os requisitos do regime da união de facto e que ainda não tenha obtido a pensão de sobrevivência», e um pouco mais adiante, agora já não em função do princípio da equidade social, mas do disposto no art 12º/2, 2ª parte CC: «Na verdade, a lei ao suprimir requisitos (antes exigidos) para a obtenção da pensão de sobrevivência pelo unido sobrevivo, alterou o conteúdo da situação jurídica, abstraindo do facto que lhe deu origem (a dissolução por morte de uma união de facto), e tal situação subsiste enquanto nada for decidido sobre a referida pensão».
Ou o Ac STJ 6/7/2011 [5]: «Até também porque – é preciso acentua-lo - este é um direito de natureza social, a caminho de uma situação de igualdade, de equidade e de universalidade que tem vindo a aproximar as situações de facto ao casamento. E quando se trata de reposição da justiça social as leis devem ser de aplicação …. imediata».

O entendimento deste tribunal não é, porém, o da aplicação retractiva da nova lei a situações como a dos autos.
Sendo vários os motivos para assim se entender, como se passa a explanar.

Em primeiro lugar, há que afastar a perspectiva de que a lei nova em referência é uma lei interpretativa, e que, como tal, nos termos do art 13º/1 CC (norma de direito transitório geral), integrando-se na lei interpretada, seria de aplicação imediata, não sendo de aplicar o princípio da não retroactividade consignado no art 12º/1.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela [6], lei interpretativa é aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprio meios, poderia ter chegado [7].
Como resulta das considerações a esse respeito de Baptista Machado [8], para que a lei nova possa ser tida como interpretativa, é necessário, por um lado, que a solução do direito anterior seja controvertida, ou pelo menos incerta, e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei.
«Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então ela é decididamente inovadora».
Esclarece Baptista Machado que «a razão pela qual a lei interpretativa se aplica  a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas».

O ponto de vista de que a «alteração da norma do art 6º/1 da L 7/2001 pela L 23/2010 de 30/8, sobre os pressupostos constitutivos do direito (bastando agora a comprovação da união de facto “independentemente da necessidade de alimentos”) tem natureza interpretativa» [9], tem, no entanto, adeptos na jurisprudência.

Mas, salvo o devido respeito, não parece sustentável.
Com efeito, tanto quanto se sabe, à data da entrada em vigor da Lei 23/2011 constituía jurisprudência pacífica a de que «a norma constante do art 2020º/1 do CC, na referência que lhe é feita pelo art 6º/1 da L 7/2001 de 11/5, não deve ser interpretada restritivamente, no sentido que ao requerente apenas cumpre provar que vivia em união de facto com o beneficiário da segurança social» [10] .

Efectivamente, o entendimento de que a previsão da norma constante do nº 1 do art 2020º do CC, na referência que lhe é feita pelo art 6º/1 da L 7/2001 (na redacção anterior à da L 23/2011), deve ser interpretada restritivamente, reportando-se apenas e tão só aos requisitos da união de facto – sob pena da violação do princípio constitucional da proporcionalidade - resultou essencialmente do Ac. Tribunal Constitucional nº 88/2004 [11].
 Tendo tal entendimento tido, naturalmente, reflexo nalguma jurisprudência [12], o mesmo, tanto quanto se sabe, mostrava-se, à data da entrada em vigor da L 23/2011 completamente abandonado, na sequência do voto de vencido aposto nesse mesmo acórdão pela Exma Cons. Maria dos Prazeres Beleza, que a mesma veio explicitar, em subsequente acórdão que relatou no Tribunal Constitucional – nº 233/05 – tornando-se comum, após tal acórdão, referir nesse tribunal [13], citando-se Rita Lobo Xavier  [14]«não se poder deixar de reconhecer que uma união de facto não implica forçosamente a diminuição da capacidade económica  que é pressuposto da atribuição da pensão. Pelo contrário, no caso do cônjuge sobrevivo esta diminuição é pressuposta». [15] «Apenas ao cônjuge não são exigidas condições adicionais, pois os cônjuges estão ligados por específicos deveres de solidariedade patrimonial – o dever de assistência e na constância do casamento, o dever de contribuir para os encargos da vida familiar (…). Diversamente a união de facto não implica forçosamente, por opção das partes, deveres patrimoniais, ou uma geral solidariedade patrimonial, admitindo-se mesmo que quem vive em união de facto continue a ter direito a alimentos do ex-cônjuge, ou até mantenha uma pensão de sobrevivência».

Por assim ser, constituía jurisprudência pacífica, à data referida, serem pressupostos do direito à pensão de sobrevivência no âmbito das uniões de facto, a convivência em condições análogas às dos cônjuges do titular do direito à pensão com o beneficiário da segurança social, mais de dois anos antes do decesso, não ser o beneficiário casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, carecer o companheiro sobrevivo de alimentos, não ser possível obtê-los da herança, nem do seu cônjuge, ex-cônjuge, descendentes, ascendentes ou irmãos, cabendo ao requerente o ónus da alegação e prova da totalidade desses requisitos, na medida em que todos eles são constitutivos do pretendido direito (cfr art 342º/1 CC), sendo indiferente que os mesmos constituam factos positivos ou negativos [16],  e isto independentemente de tais factos serem passíveis de admitir diferentes graus de exigência ao nível da respectiva prova.

            Do acima referido, não pode deixar de se concluir não ter tido expressão suficiente para constituir uma corrente jurisprudencial consistente, a da apontada interpretação restritiva do art 6º/1 da L 7/2001 de 11/5, pois que foi logo fortemente rebatida, e muito expressivamente, como se salientou, pelo Tribunal Constitucional, que veio conferir sentido às maiores exigências colocadas ao nível da união de facto relativamente ao casamento, na medida em que o legislador apenas quanto a este podia  presumir a necessidade das prestações ao cônjuge sobrevivo, tendo em conta os deveres conjugais de solidariedade, dispensando-os, por isso, e ao contrário dos unidos de facto, de provar essa carência e a impossibilidade de obter alimentos dos familiares mais próximos.    

Não será pois aceitável atribuir à Lei 23/2010 carácter interpretativo, como aliás, é aceite mesmo por quem sustenta a aplicação retroactiva da Lei em causa [17].

Antes será de concluir, que nem a referida Lei 23/2010 declara expressamente  que é interpretativa da L 7/2001, nem os interessados (os membros das uniões de facto com mais de dois anos e a segurança social) podiam contar com a solução que veio a ser consagrada naquela Lei nova [18], por isso que esta é claramente inovadora.

Em segundo lugar -  e excluído que foi o entendimento de que se trataria a Lei 23/2010 de lei interpretativa - há que afastar a ideia, que necessariamente subjaz ao entendimento da aplicação retroactiva da lei em referência às situações jurídicas como a dos autos, de que tais situações se integrariam na previsão do disposto na 2ª parte do nº 2 do art 12ºCC [19]

Como é sabido o nº 2 do art 12º CC distingue dois tipos de normas:
- as  que dispõem sobre os requisitos de validade (formal ou substancial) de quaisquer factos,  ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1ª parte), referindo que tais normas, em caso de dúvida, só se aplicam a factos novos. 
- as que dispõem sobre o conteúdo de certas relações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram lugar (2ª parte), normas que se aplicam às relações jurídicas constituídas antes da lei nova, mas subsistentes à data do inicio da vigência da lei nova.
E desse art 12º/2 resulta ainda a consideração implícita de um terceiro tipo de normas: as que regulam o conteúdo das relações jurídicas atendendo aos factos que lhe deram origem sem, no entanto, abstrair desses factos, sendo que estas normas não se aplicam às situações já constituídas.

Escreve Batista Machado a respeito deste art 12º/2 [20] : «(…) a aplicação ou não aplicação imediata das disposições da lei nova ao conteúdo e efeitos dos contratos   anteriores dependa fundamentalmente duma qualificação dessas disposições: referirem-se elas a um estatuto legal ou a um estatuto contratual; ou então, na fórmula do nº 2 do art 12º do nosso código, depende, fundamentalmente, do ângulo de incidência dessas disposições sobre as situações jurídicas, visadas nas suas hipóteses legais (…) »

Donde se segue que, à falta de direito transitório especial, isto é, de normas da própria lei nova que disciplinem unitariamente a sua aplicação no tempo, a primeira atitude de quem pretenda aplicar uma lei nova a situações constituídas ao abrigo da lei antiga e que de algum modo perdurem após o início da vigência da lei nova, é a de qualificar as concretas disposições cuja aplicação à situação da vida que reclama regulamentação jurídica está em causa.
 Só depois de o fazer, poderá concluir pela existência ou não de direito transitório sectorial, isto é, pela existência ou não de normas que disciplinem a sua aplicação no tempo na específica matéria em causa.
Concluindo pela não existência deste direito transitório sectorial, recorrerá então ao disposto no art 12º/2 CC, que é uma norma de direito transitório geral porque define o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versem [21].
È naquela operação de qualificação das disposições da lei nova a aplicar, e partindo, naturalmente, como é próprio da operação da qualificação, da situação da vida que urge regulamentar, que o intérprete deverá distinguir através «do ângulo de incidência dessas disposições sobre as situações jurídicas, visadas nas suas hipóteses legais», se está perante normas que dispõem sobre os requisitos de validade (formal ou substancial), ou sobre os efeitos dessas situações jurídicas – caso em que se moverá na previsão da 1ª parte do nº 2 desse art 12º - ou sobre normas que dispõem sobre o conteúdo dessas situações jurídicas, abstraindo ou não dos factos que lhes deram origem  – caso em que se moverá na 2ª parte do nº 2 desse art 12º.

Ora, aplicando este raciocínio à concreta situação dos autos, e sendo certo que a Lei 23/2010 não comporta normas de direito transitório especial, resulta da situação da vida que se pretende solucionar, que o que o que está em causa aplicar - não é, obviamente, a totalidade da Lei nº 23/2010 com o que ela tem de mais favorável às uniões de facto relativamente à lei anterior – mas, especificamente, a norma dessa lei que pretende regular o regime de acesso às prestações do beneficiário do regime geral ou de regimes especiais da segurança social, pelo unido de facto que se mostre sobrevivente, norma essa que é a do art 6º dessa Lei.

Delimitada assim a matéria cuja regulamentação está em causa, na sequência do raciocínio atrás formulado haverá que se apurar pela existência ou não de direito transitório sectorial.
E, do nosso ponto de vista, há norma de direito transitório sectorial a aplicar.

Corresponde a mesma ao art 15º do DL 322/90 de 18/10, diploma que define e regulamenta, em termos gerais, «a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral da segurança social» e que continua em vigor não tendo sido objecto de quaisquer alterações pela L 23/2011.
Dispõe essa norma: «As condições de atribuição das prestações são definidas à data da morte do beneficiário».
Desta norma, que tanto era aplicável no âmbito de vigência temporal da L 7/2001, como o será no âmbito de vigência temporal da L 23/2010, pois que resultou inalterada, se se quiser, salvaguardada, por esta mesma lei, resulta que quando esteja em causa atribuir prestações por morte no âmbito do regime geral da segurança social, não apenas ao ex-cônjuge, mas também ao sobrevivo de união de facto – aqui por remissão do art 3º al e) da L 7/2001 de 11/5, depois de alterada pela L 23/2011 -  se haverá de recorrer, para se determinarem as respectivas condições, ao regime legal em vigor no momento da morte do beneficiário, o que exclui, naturalmente, a aplicação retroactiva do art 6º da L 23/2011.
    
Ainda que, porventura, não possa atribuir-se, como se atribui, natureza de direito transitório sectorial ao referido art 15º do DL do DL 322/90 de 18/10, a verdade é que, qualificada a norma do referido art 6º da L 23/2011 à luz das diferentes categorias admitidas no art 12º/2 CC, nunca seria possível, salvo melhor opinião, considerar que o preceito em causa «dispõe directamente sobre o conteúdo da relação jurídica» que advém da união de facto protegida.

Pese embora o simplismo do que se vai afirmar, entende-se que, por definição, aquela norma não pode dispor directamente sobre o conteúdo dessa relação jurídica, pela  razão de que a mesma resulta extinta pelo facto morte, pois, como é sabido,  a morte de um dos membros da união de facto é precisamente a primeira das causas possíveis da cessação dessa união, nos termos do art 8º/1 da LUF.
  Por isso, só pode estar em questão no art 6º da Lei 23/2010, não, dispor - directamente, note-se - sobre o conteúdo da união de facto enquanto relação jurídica, mas, necessariamente, a respeito de um dos seus efeitos.

A norma do art 6º da L 23/2010, cuja aplicação à situação que cabe solucionar está em causa, dispõe claramente sobre um dos efeitos da união de facto protegida - a protecção social por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social, como decorre do  nº 1 do seu art 6º e da sua remissão para  a al e) do seu art 3º .

Tendo-se concluído que o art 6º da L 23/2011 regula um dos efeitos da união de facto protegida, e sendo certo que o mesmo é despoletado pela morte do beneficiário, então, nos termos da 1ª parte do nº 2 do art 12º, tal norma, no seu campo de aplicação temporal, só visa os «factos novos», isto é, os que decorram do facto da data do óbito do beneficiário ter já ocorrido no âmbito da sua vigência.

Pelo que se conclui em sentido inverso ao da sentença recorrida, o que determina a procedência da apelação no aspecto em referência.

Porém, antes de terminar a análise que se vem de fazer, não quer deixar de se referir que, ao contrário do que é admitido nalguma jurisprudência a que se acedeu [22], o art 11º da L 23/2011 se mostra indiferente à questão da retroactividade dessa mesma lei.
 Dispõe ele que «os preceitos da presente lei com repercussão orçamental só produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor».
 Como é referido no Ac STJ de 16/6/2011 [23] «O que ali apenas está em causa (…) é a aplicação dos normativos com repercussão orçamental e não qualquer norma que defina o âmbito subjectivo da prestação social».

Tendo-se entendido que a lei a aplicar à situação dos autos é a vigente ao tempo do óbito do falecido beneficiário, então, na decorrência do entendimento que se deixou atrásexpresso e que este tribunal colectivo subscreve [24], a A. para ver proceder a presente acção teria de alegar e provar, entre o mais, agora não relevante,  a necessidade de alimentos e não ser possível obtê-los nem da herança, nem do seu marido (uma vez que é casada…), ou dos seus descendentes, ascendentes ou irmãos.

Ora a A. alegou factos a esse nível nos arts 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º e 21º da petição, mas o  Exmo Juiz a quo entendeu [25] no despacho saneador não ter tais factos em consideração na selecção da matéria de facto, no (seu) pressuposto de que seriam aplicáveis retroactivamente à situação dos autos as novas e mais favoráveis condições de atribuição das prestações por morte e que tornariam aquela factualidade desnecessária.
     
Excluído, neste acórdão, o ponto de vista do Exmo Juiz a quo, importa fazer prosseguir a acção para fazer prova relativamente aos factos alegados com incidência na necessidade de alimentos por parte da A. e na impossibilidade de os obter da herança do falecido, ou dos familiares referidos no art 2020º CC.

V- Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação, revogar a decisão recorrida, e ordenar que o processo prossiga para instrução dos factos alegados pela A. nos termos acima referidos, assim se ampliando a matéria de facto, procedendo-se a julgamento sem prejuízo do disposto na última parte do art 712º/4 CPC.

Custas pela apelada.
    
Lisboa, 15 de Dezembro de 2011

Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
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[1]- De acordo com o art 2º da L 7/2001 de 11/5, o casamento anterior não dissolvido, salvo se tiver sido decretada separação judicial de pessoas e bens, é facto impeditivo dos efeitos decorrentes dessa lei, consequentemente, da aplicação dos efeitos próprios de uma união de facto protegida. E esse impedimento mantém-se na L 23/2010
[2] -  » Código de Processo civil anotado», III, Tomo I, 2ª edição, p 80 e 79
[3] Cfr Ac RL 3/5/2011 (Tomé Gomes) acessível em www.dgsi.pt
[4]- Relatado pelo Exmo Cons. Sérgio Poças e acessível em www. dgsi. pt
[5] - Relatado pelo Exmo Cons. Pires da Rosa e acessível  em www. dgsi.pt
[6]- «Código Civil Anotado», I, nota art 13º
[7]- Exemplos de leis que a jurisprudência tem  entendido como interpretativas encontram-se, vg, nos Ac STJ 12/11/1992, B 421-370 (a propósito da promessa de compra e venda e do art 442º/2 CC na redacção dada pelo DL nº 379/86 de 11/11); Ac STJ 23/9/99, B 489-370 ( a propósito da sociedade por quotas entre os cônjuges  e do art 8º/1 do C Soc Com ); Ac STJ 19/10/95 (a propósito da empreitada e do nº 4 do art 1225º CC introduzido pelo DL 267/94 de 25/10);  Ac STJ 4/10/2005 (a propósito do Acórdão Uniformizador do STJ nº 3/04 a respeito da revogação do limite indemnizatório consignado no art 508º/1 CC, atribuindo natureza interpretativa a esse Acórdão Uniformizador). 
[8]- «Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador», 17ª reimpressão, p 246/247
[9] - Está-se a citar o sumário do Ac RC 15/2/2010 (Jorge Arcanjo), acessível  em www. dgsi.pt
[10] -  Ac STJ de 16/9/08 (Fonseca Ramos) acessível em www dgsi pt
[11]- Proc nº 411/2003, in DR II Série 16/4/2004. Concluiu o mesmo na sua al a): “Julgar inconstitucional, por violação do principio da proporcionalidade, tal como resulta das disposições conjugadas dos arts 2º, 18º/2, 36º/1 e 63º/1 e 3 todos da CRP, a norma que se extrai dos arts 40º/1 e 41º/2 do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no funcionalismo público, quando interpretada no sentido de que a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, a quem com ele convivia em união de facto, depende também da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, direito esse a ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das als a) a d) do art 2009º do CC”.
[12] - Em que se destacam, entre outros, os Ac STJ 20/4/2004, CJ Ac STJ, II, 30 (Sousa Leite), R C 16/11/2004 (Jorge Arcanjo), Ac R G 4/12/2005 (Manso Rainho), Ac RL 16/1/07 (Graça Amaral), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[13]- Cfr Ac 195/2003, Ac nº 159/2005, 614/2005 de 9/11, 640/2005 de 16/11, 517/2006 de 26/9, 651/2009… todos  em wwww, tribunal constitucional. pt/tc/acórdãos
[14] -“Uniões de facto e Uniões de Facto e Pensão de Sobrevivência,” in Jurisprudência Constitucional, 3, Julho-Setembro 2004, p 21.
[15]- Cfr Ac STJ de 27/5/08 (Custódio Montes) in www.dgsi.pt.
[16] - Neste sentido, cfr entre muitos outros, Ac STJ de 23/9/08 (Serra Batista), 16/9/08 (Fonseca Ramos), 10/7/08 (Salvador da Costa), 27/5/08 (Custódio Montes), 28/2/08 (Garcia Calejo), 23/10/07 (Azevedo Ramos), 20/9/07 (Mª dos Prazeres Beleza), 28/6/07 (Pereira da Silva), 24/5/07 (Sebastião Póvoas), 24/4/07 (Silva Salazar), 5/12/06 (João Camilo) …todos disponíveis em www. dgsi pt. Na doutrina, ver por todos França Pitão, “Uniões de facto e Economia Comum”, 2002, 281.
[17] - Por ex, o já referido Ac STJ 6/7/2011 (Pires da Rosa)
18- Ac RP 15/3/2011, (Pinto dos Santos) « (…) nem a Lei 23/2010 (ou qualquer outra) declara expressamente  que é interpretativa da L 7/2001 nem os interessados (os membros das uniões de facto com mais de dois anos e a segurança social) podiam contar com a solução que veio a ser consagrada naquela LN» ; Ac STJ 24/2/2011 (Granja da Fonseca) «Nem a solução do direito anterior era incerta ou controvertida, nem o julgador, em face do texto antigo do art 6º da L 7/2001 se podia sentir autorizado a adoptar a solução que a lei nova vem consagrar pelo que, com segurança, se poderá afirmar que esta é decisivamente inovadora, não se aplicando ao caso em apreço »
[19]- Cfr Ac R C (Jorge Arcanjo) que refere: «A lei nova regula o conteúdo da situação jurídica abstraindo do factos que lhe deram origem, porquanto a norma do art 6º da L 7/2001 assume natureza interpretativa integrando a “ordem pública de protecção” dos unidos de facto, regulando ou modelando o seu “estatuto legal”»  
[20] - «Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil», 122 a 124 [21]- A respeito destas categorias de normas de direito transitório, cfr Oliveira Ascenção, «O direito, Introdução e Teoria Geral”, 13º ed, 560 
[22] - Por excelência a este respeito, cfr Ac STJ 24/2/2011 (Granja da Fonseca),  onde se lê: «Com efeito, o facto dos preceitos da L nº 23/2010 com repercussão orçamental, como é o caso do art 6º da L 7/2001 alterada, produzirem apenas efeitos a partir de 1/1/2011, data da entrada em vigor da L nº 55-A/2010., obstam a qualquer veleidade de se pretender atribuir eficácia retroactiva à referida L 23/2010»; Ac R P 15/3/2010 (Pinto dos Santos); Ac RL 3/572011 (Tomé Gomes) que refere que esse art 11º «é bem sintomático» de não se pretender a retroactividade da lei 
[23] - Referido Ac STJ 16/6/2011 (Sérgio Poças)
[24] - Cfr Ac deste tribunal colectivo proferido no Proc  4912/08
[25] - Embora à margem do disposto no art 511º/1 CPC, que dispõe que, «o juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito ( …)»