Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4579/2007-6
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: ININTELIGIBILIDADE DO PEDIDO
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Sumário: I – O que conta para a correcção da petição inicial é a inteligibilidade do pedido e da causa de pedir invocada e a existência de um nexo lógico entre ambos, sendo irrelevante, para efeitos de aptidão da petição, que o autor tenha intitulado de despejo a acção em que pede a resolução de um contrato de concessão de exploração comercial;
II – Se o tribunal decretou a nulidade do contrato por falta de forma, não tendo a questão sido suscitada nos articulados, e sem previamente dar a possibilidade de as partes se pronunciarem sobre eventual nulidade do contrato, violou-se a proibição de prolação de decisão surpresa (art. 3º/3 do CPC), cometendo-se, assim, a nulidade do art. 201º do CPC.
I – O que conta para a correcção da petição inicial é a inteligibilidade do pedido e da
(F.L.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


C., com sede no porto de Porto Santo, intentou em 23.10.2003, a presente acção com processo ordinário contra “M…. Lda”, com sede no Funchal, com os seguintes fundamentos:
Celebrou com a Ré em 27.01.2000 um contrato de concessão de exploração relativo a um estabelecimento Restaurante e Bar sua propriedade, que a Ré passaria a explorar mediante o pagamento da quantia mensal de 200.000$00. Sucede que a Ré no início de 2003 deixou de pagar as prestações, estando já em dívida dez prestações, que se recusa a pagar. Em consequência pede:
a) Que se decrete a cessação, por resolução, do contrato de concessão de exploração, com a Ré a ser condenada a entregar ao Autor o espaço locado;
b) A condenação da Ré a pagar-lhe a todas as rendas vencidas e não pagas, desde Janeiro de 2003, que à da propositura da acção ascendem a € 9.975,90.

Citada, a Ré contestou, excepcionando a inaplicabilidade da acção de despejo ao caso, e a ineptidão da petição por ininteligibilidade, contradição entre o pedido e a causa de pedir, e justificou o não pagamento das prestações a partir do início de 2003 com o facto de o estabelecimento não ter licença de funcionamento, que cumpria ao Autor obter, invocando assim a excepção de não cumprimento do contrato. E alegando o incumprimento do contrato pelo Autor, que diz ter-lhe causado danos de natureza patrimonial e não patrimonial, em reconvenção, pediu a condenação daquele:
A pagar-lhe uma indemnização, pelos prejuízos morais e materiais a que com o seu incumprimento deu causa, a liquidar em execução de sentença ….

Na réplica o Autor rebateu as excepções e a reconvenção.
Depois de admitir a reconvenção, a Srª Juiz, considerando que o estado do processo lhe permitia conhecer de mérito, proferiu despacho saneador-sentença no qual:
- Desatendeu a arguição de nulidade do processo por ineptidão da petição;
- Julgou não se verificar erro na forma de processo;
- Declarou nulo, por falta de forma, o contrato celebrado entre as partes, condenou a Ré a restituir ao Autor o espaço em causa, livre de pessoas e bens, e a pagar-lhe a título de indemnização, a quantia mensal correspondente ao valor da renda, como se o contrato fosse válido…;
- Julgou improcedente o pedido reconvencional.

Inconformada, a Ré apelou tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª. A decisão de improcedência das excepções deveria constar da parte decisória da sentença para além de constar do texto, e assim não sendo, enferma a sentença de vício que urge corrigir.
2ª. A petição deveria ter sido considerada inepta, por contradição entre a causa de pedir e o pedido e, em consequência, deveria a Ré ter sido absolvida do pedido.
3ª. A inteligibilidade da petição deveria ter ser aferida de per si e não pelo facto de a Ré ter contestado, por mera cautela de patrocínio ou mesmo pelo facto de ter reconvindo.
4ª. Em alternativa, deveria a Mmª Juiz a quo ter convidado a Autora a aperfeiçoar a petição, dadas as incorrecções e contradições que apresentava.
5ª. A acção de despejo não é o meio próprio para se pôr fim a contrato de cessão de exploração.
6ª. Antes de proferir a decisão surpresa que acabou por constituir a decisão recorrida, as partes deveriam ter sido convidadas a pronunciar-se.
7ª. O tribunal recorrido não estava em condições de decidir de mérito, uma vez que as partes estavam ainda em condições de produzir prova que não só invertesse o juízo de nulidade, como desse ao tribunal possibilidade de aquilatar da vontade hipotética das partes.
8ª. Não estando em condições de decidir de mérito, o tribunal deveria ter prosseguido o processo, havendo lugar à produção de prova.
9ª. Apesar do contrato ter sido celebrado sem respeitar as exigências de forma “ad substantia” previstas na lei, a ocorrência de modificação legislativa, que dispensa a forma mais solene em favor da forma escrita, convalida o contrato, tendo em conta a vontade das partes.
10ª. Em face do texto do contrato e do negócio querido por ambos os contraentes, é de concluir que a vontade hipotética das partes seria a de celebrar contrato promessa de cessão de exploração de estabelecimento comercial caso pudessem ter previsto a nulidade do contrato tal como o celebraram.
11ª. Deveria, pois, a Mmª Juiz a quo ter procedido à conversão do contrato de cessão em contrato promessa de cessão, com as legais consequências.
12ª. Os prejuízos invocados pela Ré em sede de reconvenção são fruto de omissões do Autor que devem ser tidas em conta, até para efeitos de compensação com os créditos do Autor pela efectivação do contrato, ainda que nulo.
13ª. Ao decidir como decidiu, o saneador-sentença recorrido violou as disposições dos arts. 12º e 293º do Cód. Civil, e 193º, 288º, 499º, 495º e 510º do Cód. Proc. Civil.

Não foram apresentadas contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Fundamentos.
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. Entre Autor e Ré foi convencionado um acordo que designaram de “contrato de concessão de exploração” do estabelecimento de restaurante e bar, pertença do Autor, localizado no prédio urbano (…) no Porto de Abrigo de Porto Santo.
2. Nesse acordo consta que o A. pretende ter em funcionamento o mesmo estabelecimento (…) a fim de prestar serviços correspondentes a essas actividades aos seus sócios e utilizadores da marina e conceder à Ré a sua exploração de modo a que seja ela a ocupar-se dessa actividade.
3. Estipulou-se que a Ré explorará o estabelecimento de restaurante e bar no local instalado por um prazo de 8 anos, a contar de 01.01.2001.
4. Mais acordaram que “preço da concessão” é de 200.000$00/mensais, a que acresce IVA à taxa em vigor em Porto Santo, pagáveis até ao dia 30 de cada mês por cheque á ordem do A. de que este passará a respectiva quitação.
5. Vincularam-se ainda que a partir de 01.01.2005, o preço sério de 300.000$00 (€ 1.496,39), a que acresce IVA à taxa em vigor em Porto Santo, pagáveis nas mesmas condições.
6. Também submeteram ao referido acordo que a partir de Janeiro de 2005, o valor da “renda” está sujeito a actualização anual, de acordo com os coeficientes de rendas fixadas anualmente para os arrendamentos para comércio e indústria.
7. Ajustaram também que a Ré “pode ceder a terceiro a sua posição contratual no decurso da vigência do contrato, devendo informar o A., por carta registada com a/r, identificando o cessionário. A cessão considerar-se-á autorizada pelo 1º outorgante (o A.) caso este não se lhe opuser, por carta registada, com a/r, que seja recebida pela 2ª outorgante (a Ré) no prazo de 30 dias sobre a informação que lhe tiver feito”.
8. O acordo mencionado em 1. foi redigido e assinado pelos representantes do A. e da R., em simples documento particular.
9. A. e Ré iniciaram a execução do acordo identificado em 1), com a Ré a explorar o estabelecimento e a pagar a contraprestação ajustada e o A. a recebê-la.
O direito.
Vejamos cada uma das questões suscitadas no recurso.

A 1ª conclusão carece manifestamente de fundamento. Como se vê do saneador- sentença recorrido, a Srª Juiz antes de entrar na apreciação de mérito conheceu das excepções deduzidas - nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, e de erro na forma de processo – concluindo que as mesmas não se verificam. Foi observado o que dispõe o nº1 do artigo 510º do CPCivil, nada havendo a censurar à decisão.

Se a petição é inepta.
Sustenta a Apelante que se verifica a nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial, por a causa de pedir ser ininteligível e haver contradição entre a causa de pedir e o pedido.
Vejamos.
Estatui o nº1 do art. 193º do CPCivil que “é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”. E acrescenta:
“2. Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3. Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4. (…).”
O Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pag. 111, esclarece assim os conceitos de pedido e causa de pedir:
Noção do pedido. É a pretensão do Autor (art. 467º); o direito para que ele solicita ou requer a tutela judicial e o modo por que intenta obter essa tutela (a providência judiciária requerida); o efeito jurídico pretendido pelo autor (art. 498º/3).
Noção de causa de pedir. É o acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (art. 498º/4). Esse direito não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir.”
Se o autor formulou o pedido ou a causa de pedir em termos obscuros ou ambíguos (ou seja ininteligíveis), a petição será inepta – art. 193º/2, alínea a).
E para que não haja contradição entre a causa de pedir o pedido, aquela tem de constituir o suporte lógico idóneo da pretensão, do pedido formulado ao tribunal.
Dito isto, logo vemos ser infundada a crítica da Apelante.
Os pedidos formulados são claros: pede-se a resolução do contrato e consequente condenação da Ré a entregar o estabelecimento cedido, e o fundamento foi devidamente alegado: o incumprimento pela Ré do contrato de cessão de exploração, consubstanciado no não pagamento das prestações relativas aos meses de Janeiro a Outubro de 2003, sem que caiba aqui saber se o fundamento invocado é idóneo à procedência do pedido.
Não há incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido, ambas perfeitamente inteligíveis.
E o facto de o Autor ter intitulado a acção como de despejo (que não constitui hoje um processo especial) é irrelevante, pois o que conta para a correcção da petição é a inteligibilidade da causa de pedir e do pedido invocados, e a existência de um nexo lógico entre ambos, aspectos que o articulado inicial revela.
Improcede assim este fundamento do recurso.

Sustenta também a Apelante que a decisão recorrida violou o princípio da proibição da decisão surpresa e afigura-se-nos que lhe assiste razão.
Como vimos, o Autor, como fundamento do pedido de resolução, alega o incumprimento pela Ré de um contrato de cessão de exploração, pelo qual lhe cedeu para exploração um estabelecimento de restaurante e bar. Na contestação, a Ré além de reputar inepta a petição, alegou o incumprimento do contrato pelo Autor, por não ter obtido, como lhe competia, a necessária licença de funcionamento, o que lhe dá o direito a não pagar as prestações acordadas. Deduziu ainda pedido reconvencional, alegando danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo incumprimento do Autor.
Estes os termos do litígio tal como as partes o apresentam.
No saneador-sentença a Srª Juiz qualificou o contrato em causa como de cessão ou locação de estabelecimento que, atendendo à data em que foi celebrado (27 de Janeiro de 2000), estava sujeito a escritura pública, no termos do art. 80º/2 alínea m) do Cód. do Notariado. Como não foi observada o formalismo exigido por lei (ad substantiam), declarou o contrato nulo, e como consequência da invalidade, condenou a Ré a restituir o estabelecimento.
Estamos, assim, perante uma decisão surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Ora, a lei proíbe as decisões surpresas, como claramente resulta do nº 3 do art. 3º do C.P.Civil, segundo o qual:
“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Este preceito, como escreve Lopes do Rego, in Comentários ao Cód. Processo Civil, consagra um amplo entendimento da regra do contraditório, “não limita a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito (art. 664º); trata-se, apenas e tão só, de, previamente ao exercício de tal liberdade subsuntiva do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que consideram pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar.”
A omissão do convite às partes para tomarem posição sobre a questão oficiosamente levantada gera nulidade, a apreciar nos termos do art. 201º - Lebre de Freitas, Cód. Proc. Civil anotado, I., pag. 9, e os Acórdãos do STJ de 15.10.2002, da Relação de Coimbra de 18.01.2005, ambos consultáveis em www.dgsi.pt. e o desta Relação de 24.10.2006, CJ, tomo IV, pag. 90, que decidiu constituir “decisão surpresa aquela pelo qual o tribunal (…) considera nulo por vício de forma um contrato cuja validade foi pressuposta pelas partes”.
Assim sendo, impõe-se declarar a nulidade, por violação do princípio do contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC) o que implica a nulidade do saneador-sentença, devendo a Srª Juiz proferir despacho convidando as partes a pronunciarem-se sobre a questão da nulidade formal do contrato para que, decorrido o prazo concedido, se profira decisão, caso continue a entender dever conhecer de mérito no saneador.
Decisão.
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, declara-se a nulidade por violação do princípio do contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC), anulando-se o saneador-sentença e os termos posteriores do processo, a fim de as partes serem notificadas para se pronunciarem sobre a questão da nulidade formal do contrato.
Sem custas.

Lisboa, 18.10.2007

Ferreira Lopes
Manuel Gonçalves
Aguiar Pereira