Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11870/09.7T2SNT-A.L1-2
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
ÓNUS DA PROVA
DAÇÃO EM FUNÇÃO DO CUMPRIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
PACTO DE PREENCHIMENTO
HIPOTECA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. É extrinsecamente o título que incorpore o direito a uma prestação; é intrinsecamente exequível a obrigação relativamente à qual não se demonstre a existência de um vício material ou de uma excepção peremptória que impeça a sua realização coactiva.
II. O ónus da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda vincula o executado.
III. A emissão de uma livrança, ainda que em branco, constitui, em regra, uma dação pro solvendo e não uma dação em cumprimento, e por isso, não importa a novação da obrigação cuja satisfação se visou facilitar com a criação da obrigação cartular.
IV. Ao avalista da livrança entregue em branco é lícita a alegação da excepção do preenchimento abusivo se tiver tido intervenção no pacto de preenchimento
V. O objecto do negócio jurídico pode ser indeterminado, mas não, sob pena de nulidade, indeterminável.
VI. O problema da determinação da prestação apenas de coloca à obrigação que, por indeterminabilidade, seja nula, o que não ocorre se tiver sido fixado um critério a que a actividade de determinação deve obedecer.
VII. Por força do princípio da especialidade, decorrente da publicidade constitutiva, a hipoteca apenas compreende o valor do crédito publicitado pelo registo e, imperativamente, nunca abrange a obrigação acessória de juros superior a três anos.
VIII. Isso não impede, porém o credor hipotecário de reclamar juros superiores a três anos – mesmo que vencidos na pendência da acção executiva – embora apenas como créditos comuns.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
     
1. Relatório.
“A”, Lda., “B”, “C”, “D” e “E”, deduziram oposição, por embargos, à acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, que contra eles foi promovida por Banco “F” - , SA, pedindo a sua absolvição, da instância e do pedido.
Alegaram, como fundamento dos embargos, que o tribunal não é o competente em razão do território, dado que foi convencionalmente eleito, como foro competente, o da Comarca de Lisboa, que alguns dos oponentes, mormente fiadores, já têm estado civil e relacionamentos conjugais diferentes, que a livrança foi entregue à exequente em branco, em seu detrimento, por má fé e em conluio com quem na altura geria a executada “A”, Lda., que os as avalistas apenas o foram em função de, na altura, serem gerentes da mesma, que a livrança não foi preenchida mediante prévias instruções do embargantes, que o valor reclamado nada tem a ver com o valor pago, que a escritura da hipoteca tem que ter o seu objecto determinado ou determinável, sob pena de nulidade e que o objecto do contrato não é determinável, não tendo a exequente especificado, no requerimento inicial, os valores que considerava compreendidos na prestação, mantendo-se a obrigação ilíquida.
      O embargando respondeu que a execução tem por título um escritura pública de compra e venda com hipoteca que incide sobre a fracção autónoma “A” do prédio urbano situado no ..., ..., que, pelo contrato de mútuo, titulado naquela escritura, concedeu à sociedade executada a quantia de € 18 704,42, pelo prazo de 10 anos, a amortizar em 120 prestações mensais sucessivas e constantes de capital e juros, tendo-se convencionado que o capital mutuado, ara cuja garantia foi constituída aquela hipoteca, venceria juros à taxa de 12,9%, que em caso de mora seria de 18%, com mais 4%, que para garantia do bom pagamento do empréstimo, a sociedade executada lhe entregou uma livrança subscrita e avalizada por “G”, “H”, “E”, “D”, “B” e “C”, tendo logo autorizado o Banco, através de carta subscrita por todos, a preenchê-la pelo valor que fosse devido e fixar as datas de emissão, de vencimento e o local do seu pagamento e que a livrança foi preenchida nos termos e condições acordadas, dado que, tendo a executada pago até 21 de Novembro de 1999, o valor do capital era de € 13 944,66, tendo sido contados juros à taxa de 18%, com mais 4% pela mora e 50 220$00 de imposto de selo, pelo que o valor da dívida era, à data da entrada em juízo da petição, de € 21 611,88.
      Os embargos foram logo julgados improcedentes no despacho saneador.
Apelaram, claro, os embargantes, pedindo a revogação da sentença impugnada.
      Para mostrar a falta de bondade dessa decisão, os recorrentes extraíram da sua alegação estas conclusões:
A. A douta sentença recorrida não fez boa aplicação do direito nem decidiu de acordo com os elementos fornecidos no processo que implicariam decisões diferentes.
B. A declaração que autoriza o preenchimento, reportando-se a uma realidade diversa, tem data anterior àquela em que foi acordado o convencionado por via da escritura proceder à entrega da livrança em branco.
C. O Tribunal a quo por decorrência do princípio da aquisição processual, sob pena de violação do disposto no artº 515 do CPC, devia ter atendido aos documentos juntos aos autos e que não foram impugnados.
D. O Art. 342 do Cod. Civil estabelece afirmação de factos que, segundo norma substantiva servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido, ou seja, reporta-se ao ónus da afirmação e não há prova propriamente dita.
E. As obrigações que a escritura da hipoteca exara, devem estar determinadas ou serem minimamente determináveis, o que não é o caso dos autos.
F. A hipoteca garante os acessórios dos créditos que constam do registo e não abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que três anos relativos a juros, nos termos do disposto no nº 2 do Artº 693 do C.C.
Não foi oferecida resposta.
Por a decisão apelada não especificar ou individualizar um único fundamento de facto e o processo não se mostrar devidamente instruído, requisitou-se, por despacho do relator, ao tribunal recorrido, certidão do requerimento executivo, dos títulos executivos e demais documentos oferecidos com aquele requerimento.
2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.
Apesar da decisão impugnada não conter qualquer fundamento de facto, são os seguintes os factos que, para além se mostrarem documentalmente provados, relevam para o conhecimento do objecto do recurso:
2.1. “G” e “E”, como sócias-gerentes da sociedade “A”, Marketing Publicidade e Serviços Lda., e “I” e “J”, como procuradores do Banco “F” – , SA, declararam, por escritura pública, no dia 18 de Março de 1996, conceder o ultimo, à representada das primeiras, um crédito no valor de 3 750 000$00, sendo 3 500 000$00 destinado à aquisição de uma fracção a fracção autónoma, designada pela letra A, correspondente à loja do rés-do-chão do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, situado na R. ..., nºs 3, 5 e 7, ..., matricialmente inscrita sob o artº ..., descrito na CR Predial de ..., sob o nº ..., de 11 de Dezembro de 1984, e 250 000$00 para obras de beneficiação, sob a forma de empréstimo, nos termos do documento complementar anexo, tendo as segundas declarado confessar a sua representada devedora ao Banco “F” do montante de 3 750 000$00, recebidos no acto, pelo prazo de 10 anos, com vencimento em 18 de Março de 2006, e dos juros remuneratórios, calculados à taxa de referência hipotecária, praticada e publicitada pelo Banco “F”, acrescida de 2,5%, que se cifre actualmente em 12, 9%, elevável, em caso de mora, à taxa básica de 180 dias, praticada e publicitada pelo Banco “F”, actualmente de 18%, acrescida da sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal, devida pela mora (22%), e que a sociedade devedora obriga-se a efectuar o reembolso do capital mutuado em 120 prestações mensais, sucessivas e constantes, de capital e juros, cujo quantitativo resultará da aplicação da taxa a que se refere o documento complementar anexo, vencendo-se a primeira 30 dias após a data da celebração desta escritura.
      2.2. “G” e “E”, como sócias-gerentes da sociedade “A”, Marketing Publicidade e Serviços Lda., declararam, no instrumento referido em 2.1., que em nome da sua representada constituem, em garantia do capital mutuado, dos juros remuneratórios, dos demais encargos legais, e das despesas judiciais e extrajudiciais, que para efeitos de registo, se fixam em 150 000$00, hipoteca a favor do Banco “F” sobre a fracção autónoma, designada pela letra A, correspondente à loja do rés-do-chão do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, situado na R. ..., nºs 3, 5 e 7, ..., matricialmente inscrita sob o artº ..., descrito na CR Predial de ..., sob o nº ..., de 11 de Dezembro de 1984, e que, ainda para garantia do bom pagamento de quaisquer obrigações ou responsabilidades emergentes do presente contrato, a “A”, Marketing, Publicidade e Serviços Lda., entrega uma livrança em branco, por si subscrita, à ordem do Banco “F”, avalizada por todas as sócias e cônjuges, “G”, “H”, “L”, “E”, “D”, “B” e “C”, livrança que desde já autorizam o Banco “F” a, em caso de falta de cumprimento do presente empréstimo, preencher pelo valor que lhe for devido, conforme o preceituado neste contrato, a fixar datas de emissão e de vencimento, bem como a designar o local de pagamento, hipoteca e confissão de dívida que “I” e “J”, como procuradores do Banco “F” – , SA, declararam aceitar para o Banco seu representado.
      2.3. O instrumento de fls. 51 da acção executiva, datado de 29 de Novembro de 2001, com vencimento no dia 10 Dezembro de 2001, mostra-se assinado, no canto inferior direito, por “G” e “E”, sob o carimbo ““A”, Z Lda., a Gerência” e sob a menção “No seu vencimento pagarei/emos por esta única via de livrança, ao Banco “F” –  SA, ou á sua ordem, a quantia de 4 101 391$00”.
      2.4. O instrumento mencionado em 2.3., contém, no verso, sob as menções “Por aval á firma subscritora”, as assinaturas manuscritas de “G”, “H”, “L”, “E”, “D”, “B” e “C”.
      2.5. “G”, “H”, “L”, “E”, “D”, “B” e “C”, assinaram, as duas primeiras também sob a menção, Os Subscritores“A”, Lda., a Gerência”, e todos aqueles sob a menção, Na qualidade de avalistas damos o nosso inteiro acordo ao conteúdo da presente carta, assumindo nos termos dos subscritores, o bom pagamento da livrança acima mencionada, no verso do instrumento incluso a fls. 30, do processo de embargos de executado, datado de 13 de Março de 1996, que no rosto, contém, sob a epígrafe Carta de Preenchimento de Livrança Caução, este texto: vimos por este meio remeter uma livrança, subscrita por “A” – Marketing e Publicidade Lda. e avalizada pelos sócios da mesma, “B”, casado “C”, “E” casada com “D”, “G” casada com “H”, à ordem desse Banco. Esta livrança destina-se a garantir o bom pagamento de todas as minhas obrigações ou responsabilidades constituídas ou a constituir junto desse Banco, quaisquer que seja a origem ou natureza, nomeadamente as decorrentes de uma operação de Crédito Habitação, bem como as suas prorrogações, renovações, substituições, aditamentos ou reformas, até à sua integral liquidação, até ao limite máximo legalmente fixado para efeitos de concentração de risco num só entidade. Autorizo, desde já esse banco, em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades (inerentes à operação acima referida), a preencher esta livrança pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e de vencimento, bem como a designar o local do seu pagamento (…).
      2.6. A hipoteca voluntária, a favor do Banco “F” –  SA, sobre a fracção autónoma de edifício referida em 2.2., para garantia do empréstimo do capital no valor de 3 750 000$00, com o juro anual remuneratório de 12,5%, elevável a 18% e 4% a título de cláusula penal e de despesas no valor de 150 000$00, até ao montante máximo de 6 375 000$00, encontra inscrita na conservatória do registo predial de Queluz desde 11 de Abril de 1996.
      2.7. Banco “F” –  SA, propôs, no dia 5 de Setembro de 2002, com base nos instrumentos referidos em 2.1. a 2.3, contra “A”, Marketing Publicidade e Serviços Lda., “G”, “H”, “L”, “E”, “D”, “B” e “C”, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, para destes haver a quantia de € 21 611,88, relativa ao capital no valor de € 13 944,66 e juros e demais encargos, vencidos até 15 de Setembro de 2002.
      2.8. O exequente fundamentou a sua pretensão executiva no facto de a executada “A”, Marketing Publicidade e Serviços Lda., lhe haver pago apenas parte do capital mutuado, os juros e demais encargos até 21 de Novembro de 1999.
      3. Fundamentos.
3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).
Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].
Assim, tendo em conta a vinculação temática deste tribunal ao conteúdo da decisão impugnada e das conclusões dos apelantes, a questão concreta controversa que este Tribunal é chamado a resolver é a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada e substituída por outra que absolva os recorrentes do pedido executivo.
A resolução deste problema fundamental exige o exame, ainda que breve, da natureza jurídica do título executivo e da obrigação nele incorporada e pressupostos da sua exequibilidade, da causa de nulidade da obrigação representada pela determinabilidade do seu objecto e do âmbito da garantia real representada pela hipoteca.
3.2. Natureza jurídica do(s) título(s) executivo(s) e da(s) obrigação(ões) nele(s) incorporada(s) e pressupostos da sua exequibilidade.
Os embargos de executado mais não constituem um meio de contestação da execução (artº 813 do CPC).
      Os embargos fundamentam-se num vício que afecta a execução. Se for julgada procedente, a acção executiva deve ser julgada extinta, no todo ou em parte.
      Nem sempre se justifica exigir a proposição de uma acção condenatória como meio de obter um título executivo. Se a obrigação se encontra titulada por um documento escrito, pode inferir-se, com elevado grau de probabilidade, a sua constituição. Numa tal eventualidade, justifica-se que se dispense a acção declarativa e se permita ao credor, utilizando esse documento como título executivo, instaure directamente a acção executiva. É esta nitidamente a orientação do direito português que atribui, muitas vezes avulsamente, a um conjunto cada vez mais amplo de documentos, a qualidade de título executivo (artº 46 b) e c) do CPC).
      Na oposição à execução baseada num título extrajudicial podem ser invocados todos os fundamentos que é possível deduzir como defesa no processo de declaração (artº 816 do CPC). Portanto, nessa oposição pode usar-se quer a defesa por impugnação quer a defesa por excepção (artº 487 do CPC). Isto é assim, uma vez que o título extrajudicial não se baseia em nenhum processo declarativo e, consequentemente, a oposição não está condicionada por nenhuma regra de preclusão. Não há assim, qualquer restrição quanto à invocação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos na oposição deduzida contra um título extrajudicial.
      No tocante ao ónus da prova dos fundamentos da oposição valem as regras gerais, cabendo, portanto, ao executado embargante a prova dos fundamentos de oposição invocados (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).
      O encargo da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito cuja satisfação coactiva constitui objecto da execução recai, pois, sobre o embargante[2]. Portanto, a oposição não provoca qualquer refracção às regras gerais sobre a distribuição do ónus da prova. Assim, por exemplo, se o embargante impugnar a letra ou assinatura do documento particular que constitua o título executivo, cabe ao exequente, que o apresentou, a prova da veracidade de uma e de outra (artº 374 nº 2 do Código Civil)[3]. Da mesma maneira, é sobre o opoente que recai o encargo de provar, por exemplo, a prescrição da obrigação, ou melhor, os seus elementos estruturais: a não exigência do crédito pelo exequente; o decurso do lapso prescricional (artº 342 nº 2 do Código Civil). Se o executado conseguir provar estes dois elementos estruturais da prescrição – prescrição que, sendo, para este efeito, um facto extintivo do direito de crédito de crédito alegado pelo exequente, é ao mesmo tempo fonte do direito potestativo invocado pelo executado de extinguir a relação obrigacional – passa a ser sobre o exequente que recai o ónus de provar o facto extintivo – renúncia do executado à prescrição – do direito potestativo invocado pelo devedor[4].
      Pela mesma razão, é sobre o embargante, subscritor da letra ou da livrança emitida em branco, preenchida posteriormente, que serve de suporte à execução, que recai o ónus da prova da existência do acordo de preenchimento e da sua inobservância[5].
A acção executiva, que visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado, tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (artºs 2, 4 nº 3 e 45 nº 1 do CPC).
      A exequibilidade extrínseca da pretensão é atribuída pela incorporação da pretensão no título executivo, i.e., num documento que formaliza, por disposição da lei, a faculdade de realização coactiva da prestação não cumprida (artº 45 nº 1 do CPC).
      O título executivo cumpre, no processo executivo, uma função de legitimação: ele determina as pessoas com legitimidade processual para a acção executiva e, salvo oposição do executado, ou vício de conhecimento oficioso, é suficiente para iniciar e efectivar a execução.
      O título executivo é o documento da qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização da correspondente pretensão através de uma acção executiva. Este título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação[6].
      O título executivo exerce, assim, uma função constitutiva – dado que atribui exequibilidade a uma pretensão, permitindo que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal – uma função probatória – o título executivo é um documento e a sua eficácia probatória é aquela que corresponde ao respectivo documento[7] - e uma função delimitadora: é por ele que se determinam o fim e os limites, subjectivos e objectivos, da acção executiva (artº 45 nº 1 do CPC)[8].
      A acção executiva visa a realização coactiva de uma prestação ou de um seu equivalente pecuniário. A exequibilidade da pretensão, na qual se contém a faculdade de exigir a prestação, e, portanto, a possibilidade de realização coactiva desta prestação, deve resultar do título.
      O título deve, portanto, incorporar o direito de execução, quer dizer o direito do credor de obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação.
      Nestas condições não pode ser reconhecido valor executivo ao documento que não contenha, ao menos implicitamente, a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação e o correspondente dever de cumprimento. Para que possa ser usado como título executivo o documento deve incorporar o direito a uma prestação; quando isso não ocorre, nada há a prestar por um sujeito passivo e, por isso, nada há a executar.
      Nos casos em que documento que serve de suporte ao accionamento executivo não incorpora a faculdade de exigir o cumprimento de uma prestação, o título correspondente é extrinsecamente inexequível.
      A inexequibilidade extrínseca do título constitui idóneo fundamento de contestação da execução (artºs 814 a), 2ª parte, e 816 do CPC). Se for considerado procedente, esse fundamento traduz-se na falta de um pressuposto processual da execução, o que conduz à instância executiva bem como à caducidade de todos os efeitos produzidos na execução (artº 817 nº 4 do CPC).
      Na verdade, o objecto da acção executiva é necessariamente, e apenas, um direito a uma prestação, visto que só este direito impõe um dever de prestar e só este dever de prestar pode ser imposto coactivamente.
Um dos títulos que serve de suporte à execução é um documento autêntico – i.e., um documento exarado, no caso, por um notário - que importa a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação pecuniária (artºs 362 nº 2 do Código Civil, 51 nº 2 do Código do Notariado e 46 b) do CPC).
Não vem oferecida qualquer dúvida, por mais leve que seja, que a escritura pública oferecida pela recorrida como título executivo, documenta a celebração entre aquela, e embargante “A”, Lda., de um contrato de mútuo (artº 1142 do Código Civil)[9]. Desde que, de harmonia com a alegação do apelado, este entregou aos réus coisas fungíveis – uma dada quantidade de espécies monetárias, rectior, dinheiro – ficando os últimos adstritos ao dever de as restituir, é indiscutível que concluíram entre si um contrato de mútuo.
      O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto, como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato[10]. Trata-se de uma concepção em clara regressão: de todo o modo, não haverá dificuldades em admitir, ao lado do mútuo típico real – que é aquele que surge regulado no Código Civil - mútuos meramente consensuais[11].
      Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando, a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.
E é precisamente essa obrigação pecuniária de dare, ou melhor, esse dever de prestar, que o exequente pretende ver realizado coactivamente. O objecto da execução é uma pretensão e a correspondente causa debendi, que constitui a causa de pedir dessa acção. No caso, a causa de pedir do pedido de realização coactiva da prestação correspondente à quantia mutuada não restituída é o próprio fundamento deste dever de restituição, i.e., o incumprimento do contrato de mútuo.
Todavia, aquele título apenas impõe um dever de prestar à executada “A”, Lda. e já não aos demais executados. Para demonstrar a vinculação dos últimos a um dever de prestar idêntico ao daquela, o exequente brande ou exibe um outro título: uma livrança.
Realmente, o instrumento de que o exequente é portador é legalmente qualificado como livrança, no qual aquele, a executada “A” e os demais executados, pessoas singulares, figuram nas posições jurídicas de tomador, subscritor e avalistas, respectivamente (artº 75 da LUsLL).
      Por força da promessa de pagamento em que se resolve a declaração cambiária de subscrição, a executada “A”, Lda. - subscritor - obrigou-se a pagá-la ao portador no vencimento, rectior, a entregar-lhe a quantidade de espécies pecuniárias nela inscrita; (artº 28, ex-vi artº 78 da LUsLL).
      Por força da declaração cambiária de aval – que consiste, justamente, no acto pelo qual um terceiro ou um signatário da livrança garante o pagamento dela por parte de dos seus subscritores – os executados pessoas singulares, assumiram uma obrigação de garantia – garantia da obrigação do avalizado, que cobre e cauciona (artºs 30 e 31, ex-vi artº 77, XI, da LUsLL).
A lei é terminante na declaração que o dador do aval é responsável da pessoa por ele afiançada (artº 32, I, da LUsLL). Trata-se, todavia, não de uma responsabilidade subsidiária – mas de uma responsabilidade solidária, dado que não goza do benefício da excussão prévia (artº 47, I, da LUsLL). Além de não ser subsidiária, aquela obrigação só imperfeitamente é uma obrigação acessória relativamente a do avalizado: trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da obrigação do avalizado no plano formal, dado que a obrigação do avalista se mantém ainda que a obrigação garantida seja nula, excepto se nulidade decorrer de vício de forma.
A livrança pode ser entregue a terceiro e entrar na circulação em branco.
Livrança em branco é aquela em que falta algum dos requisitos enunciados na lei, mas que incorpora, ao menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária.
      Para que exista uma livrança em branco é necessário que lhe falte algum ou alguns dos requisitos essenciais da livrança, havendo no entanto, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário; este obrigado segundo uma opinião só pode ser o subscritor, embora segundo outra – doutrina que se tem por preferível – possa ser pessoa diversa do subscritor[12].
      A lei não faz distinção nem põe limitações acerca da extensão do que falta no título, podendo ser deixadas em branco todas as declarações necessárias para a existência da livrança ou só algumas delas (artº 10, ex-vi artº 77, 11ª parte, da LUsLL). Basta, portanto, que no título destinado a tornar-se livrança exista uma assinatura que possa valer como assinatura do subscritor ou de outro obrigado cambiário, porque doutro modo não poderia verificar-se a hipótese prevista na lei de uma livrança incompleta quando foi emitida, i.e., de uma livrança susceptível de ser completada sem necessidade de uma ulterior cooperação do emitente (artº 10, ex-vi artº 77, 11ª parte, da LUsLL)[13].
      Para existência de uma livrança em branco é necessário que o documento incompleto, subscrito pelo tomador ou outro subscritor, tenha sido emitida, ou seja entregue ao tomador, ou tenha de algum modo chegado à posse de um terceiro.
      A livrança em branco não é, enquanto lhe faltar qualquer elemento essencial, uma livrança plenamente eficaz, sendo, porém, para muitos autores, já um título de crédito endossável, com fundamento no qual o crédito e a obrigação não surgem apenas com o preenchimento, embora esta seja necessário para fazer valer os direitos cambiários. Para haver um tal livrança, é preciso que lhe falta algum ou alguns dos elementos essenciais, havendo, contudo, pelo menos a assinatura do emitente ou de qualquer outro subscritor[14].
      A entrega do título é, nos termos gerais, um elemento essencial à validade da própria obrigação cambiária, e, portanto, a obrigação cambiária não surge se não se verificar a emissão da livrança pelo seu possuidor.
      Tratando-se, porém, de livrança em branco, a entrega da livrança deve ser acompanhada de uma autorização, pelo subscritor ao credor, para a preencher. Faltando essa autorização o caso não é de livrança em branco – mas de livrança incompleta.
      Com a entrega da livrança assinada em branco o subscritor confere, necessariamente, à pessoa a quem faz a entrega o poder de a preencher e, portanto, o acto de preenchimento tem o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição. Aquilo que se escreve na livrança em branco considera-se escrito pelo subscritor, sendo de presumir que o conteúdo da letra representa a vontade daquele; esta presunção pode, no entanto, ser ilidida pelo subscritor demonstrando que houve abuso no preenchimento[15].
      Quem assina, como subscritor, uma livrança em branco, pratica precisamente um acto jurídico que tem a mesma natureza que teria se a livrança estivesse, no acto da assinatura, totalmente preenchida: ninguém apõe normalmente a sua assinatura numa livrança sem ter a intenção de assumir uma obrigação cambiária.
      Antes de assinar ou de entregar a livrança em branco, o subscritor pode, porém, convencionar com o credor em que termos deve ser feito o preenchimento, qual o conteúdo dos elementos essenciais da letra ainda em falta. Esta convenção não está sujeita a forma especial[16].
      Existindo esta convenção, se houver abuso no preenchimento, i.e., se o possuidor da livrança inserir nela contexto diverso do convencionado, pode o subscritor opor a excepção de abuso. A excepção consiste, precisamente, na alegação de que a livrança foi assinada e entregue em branco e que o contexto é diferente do que se ajustara. Como já se observou a prova desta alegação incumbe, claro está, ao subscritor ou subscritores (artºs 342 nº 2 e 378 do Código Civil)[17].
      Ao avalista é também facultada a alegação da excepção, desde que tenha tido intervenção no pacto de preenchimento: em tal caso, porém, compete-lhe a alegação e a prova do preenchimento abusivo[18].
      Como consequência do carácter literal e abstracto que a obrigação cambiária assume logo que o título na qual se inscreve constitutivamente entra na circulação, a oponibilidade da excepção sofre, porém, um desvio notável: a excepção do preenchimento abusivo não pode ser oposta àquele portador que a recebe completamente preenchida, salvo se este, ao adquiri-la, estiver de má ou, adquirindo-a, cometer falta grave (artº 10 da LUsLL)[19].
Com o nítido propósito de facilitar a circulação da livrança em branco, estabelece-se como momento decisivo para avaliar da boa ou má fé do portador mediato, o da recepção da livrança: a má fé posterior não releva. Portanto, o conhecimento do real conteúdo da convenção de preenchimento ou o seu desconhecimento por grave negligência só relevam, para recusar ao portador a protecção, se ocorrerem no momento da transmissão do título. A má fé superveniente, que consiste no conhecimento ou na ignorância negligente daquele preenchimento abusivo, é, assim, indiferente.
Para além de literal, a obrigação cambiária é também abstracta. A criação da obrigação cartular pressupõe uma relação jurídica anterior que constitui a relação jurídica subjacente ou fundamental, causa remota da assunção da obrigação cambiária. Todavia, por força do princípio da abstracção, a causa encontra-se separada do negócio jurídico cambiário, decorrente de uma convenção extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental.
      A obrigação cambiária é vinculante independentemente dos vícios da sua causa: as excepções causais são inoponíveis ao portador da livrança precisamente porque decorrem de uma convenção executiva extra-cartular, exterior ao negócio jurídico cambiário (artº 17, ex-vi artº 77, 1ª parte, da LUsLL).
      Mas isto só é assim nas relações mediatas – i.e., aquelas que se verificam entre um subscritor e um portador que se lhe não siga imediatamente na cadeia cambiária e que, portanto, não é sujeito da convenção extra-cartular - as excepções ex-causa só são oponíveis demonstrando-se que o portador, ao adquirir a livrança, procedeu, conscientemente, em detrimento daquele que lhe opõe a excepção (artº 17, ex-vi artº 77, 1ª parte, da LUsLL).
      Portanto, o devedor não pode opor a terceiros excepções fundadas na relação fundamental ou causal da livrança, a não ser que esses terceiros tenham, ao adquiri-lo, procedido conscientemente em detrimento do devedor.
      É, portanto, indispensável que o portador tenha agido, ao adquirir a livrança, com a consciência de prejudicar o devedor. No entanto, uma coisa é a intenção de prejudicar, outra, a consciência de prejudicar: o portador, ao adquirir a livrança, pode agir com o propósito de prejudicar o devedor mediante a inoponibilidade, por este, das excepções que tinha contra os precedentes portadores e pode proceder apenas com conhecimento dessas excepções e do prejuízo que é causado ao devedor com a perda delas. O adquirente da livrança, embora não a adquira com a intenção de iludir as excepções do devedor, pode fazê-lo sabendo que o devedor é prejudicado pela circunstância de não poder valer-se delas contra o novo portador.
      Não é suficiente, portanto, o simples conhecimento, pelo adquirente, da existência das excepções, visto que a lei exige que o portador tenha agido conscientemente em detrimento do devedor e não age conscientemente em detrimento do devedor quem somente tem conhecimento das excepções que este poderia opor aos portadores antecedentes; não obstante esse conhecimento, pode o adquirente ter razões para supor que o devedor não será prejudicado, não excluindo, necessariamente, esse conhecimento, a boa fé do adquirente. Exige-se, assim, que o adquirente ao adquirir a livrança conhecesse a existência da excepção e tivesse consciência de prejudicar o devedor: uma tal consciência significa ter o adquirente conhecimento de que prejudica, com a perda das excepções o devedor, e que ele aceita, voluntariamente, este resultado, querendo provocá-lo ou, ao menos, aceitando-o[20]. A prova deste facto incumbe, naturalmente, ao excipiente (artº 342 nº 2 do Código Civil).
      Todavia, nas relações imediatas, i.e., nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato: porque os sujeitos cambiários o são simultaneamente da convenção executiva, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Quando isso suceda, o subscritor pode opor ao portador as excepções decorrentes das relações pessoais entre ambos.
      A abstracção da obrigação cambiária não significa, como se salientou, a ausência de uma causa de assunção dessa obrigação – mas apenas que essa causa se encontra separada do negócio cambiário, decorrendo, não dele próprio mas de uma convenção subjacente, extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental.
      Por força do princípio da abstracção, a relação jurídica fundamental, bem como a convenção executiva, ficam separadas da relação cambiária. Apesar da independência da obrigação cartular em face da relação fundamental, coloca-se ainda assim o problema de saber se a assunção da obrigação cambiária produz a novação daquela relação.
      O Assento de 8 de Julho de 1928[21] decidiu que com a subscrição da letra fica extinta por novação a obrigação fundamental; mas o Assento de 8 de Maio de 1936[22] estabeleceu, para o caso da prescrição, a doutrina de que a relação fundamental se não extingue por novação.
      Não pode entender-se que, com a subscrição de uma livrança, fique extinta, por novação, a obrigação fundamental: a novação supõe uma declaração de vontade inequívoca no sentido de extinguir uma obrigação e constituir outra em seu lugar, o que não acontece, em regra, com a subscrição de uma livrança, ainda que exista um obrigação subjacente entre as partes (artº 859 do Código Civil). A vontade das partes não é novar a obrigação – mas constituir ao lado da obrigação já existente, uma outra, isto é ao lado da obrigação causal ou fundamental, uma obrigação cambiária, a qual não é dada em cumprimento – in solutum – mas só pro solvendo ou em função do cumprimento (artº 850 do Código Civil).
      Na falta de uma clara vontade nesse sentido, não ocorre uma novação ou dação em cumprimento – datio in solutum – mas uma simples dação pro solvendo, quer dizer a constituição de uma obrigação cambiária destinada a facilitar ao credor a satisfação do seu crédito (artº 840 do Código Civil)[23].
      Desde que não haja intenção de, ao subscrever a livrança, novar a obrigação fundamental, destinando-se a nova obrigação cambiária a facilitar ao credor a realização do seu crédito – dação pro solvendo ou em função do cumprimento – o propósito das partes não é cercear os direitos do credor mas aumentá-los, dando-lhe, além do que já tinha, um novo crédito – o crédito cambiário – que, pelas garantias de que está cercado, é susceptível de lhe dar um meio mais ágil e seguro de obter a satisfação do seu direito.
      Nestas condições, dado que o devedor efectua uma prestação diversa da devida, para tornar mais fácil ao credor a realização do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida em que o for (artº 840 nº 1 do Código Civil). E como a dação tem por objecto a assunção de uma nova dívida, presume-se feita nesses termos, i.e., pro solvendo, presunção especialmente importante no caso de entrega de uma livrança, de uma letra ou de um cheque (artº 840 nº 2 do Código Civil).
      A dação tem, pois, a vantagem de facilitar ao credor a satisfação do seu direito, sem perder os benefícios do seu crédito. Nestas condições, a vontade usual das partes parece ser a de que o credor procure primeiro a sua satisfação através da coisa ou direito prestados pro solvendo, dado que, fazendo a dação, quererá, em regra, que o credor se pague por esse meio e este o aceita.
      Se devedor emite a livrança com a convenção de que a dívida se extingue com a emissão dela, há novação. Na dúvida, porém, deve admitir-se que a nova dívida é contraída pro solvendo e não pro solutum, caso em que o credor fica com dois créditos, mas é obrigado, segundo a vontade presumida das partes, a procurar, primeiro, a sua satisfação pelo novo crédito.
      A dação pro solvendo é, no fundo, um mandato conferido pelo devedor ao credor para liquidar o crédito dado: se o credor exigir ao devedor o cumprimento da obrigação originária, pode este opor que aquele é obrigado a procurar primeiro a sua satisfação pelo direito ou coisa prestada pro solvendo; se, porém, o contrário não resultar da convenção, pode o credor, oferecendo a restituição do objecto da dação, afastar a excepção, visto que a dação pode presumir-se feita principalmente no seu interesse.
      Dada a sua função, ao credor só assiste o direito de actuar o novo crédito se e enquanto for titular do crédito originário, pois foi justamente para facilitar a satisfação deste que foi constituída a obrigação cambiária.
      Como se notou, a executada “A” Lda., o exequente, e os demais executados, pessoas singulares figuram na livrança nas qualidades cambiárias de subscritor, tomador e avalistas, respectivamente. A exequente é portadora imediata da livrança, o sujeito cambiário imediato do subscritor: aquela e estes encontram-se, pois, no domínio das relações imediatas.
      Assim, dado que os sujeitos cambiários o são simultaneamente das convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser abstracta. O exequente está, por isso, sujeito às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem, sendo por isso lícito aos executados opor ou invocar toda e qualquer excepção causal.
      Os recorrentes não alegam ter satisfeito a prestação pecuniária cuja realização coactiva é pedida pelo recorrido na acção executiva. Como a alegação e a prova desse facto extintivo daquele direito de crédito lhes competia, a questão de facto correspondente deve, por isso, ser resolvida contra eles (artºs 516 do CPC, 342 nº 2 e 346, 2º parte, do CPC).
      O títulos em que se funda à execução são, portanto, extrinsecamente exequíveis dado que deles resulta, designadamente para os recorrentes, um dever de prestar, um dever de cumprimento de uma obrigação.
      Não se suscitando qualquer dúvida quanto à exequibilidade extrínseca dos títulos, segue-se, naturalmente, que o fundamento de oposição invocado pelos embargantes tem, necessariamente, de ser reconduzido, ao problema da inexequibilidade intrínseca das obrigações neles incorporadas.
A inexequibilidade – extrínseca – do título executivo decorre do não preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica: a inexequibilidade – intrínseca - da pretensão baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar (artº 814 a) e g), 1ª parte do CPC).
Na espécie do recurso, os factos que, no ver dos recorrentes, tolhem essa inexequibilidade são os seguintes: a anterioridade do pacto de preenchimento da livrança relativamente à data em que, na escritura pública que documenta a conclusão do contrato de mútuo, se convencionou a entrega da livrança em branco; a circunstância de livrança e a autorização do seu preenchimento terem sido emitidas para garantia de uma operação de crédito à habitação e não para garantia do empréstimo para aquisição de um espaço comercial; a indeterminabilidade das obrigações garantidas pela hipoteca.
Relativamente a esta alegação, o primeiro ponto que convém por em claro é que o primeiro fundamento da oposição - a anterioridade do pacto de preenchimento da livrança relativamente à data em que, na escritura pública que documenta a conclusão do contrato de mútuo, se convencionou a entrega da livrança em branco – só colhe no tocante aos avalistas e não também relativamente à executada que detém a dupla qualidade de mutuária e subscritora da livrança: é que no tocante a esta última, o pacto de preenchimento da livrança foi também convencionado na escritura pública que documenta a conclusão do contrato e a constituição das obrigações correspondentes cuja satisfação se visou facilitar com a criação da – nova – obrigação cartular.
Como já se salientou, considerada a função que se deve assinalar à emissão da livrança, ao credor só assiste o direito de actuar o – novo – crédito que dela emerge se e enquanto for titular do crédito originário, pois foi justamente para facilitar a satisfação deste que foi constituída a obrigação cambiária. Caso se deva concluir que o crédito originário, por qualquer causa, se extinguiu ou nem sequer se chegou a constituir, então é claro que ao portador daquele título não assiste o direito de exigir do subscritor e dos demais obrigados a satisfação do crédito nele incorporado.
Justifica-se, por isso, que exposição subsequente se abra com a abordagem do problema da determinabilidade das obrigações emergentes do contrato de mútuo, garantidas pela hipoteca. De resto, sempre se imporia uma tal metodologia, dado que um dos executados – “A”, Lda. – tem a dupla qualidade de obrigado cambiário e de mutuário.
      3.3. A obrigação exequenda de conteúdo indeterminado.
      Um dos requisitos do negócio jurídico – de qualquer negócio jurídico – é decerto da determinabilidade do seu objecto. O Código Civil é terminante em declarar nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável (artº 280 nº 1 do Código Civil). O objecto do negócio jurídico pode ser indeterminado – o que não pode é ser indeterminável.
      Indeterminação e indeterminabilidade são, na verdade, realidades distintas: a prestação é indeterminada mas determinável quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu conteúdo, mas não obstante exista um critério de determinação. Exemplos acabados são, decerto, os representados pelas obrigações alternativas e pelas obrigações genéricas; a prestação é indeterminada e indeterminável quando não exista qualquer critério para proceder à determinação. Neste caso, a única saída possível, é a da nulidade da obrigação.
      O negócio jurídico deve, portanto, dar lugar a prestações conhecidas ou pelo menos, cognoscíveis, pelas partes. Podem as partes, no momento da conclusão do negócio, não fixar o conteúdo das prestações de ambas ou de algumas delas. Mas isso não torna a obrigação nula, desde que, logo nesse momento, seja convencionado o critério que permita a concretização ou determinação do conteúdo da prestação ou prestações. De resto, a própria lei disponibiliza critérios de determinação da obrigação: a determinação da prestação pode ser confiada a uma ou outra das partes ou a terceiro, devendo ser actuada segundo critérios de equidade se outros critérios não tiverem sido convencionados; e se a determinação não puder ser feita, sê-lo-á pelo tribunal (artº 400 nºs 1 e 2 do Código Civil).
      Problema de solução difícil é o de saber como se articula a possibilidade de conclusão de negócios cujo objecto embora indeterminado seja determinável com os esquemas disponibilizados pela lei para a determinação, já que, por força desta última previsão, pareceria nunca haver prestações indeterminadas, dado que nunca faltariam, em última extremidade, o tribunal nem a equidade, para proceder à determinação.
      A solução exacta parece ser a da interpretação conjugada dos dois preceitos, de que se extrai esta regra: o problema da determinação da prestação, nos termos do artº 400 do Código Civil, só se coloca se a obrigação não for nula, por força do artº 280 do mesmo Código[24].
      Portanto, a determinação da prestação – por uma das partes, por ambas ou por terceiros – só pode ser convencionada se tiver sido estabelecido um critério – que pode ser mais ou menos vago - a que a actividade de determinação deva obedecer: o que, porém, não é admissível é que o negócio deixe, ad nutum, tudo ao arbítrio de uma parte ou de terceiro. É, portanto, nulo o negócio jurídico pelo qual uma parte se obriga a pagar à outra o que esta quiser, dado que dá origem a uma prestação absurdamente incontrolável.
      O problema da determinabilidade do negócio tem sido debatido sobretudo a propósito da fiança omnibus de obrigações futuras e deu lugar a uma jurisprudência desencontrada, só tendo a unidade do direito sido estabelecida pelo acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo nº 4/2001, de 23 de Janeiro de 2001[25], que estabeleceu esta doutrina: É nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.
      Deve, portanto, exigir-se que, no momento da conclusão do negócio, se consigne um critério objectivo e limitativo de determinação, que seja determinado o título de que a obrigação futura poderá ou deverá resultar; de contrário, quando não se encontre para a determinação da obrigação um qualquer critério objectivo – com a consequente colocação ilimitada do devedor nas mãos do credor - aquela deve ter-se por irremissivelmente nula (artº 280 nº 1 do Código Civil). Como é claro, esse critério não pode ser o mero arbítrio, sem limites, do credor ou de terceiro.
      A exigência de determinabilidade é transversal a qualquer prestação: é, portanto, aplicável às obrigações emergentes de um contrato de mútuo bancário e de negócios jurídicos cambiários.
      Note-se que, ao contrário do que supõe a decisão recorrida, a obrigação indeterminável não coloca um problema de exigibilidade, certeza ou liquidez dessa obrigação – mas de validade dela: a inexequibilidade intrínseca não resulta da falta daqueles requisitos da obrigação exequenda, mas da invalidade dessa mesma obrigação.
      Para se ficar na posse de todos os elementos indispensáveis para declarar o direito do caso, resta aferir o âmbito da garantia real disponibilizada pela hipoteca.
      3.4. Âmbito da hipoteca.
      As garantias especiais das obrigações podem operar por via real, i.e., pela afectação de coisas com vista ao reforço de certos créditos. Quando isso ocorre, temos as garantias reais ou direitos reais de garantia. Dizem-se, portanto, direitos reais de garantia, aqueles que se destinam, globalmente, a assegurar a garantia dos direitos de crédito, a afectar bens, seja do devedor ou de terceiro, ao pagamento preferencial de certo crédito[26].
      Entre as garantias reais interessa à economia do recurso, a hipoteca.
      A hipoteca – que confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certa coisa, imóvel ou equiparada, do devedor ou de terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – traduz a mais sólida garantia das obrigações (artº 686 do Código Civil)[27].
      Ao contrário de outros sistemas, v.g., o alemão, os direitos constituem-se no Direito português independentemente do registo. A regra não foi alterada pelo encargo do registo: o registo exige-se, por banda do alienante, para a celebração formal válida do negócio e não, do lado do adquirente, para o ingresso efectivo, na sua esfera jurídica, da situação em causa.
      Exceptua-se, a esse princípio, a hipoteca: esta só produz efeitos – quaisquer efeitos – depois de registada. A qualificação deste fenómeno é controversa. Entende-se, porém, que uma posição privada de quaisquer efeitos não existe: o registo da hipoteca revela-se, pois, constitutivo (artºs 687 do Código Civil e 4 nº 2 do CR Predial)[28]. A hipoteca é, portanto, um direito real sujeito a publicidade registral constitutiva.
      De harmonia com a sua forma ou título de constituição, a hipoteca diz-se legal, judicial ou voluntária (artº 703 do Código Civil).
      Hipoteca voluntária é aquela que emerge de contrato ou de declaração unilateral, fórmula com que a leu pretende dizer que a hipoteca voluntária é a constituída por acto jurídico, contratual ou unilateral, negocial ou não (artº 712 do Código Civil).  
      A hipoteca é um direito real. Ergo, de harmonia com o princípio da especialidade, ela é nula se não se individualizar os bens sobre que incide (artº 716 do Código Civil).
A hipoteca entende-se sujeita ao princípio da especialidade, que é imposto pela exigência do seu registo - constitutivo – sobre bens especialmente determinados – do devedor ou de terceiro – e de determinação do crédito cuja satisfação garante[29]. Relativamente ao crédito garantido, a hipoteca tem de assegurar uma quantia determinada, pelo menos aproximadamente, isto é, tem de se especificar a responsabilidade assegurada pela hipoteca. Esta não pode garantir quaisquer responsabilidades indeterminadas. A hipoteca é, pois, especial no sentido de que se estabelece para determinada responsabilidade.
      O princípio da especialidade no tocante ao crédito garantido exige – por evidentes razões de protecção de terceiros, do tráfico jurídico em geral e, mesmo do devedor – que compreenda apenas o valor do crédito publicitado pelo registo. Mas isso não impede a extensão da garantia que disponibiliza aos acessórios desse crédito – v.g. juros e despesas – desde que esses acessórios constem da inscrição registral (artº 693 nº 1 do Código Civil).
      Tratando-se dos juros – que tanto podem ser remuneratórios como moratórios - a hipoteca nunca abrange mais do que os relativos a três anos – que se conta do momento do incumprimento pelo devedor da obrigação garantida[30] - embora isso não impeça o credor de fazer registar nova hipoteca em relação aos juros vencidos em dívida (artº 693 nº 2 do Código Civil).
      A finalidade da limitação é clara: estimular a diligência do credor, levando-o a recorrer a juízo sem grandes demoras e praticar com a máxima prontidão todos os actos necessários, e imputar os riscos das demoras processuais ao credor e ao devedor, protegendo-se este e os seus outros credores contra a delapidação do seu património, causada pela acumulação dos juros vencidos, durante processos relativamente dilatados, cuja duração não controlam[31].
      Questão que não tem recebido uma resposta acorde é o de saber se a garantia disponibilizada pela hipoteca abrange os juros vencidos durante a execução do crédito garantido. Uma jurisprudência largamente maioritária concluiu, porém – argumentando com a necessidade de estimular a diligência do credor e com faculdade que a lei lhe reconhece quer de registar nova hipoteca quer de executar o crédito de juros por mais de três anos, embora não compreendidos na garantia - que o prazo de três anos abrange os juros vencidos na execução[32].
      Note-se, no entanto, que a lei não proíbe ao credor hipotecário que promova a execução por juros de mais de três anos. Apenas o proíbe de beneficiar da preferência disponibilizada pela hipoteca no tocante a esses juros que ficam sujeitos ao regime dos créditos comuns.
      Isto mostra, de resto, que o problema da extensão da hipoteca, no contexto da acção executiva promovida pelo credor hipotecário, só assume relevância no caso de existirem, além do exequente, outros credores com garantias reais sobre os bens penhorados, ou uma segunda penhora, dado que só nesse caso é necessário hierarquizar o crédito do exequente na sua relação com os créditos que beneficiam dessas garantias ou daquela penhora.
      Este viaticum permite-nos resolver a questão controversa que os recorrentes colocam à atenção deste Tribunal.
      3.5. Concretização.
      A leitura do instrumento que documenta as declarações de vontade integrantes do contrato de mútuo é inteiramente liquida quanto à quantia mutuada – 3 750 000$00 – e à sua entrega, ao prazo de restituição dela – 10 anos - à taxa de juro convencionada – 12,5% - quanto ao agravamento dessa taxa em caso de mora – 18% - acrescida de sobretaxa de 4% - e ao modo de reembolso da quantia mutuada e da renumeração convencionada.
      É verdade que no tocante à taxa de juros remuneratórios e moratórios se pode ler na escritura que é a taxa de referência hipotecária, praticada e publicitada pelo mutuante, e a taxa básica a 180 dias, praticada e publicitada pelo banco, respectivamente. Mas não é menos que qualquer dessas taxas é logo concretizada, no mesmo documento, em 12,5% e 18%, respectivamente. E são essas taxas de juro que a inscrição registral do facto da constituição da hipoteca torna patente e são elas que são pedidas pelo exequente na execução.
      A obrigação mostra-se, portanto, inteira e perfeitamente determinada.
      Mas mesmo que, ex-adverso, o contrário se devesse entender, sempre se imporia a conclusão de o contrato estabelece o critério a que a determinação de qualquer dessas taxas deveria obedecer. Nestas condições, a obrigação seria, no momento da conclusão do contrato, indeterminada – mas não indeterminável.
      Em qualquer caso, o problema da determinabilidade – e, portanto, da nulidade - da obrigação não se colocaria no tocante a toda ela, mas apenas à obrigação acessória de juros: a obrigação de capital, essa, é absolutamente determinada.
      Quanto a este ponto, a impugnação é, de todo, infundada.
      Tanto a emissão da livrança como a conclusão do pacto do seu preenchimento anteriores à celebração e à perfeição do contrato de mútuo bancário; esse pacto foi reiterado pela subscritora da livrança no momento da conclusão daquele contrato bancário.
      Mas esta circunstância em nada tolhe a válida assunção da obrigação cambiária e a válida constituição do direito de crédito correspondente, já que nada vincula a que assunção daquela obrigação e a constituição deste crédito sejam contemporâneos ou posteriores à constituição do crédito para cuja satisfação foi criado o crédito cambiário. Dito doutro modo: o crédito cambiário pode ser constituído para facilitar ao credor a satisfação de um crédito futuro, de um crédito a constituir. Em tal caso, bem pode dizer-se que a assunção da obrigação cambiária é puramente condicional, ficando, ao menos tacitamente, subordinada à condição de constituição do crédito a que pretende adicionar o crédito cartular, ficando salva aos obrigados cambiários a faculdade de opor ao credor, ao menos nas relações imediatas, a excepção correspondente (artº 270 do Código Civil).
      De resto, é da natureza da livrança em branco não a indeterminação do dever de prestar – mas a indeterminação do quantum dessa prestação e é, justamente, a indeterminação do quantitativo dessa obrigação que explica o recurso, no comércio jurídico, à emissão em branco desse título de crédito.
      Por força da sua emissão em branco também no tocante à quantia que o subscritor prometeu pagar ao portador, a obrigação da subscritora e, por inerência, dos avalistas não se mostra quantitativamente determinada. Todavia, o exequente e os executados convencionaram ou ajustaram os termos em que, também quanto a esse ponto, a livrança deveria ser preenchida.
      Portanto, a obrigação cambiária – rectius, o seu quantitativo - no momento da sua emissão, era indeterminada, mas mão indeterminável, dado que por convenção que lhe é exterior, se pactuou o critério de determinação dela: o valor dela seria o valor da obrigação resultante da falta de cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades decorrentes da operação de crédito à habitação.
      Notam os recorrentes que o crédito cuja satisfação se visou facilitar com a criação da obrigação cambiária – o resultante do incumprimento das obrigações de restituição da quantia mutuada e de pagamento da remuneração acordada contraídas pela executada “A”, Lda., – não emergiu de uma operação de crédito à habitação – mas de uma operação de crédito para aquisição de um espaço comercial e para o financiamento das respectivas obras.
      Realmente, a escritura pública que cristaliza as declarações de vontade do contrato de mútuo concluído entre a executada “A”, Lda. e o exequente e documenta a entrega da quantia pecuniária mutuada, mostra que esta quantia teve por finalidade a aquisição de uma loja e a realização de obras de beneficiação.
      Todavia, é claro que a objecção não colhe, desde logo relativamente à executada “A” Lda., dado que este reiterou o pacto de preenchimento na escritura pública que documenta a celebração do mútuo, nela logo se tendo feito constar que a entrega da livrança tinha por finalidade a garantia do bom pagamento de quaisquer obrigações ou responsabilidades emergentes do presente contrato e que autorizava o exequente, a, em caso de falta de cumprimento do presente empréstimo, a preencher pelo valor que lhe for devido, conforme o preceituado neste contrato.
      Depois, é perfeitamente líquido que todos os demais obrigados cambiários estavam inteirados que a obrigação caucionada pela livrança era a contraída pela executada “A”, pelo contrato de mútuo bancário documentado naquela escritura. Esta conclusão é imposta pela qualidade em que aqueles vinculados assumiram a obrigação cambiária: a de sócios – ou de cônjuges desses sócios - da mutuária, sendo, aliás, que dois desses sócios tinham também a qualidade de gerentes, tendo sido eles, que no exercício da sua competência de representação da mutuária, contraíram a obrigação garantida pela livrança.
      Notam os recorrentes, com exactidão, que, no tocante aos juros, a hipoteca apenas abrange os dos últimos três anos. Mas isso – notamos nós – não impede que credor hipotecário promova a execução por juros de mais de três anos: apenas o proíbe de beneficiar da preferência disponibilizada pela hipoteca no tocante a esses juros que ficam sujeitos ao regime dos créditos comuns.
      Nestas condições, a conclusão a tirar é que os títulos que servem de suporte à acção executiva são extrínseca e intrinsecamente exequíveis, dado que incorporam o direito a uma prestação, relativamente à qual não se mostra existir qualquer vício material ou excepção peremptória que impeça a sua realização coactiva.
      A improcedência do recurso é, assim, meramente consequencial.
      Os recorrentes dada a sua sucumbência no recurso, deverão suportar as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).


4. Decisão.
      Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

      Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 10 de Março de 2011

Henrique Antunes
Ondina Carmo Alves
Maria da Luz Borrero Figueiredo
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[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pág. 177.
[3] Cfr., v.g., Acs. da RC de 06.02.90, BMJ nº 394, pág. nº 330, pág. 543 e da RL de 04.11.97, BMJ nº 471, pág. 448.
[4] Acs. da RP de 10.10.95, CJ, XX, IV, pág. 211 e do STJ de 01.10.98, www.dgsi.pt.
[5] Assim, no tocante a cheque emitido com data em branco, completado posteriormente, cfr., o Assento do STJ de 14 de Maio de 1996, DR, II Série, de 11 de Julho de 1996. Cfr. Acs. do STJ de 28.07.92, BMJ nº 219, pág. 235 de 28.05.96, BMJ nº 457, pág., 401, de 17.04.08 e 23.04.09, www.dgsi.pt., da RP de 21.10.96, CJ, 96, V, pág. 183 e 27.01.98, CJ, STJ, 98, I, pág. 40. No caso de non liquet, aplica-se igualmente, quer as regras gerais quer as eventuais regras especiais (artºs 516 do CPC e 346 nº 2 do Código Civil). Cfr. Ac. da RP de 05.02.98, CJ, 98, I, pág. 207.
[6] J. C. Ferreira de Almeida, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19, (1965), pág. 317 e ss.
[7] O título executivo só formalmente é um documento – apresenta-se sempre como um documento; materialmente é um meio de demonstração legal, o qual poder ser um meio documental, como v.g., de títulos de crédito, ou um acto, como no caso de sentença. Título executivo é aquilo que convence o tribunal exequente de que existe o crédito exequendo, é o facto primário da sua convicção. Mesmo materialmente, o título executivo tem primariamente função demonstrativa (probatória, gnoseológica) e só secundariamente função constitutiva (ontológica). Castro Mendes, A Causa de Pedir na Acção Executiva, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XVIII, 1964, págs. 205 e 206. O título executivo é, em termos substanciais, um instrumento legal de demonstração da existência do direito exequendo e a sua exequibilidade resulta da relativa certeza ou da suficiência da probabilidade da existência da obrigação nele consubstanciada: se a obrigação se encontra titulada por um documento escrito, pode inferir-se, com um elevado grau de probabilidade, a sua constituição. Cfr. Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Lisboa, 1970, págs. 73 e 74 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 60.
[8] A exequibilidade de um título é aferida pela lei vigente à data da proposição da acção executiva, de maneira que, ainda que o documento não possua força executiva no momento em que e elaborado, a execução torna-se admissível se essa eficácia lhe foi conferia por uma lei posterior. Relativamente às modificações da eficácia executiva de um título nas execuções pendentes rege o princípio da aplicação imediata da lei nova, sempre que esta conceda exequibilidade a um documento que anteriormente dele não dispunha, visto que, caso se devesse julgar inadmissível, por inexequibilidade do título, a execução pendente, o exequente poderia requerer de imediato uma outra acção executiva com base no mesmo título. Cfr. Acs. da RE de 02.02.89, BMJ nº 384, pág. 681 e do STJ de 29.08.93, CJ, STJ, III, pág. 49.
[9] João Redinha, Contrato de Mútuo, Direito das Obrigações, 3º volume, sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, 1991, págs. 187 a 190.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 762.
[11] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 527 e Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almeida Coimbra, pág. 156 e Vaz Serra, RLJ, Ano 93, pág. 65. A figura dos contratos reais é um efeito da inércia, um resquício da tradição romanista que parece não desempenhar hoje, designadamente quanto ao mútuo, qualquer função útil, i.e., não corresponde a qualquer interesse relevante, específico daquele tipo negocial. Neste sentido, Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, pág. 11 a 13.
[12] RLJ, Ano 55º, pág. 210.
[13] José A. Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, Coimbra Editora, 2009, págs. 65 e 66.
[14] Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª edição, Lisboa, 1990, pág. 76 e Vaz Serra, RLJ Ano 109, pág. 264 e Títulos de Crédito, BMJ nº 61, pág. 264 e Paulo Sendim, Letra de Câmbio, vol. I, Coimbra, 1979, págs. 32 a 34; Acs. do STJ de 24.10.02, 20.05.04 e 12.07.05, www.dgsi.pt. Em sentido diverso, concluindo que a letra em branco não tem efeito como letra, só surgindo como título cambiário após o preenchimento – embora atribua a este carácter retroactivo, cfr., José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, págs. 117 e 118.
[15] Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 111, pág. 168 e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra, 1985, pág. 421.
[16] Ac. do STJ de 13.12.07, www.dgsi.pt.
[17] Acs. do STJ de 28.05.96, BMJ nº 457, pág. 403, 01.10.98, BMJ nº 480, pág. 482 e 20.10.96, www.dgsi.pt.
[18] Acs. do STJ de 08.10.09, 23.04.09, 09.09.08, 04.03.08 e 19.06.07, www.dgsi.pt. Todavia, o carácter materialmente autónomo da obrigação do avalista, obsta a que este invoque como causa da respectiva nulidade a indeterminabilidade da obrigação que assumiu, com fundamento na ausência ou desconhecimento do pacto de preenchimento da livrança em branco: Ac. do STJ de 23.04.09.
[19] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1975, págs. 129 a 142.
[20] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1975, pág. 75, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pág. 37, Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª edição, Lisboa, 1990, págs. 116, 126 e 127, Vaz Serra, RLJ Ano 105, pág. 376 e Acs. do STJ de 12.10.78 e 26.06.73, BMJ nºs 280, pág. 343 e 228, pág. 233.
[21] Colecção Oficial, Ano 27º, pág. 122. O assento caducou por a LU não conter preceito semelhante ao Código Comercial – o artº 284 – a que se referia.
[22] Diário do Governo, I Série, de 22 de Maio de 1936. O Assento – agora com o simples valor de acórdão de uniformização de jurisprudência – apesar de ter sido tirado com base num texto do Código Comercial – o artº 339 – ainda se encontra em vigor (artº 17 nº 2 do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro). Cfr. Ferrer Correia, Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1975, pág. 57. Contra, entendendo que também este último caducou com a revogação da legislação de que era complementar, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pág. 234 nota 1.
[23] Vaz Serra, RLJ Anos 101 e 111, págs. 340 e 68, respectivamente; Ferrer Correia, cit., pág. 60 e José de Oliveira Ascensão, cit., págs. 234 a 236.
[24] António Menezes Cordeiro, “Impugnação pauliana de actos anteriores ao crédito – Nulidade da Fiança por débitos futuros indetermináveis – Efeitos da Impugnação, in ROA, 51 (1991) pág. 563. No mesmo sentido, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, pág. 111, Almedina, Coimbra, 2002, nota 250; sem sentido diverso, sustentando, de um aspecto, que a determinação per relationem satisfaz o requisito da determinabilidade, e de, outro, que o artº 400 do Código Civil não é aplicável, ao menos no tocante a determinação da prestação do fiador, por força do princípio fundamental do nosso ordenamento da proibição da livre ou arbitrária disposição do património de outrem, Manuel Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina Coimbra, 2000, pág. 665 e “O Mandamento da Determinabilidade na Fiança Omnibus e o AUJ nº 4/2001” in Estudos em Homenagem à Professora Doutora, Isabel de Magalhães Colaço, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 69 e 70.
[25] DR, I Série A, nº 57 de 8 de Março de 2001.
[26] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias do Cumprimento, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 97.
[27] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 515.
[28] Cfr., v.g., Ac. da RE de 31.10.96, CJ XXI, IV, pág. 293.
[29] Maria Isabel Helbling Menéres Campos, Da Hipoteca, Caracterização, Constituição e efeitos, pág. Almedina, Coimbra, 2003, 48 e 49.
[30] Ac. do STJ de 30.11.10, www.dgsi.pt.
[31] Oliveira Ascensão e Maria Augusta Mesquita França, “As repercussões da declaração de falência sobre a situação dos credores hipotecários”, in Estudos de Direito Comercial, Vol. I - Das Falências, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 55 e ss.
[32] Acs. do STJ de 11.12.72, BMJ nº 222, pág. 463, de 22.03.74, BMJ nº 235, pág. 346, de 05.01.80, BMJ nº 301, pág. 395, da RL de 11.12.79, CJ, 1979, V, pág. 1618 e da RE de 15.04.99, CJ, 1999, II, pág. 269.