Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | VIEIRA LAMIM | ||
Descritores: | BURLA ERRO OU ENGANO ASTUCIOSAMENTE PROVOCADOS INCUMPRIMENTO DO CONTRATO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/24/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | Iº No comércio jurídico, a falta de cumprimento de obrigações assumidas é uma situação frequente, que não pode ser confundida com um crime de burla, embora um vulgar contrato possa ser usado para encobrir e concretizar este crime; IIº Para que um contrato possa configurar um crime de burla é necessário que, no momento da sua celebração, o agente tenha já a intenção de não cumprir, servindo-se dele, apenas, para levar o ofendido à disposição patrimonial; IIIº Para que exista astúcia própria do crime de burla não basta qualquer mentira, é necessário um “especial requinte fraudulento”, ou uma “mentira qualificada”, só assim se garantindo a plena observância do princípio da legalidade, uma vez que «astúcia» significa «manha» ou «ardil»; IVº Apesar da imoralidade que pode acompanhar a celebração de certos negócios, o comportamento do agente só se ajusta à fattispecie penal quando, pelo recurso à mentira, à maquinação, no intuito de prejudicar o burlado ou terceiro, usa de astúcia, enquanto instrumento de deslocação patrimonial indevida; Vº Nos casos em que não é fácil estabelecer a linha divisória entre a burla e o simples ilícito civil, deve recorrer-se a índices, havendo burla: - quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; - quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; - quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; - quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; - quando há uma impossibilidade de se reparar o dano; - quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa: Iº 1. No Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº1174/06.2TAFIG, da 8ª Vara Criminal de Lisboa, em que é arguida, A..., o tribunal, após julgamento, por sentença de 22Nov.11, decidiu: “... … julgar a acusação do Ministério Público procedente por provada nos termos sobreditos, e, em consequência CONDENAM a arguida A..., como autora material de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos Arts. 217º/1, 218º/2/a) e 202º/b) do Cód. Penal, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão. … SUSPENDER a execução da pena de prisão aplicada (pelo período de 3 anos e 9 meses). Tal suspensão, ao abrigo do previsto nas disposições conjugadas dos arts. 50º/2, 52º/1/b) e 53º/3 do Cód. Penal, será : a) acompanhada de regime de prova, nos termos do art. 53º do Cód. Penal, nos termos melhor definidos infra, b) condicionada ao dever de a arguida, no prazo de 1 (um) ano após o trânsito em julgado desta decisão, proceder ao pagamento à assistente B... da quantia de pelo menos €50.000 (cinquenta mil euros) do valor em que vai condenada na parte da demanda cível, comprovando-se tal pagamento nos autos. B) Em julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e, em consequência, condenam a arguida A… a pagar à demandante B... a quantia global de €56.100,00 (cinquenta e seis mil e cem euros), acrescida de juros de mora, calculados sobre a quantia de €46.100,00 (quarenta e seis mil e cem euros) à taxa anual de 4%, desde 19/06/2006 e até integral pagamento, absolvendo-se a arguida do demais peticionado. ….”. 2. Desta decisão recorre a arguida, A..., tendo apresentado motivações, das quais extraiu as seguintes conclusões: 1 - A ora Recorrente foi condenada na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo mesmo período, pela prática, como autora material, de um crime de burla qualificada, p, e p. pelos artigos 217º nº 2, 218º nº 2, alínea a), e 202º alínea b), todos do Código Penal; 2 - O acórdão em crise, para além de lavrar em erro notório na apreciação da prova, em insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão de facto e contradição notória também na apreciação da prova, peca por alguma superficialidade e preconcebida análise crítica da prova, não fazendo a correcta interpretação e aplicação de determinados preceitos legais, nomeadamente, e entre outros, 217º nº.2, 218º nº 2, alínea a), e 202º al. b), todos do Código Penal, 1142º e segs., 559º e segs., 686º do Código Civil, 46º nº 1, c) do Código de Processo Civil e 91º e 92º nº 1 i) do Código de Registo Predial, 32º da Constituição da República Portuguesa, devendo, por conseguinte, ser revogado e substituído por outra decisão que absolva a Arguida, com as devidas e legais consequências; 3 - Relativamente à caracterização do negócio jurídico estabelecido entre a Assistente e a Arguida importa ter em consideração os factos dados como provados com os n.s 6 a 8, 13 a 15, 19, 22, 30,45 e 48 a 51; 4 - Não foi ainda dado como provado, o que consideramos incorrecto, que o bem imóvel em causa na procuração entregue pela Arguida à ofendida tivesse à data (Maio de 2006) um valor estimado de aproximadamente, nem que o valor de tal imóvel à data garantia plenamente o valor mutuado, nem que o valor de € 2.500,00 tenha sido convencionado como juros de empréstimo, nem que com isso a Assistente tenha tentado obter um ganho com o negócio, nem que a Assistente tenha transformado o empréstimo feito à Arguida num mútuo usurário, cobrando um juro mensal em muito superior aos juros legais aplicáveis; 5 - Do ponto 7 dos factos julgados provados resulta que a Arguida solicitou à Assistente um montante pecuniário (referido no ponto 6. - 50.000,00€), comprometendo-se a pagá-lo/devolver no prazo de um mês, o que mais não é que a celebração de um contrato, o qual encontra previsão legal no artigo 1142º do Código Civil: “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade"; 6 - Já pelos factos 9.,10.,11.,12.,16. e 17 da matéria provada, resulta que a Assistente acedeu a tal solicitação, disponibilizando a referida quantia à Arguida; 7- Resulta todavia do ponto 13. da matéria de facto que a Arguida entregou à Assistente, para além de uma procuração, o cheque nº ...86 (Banif), na quantia de 52.500,00€ e emitido à ordem desta; 8 - Ou seja, recorrendo novamente ao Código Civil, mormente ao disposto no nº 1 do seu artigo 1145º - “As partes podem convencionar o pagamento de juros como retribuição do mútuo; este presume-se oneroso no caso de dúvida" - temos que os contornos da relação negocial estabelecida entre Assistente e Arguida, continuam a ter configuração legal; 9 - Na verdade, é o próprio douto acórdão recorrido que refere que o que foi configurado pela Assistente e respectivos familiares aquando da celebração do negócio consubstanciava num "empréstimo" e que o valor (e respectivo pagamento) de 2.500,00€ por parte da Arguida configura uma "compensação" do valor (50.000,00€) "emprestado" pela Assistente; 10 - No momento da "celebração" do negócio estabelecido entre Arguida e Assistente não resultam dúvidas que o mesmo foi considerado por todas as partes envolvidas (incluindo a família da Assistente) que estariam perante um contrato de mútuo oneroso; 11 - É contudo notório que o Tribunal a quo esforçou-se por desculpabilizar a Assistente quanto à "compensação" que recebeu da Arguida (recebimento do montante a titulo de juros), chegando, inclusivamente, a entender que, visto que o mesmo foi proposto pela Arguida (mas aceite pela Assistente), foi (mais) um subterfúgio desta para enganar a Assistente; 12 - Ora, é mais do que natural que alguém que empreste dinheiro o faça mediante o pagamento de juros (mesmo sob proposta da parte contrária, pois não resultou provado que a Assistente sempre emprestaria à Arguida o dinheiro - 5O.OOO,OO€- sem a referida "compensação"), pelo que, nenhuma censura merece o comportamento da Assistente; 13 - Além disso, dos pontos 12. e 13. da matéria de facto considerada como provada resulta que a Assistente, em 19/05/2006 recebeu da Arguida um cheque no valor de 52.500,OO€ (ou seja, 50.000,OO € acrescido da compensação de 2.500,00€) com data de vencimento de 19/06/2006; 14 – E nessa mesma data - 19/05/2006 - a Arguida entregou à Assistente mais dois cheques (ver ponto 15. da matéria de facto considerada como provada), com a mesma data de vencimento, 19/06/2006 (ou seja, passado exactamente um mês), no valor total de 2.500.00€, montante que, como acima se referiu, a Assistente recebeu; 15 - Sendo que, como referido no ponto 21 da matéria de facto considerada como provada, a Arguida depositou numa conta titulada pela Assistente, no dia 20/07/2006 (ou seja passados dois meses e um dia desde a data da entrega do primeiro cheque dos autos) o montante de 1.400,OO€; 16 - Assim, não existiu uma "compensação" no valor de 2.500,00€ pela quantia mutuada de 50.OOO,OO€, porquanto estavam previstas várias "compensações" ao longo do contrato de mútuo, mais concretamente, uma taxa de 5% ao mês sobre o montante mutuado (ou seja, 2.500,00€), sendo que, em 20/07/2006, no segundo mês de juros, a Arguida não tinha a totalidade do montante para pagar à Assistente, pelo que, apenas pagou 1.400,00€ a título de juros; 17. A apreciação crítica da prova deixou assim de fora da sua análise as datas de pagamento das "compensações" e datas de vencimento dos cheques, bem como a repetição nesses mesmos cheques dos 2.500,OO€ (a tal compensação) que embora pagos em 19/06/2006, teimosamente insistiam em "aparecer" mensalmente junto aos 50.OOO,00€ mutuados! 18 - Mais, e conforme se pode aferir pelos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento pelas testemunhas arroladas pela assistente, bem sabia a Assistente e respectiva família e amigos próximos (uma vez que todos presenciaram e aprovaram o negócio) que havia sido convencionado um contrato de mútuo oneroso; 19 - Resulta claro dos depoimentos das testemunhas arroladas pela Assistente e pela Arguida, ao contrário do Tribunal a quo, são peremptórias a referir a expressão "juros", pois, efectivamente, foi disso que se tratou, do pagamento de juros, no âmbito de um negócio, mais concretamente, de um contrato de mútuo oneroso; 20 - Veja-se que o próprio acórdão (vd. fls.l5 e 20 do acórdão), ao resumir as declarações da Arguida prestadas em sede de Audiência de Julgamento, utiliza a expressão "juro mensal" embora tenha a preocupação de, logo de seguida, corrigir tal expressão para "pagamento compensatório"; 21 - Resulta, desta forma, claro que a relação estabelecida entre Arguida e Assistente consubstancia-se na convenção de um contrato de mútuo oneroso, pelo qual esta mutuou àquela o capital de 50.000,OO€, acrescido de uma remuneração mensal de 2.5OO,OO€, ou seja, uma taxa de 5% mensal sobre o capital; 22 - O que é completamente distinto do entendido pelo douto acórdão que, reitera-se, parece tentar "desculpabilizar" o que entendeu por uma única "compensação" (fugindo manifestamente da expressão "juro") pelo capital mutuado, sendo ainda de realçar que em nenhum momento resultou provado que a Assistente emprestaria (mutuaria) o capital de 50.000,00€ caso a Arguida não se propusesse a pagar a referida "compensação" (leia-se "juro"); 23 - Desta forma, os seguintes factos da matéria de facto considerados como não provados deverão ser considerados provados, pelo que expressamente se impugnam, ou pelo menos, que seja considerado como provado que foi aplicada uma taxa de juro ao capital mutuado: “… - nem que o valor de €2.500 (que acresceu no cheque emitido pela arguida aos €50.000 efectivamente recebidos) tenha sido convencionado em conjunto pela arguida e pela ofendida como juros do “empréstimo”, nem que com isso a ofendida tenha tentando obter um ganho com a celebração do “negócio”. - nem que a ofendida transformou o empréstimo feito à arguida num mútuo usurário, cobrando um juro mensal que excede em muito os juros anuais legais aplicáveis, ….”. 24 - Com efeito, consideram-se os referidos concretos pontos de facto incorrectamente julgados, pelo que expressamente se impugnam e se indicam os mesmos para os efeitos previstos na alínea a) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P.; 25 - Por outro lado, o seguinte facto da matéria de facto considerada como provada deverá ser considerado como não provado, pelo que, expressamente se impugna, ou pelo menos, que seja considerado como provado que foi aplicada uma taxa de juro mensal ao capital mutuado (sendo que, este facto será novamente impugnado infra): 46. Foi por iniciativa da arguida que o cheque inicialmente emitido por si a favor da ofendida foi no valor de €52.500.00, fazendo-o com o pretexto de compensar a mesma ofendida pelo valar que lhe emprestava", permitindo-lhe assim obter um ganho com tal actuação. 26 - Para efeitos do disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P, especificam-se (transcrevendo-se do douto acórdão) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (nos termos supra expostos), que são as seguintes: • Declaração subscrita pela arguida em 19/05/2006 referindo ter entregue à ofendida o cheque em causa no artigo 13. da matéria de facto provada (junta a fl.40). • Cópias do cheque bancário (e do respectivo pedido e comprovativo de emissão no BBVA) emitido pelo ofendida B... a favor da arguida no dia 19/05/2006, pelo valor de €50.000,00 conforme referido no artigo 10. da matéria de facto provada (juntas a fls. 71 a 73). • Cheque nº ...86. no valor de €52.5OO.OO, entregue pela arguida à ofendida B... no dia 19/05/2010, em causa no artigo 13. da matéria de facto provada (Juntas a fls. 655 e 656), • Comprovativo de depósito bancário no valor de € 1.400 em 20/07/2006, em conta bancária da assistente (junto a fl. 835). • Cópia do extracto bancário da conta da arguida no BANIF de onde consta o pagamento dos dois cheques nºs ...85 e ...83 agora referidos (junta a fls. 654). • Cheque nº ...86, no vakor de €'52.500.00, entregue pela arguida à ofendida B... no dia18/06/2010, em causa no artigo 19. da matéria de facto provada (Junto a fI. 42). 27 - Ainda para efeitos do disposto na alínea b) do n.3 do artigo 412º do C.P.P, especificam-se ainda as concretas e seguintes provas que impõem decisão diversa da recorrida (nos termos supra expostos): a. Depoimento da testemunha D..., cujo respectivo depoimento se encontra consignado na Acta da Sessão de Audiência de Julgamento de 03/05/2011 e gravado em suporte informático das 13h03m10s às 13h28m41s,nas passagens acima transcritas; e b. Depoimento da testemunha C..., cujo respectivo depoimento se encontra consignado na Acta da Sessão de Audiência de Julgamento de 03/05/2011 e gravado em suporte informático das 11h43m33s às 12h21m37s,nas passagens acima transcritas. 28 - Entendeu o douto acórdão recorrido considerar como provado, no que concerne ao valor do imóvel sobre o qual foi registada hipoteca voluntária a favor da Assistente, o seguinte facto: “…. 51. Mediante escritura pública celebrada em 20/01/1999, a arguida comprou a aludida fracção autónoma pelo valor de 20.000.000$00 (vinte milhões de escudos - isto é, cerca de €100.00, cem mil euros), que foi integralmente mutuado pelo Banco Internacional de Crédito através de dois empréstimos, um de 16 milhões de escudos e outro de 4 milhões de escudos, sendo para garantia destes créditos que foram constituídas, respectivamente, as duas hipotecas mencionadas no artigo anterior. …”. 29 - Sobre a mesma matéria, considerou como não provado o facto seguinte: “… -nem que o bem imóvel em causa na procuração entregue pela arguida à ofendida tivesse à data (Maio de 2006) um valor estimado em aproximadamente €350.000,00, nem que o valor de tal imóvel à data garantia plenamente o valor mutuado. …”. 30 - Justificando tal conclusão com o facto de não lhe parecer verosímil que um imóvel adquirido 7 anos antes por € 100,000 pudesse valer então € 350,000; 31 - Todavia, o Relatório de avaliação junto a fls. 671 e ss. pela Arguida é subscrito por um Perito Avaliador registado na Comissão de Mercados de Valores Mobiliários sob o nº .../.../...; 32 - Profissional acreditado pela CMVM nos termos do Decreto - Lei n.294/95, de 17 de Novembro e do Regulamento n.8/2002, publicado no Diário da República n.138, II Série, de 18/06/2002; 33 - Tendo o referido perito avaliador acreditado pela CMVM optado pela utilização do método comparativo e método do rendimento e chegado à conclusão, após uma prelecção justificada e fundamentada de 25 páginas, que o imóvel referido tinha uma valor de mercado em 2006 de € 330,000 e em 2010 de € 344,000; 34 - Chegou a tal conclusão tendo por base o método comparativo e do custo, em que facilmente é comprovável pelos elementos juntos aos autos que um imóvel semelhante tem um valor que oscila entre os € 286,500 e os € 550,000; 35 - Acresce ainda o facto de, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, o valor médio do m2 na zona de localização do imóvel (Edifício I…, localizado na Av. Fontes Pereira de Melo, zona das Avenidas Novas, artéria das mais importantes de Lisboa) é de € 2,048 em 2006 e de €2,175 em 2009; 36 - Tendo em conta que o imóvel tem uma área de 120 m2, facilmente chegamos à conclusão que o imóvel tem actualmente (mesmo sofrendo a desvalorização da presente crise), pelo menos, um valor de 261,000 ou € 245,000; 37 - A justificação vertida no douto acórdão recorrido de que "lhe parece" não ser possível que o imóvel tenha o valor vertido num parecer subscrito por um avaliador certificado pela CMVM porque "acha" que não podia ter subido 3 vezes o seu valor em 7 anos não nos parece verosímil, especialmente porque desconhece o colectivo (nem, em abono da verdade, teria que conhecer) em que circunstâncias foi adquirido o imóvel), embora se realce que nunca se preocupou sequer em indagar! 38 - É todavia público e notório como se realizavam, na década de 90, a esmagadora maioria das aquisições de imóveis em Portugal, nomeadamente; quanto aos valores reais e efectivamente declarados nas escrituras de aquisição dos mesmos, tendo a própria Arguida admitido que o havia adquirido por € 170,000; 39 - Além disso, não chega sequer o douto acórdão recorrido a indicar então qual, no seu douto entendimento pericial sobre a avaliação imobiliária, o valor do imóvel em questão, facto essencial para a boa apreciação do caso em concreto, em virtude que necessário se torna determinar se os bens dados em garantia eram ou não suficientes para garantir o efectivo e integral pagamento do montante do mútuo em discussão nos presentes autos! 40 - Aliás, se efectivamente o Tribunal a quo tinha dúvidas sobre o referido parecer, sempre poderia chamar a depor o perito avaliador subscritor do parecer de fls. 671 e ss., questão que não pode ser minimizada, porquanto, caso se conclua que o bem em apreço é de valor suficiente para garantia do valor em divida, manifesto se torna que nunca estaremos perante a prática de um crime de burla ou sequer um qualquer ilícito criminal, mas unicamente perante um incumprimento de foro civil; 41 - Assim, sempre teria o Tribunal a quo, mais do que se pronunciar sobre um não valor, de, pelo menos, balizar valores entre os quais se fixaria o concreto valor de mercado do imóvel à data dos factos, o que simplesmente não quis fazer, não se percebendo o porquê de tal posição, a não ser pela pré-convicção que estabeleceu quanto a estes autos; 42 - Desta forma, o seguinte facto da matéria de facto considerado como não provado deverá ser considerado como provado, pelo que expressamente se impugna a decisão que recaiu sobre o mesmo: - nem que o bem imóvel em causa na Procuração entregue pela arguida à ofendida tivesse à data (Maio de 2006) um valor estimado de aproximadamente € 350.000,00, nem que o valor de tal imóvel à data garantia plenamente o valor mutuado. 43 - Com efeito, considera-se o referido concreto ponto de facto incorrectamente julgado, devendo ser considerado como provado que o imóvel em questão, à data dos factos (ano de 2006) tinha um valor estimado de aproximadamente 350.000,00 € e que o mesmo garantia plenamente o valor mutuado, pelo que, expressamente se impugna e se indica o mesmo para os efeitos previstos na alínea a) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P.; 44 - Para efeito do disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P, especifica-se a concreta prova que impõe decisão diversa da recorrida, ou seja: a. O Relatório de avaliação junto pela Arguida e subscrito por Perito Avaliador registado na Comissão de Mercados de Valores Mobiliários – a fls. 671 e ss, dos autos; b. As declarações da Arguida consignadas na Acta da sessão de Audiência de Julgamento de 17/05/2011 e gravado em suporte informático das 11h25m50 às 12h17m46, mais concretamente na passagem de 8m34s aos 12m02s . 45 - A análise crítica e a apreciação da concreta prova ora referida padece assim, nos termos supra expostos, de grave e notório erro, bem como, de insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão da matéria de facto provada, o que se invoca para os efeitos do disposto nas alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P.; 46 - Relativamente à procuração entregue pela Arguida à Assistente, resulta claro e evidente que a Assistente e a sua mãe ficaram na posse de um documento de reconhecimento de dívida que poderiam executar a todo o tempo; 47- Uma vez que resulta do mesmo que a Arguida se confessa devedora da quantia de € 52,500; 48 - Constituindo assim aquele documento um verdadeiro título executivo ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 46º do C.P.C., conforme se desenvolverá infra também quanto aos cheques entregues pela Arguida à Assistente; 49 - Tendo ainda ao seu dispor conhecimento dos bens que constituíam o quinhão hereditário da Arguida, uma vez que ela lhe entregou todos esses documentos - v. fls. 10 e ss. dos autos; 50 - Podendo ainda a Assistente (através da sua mãe) outorgar uma escritura de mútuo com hipoteca sobre o único imóvel propriedade da Arguida, a sua própria habitação! 51 - Existiu um raciocínio incorrecto por parte do douto acórdão recorrido quanto à procuração ao fundamentar a insuficiência desta no facto de nenhuma entidade bancária estar disponível para outorgar uma escritura de mútuo com hipoteca sobre aquele imóvel a favor da assistente por aquele já estar onerado com outras hipotecas bancárias; 52 - O que efectivamente aconteceu foi que a Arguida deu efectivamente a sua própria habitação em garantia do empréstimo, e não a possibilidade de a Assistente recorrer a uma entidade bancária para, ela própria, hipotecando o imóvel da Arguida, pudesse recorrer a um crédito bancário, efeito para o qual, em abono da verdade, a procuração não conferia os necessários poderes; 53 - Sendo o imóvel bem mais que suficiente para garantia do capital mutuado; 54 – Constata-se da escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança do imóvel dos autos datada de 1999, a fls.10 e ss. que os dois empréstimos foram concedidos pelo Banco Internacional de Crédito, S.A à Arguida tinham um prazo de amortização de 30 anos a contar da data da outorga da escritura; 55 - O que quer dizer à data dos factos (2006) já pelo menos havia sido amortizado parte substancial do capital em divida bancária, tendo a própria Arguida, a instâncias do Colectivo, declarado que naquele momento restava apenas o montante de € 87,000 em divida; 56 - Relativamente ao facto nº 49 dado como provado, importa clarificar que a hipoteca voluntária caducou em 6/08/2009 e não em 6/08/2006 como, por manifesto e crasso lapso, o douto acórdão recorrido deu como provado, conforme se poderá aferir pela certidão predial junta aos autos a fls. 657 e ss.; 57 - Pergunta-se se faz qualquer sentido a Arguida colocar em causa o seu único tecto se o seu objectivo fosse locupletar-se à conta da Assistente? Se a "manha" era tanta, porque razão não lhe entregou somente o cheque e lhe indicou que habitava numa qualquer casa em Lisboa, sem identificar em concreto o imóvel? 58 - Com efeito, considera-se o referido concreto ponto de facto incorrectamente julgado, devendo ser considerado como provado que a Procuração incluía ainda um reconhecimento de divida e que permitiria o pagamento da quantia mutuada à Arguida, não tendo usado de má-fé quando solicitou ao BANIF o não pagamento daqueles cheques por alegados motivos de vicio na formação da vontade, pelo que, expressamente se impugna e se indica o mesmo para os efeitos previstos na alínea a) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P.; 59 - Para efeito do disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 412º do C.P.P, especificam-se os concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida, ou seja: a. Cópia da escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, e respectivo documento complementar, junto a fls.10 e ss.. b. Procuração junta a fls. 10 e ss.. c. Certidão de Registo predial junto a fls. 657 e ss•. d. As declarações da Arguida consignadas na Acta da sessão de Audiência de Julgamento de 17/05/2011 e gravado em suporte informático das 11h25m50 às12h17m46, mais concretamente na passagem de 27m48s a 2am02. 60 - A análise critica e a apreciação da concreta prova ora referida padece assim, nos termos supra expostos, de grave (arriscamos dizer, gravíssimo) e notório erro, bem como, de insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão da matéria de facto provada, o que se invoca para os efeitos do disposto nas alíneas a) e c) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P.; 61 - Relativamente ao valor jurídico - processual dos cheques entregues à Assistente, esta ficou com dois cheques da Arguida (emitidos por esta à ordem da Assistente) no valor cada de um de 52.500,OO€; 62 - Pelo que, não se compreende porque razão a Assistente não intentou a competente acção executiva, tendo como título executivo esses mesmos cheques, porquanto os mesmos consubstanciam, nos termos do artigo 46º nº 1 al. c) do C.P.C. titulo executivo bastante para o efeito; 63 Relativamente ao depósito autónomo no montante do capital e juros em dívida efectuado pela Arguida no decurso do julgamento, mal andou o acórdão recorrido ao interpretá-lo de forma falaciosa e sem dar qualquer tipo de relevante consideração ao mesmo; 64 - Na verdade, ao invés de atentar nas dificuldades económicas da Arguida, não curou de saber se o mesmo foi efectuado pela Arguida, por terceiros, ou por si com o auxílio de terceiros; 65 - Descurando por completo as declarações da Arguida e os depoimentos das Testemunhas E... e J...; 66 - Na verdade, e conforme todos declararam, a Arguida depositaria de bom grado o valor do depósito directamente numa conta da Assistente, não o tendo feito por razões que aqui não podem ser vertidas por respeito ao sigilo das negociações malogradas e sob pena de violação do disposto na alínea f) do n.1 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados; 67 - Pelo que, outra alternativa não restou à Arguida senão proceder ao depósito por conta dos presentes autos, o que permitirá à Assistente a disponibilidade imediata do dinheiro com o trânsito em julgado; 68 - E quanto ao momento do depósito, foi aquele em que a Arguida logrou obter, junto dos seus familiares e terceiros, nomeadamente o adiantamento de parte do seu quinhão relativo à herança do pai, embora se mantenha, quanto a demais dinheiro e bens a aguardar pela restante partilha, processo mais do que moroso e que esta explicitou aquando das suas declarações; 69 - O que o acórdão não quis perceber foi que para a Arguida o pagamento da divida à Assistente englobava a taxa de juro aplicada ao mútuo, valor exorbitante que a Arguida, mesmo com o resto do dinheiro da partilha não tem como fazer face ao respectivo pagamento; 70 - Aliás, o douto acórdão analisou criticamente (até como meio indiciário de prova) o depósito efectuado pela Arguida, embora não tenha analisado o teor da resposta da Assistente à junção aos autos do talão de depósito, junta aos autos em 16/11/2011 (a fls.. ), e que foi objecto de decisão pelo douto acórdão enquanto "Questão Prévia"; 71 - Veja-se que se este era o dinheiro em falta para pagamento do valor mutuado (acrescido de juros à taxa legal), porque manifestou a Assistente a sua discordância com a extinção do procedimento criminal? Especialmente, se sempre poderiam prosseguir os autos quantos aos danos morais? 72 - Talvez porque o montante do depósito não contempla a efectiva quantia que a Assistente tinha a expectativa de receber com o "empréstimo"; 73 - O douto acórdão deu como não provado o seguinte facto: - nem que por tal motivo a arguida não tinha meios para restituir à assistente a mesma quantia. 74 - Face ao supra exposto, considera-se o referido concreto ponto de facto incorrectamente julgado, pelo que expressamente se impugna, devendo o mesmo, ao invés, ser considerado como provado. Assim, expressamente se indica o mesmo para os efeitos previstos na alínea a) do n.3 do artigo 412º do C.P.P.; 75 - Para efeitos do disposto na alínea b) do n. 3 do artigo 412º do C.P.P, especificam-se as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.: a. Depoimento da testemunha J…, cujo respectivo depoimento se encontra consignado na Acta da Sessão de Audiência de Julgamento de 16/06/2011 e gravado em suporte informático das 17h27m58s às 17h54m21s, mais concretamente na passagem de 05m48seg a 07m06seg; b. Depoimento da testemunha E.... cujo respectivo depoimento se encontra consignado na Acta da sessão de Audiência de Julgamento de 05/07/2011 e gravado em suporte informático das 12h45mOOs às 12h55m46s, mais concretamente na passagem de 04m27seg a 05m30seg; c. As declarações da Arguida consignadas na Acta da Sessão de Audiência de Julgamento de 17/05/2011 e gravado em suporte informático das 11:25:50 às 12:17:46, mais concretamente na passagem aos 8m34s. 76 - Relativamente à relação de confiança estabelecida entre a Assistente e a Arguida e da verificação do elemento subjectivo do tipo de crime em crise, realça-se aquilo que é mais do que normal, ou seja, o estabelecimento de uma relação de confiança entre clientes e respectivos advogados, caso contrário a própria relação profissional não consegue sequer subsistir porque se funda (mais que noutras actividades até) essencialmente na confiança; 77 - Por outro lado, pergunta-se se alguém empresta dinheiro a uma pessoa em quem não tenha confiança? 78 - Vejamos o tortuoso caminho do raciocínio gizado pelo Tribunal a quo para qualificar a conduta da arguida como burla: primeiramente, insiste, reitera e volta a enfatizar as questões concernentes à confiança estabelecida entre Arguida e Assistente (o que apenas, em bom rigor, pode correr a favor daquela, pois só aconteceu devido, como é óbvio, ao seu brio profissional), para, num segundo momento, concluir que a Arguida utilizou tal confiança para enganar a Assistente; 79 - É este o raciocínio desenvolvido pelo douto acórdão, motivo pelo qual tanto necessita de enfatizar a relação de confiança estabelecida entre ambas (que se reitera que é profundamente natural), pois nunca poderia qualificar a conduta da Arguida enquanto burla sem o engenho/engodo, neste caso do "aproveitamento" da confiança que nesta era depositada! 80 - E o que é o contrato de mútuo senão um contrato de confiança? Mas se tanto a Assistente confiava na Arguida porque ficou aquela de imediato na posse de um cheque no valor da divida, acrescido de 2.500,OO€?E porque ficou com uma procuração outorgada a seu favor para constituir hipoteca sobre a habitação da Arguida e que consubstanciava também um documento de reconhecimento de divida? 81 - A relação estabelecida entre ambas não era de confiança cega, pois foram prestadas garantias para o bom e integral pagamento da divida, como acontece em qualquer contrato de mútuo; 82 - Aliás, se a relação estabelecida entre a Arguida e a Assistente era de tamanha confiança que extravasava uma normal relação entre duas pessoas, especialmente com domínio emocional (como parece tentar transparecer o Acórdão) daquela sobre esta, a Arguida mutuaria o dinheiro sem necessidade de quaisquer garantias a prestar pela Arguida; 83 - Mas o que é que o Tribunal a quo cuidou de apurar se o valor recebido pela Arguida a titulo de honorários não foi utilizado para fazer face a dividas (inclusivamente contratuais anteriores) da amiga F... que a impediam de ter a capacidade financeira para dispor da quantia necessária para a celebração do Contrato-promessa de compra e venda? 84 - Mas o que é que o Tribunal a quo cuidou de apurar se o valor recebido pela Arguida a titulo de honorários não foi utilizado para fazer face a dívidas da própria, impossibilitando que ajudasse directamente a sua amiga? 85 - É por tudo isto que os seguintes factos da matéria de facto considerada como provada (28., 31.e 33.), relativos à intencionalidade e dolo da conduta da Arguida se encontram desprovidos de prova que os sustentem; 86 – Face ao supra exposto, consideram-se os transcritos e concretos pontos de facto 5., 28., 29., 31. e 33. incorrectamente julgados, pelo que expressamente se impugnam, devendo os mesmos ser considerados como não provado, e se indicam os mesmos para os efeitos previstos na alínea a) do n.ll3 do artigo 412.2 do C.P.P.; 87 - Com efeito, os referidos pontos da matéria de facto ora impugnados não podem ser considerados como provados, porque manifestamente carecem de prova produzida para o efeito, senão mesmo total ausência de prova nos autos quanto à verificação de tais factos, prevalecendo apenas um toldado raciocínio do julgador assente em prova alguma, pelo que, para os efeitos do disposto na alínea a} do n.2 do artigo 410º do C.P.P., se invoca a insuficiência de provas para a decisão da matéria de facto provada, pelo que, no mínimo, e nos termos do artigo 32 da C.R.P .sempre deveriam ter sido considerados como não provados; 88 - Enquadrando agora os factos acima descritos no tipo de crime de que vinha acusada, importa referir uma vez mais que nunca pretendeu a Arguida causar qualquer tipo de prejuízo à Assistente, inexistindo qualquer tipo de má-fé da sua parte; 89 - Não consubstanciando o seu comportamento qualquer desvalor característico do crime de burla; 90 - A sua actuação tem de ser apreciada à luz do direito civil, nomeadamente no que diz respeito à responsabilidade contratual ou extracontratual; 91 - Nos termos do disposto no n.1 do artigo 217º do Código Penal, "quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa"; 92 - Os elementos do tipo objectivo do crime de burla são: a. Emprego de astúcia pelo agente; b, Indução em erro ou engano da vítima causado pelo emprego da astúcia; c. Prática de actos, pela vítima, em consequência do erro ou engano que lhe foi induzido; d. Actos que praticados pela vítima lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial. 93 - Sendo que a burla integra um crime doloso, o tipo subjectivo de ilícito integra: a. O dolo ou intenção do agente obter enriquecimento para si ou para terceiro; b. Dolo ou intenção de causar um prejuízo patrimonial à vítima ou terceiro. 94 - Quer isto dizer que o tipo subjectivo somente admite as formas de dolo directo ou necessário, uma vez que a astúcia é incompatível com o dolo eventual; 95 - Ora, o comportamento da Arguida não se subsume minimamente aos elementos típicos do crime de burla, pois não manipulou ou instrumentalizou a assistente, ou recorre a mise en scéne para apresentar de forma deturpada a realidade, colocando dessa forma a Assistente em erro, levando-a a actuar, em consequência, a permitir o enriquecimento ilícito da Arguida com o seu prejuízo patrimonial; 96. A conduta da Arguida integra um incumprimento contratual que não foi criado astuciosamente por esta; 97 - Não tendo sequer induzido a Assistente em erro, uma vez que não foi a Arguida quem provocou o incumprimento, mas sim as Testemunhas F… e G… que, inclusive, e apesar de todos os esforços da Arguida e do Tribunal nesse sentido, nunca compareceram em Tribunal, o que somente demonstra quem esteve efectivamente por detrás deste incumprimento; 98 - Não se compreendendo ainda porque razão não executou os títulos que tinha na sua posse como forma de apagar o prejuízo patrimonial que efectivamente sofreu; 99 - O douto acórdão recorrido, utilizou meros indícios de prova, nomeadamente no que diz respeito ao pagamento feito em sede de audiência final, unicamente contra a Arguida, ao expressamente dizer que tal resulta indiciariamente, quando o principio constitucional de in dubio pro reo o obrigava a decidir de forma contrária, em clara violação do disposto no artigo 32º da CRP; l00 - Face a tudo o acima exposto, o acórdão em crise, para além de lavrar em erro notório na apreciação da prova, em insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão de facto e contradição notória também na apreciação da prova, peca por alguma superficialidade e diríamos, preconcebida análise crítica da prova, não fazendo a correcta interpretação e aplicação de determinados preceitos legais, nomeadamente, e entre outros, 217º n.2, 218º, n.2, alínea a), e 202º, alínea b) todos do Código Penal, 1142º e ss., 559 e ss., 686º do Código Civil, 46º, n.1 c) do Código de Processo Civil e 91º e 92º n.1, i) do Código de Registo Predial, 32º da Constituição da República Portuguesa, devendo, por conseguinte, ser revogado e substituído por outra decisão que absolva a Arguida, com as devidas e legais consequências; 101 - Inexistindo assim qualquer ilícito criminal, devendo, em consequência, ser o douto acórdão recorrido ser substituído por outro desta Relação que absolva a Arguida do crime de que vem condenada. 3. A assistente e o Ministério Público responderam, ambos concluindo pelo não provimento do recurso, após o que este foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. 4. Neste Tribunal, a Exma. Srª. Procuradora-geral, em douto parecer, pronunciou-se pelo não provimento do recurso. 5. Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. 6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação das seguintes questões: -vícios do art.410, nº2, CPP; -impugnação da matéria de facto; -qualificação jurídica dos factos; * * * IIº A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor: II.a) Matéria de facto provada De relevantes para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos : 1. A arguida A... é advogada titular da cédula profissional nº…., emitida pelo Conselho Distrital de … da Ordem de Advogados (cfr. fls 155), com domicilio profissional na Av. …., 2. Nessa qualidade, foi mandatária de B... no processo n° … que correu termos no 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da ..., e relativo a um acidente de viação de que a assistente fora vítima, sofrendo graves lesões corporais, 3. Por acordo extrajudicial surgido no âmbito daquele processo, a 11 de Maio de 2006 recebeu a B... uma indemnização, no valor de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), 4. Para pagamento dos seus honorários, a 12 de Maio de 2006 recebeu a arguida de B... a quantia de €25.000 (vinte e cinco mil euros), 5. Sabendo o montante que a ofendida B... recebera, e a auréola de confiança que junto da mesma criara e que surgira em torno da relação entre constituinte e mandatária, tratou a arguida de se locupletar à custa da B..., 6. Para tanto, em data não exactamente apurada, mas situada entre os dias 12 e 19 de Maio de 2006, a arguida deslocou-se à residência de B..., na Fi…, onde chorosa lhe pediu a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), montante que de momento não dispunha e sem o qual uma cliente sua, de nome F… e que então a acompanhava, de quem era fiadora, perderia um bem de elevado valor, 7. Montante esse que devolveria no prazo de 1 (um) mês, o que garantia com a entrega de uma Procuração por si emitida nos termos do artigo seguinte, e com um cheque no montante que solicitava, com pagamento posterior, 8. A mencionada Procuração foi outorgada pela arguida com data de 19 de Maio de 2006, e reconhecida num cartório notarial de Lisboa, sendo que, através dela, a arguida constituía sua procuradora C..., mãe de B..., a quem concedia a poderes para “em seu nome celebrar escritura publica de mútuo com hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pela letra "Y", a que corresponde o oitavo andar para habitação do prédio urbano denominado "Edificio de ….", situado na Avenida Fontes Pereira de Melo, numero …, gaveto com as ruas Tomás Ribeiro, Latino Coelho e Avenida Cinco de Outubro, freguesia de São Sebastião da Pedreira, localidade e concelho de Lisboa, descrito na Oitava Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número mil …, constituído sob o regime de propriedade horizontal conforme inscrição F-Um e inscrição na matriz predial urbana sob o artigo seiscentos e quarenta, da freguesia de São Sebastião da Pedreira, a favor de B..., solteira, maior, residente com a representante acima identificada, na mesma morada, para garantia do bom pagamento da quantia de cinquenta e dois mil e quinhentos euros, de que se confessa devedora, pelo prazo de um mês, com inicio no dia vinte e dois de Maio e termo no dia vinte e dois de Junho do ano dois mil e seis, pelos juros, condições e obrigações que julgar convenientes ”, e ainda, “os necessários poderes para requerer actos de registo predial junto da Conservatória do Registo Predial competente, definitivos ou provisórios, averbamentos ou cancelamentos, prestar declarações complementares, assinando e subscrevendo requerimentos e impressos...", cfr. fls. 38/39, 9. Convicta da sinceridade e das boas intenções da arguida, B... acedeu ao pedido, 10. Para tanto, no dia 19 de Maio de 2006, na agência do BBVA de ..., Coimbra, a B... requisitou e recebeu o cheque com o n°7192…., da conta 213…, do Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, com data de 19 de Maio de 2006, na quantia de €50.000,00, e à ordem de A..., cfr. fls. 71 a 73, 11. Quantia essa que de imediato foi debitada na mesma conta bancária, titulada pela B..., 12. E ainda no dia 19 de Maio de 2006, agora na zona de Pombal, a B... entregou esse cheque à arguida, 13. E esta entregou à B... a Procuração supra referida, e junta que fls. 38 e 39, e o cheque n°...86, da conta n° 336…, do BANIF, titulada pela arguida A..., na quantia de €52.500,00, e emitido à ordem da B..., e com data de 19/06/2006, 14. E no qual apusera a arguida, no seu verso, a menção “dou o meu aval ao titular e subscritor deste cheque”, seguido da sua rubrica e do n° do seu bilhete de identidade 8…, cfr. fl. 41, 15. Nessa mesma ocasião, entregou ainda a arguida à B... outros dois cheques, ambos da conta n° 336…, do BANIF, titulada pela arguida A... : - o cheque n°...85, na quantia de €1.250,00, e emitido à ordem da B..., e com data de 19/06/2006 (cfr. fl. 655), - e o cheque n°351…, na quantia de €1.250,00, e emitido à ordem da B..., e com data de 19/06/2006 (cfr. fl. 656), 16. No dia 23 de Maio de 2006, na agência do BANIF da Rua ..., em Lisboa, a arguida depositou o cheque que recebeu da B... numa conta de que é titular, 17. Dessa forma recebendo o montante que o cheque titulava, isto é, €50,000,00, e que gastou em proveito próprio, 18. No dia 18 de Junho de 2006, a arguida deslocou-se novamente a residência da B..., solicitando-lhe que não apresentasse a pagamento o cheque no valor de €52.500 que lhe entregara, por dificuldades entretanto surgidas, 19. Para o que, para pagamento da quantia que recebeu, entregou à B... agora o cheque n°813…, da conta n°336…, acima mencionada, na quantia de €52.500,00, e emitido à ordem da mesma B... e com data de 19/07/2006, 20. Uma vez mais, no dia 18 de Julho de 2006 (véspera da data aposta no cheque referido no artigo anterior), a arguida entrou em contacto via telefone com B..., e invocando novamente dificuldades financeiras pediu a esta que não apresentasse esse cheque (n°...86) a pagamento, afirmando que enviaria um novo cheque pelo correio, no que B..., na sua boa fé acreditou, voltando aceder ao pedido da arguida, 21. No dia 20 de Julho de 2006, a arguida depositou a quantia de €1.400 (mil e quatrocentos euros) na conta bancária nº10.0… do Montepio Geral, titulada pela assistente B... ; 22. Porque o cheque que a arguida mencionara ir enviar à assistente pelo correio nos termos do artigo 20. supra nunca chegasse, porque não mais conseguisse contactar a A..., e porque o imóvel objecto da Procuração supra já estivesse onerado, a B... decidiu apresentar os dois cheques a pagamento, 23. E assim, a 4 de Outubro de 2006, apresentou o cheque com o n°...86 na agência da Fi... do Montepio, onde foi devolvido sem pagamento a 06/10/2006, com o motivo de “cheque Revogado/Extravio”, 24. Pois a arguida, em 04/10/2006, solicitara ao BANIF o não pagamento desse título, por motivos de “revogação”, cfr. fl. 236, 25. E a 12 de Outubro de 2006, na mesma agência, apresentou a pagamento o cheque com o n°...86 (o primeiro emitido pelo valor de €52.500), o qual veio a ser também devolvido sem pagamento em 13/10/2006, com o motivo de “cheque Revogado/Extravio”, 26. A 21/11/2006 a arguida pediu a revogação e cancelamento desse cheque, com fundamento em “vício na formação da vontade”, cfr. fl. 237, 27. Por sua vez, tendo entretanto sido apresentados a pagamento os cheques nºs ...85 e ...83, no valor de €1.250 cada um (aqueles mencionados no artigo 15. supra), foram ambos pagos à ofendida B..., que recebeu os respectivos valores - isto é, a quantia global de €2.500 (dois mil e quinhentos euros), 28. Agiu a arguida com o intuito de obter proventos económicos a que sabia não ter direito, o que conseguiu e sabia alcançar a custa do empobrecimento da B... 29. Mais sabendo que aquela ofendida apenas lhe disponibilizava a quantia supra referida por força da confiança que a arguida lhe merecia, em face nomeadamente da confiança que existe entre constituinte e mandatária, e que sabia reforçar com os documentos que lhe entregava para garantia do pagamento - o que, tudo, não passou do que de um mero esquema criado para se locupletar à custa da B..., 30. Pois sabia que a Procuração não tinha qualquer utilidade e que nunca permitiria o pagamento da quantia de que se apossou, tendo usado de má fá quando solicitou ao BANIF o não pagamento daqueles cheques por alegados motivos de vício na formação da vontade, 31. Agiu a arguida com a vontade livre e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida por lei. 32. A arguida causou a B... um prejuízo patrimonial de valor equivalente à quantia que ela lhe entregou e que não foi paga - isto é, €46.100,00 (quarenta e seis mil e cem euros), quantia correspondente ao valor de €50.000 entregue pela ofendida deduzido dos valores de €2.500 pagos pelos cheques mencionados nos artigos 15. e 27. supra, e do valor de €1.400 mencionado no artigo 21. Supra, 33. Conseguindo obter para si, e como era seu intuito, uma vantagem económica indevida correspondente a esse mesmo valor, 34. B... toma medicamentos para a depressão, 35. Por todos os factos descritos, a ofendida B... sentiu-se deprimida e entristecida, 36. Tendo sentido dor, sofrimento, angústia, e desespero em virtude de, após receber extrajudicialmente a quantia de €150.000,00, ter idealizado empregar parcialmente esse montante para comprar uma casa com melhores condições do que aquela em que habitava, e onde ainda habita, principalmente uma que tivesse um acesso mais fácil, para entrar e sair, dado ao facto das limitações físicas com que ficou após o acidente em causa no supra aludido processo judicial e que determinou a referida indemnização. 37. Casa essa também com jardim, onde a demandante pudesse passar o seu tempo, e criar animais de que tanto gosta e gostaria de ter, 38. B..., não aufere qualquer pensão de invalidez, e é sustentada por sua mãe, vivendo ainda do remanescente da indemnização recebida, 39. Por via do aludido processo do Tribunal Judicial da Fi..., estabeleceu-se entre a ora arguida e a ofendida B... uma relação de confiança, 40. Com o dinheiro que pediu à assistente a arguida pretendia fazer face a um incumprimento de um contrato promessa de compra e venda por parte de um casal seu amigo à data, de nome F… e G..., 41. Esse contrato em tinha como objecto uma fracção autónoma designada correspondente a um T3 sito na Rua Inocêncio …., 42. O preço de venda da referida fracção era de €155.000,00 a ser pago da seguinte forma : €80.000,00por transferência de um crédito respeitante a um contrato-promessa anterior celebrado entre os mesmos outorgantes, €50.000,00 aquando da assinatura do contrato-promessa, e mais €25.000,00 na data de outorga da escritura do contrato definitivo, 43. Sendo intervenientes no referido contrato, G... casado com F… como promitentes-compradores, e H... como promitente-vendedor. 44. Quando a arguida se deslocou à residência da assistente, solicitando o “empréstimo” dos €50.000,00, foi acompanhada da referida F..., 45. Tendo falado sobre o seu património pessoal e apresentado também cópia de documentos relativos ao imóvel de que era proprietária, isto é, a fracção autónoma sito na Av. Fontes Pereira de Melo, n° .., …º, em Lisboa, e em causa na Procuração supra referenciada, 46. Foi por iniciativa da arguida que o cheque inicialmente emitido por si a favor da ofendida foi no valor de €52.500,00, fazendo-o com o pretexto de compensar a mesma ofendida pelo valor que lhe “emprestava”, permitindo-lhe assim obter um ganho com tal actuação, 47. O valor de €50.000,00 entregue pela assistente à arguida foi por esta entregue aquele casal seu amigo, promitentes-compradores no contrato promessa acima mencionado, tendo para o efeito emitido um cheque nesse valor a favor do promitente-comprador que o sacou. 48. No dia 19/05/2006, a arguida fez registar provisoriamente sobre a fracção autónoma em causa na Procuração mencionada no artigo 8. supra, e que entregou à ofendida, uma hipoteca voluntária em favor da ofendida B..., a qual, nos termos requeridos na 9ª Conservatória do registo Predial de Lisboa, seria "para garantia do pagamento da quantia de €52.500, acrescidos de juros legais, em vigor e despesas judiciais e extra-judiciais que se fixam no montante máximo de €5.000, pelo prazo de um mês, com início no dia 22/05/2006 e termo no dia 22/06/2006", 49. Tal hipoteca veio extinguir-se por caducidade, conforme anotação oficiosa de 06/08/2006, 50. Sobre a mesma fracção autónoma vigoram, desde 24/11/1998 e desde 02/12/1998, duas hipotecas em favor do Banco Internacional de Crédito, e para garantia, respectivamente, dos montantes de capital máximo assegurados de 20.988.800$00 (vinte milhões, novecentos e oitenta e oito mil e oitocentos escudos - isto é, cerca de €104.691, cento e quatro mil e seiscentos e noventa e um euros) e de 5.247.000$00 (cinco milhões, duzentos e quarenta e sete mil escudos - isto é, cerca de €26.171, vinte e seis mil, cento e setenta e um euros), acrescidos de juros. 51. Mediante escritura pública celebrada em 20/01/1999, a arguida comprou a aludida fracção autónoma pelo valor de 20.000.000$00 (vinte milhões de escudos - isto é, cerca de €100.00, cem mil euros), que foi integralmente mutuado pelo Banco Internacional de Crédito através de dois empréstimos, um de 16 milhões de escudos e outro de 4 milhões de escudos, sendo para garantia destes créditos que foram constituídas, respectivamente, as duas hipotecas mencionadas no artigo anterior. 52. A arguida nasceu em Moçambique e oriunda de uma família de recursos socio-económicos abastados, que naquele país se dedicava a comercialização de cereais. A arguida é o quarto elemento de uma fratria de quatro, tendo uma irmã gémea, O seu processo de crescimento foi acompanhado essencialmente pela avó materna tendo em conta as não raras ausências dos progenitores, por motivos profissionais. Aquando dos primeiros movimentos de independência de Moçambique, o seu agregado familiar alargado imigrou para Portugal em 1974, fixando residência na zona de Tondela, na habitação dos avós paternos. Cerca de um ano depois, apenas com o agregado restrito migrou, para São Martinho do Porto e depois Caldas da Rainha, onde aquele se radicou definitivamente. Nesta cidade os pais da arguida constituíram negócios, nomeadamente em torno de um estabelecimento comercial (café), fonte de sustentação do agregado, para o qual confluíam esforços de todos os elementos. No que respeita ao percurso de escolarização, o percurso académico da arguida é efectuado em Lisboa, integrando a arguida em 1987 a licenciatura de Direito na Universidade Internacional, na qual se manteve até 1993. Ainda que a arguida sempre tivesse logrado apoio financeiro dos pais, logo nos primeiros anos de faculdade iniciou actividade laboral, como forma de poder usufruir da sua própria autonomia financeira que conciliou com os estudos em período nocturno. Durante alguns anos a arguida repartiu residência com a irmã gémea, inicialmente numa casa de estudantes e posteriormente, numa habitação em Chelas, sua propriedade, suportada pelo pai. Contudo, por incompatibilidades de cariz pessoal entre ambas, a irmã autonomizou-se habitacionalmente. Laboralmente, até ao ano de 1998, altura em que criou o seu próprio escritório de advocacia, a arguida trabalhou em simultâneo noutras áreas laborais. Em 1999 estabeleceu-se na actual morada de família, a qual se constitui desde então, simultaneamente, como espaço profissional. Os falecimentos dos pais (nomeadamente do pai com quem tinha estabelecida relação de maior proximidade), e da avó materna, ocorridos num curto espaço de tempo entre 2004 e 2005, foram vividos de forma muito conturbada. A arguida reside na actual morada de família, a qual corresponde também ao seu domicílio profissional enquanto advogada. As relações de convivialidade são centradas em torno de amigos que tem vindo a estabelecer, bem como da sua assistente profissional, tendo em conta a ausência de vínculos de proximidade relacional com irmãos, situação que se degradou após falecimento dos progenitores. Actualmente o elo de ligação entre a arguida e aqueles circunscreve-se apenas àquilo que diz respeito às partilhas de bens da herança dos pais. Além dos bens que perspectiva vir a herdar, a arguida poderá ainda vir a resgatar cerca de €80.000,00 em certificados de aforro. Em termos profissionais, aufere cerca de €3.500,00 de rendimento mensal. 54. Já depois de produzida toda a prova em sede de audiência de julgamento nos presentes autos, a arguida efectuou, no dia 25 de Outubro de 2011 - aquele inicialmente designado para a leitura do acórdão decisório - um depósito autónomo no valor de €56.022,00 (cinquenta e seis mil e vinte e dois euros) à ordem do presente processo crime ; 55. A arguida nunca foi condenada pela prática de qualquer ilícito criminal. * II.b) Matéria de facto não provada Também de relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa não lograram provar-se mais factos, quer da acusação, quer do pedido de indemnização civil, quer da contestação do arguido, considerando-se todos no seu conjunto. Designadamente não lograram provar-se os seguintes : - que a arguida causou a B... um prejuízo patrimonial de valor equivalente à quantia de 52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) inscrita naqueles mencionados dois cheques, - nem que a ofendida B... tenha sentido constrangimento no Banco, e mais tarde vexame de prestar declarações sobre o "suposto" extravio dos cheques, - nem que a ofendida B... pagou ao Banco os emolumentos devidos pelas devoluções dos dois cheques mencionados, no montante total de €150,00 (cento e cinquenta euros) - ou seja, €75,00 por cada cheque, - nem que a falta da quantia entregue à arguida determinou que a ofendida e sua família viveram estes anos e continuam a viver momentos de grandes dificuldades económicas, - nem que por todos os factos descritos, a demandante tenha deixado de apresentar a força para viver a que havia habituado os seus parentes e amigos. - nem que a mãe da ofendida B... está desempregada. - nem que no caso dos autos não haja relevado o facto de a arguida ter conhecimento, por ter sido mandatária da ofendida no processo judicial mencionado, de que esta tinha recebido uma indemnização no valor de €150.000,00, - nem que por via do aludido processo do Tribunal Judicial da Fi..., se estabeleceu entre a ora arguida e a ofendida B... uma relação de alguma amizade, - nem que não tenha existido da parte da arguida intenção ardilosa que induzisse a ofendida em erro, - nem que o bem imóvel em causa na Procuração entregue pela arguida à ofendida tivesse à data (Maio de 2006) um valor estimado em aproximadamente €350.000,00, nem que o valor de tal imóvel à data garantia plenamente o valor mutuado, - nem que tenha sido sem estar induzida em erro que a ofendida entregou à arguida aquele valor de €50.000,00 - nem que a ofendida B... tenha pedido juros sobre a quantia entregue à arguida,. - nem que o valor de €2.500 (que acresceu no cheque emitido pela arguida aos €50.000 efectivamente recebidos) tenha sido convencionado em conjunto pela arguida e pela ofendida como juros do “empréstimo”, nem que com isso a ofendida tenha tentando obter um ganho com a celebração do “negócio”. - nem que a ofendida transformou o empréstimo feito à arguida num mútuo usurário, cobrando um juro mensal que excede em muito os juros anuais legais aplicáveis, - nem que os promitentes-compradores acima mencionados nunca cumpriram com a arguida restituindo-lhe a quantia de €50.000,00, - nem que por tal motivo a arguida não tinha meios para restituir a assistente a mesma quantia. - nem que a arguida não tenha omitido a situação, nem que tenha sido por tais motivos que pediu a assistente para não depositar os cheques nas datas acordadas, - nem que a arguida não tenha pretendido, por essa via, causar prejuízos à assistente, - nem que a arguida sempre informou a ofendida atempadamente da sua impossibilidade em cumprir com o acordado, - nem que a arguida seja uma pessoa cumpridora das suas obrigações, bem como com valores sociais e humanos sólidos, privilegiando o sentido da palavra, numa lógica de confiança nos outros, nem que denote preocupação com o bem estar do próximo. * II.c) Motivação da decisão sobre a matéria de facto A convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados baseou-se na análise de todos elementos de prova carreados para os autos e produzidos em sede de audiência final -e que foram designadamente de natureza documental e pessoal (estes traduzidos nos depoimentos da arguida, da assistente e das testemunhas ouvidas)-, todos conjugados entre si e objecto de ponderação á luz de regras de experiência comum consideradas elementares e graduadas pela capacidade de compreensão e entendimento de qualquer pessoa medianamente inteligente. Assim, e desde logo, atendeu–se ao teor dos seguintes documentos, todos eles reproduzindo e demonstrando factos objectivos que não consideram susceptíveis de contradição - tendo já grande parte deles sido, aliás, mencionada ao longo do elenco da matéria de facto provada : · a informação prestada pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados relativa a situação e Cédula Profissional da arguida A... (junta a fl. 155), · cópia do recibo de indemnização emitido pela ... Seguros relativo ao montante indemnizatório de €150.000 pago em 11/05/2006 à ofendida B... no âmbito do processo nº .../03.0 TBFIG, do 3º Juízo do Tribunal da Fi..., e comprovativo do respectivo depósito bancário em conta do BBVA titulada por esta última (juntos a fls. 3 a 5), · cópia dos comprovativos de transferência bancária efectivada em 12/05/2006, do valor de €25.000 da dita conta da ofendida para conta bancária da arguida no BANIF, e que corresponde aos honorários desta última, em termos pacificamente admitidos nos autos (juntos a fls. 5 a 8), · Procuração emitida pela arguida em benefício da mãe da ofendida, e mencionada no artigo 8. da matéria de facto provada (junta a fls. 38/39), · cópia da escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança relativo à aquisição, em 20/01/1999, pela arguida do imóvel/fracção autónoma propriedade da arguida e que está em causa na dita Procuração (junta a fl. 10 e segs.), · cópia da certidão do Registo Predial relativo ao mesmo imóvel/fracção autónoma da propriedade da arguida, da qual consta a constituição da hipoteca voluntária mencionada no artigo 47. da matéria de facto provada, e bem assim os ónus e encargos que oneram o mesmo imóvel desde a sua aquisição pela arguida, cfr. artigo 49. da matéria de facto provada (junta a fls. 657 e segs.), · Declaração subscrita pela arguida em 19/05/2006 referindo ter entregue à ofendida o cheque em causa no artigo 13. da matéria de facto provada (junta a fl. 40), · Cópias do cheque bancário (e do respectivo pedido e comprovativo de emissão no BBVA) emitido pela ofendida B... a favor da arguida no dia 19/05/2006, pelo valor de €50.000,00, conforme referido no artigo 10. da matéria de facto provada (juntas a fls. 71 a 73), · Cheque nº...86, no valor de €52.500,00, entregue pela arguida à ofendida B... no dia 19/05/2010, em causa no artigo 13. da matéria de facto provada (junto a fl. 41), · Cópias dos cheques n°s ...85 e ...83, na quantia de €1.250,00 cada um, emitidos à ordem da B... com data de 19/06/2006, e entregues a esta pela arguida em Maio de 2006, em causa nos artigos 15. da matéria de facto provada (juntas a fls. 655 e 656), · Comprovativo de depósito bancário do valor de €1.400 em 20/07/2006 em conta bancária da assistente (junto a fl. 835), · Cópia de extracto bancário da conta da arguida no BANIF de onde consta o pagamento dos dois cheques n°s ...85 e ...83 agora referidos (junta a fl. 654), · Cheque nº...86, no valor de €52.500,00, entregue pela arguida à ofendida B... no dia 18/06/2010, em causa no artigo 19. da matéria de facto provada (junto a fl. 42), · Cópias dos pedidos de cancelamento dos cheques em causa nos artigos 13. e 19. da matéria de facto provada (juntas a fls. 236 e 237). · Comprovativo de depósito autónomo do valor de €56.022 por parte da arguida à ordem dos autos, efectuado em 25/10/2011, e respectivo comprovativo de registo (juntos a fls. 847 a 849). Todos estes documentos não foram minimamente colocados em crise, quer quanto à sua existência, quer quanto ao respectivo conteúdo, por nenhum dos sujeitos processuais, e bem assim não coloca o Tribunal dúvidas quanto àquilo que objectivamente resulta demonstrado pelos mesmos. Atendeu-se depois, e como se disse, ao conjunto de depoimentos pessoais prestados em sede de audiência final, quer pela arguida, quer pela assistente, quer pelas testemunhas ouvidas, depoimentos valorados nos termos que adiante se explanam. Assim, e começando pelo depoimento da própria arguida A..., a mesma confirmou desde logo alguns aspectos mais “objectivos” da matéria de facto, negando porém a configuração ilícita e criminal que aos mesmos é atribuída pela acusação. Depois de admitir todos os factos relativos ao patrocínio judiciário que desempenhou em representação da assistente B... no âmbito do processo judicial em que esta recebeu a indemnização de €150.000 aludida na matéria de facto provada, referiu a arguida que conhecia determinado casal – a F… e o G... - desde 2002, sendo ela gerente de uma sociedade de camionagem no Algueirão, tendo-os acessorado profissionalmente (foi sua advogada), e de quem se tornou amiga – designadamente porque, tendo entre 2004 e 2005 falecido os seus pais e a avó, e tendo também sofrido uma paralesia do braço, passou uma grande crise familiar, tendo sido essas pessoas que mais a apoiaram. Pois bem, a certa altura eles viviam numa vivenda em Rio de Mouro ainda sem escritura, e iam renegociando o contrato-promessa com o vendedor, sendo que a dita empresa de camionagem entrara entretanto em insolvência. Pelo que, em Maio de 2006, algum tempo depois de a assistente ter recebido aquela indemnização, a F… veio ter com a arguida pedindo ajuda, porque o construtor da casa (a testemunha H…) os procurara dizendo que tinham de sair da casa, porque não iam conseguir cumprir o contrato-promessa ; e que a alternativa que o construtor dera era ela (F...) e o marido eles, para não perderem o dinheiro que tinham já pago, comprarem-lhe ao invés um apartamento que ele também tinha construído, e nas condições que ele propunha - mas era uma possibilidade que tinha de ser resolvida urgentemente, sendo necessário arranjar o pagamento de €50.000 em apenas dois dias (precisou a arguida que o apartamento, sito em Mafra, era no valor de €155.000, sendo imputados nesse valor os €80.000 que já haviam sido pagos pela vivenda -e era este valor que o casal amigo da arguida estava em risco de ‘perder’-, reforçados com o pagamento imediato dos ditos €50.000, ficando em dívida os remanescentes €25.000). Perante isso, a arguida lembrou-se da assistente B..., por saber que ela tinha na altura a disponibilidade financeira de um tal valor, em virtude da indemnização recebida há dias. Falou com a F..., dizendo-lhe que teriam de estabelecer condições para isso, e esta quis ir falar com essa pessoa, dizendo que inclusive “lhe pagaria juros”. Foi nessa sequência que a arguida ligou à B..., tendo-se deslocado com a F… à Fi... para fazer o pedido dos €50.000 à B.... E porque entendeu que sendo ela (arguida) quem estava a levar uma pessoa à outra, então devia entregar algum tipo de garantia – pelo que, sendo proprietária de uma casa “muito boa” no Edifício ..., levou os elementos desse seu património, para exibir à B..., tendo dito a esta e à sua família que que ia fazer uma Procuração para ela (B...) poder actuar sobre essa casa se houvesse problemas, e bem assim disse que pagaria €2.500 de juro por mês, tudo isto com o acordo da F.... E assim, feito o pedido e aceite este pela B..., a arguida entregou-lhe essa Procuração (aquela junta aos autos e já aludida supra), e entregou-lhe um cheque seu, no valor de €52.500, emitido para dali a um mês, que era o prazo do empréstimo. Depositou os €50.000 numa sua conta e emitiu um cheque a favor do construtor/promitente-vendedor do apartamento à F... e ao G..., para os efeitos referidos - sendo por eles celebrado o dito contrato-promessa Ora, a arguida tinha acordado com a F... e o G... que nesse prazo de um mês eles arranjariam o dinheiro, através do financiamento a efectuar por um irmão do G..., que tinha negócios de churrasqueiras e construção civil. Só que a arguida não chegou a falar com esse irmão do G..., tendo confiado neles na sequência do papel afectivo que tinham tido na sua vida. E quando chegou ao fim o prazo desse mês sem que a arguida tivesse dinheiro para pagar o cheque, procurou a B... e deu-lhe outro cheque em substituição do primeiro, assim como mais dois. Porém, duas ou três semanas depois, a F... e o G... deixaram de contactar com a arguida, e nunca mais ligaram, acabando por “desaparecer”, ou melhor, continuam a viver em Mafra (aliás, eles acabaram por não fazer a escritura definitiva, e estão a viver no dito apartamento afinal nas mesmas condições em que viviam na moradia anteriormente), mas deixaram de lhe ligar e tentar resolver as coisas – e assim a arguida é que ficou com este encargo. Confirmou ter comunicado ao banco o extravio dos dois cheques de €52.500 entregues à B... por forma a evitar o seu não pagamento por falta de provisão. Sabe assim que deve os €50.000, e disse querer pagar esse valor, mas negou ter tido alguma vez intenção de enganar a assistente B..., só não tendo pago por impossibilidade financeira de o fazer. Assim, em 2007 ficou muito doente ; depois, tentou obter crédito para resolver a questão, mas já não teve capacidade de endividamento – não conseguiu sequer aumentar o plafond do crédito da casa, sendo certo que entretanto tem outras dívidas em execução (designadamente do condomínio e à S...) ; além disso, continua a correr o processo de sucessão pela morte dos seus pais, processo que se tem revelado muito conflituoso entre si e os irmãos, pelo que, sendo certo que está em causa “um grande património”, o mesmo continua indiviso. De todo o modo, disse a arguida que no seu entender a Procuração que emitiu a favor da mãe da B... é válida – pelo que ela pode “executá-la” e ressarcir-se do dinheiro devido, sendo certo que a sua casa está hipotecada por €100.000 (estando o respectivo crédito bancário a ser) mas “vale muito mais”, conforme relatório de avaliação imobiliária que junta a fls. 671 dos autos. Além disso, confessou-se devedora do valor em causa, e até registou provisoriamente uma hipoteca secundária sobre a casa, não sabendo “porque não executaram”. Também referiu que depois de tudo isto falou com a B... e a família, e disse-lhes que estava a tentar resolver, mas que não tinha capacidade para pagar mas nunca lhes colocou a questão de ir pagando aos poucos, porque “eles pedem a maior parte” logo de início. Perguntada sobre porque motivo não foi a F... e o G... a passarem os ‘cheques de garantia’, disse que eles não tinham cheques em virtude de estarem inibidos do seu uso por questões ligadas, aliás, à insolvência da sua sociedade comercial ; além disso, achou que devia ser ela (arguida) a “dar a cara” e a garantir o empréstimo junto da B.... Quanto aos €2.500 de “juro mensal”, isso foi sugestão da F..., tendo sido a arguida e a F... quem disse à B... e à família que esse pagamento compensatório seria efectuado - isto é, não foram eles que pediram ou exigiram isso. Entretanto, e ainda antes da arguida, haviam sido ouvidas as testemunhas C..., B..., D... – estes respectivamente a mãe e os dois irmãos da assistente B... -, e I…. Prestaram eles depoimentos coerentes entre si, e sem divergências fundamentais, aliás, com o relato feito pela arguida no que aos factos objectivamente ocorridos diz respeito. Ainda assim, julga-se pertinente referenciar o teor destes depoimentos, por se revelar importante na análise global da prova produzida, nos termos expostos. Assim, disse C..., mãe da assistente, que conheceu a arguida como advogada da filha no processo do acidente desta última – conheceu-a através de uma vizinha, que foi quem a recomendou. Esclareceu que como a filha (B...) tinha 17 anos na altura do acidente, e 22/23 na altura dos factos, a arguida, como advogada, praticamente falou sempre consigo, tendo sido a testemunha que falou nos valores da indemnização a receber e tudo. A certa altura a arguida disse que havia acordo com a seguradora pelo valor de €150.000, e que era melhor assim, e aceitaram. Foi a arguida que veio buscar o cheque desse valor a Lisboa, e foi com a filha depositar o cheque. E depois transferiram €25.000 de honorários para a arguida. Passado um tempo, a arguida apareceu a querer falar com a B..., e falaram ambas com ela. E a arguida então, chorando muito, disse que precisava de €50.000, que até dava juros, que passaria um cheque do valor total, e que até entregava uma Procuração a esta testemunha para, caso não houvesse pagamento, poderem hipotecar um prédio dela. Explicou a arguida que supostamente era para resolver um problema de uma pessoa amiga dela, uma Sra. F..., que tinha filhos pequenos e ia ser posta na rua por “não conseguir pagar a casa dela” ; pelo que, segundo percebeu, a arguida queria os €50.000 para comprar a casa em seu próprio nome e assim evitar que a tal F... fosse para a rua. Reiterou que na altura a arguida chorou muito, e até disse que tinha um tio no Algarve mas que não queria ir ao Algarve, e que a B... estava mais perto, e que “seria só uma questão de um mês mais ou menos”. Perguntada a testemunha, disse ignorar completamente o que seja um contrato de mútuo, não sabendo também precisar o que seja uma hipoteca. Seja como for, e porque confiaram na arguida, ficaram convencidos que ia correr tudo bem, e aceitaram. Pelo que, uns dias depois, ainda em Maio de 2006, a filha (B...) foi ao banco e passou um cheque visado de €50.000 que entregou à arguida - e, na mesma ocasião, a arguida entregou à filha “um cheque de €50.000” e, disse a testemunha, mais dois de €1.250 cada um, que seriam os tais juros que a arguida dissera ir pagar. Passado aí um mês (em Junho) a arguida ligou a dizer para não meterem os cheques, porque “tinha havido umas dificuldades”, e entregou um novo cheque de €52.500 datado para um mês depois dessa data (já em Julho de 2006). A testemunha perguntou para que eram os €2.500 a mais, e a arguida dizia sempre que era os “juros, para a B... não ficar mal”. Passada essa data de Julho, e tendo sido pedida de novo a não apresentação a pagamento daquele segundo cheque, a arguida, através da sua empregada, indicou que iria mandar um novo cheque de €52.500 por correio para substituir o anterior. Mas isso nunca aconteceu. Não tendo mais conseguido contactar a arguida, a testemunha foi então falar com um advogado, que disse que a tal “garantia da casa” não servia de nada, que não podiam fazer nada com ela ; e aí foi ao banco, onde a aconselharam a meter os cheques, o que fez, em Outubro de 2006, vindo os dois cheques “de €50.000 e de €52.500” devolvidos por extravio ; os dois de €1.250 foram pagos. Fartou-se de tentar falar com ela, mas nunca mais conseguiram. Perguntada, esclareceu que a B... (assistente) é tetraplégica, e depende completamente da testemunha e dos irmãos, sofrendo inclusive de depressão. Mais esclareceu que a sua família vive numa habitação social (paga €50 de renda), que é um 1º andar, e o dinheiro da indemnização na altura era até para comprar uma casa em que a assistente não tivesse de subir escadas. Foi a testemunha I..., seu ex-patrão, que acabou por comprar essa casa que era para ser para a família da B..., porque era um muito bom negócio. Tem sido o dinheiro da filha (o remanescente da indemnização) que tem ajudado principalmente a subsistência da B..., que toma muitos e dispendiosos medicamentos. Esclareceu que trabalha, tal como os 3 irmãos da assistente, e que esta última não recebe nenhuma pensão. Nota-se desde logo alguma confusão da testemunha no que se refere ao valor do primeiro cheque entregue pela arguida à B..., e que a testemunha diz ter sido de €50.000. Porém, e como se disse, trata-se de mera confusão da testemunha, que se mostra devidamente esclarecida pelo teor do próprio cheque em causa (que é no valor de €52.500), juntos aos autos, aliás, como se disse, em termos que a própria arguida admitiu. Prosseguindo. A testemunha L..., irmão da assistente, disse ter visto “a advogada” ir lá a casa duas vezes. Uma primeira logo depois de a sua irmã (a assistente) ter recebido €150.000 de um acordo com a seguradora em Tribunal – tudo em Maio de 2006. A arguida “ia com uma senhora”, e esteve a falar com a mãe e a irmã (assistente) da testemunha. Explicou que só assistiu ao início da conversa, percebendo que se tratava de um pedido de dinheiro à sua irmã – entretanto foi para o seu quarto.. Viu-a de novo no mês a seguir, quando ela foi de novo à casa da sua família, agora para pedir à mãe “para não meter o cheque ao banco”, tendo então entregue um novo cheque – a arguida até pediu a esta testemunha para ir tirar fotocópias do cheque antigo (que não era para levantar) e do novo, o que a testemunha fez. No mais, sabe que o valor que a irmã entregou à advogada ainda está por pagar, “até porque se assim não fosse não estávamos aqui”. Confirmou viver a sua família numa casa da câmara, um 1º andar, e que para a sua irmã B... isso é “muito complicado por causa das escadas”. A irmã encontra-se muito mal, muito perturbada psicologicamente, de tal forma que a testemunha “nem quer falar nisso” [a testemunha revelou evidente dificuldade e constrangimento em falar da situação da sua irmã], o que já vem desde o acidente, embora esta questão “não tenha ajudado”. Perguntado também sobre o que entende por contrato de mútuo e por hipoteca, disse não fazer ideia nenhuma do que isso seja. De seguida, a testemunha I..., pedreiro da construção civil e amigo da família da assistente, disse ter visto a arguida duas vezes. A primeira quando a família B... (que conhece desde 2001) o levou para irem verificar o local onde ocorrera o acidente de viação que vitimara a B..., e em causa no processo judicial em que veio a receber uma indemnização – sendo a arguida a advogada da B... e estando também presente na altura. E depois, viu-a quando ela foi à Fi... a casa da família B..., e a chorar pediu dinheiro à B.... Supostamente, e segundo percebeu, uma outra senhora, que ia com a arguida, ia ser tirada da casa onde vivia com os filhos, pois não a podia comprar ; e assim a arguida pediu à B... “10 mil contos”. Esclareceu a testemunha que quem falava mais era a advogada, que dizia que precisava do dinheiro exactamente para comprar a casa da outra senhora que a acompanhava, sendo que até à testemunha “fez impressão ver uma advogada a chorar tanto”. A arguida levava uns papéis de uma sua casa, e “uma Procuração qualquer”, tendo a B... acabado por emprestar o dinheiro. Assistiu a essa conversa exactamente porque a mãe da B... o chamou para isso, isto é, para a ajudar na conversa, uma vez que não estava à vontade naqueles assuntos – isto é, a testemunha foi chamada essencialmente para ver “se ela estava a falar bem” e “se haviam de emprestar o dinheiro ou não”. Mais recordou que quando foi para a B... entregar o cheque, foi a própria testemunha que foi com ela buscar um cheque visado a Coimbra, tendo-se a entrega do cheque verificado em concreto em Pombal, numa área de serviço. Viu que nessa altura a a advogada deu também “uns papéis” à B.... Confirmou também esta testemunha que a família da assistente vive numa casa de 1º andar, o que para a B... “é um problema”. De tal forma, que a testemunha, na altura dos factos, tinha encontrado uma boa casa para a B... comprar, de rés-do-chão e com pátio “para os animais dela” ; mas com a falta do dinheiro que entregou à arguida, ficou sem possibilidades para a comprar, acabando por ser a testemunha a comprá-la. Ainda quanto à assistente, disse que ela “está muito mal”, não tendo pensão nenhuma, e dependendo da mãe e dos irmãos, gastando muito designadamente em medicamentos. A testemunha D..., irmã da assistente, começou por confirmar todos os aspectos relativos ao acidente da sua irmã e à indemnização por ela recebida, e bem assim que a arguida era a advogada no processo judicial respectivo, tendo recebido €25.000 de honorários, por transferência bancária. Poucos dias depois, a arguida ligou á irmã a pedir dinheiro para salvar a situação de uma pessoa sua amiga que tinha a casa penhorada e ia ser posta na rua com os filhos se não pagasse €50.000 à dona da casa. Ela foi lá à casa da sua família, inclusive acompanhada da tal senhora (de nome F...), e ambas a chorar, explicaram a situação toda, pedindo a arguida dinheiro à B... para poder emprestar a essa amiga. A conversa foi essencialmente com mãe da testemunha e com a B..., mas estavam presentes na casa também esta testemunha, o irmão L..., e um amigo da família, que a sua mãe chamou – a testemunha I.... A mãe pediu opinião ao I… e ele disse que achava que podiam emprestar – já a testemunha D... manifestou na altura uma opinião contrária ao empréstimo. A arguida na altura disse inclusive que pagaria mais €2.500como “salvaguarda da B..., para não fica prejudicada”. Confirmou que o dinheiro foi entregue à arguida via cheque em Pombal, tendo sido a testemunha I… a ir com a B... a Coimbra buscá-lo – tendo nessa ocasião a arguida entregue uns papéis, nomeadamente uma Procuração, e “uma hipoteca de uma casa”, que seriam a “garantia”. Passado um mês, a arguida ligou a dizer que tinha de trocar os cheques, e voltou lá e fez essa troca, ou melhor, entregou um cheque de €52.500, e até pediu ao irmão deste para tirar fotocópias dos cheques. A mãe só queria um cheque de €50.000, mas a arguida insistiu nos €52.500. Depois disse mais uma vez que tinha de trocar também esse segundo cheque, mas nunca mais conseguiram contactá-la. A mãe meteu os cheques ao banco, e aí informaram-na que tinham sido dados como extraviados depois de passados. Só os dois cheques de €1.250 cada um, que a arguida também entregara, foram pagos. A irmã vive com a mãe, numa casa de 1º andar, tendo muitas dificuldades com as escadas. Não recebe nenhuma pensão. Psicologicamente, a irmã está muito afectada, chora muito, está com constantes depressões e anda em consulta de psiquiatria – tudo isso a partir do seu acidente, mas sendo certo que “o que a arguida fez ainda piorou”. A irmã queria adquirir uma casa com o dinheiro da indemnização, e teve perspectivas de o fazer, mas ficou impedida pela falta deste dinheiro. Temos de seguida o depoimento da assistente B.... Disse ela que teve um acidente de viação, de que ficou com tetraplagia completa, tendo sido a arguida a sua advogada no processo daí decorrente, e que foi resolvido com uma indemnização de €150.000 a seu favor, que foi depositado numa sua conta bancária – tendo pago €25.000 de honorários à arguida. Ainda assim, durante o curso do processo, não tinha contactado muitas vezes com a arguida pessoalmente, tratando com ela apenas o que foi necessário para o processamento da acção judicial. Dois ou três dias depois, ela foi falar pessoalmente com esta e com a sua mãe, estando presente o sr. I…, e pediu para a assistente lhe emprestar €50.000. Ela ia acompanhada de uma senhora, e o dinheiro supostamente era para ajudar essa senhora “a não ficar na rua com os meninos”, não sabendo a assistente exactamente qual o destino do dinheiro (se banco, se tribunal….). A advogada chorava, e dizia qualquer coisa de o seu pai ter morrido. Esclareceu que não assistiu à conversa toda do princípio, mas apenas a partir do momento em que a mãe a chamou. A mãe da assistente acabou por dizer que a última palavra era sua (da assistente), e esta, “na boa fé”, como ela estava a chorar e disse que era só por um mês, disse que aceitava. Notou que a sua mãe não estava muito de acordo que ela aceitasse emprestar o dinheiro, mas ainda assim lhe deu a última palavra – possivelmente com ‘esperança’ que a assistente dissesse que não ; mas como esta viu a arguida a chorar e falava nos “meninos” da outra senhora, aceitou, pois convenceu-se que ela ia pagar – sendo certo que era a “doutora” quem deveria devolver o dinheiro, pois o empréstimo era a ela. Disse também que a arguida na altura mostrou “uns papéis de umas hipotecas” e de uma suposta herança do pai – papéis que quando mostrou a um advogado, descobriu que não valiam nada. Não viu o empréstimo como um negócio, era simplesmente por ela ser advogada e pensando também que ela a iria ajudar a comprar um carro adaptado e uma casa nova. Foi também a arguida que disse que pagaria um montante de juros “para salvaguardar a B...”, sendo que a assistente e a sua mãe não queriam nada disso. Assim, “comprou um cheque ao banco” e entregou-o à arguida em Pombal, na estação de serviço. Passado o mês, a arguida voltou lá a casa e disse que não conseguia na altura pagar, e se podia aguentar mais um mês ; e a assistente, sempre confiando nela, aceitou. Ela na altura entregou outros cheques. Depois desse dia, nunca mais a viu, nem mais a conseguiram contactar – aliás, conseguiu uma vez, mas ela desligou-lhe o telefone quando se identificou. Não recebe pensão nenhuma, vive só com a ajuda da mãe. Gasta cerca de 150€ em medicamentos mensalmente, ao que acresce o custo de fraldas, dentista (os medicamentos fazem apodrecer os dentes), etc. Vive num 1º andar, tem de subir dois lanços de escadas para chegar a casa, e mais dois lanços dentro de casa para ir para o quarto (sobe de gatas). Tem gasto os €75.000 que sobraram da indemnização nessas despesas. Foram ouvidas de seguida as testemunhas apresentadas pela defesa da arguida. Começando por H…, empresário de construção civil de Mem Martins. Disse conhecer a arguida através de uma relação profissional com terceiros, clientes dela - a F... e o G.... Estes habitavam uma moradia construída pela testemunha em Meleças, mas não tiveram capacidade para completar o negócio - não se recorda quanto faltava e quanto pagaram. A situação foi-se arrastando, e a testemunha começou a solicitar-lhes que tinham de sair do imóvel. Em 2005, eles vieram contactá-lo para reestruturar o negócio, acordando com eles em acertar as contas através da compra de um apartamento que a testemunha também estava a construir – a testemunha percebeu mais tarde que essa solicitação de renegociação ocorreu quando foi cortado o fornecimento de água à moradia por falta de pagamento. Assim, reuniu-se com eles, e exigiu um período muito curto (cerca de 2 ou 3 dias) para eles, anulando o contrato anterior, fazerem um novo contrato-promessa sobre o apartamento – mas para isso seria necessário fazer o pagamento de €50.000. Qual não foi a sua surpresa quando nesses 2 ou 3 dias eles apareceram com os €50.000 - veio a arguida e a F... ter consigo, e o valor em causa foi pago através de um cheque do BANIF emitido pela arguida nesse valor. Deixou-os entrar para o apartamento, mas a verdade é que eles não pagaram o resto do preço devido (€25.000) e ainda têm a escritura definitiva por fazer. Estão a viver nessa casa, mas são muito difíceis de contactar. A testemunha J..., empregada administrativa, e funcionária da arguida desde 2005. Disse só conhecer a assistente e os familiares de nome. Trabalha com a arguida diariamente ; quando foi trabalhar com ela, foi por ela estar incapacitada de um braço, e não conseguia escrever. Foi esta que tratou do registo da hipoteca da arguida em nome da assistente. Na altura ela era bastante amiga da sra. F... (quase família), porque a arguida tinha perdido os pais, e a F... apoiava-a muito. Depois “do sucedido” afastaram-se. Não está muito por dentro do que aqui se passou no caso dos autos, mas sabe que ela não usufruiu deste dinheiro, que foi para o tal casal amigo (F... e marido, G...). Sabe que a arguida já tentou pagar esta situação, mas está dependente de uma partilha extra-judicial com os irmãos, que não está a ser nada fácil – tentaram a via judicial, mas como a irmã estava desaparecida desde 2007, não avançou. Quanto ao casal da F... e G..., já foram contactados por ela, mas vão protelando. Finalmente E..., amigo da arguida, há cerca de 5 anos, disse tâ-la conhecido através de uma namorada. Caracterizou a arguida como sendo uma boa amiga, muito prestável, e que tem o “defeito” de ser um bocadinho impulsiva, nomeadamente a colaborar ou ajudar as pessoas. Sabe que ela tem alguns problemas de partilhas com irmãos, e que ainda não terá tido capacidade financeira de liquidar a dívida dos autos. Pois bem, como se constata a grande divergência entre a versão dos factos apresentada pela arguida, por um lado, e pela assistente e pelas testemunhas de acusação, por outro, reside não tanto na ocorrência dos factos objectivamente verificados, mas sim essencialmente na circunstância de dois mesmos se poder concluir ter existido ou não intenção da parte da arguida de enganar a assistente por forma a obter dela aqueles €50.000. Resulta do elenco que fica feito da matéria de facto provada (e não provada) que o Tribunal entende haver ficado demonstrado que efectivamente existiu da parte da arguida intenção de obter aquela quantia monetária através da indução em erro da pessoa da ofendida B.... Assim, é fora de dúvida, no entender do Tribunal, que uma primeira análise dos depoimentos acima transcritos – nomeadamente daqueles que revelaram conhecimento directo e imediato dos factos em causa, por os haverem presenciado pessoalmente - é desde logo suficiente para alicerçar com segurança a essencial conclusão de que a assistente B... apenas acedeu a entregar aquele valor (de €50.000) à arguida devido à confiança que esta lhe inspirava, decorrente do facto de ter sido sua advogada num recentíssimo processo judicial relativo a factos que alteraram drasticamente a sua vida, confiança essa assim perfeitamente compreensível, e para mais conjugada com os factos de a arguida lhe surgir tão desesperada e chorosa (como relataram, de forma unânime e perfeitamente coerente, a assistente e as testemunhas seus familiares e vizinho), e de lhe haver sido prometida a devolução do dinheiro no prazo de um mês - sendo certo que nunca a assistente terá, afinal, tido qualquer intenção de fazer desta situação um “negócio” lucrativo para si. Aliás, resulta claramente do depoimento das testemunhas e da assistente algo que a própria arguida também acabou por confirmar, contrariando, diga-se, o que afirmara em sede de contestação : é que não foi a família da assistente B... a exigir o pagamento de qualquer “juro” ou compensação pelo “empréstimo” (assim o configuravam eles) dos €50.000, antes tendo sido a arguida a sugeri-lo e a insistir que essa ‘compensação’ seria paga. No que respeita em particular às circunstâncias como a arguida procurou e se dirigiu à assistente e à sua família na casa destes na Fi..., para efectuar o pedido daqueles €50.000, cumpre desde logo assinalar alguns aspectos. Primeiro, que resulta pacificamente dos depoimentos da arguida e das testemunhas de acusação, que isso terá necessariamente acontecido entre os dias em que foi recebida pela assistente a indemnização judicial de €150.000 e de serem pagos os honorários da arguida como advogada no processo respectivo (o que aconteceu respectivamente a 11 e a 12/05/2006) e o dia 19/05/2006, e não exactamente neste dia, como referia a acusação – na verdade, o dia 19 foi aquele em que a arguida já recebeu o cheque emitido pela assistente, o que aconteceu nos dias imediatos à ocorrência do pedido do dinheiro, e não nesse mesmo dia. Depois, que essa abordagem à assistente e sua família por parte da arguida revestiu uma configuração bem mais “dramática” do que aquela que a mesma arguida quis fazer passar em Tribunal. Na verdade, resulta dos depoimentos da assistente e das testemunhas de acusação que assistiram in loco à conversa onde ocorreu o pedido do dinheiro, que a arguida se apresentou na altura literalmente em prantos, chorando muito por forma a enfatizar bem a urgência do seu pedido – a testemunha I... referiu de forma bem elucidativa que até lhe “fez impressão ver uma advogada a chorar tanto”. E falaram também a assistente e as testemunhas num pormenor que não encontra eco em nenhum facto real nos autos, e que é o de que aquela F... que a arguida pretendia “ajudar” ir ser posta na rua “com os seus filhinhos” – ora, aceita-se (até em face do depoimento da testemunha H…) que essa senhora poderia estar em vias de perder o dinheiro pago no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda que celebrara, e bem assim o imóvel objecto do mesmo, mas não com qsq “filhinhos” pela mão. Maior dramatismo é difícil. Considera-se assim demonstrado que a arguida procurou a assistente assumindo uma postura pungente de grande emoção e dramatismo, a logo escassos dias depois de a assistente receber aquela indemnização e de à arguida serem pagos os seus honorários como advogada, no valor de €25.000. O que releva grandemente para a conclusão que o Tribunal formula em termos de matéria de facto provada nos seguintes termos, que se julgam incontornáveis : Por um lado, e como acima se disse, significa que esta circunstância contribuiu também fortemente para a decisão de a ofendida aceitar “emprestar” aquele valor à arguida, não podendo deixar de se considerar que esta última, conhecedora da personalidade da assistente e da fragilidade psíquica em que a mesma se encontraria (por via da incapacidade física que a afectava em resultado do acidente que sofrera anos antes, como unanimemente referiram as testemunhas), terá recorrido a um tal dramatismo sabendo que dessa forma mais facilmente poderia convencê-la a aceder ao seu pedido. E por outro lado, que muito mal se poderá compreender e aceitar a versão da arguida quando se verifica que, tendo escassíssimos dias antes de se dirigir à ofendida (não poderão, com toda a segurança, ter sido no mais de 4 ou 5) recebido os seus honorários no valor de €25.000, não tenha desde logo disponibilizado esse dinheiro para ajudar a sua amiga F..., que, precisando de €50.000 tão urgentemente, veria à partida metade do seu problema resolvido, apenas tendo de arranjar os restantes €25.000 - e isto já dando de barato que a arguida não teria outros recursos monetários para ela própria contribuir para socorrer financeiramente a amiga F... ! – algo que, diga-se, a arguida não invocou sequer que não se verificasse. Mas, muito estranhamente, assim não sucedeu. Possuidora recente pelo menos daquela quantia de €25.000 limpos, que lhe permitiria, caso entendesse mesmo necessário, pedir à ofendida um valor muito inferior àquele que lhe pediu, a arguida optou por se dirigir em prantos à família da assistente, preferindo comprometer o património de terceiros completamente estranhos às suas relações de amizade com os ditos casal F... e G..., ao invés de ela própria também desde logo ajudar os seus grandes amigos – dando-se mesmo ao trabalho de emitir uma Procuração arriscando (sempre na versão da arguida) a sua própria casa, o que, tudo, seria bem escusado se tivesse desde logo lado do seu próprio património para os ajudar. Não se consegue entender esta circunstância de forma nenhuma, deparando-se assim o Tribunal com a consideração de um facto objectivo que logo à partida corrói fortissimamente as propaladas boas intenções da arguida quando se dirigiu à ofendida para lhe pedir este dinheiro. Também considera o Tribunal ser demonstrativo de que a arguida actuou de facto ilegitimamente quando quis obter à conta da ofendida o benefício económico correspondente ao valor que dela recebeu, o facto de, por forma a alicerçar a confiança da ofendida e a melhor a convencer a entregar-lhe aquele montante pedido, se haver comprometido a devolver a aludida quantia no prazo de 1 mês, mais referindo que garantiria tal pagamento com a entrega da Procuração aludida na matéria de facto provada, com o conteúdo ali especificado, e de um cheque por si emitido a favor da ofendida (com data de pagamento para cerca de dali a um mês), no montante que solicitava, acrescido ainda –e, recorde-se, por iniciativa da própria arguida– do valor de €2.500 como “compensação” do favor pedido. Assim, e quanto à Procuração, verifica-se que através da mesma a arguida declarava constituir sua procuradora C..., mãe de B..., a quem concedia a poderes para em seu (da arguida) nome celebrar escritura publica de mútuo com hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma correspondente à própria habitação da arguida (e sita no … andar do nº…. da Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa), para garantia do valor recebido acrescido de juros. Porém, e em face da prova produzida nos autos, entende-se que a mesma Procuração não poderia considerar-se como tendo a virtualidade de servir de suficiente “garantia” do pagamento da quantia em causa. Na verdade, e como se constata pelo teor do registo predial relativo à fracção autónoma que está em causa nessa procuração (e que corresponde afinal à residência da arguida), tal imóvel já se encontrava à data dos factos onerado com duas hipotecas que garantiam empréstimos bancários que a arguida contraíra para aquisição do mesmo e para realização de obras, e pelo valor global de cerca de €130.000. Donde, como é óbvio, na melhor das hipóteses a “garantia” que aquela procuração representava –e traduzida na possibilidade concedida à mãe da arguida de celebrar escritura pública de mútuo bancário com hipoteca sobre a mesma fracção autónoma- sempre seria claramente remota, hipotética, subsidiária e insuficiente : desde logo porque muito dificilmente alguma entidade bancária aceitaria celebrar tal negócio quando o imóvel em causa já se encontrava onerado com outras garantias reais decorrentes das primeiras hipotecas referenciadas, e que sempre teriam prevalência legal. E isto sendo certo não se considerar também demonstrado nos autos que o imóvel em causa tivesse um valor patrimonial que permitisse dar ‘cobertura’ à satisfação de ambas as garantias hipotecárias, e depois de ainda mais esta decorrente do mútuo a efectivar pela mãe da assistente. É verdade que, nesta parte, alegou a arguida que a fracção autónoma em causa teria, à data dos factos, um valor que permitiria largamente cobrir não só as hipotecas já constituídas, como aquela que a família da assistente poderia vir a constituir – assim se ressarcindo o valor entregue à arguida. Para o efeito, juntou em audiência final (a fls. 671 e segs.) um documento intitulado “Relatório de Avaliação”, elaborado, a seu pedido, pela empresa “R…. – Avaliação e Consultadoria Imobiliária” em Março de 2010. Pois bem, nos termos deste documento conclui-se, com base em vários critérios ali elencados, que à data de 2006 a fracção autónoma em causa teria o valor de €357.200,00. Sucede, porém, que não pode o Tribunal atribuir a este documento o valor probatório pretendido pela arguida. Desde logo, porque não pode perder-se de vista estarmos perante um documento particular elaborado a pedido da arguida e no seu exclusivo interesse como cliente (pagante, supõe-se) da entidade que o elaborou –o que só por sim determina que o seu valor probatório deva ser encarado com especiais cautelas. E depois, porque não se compreende muito bem a conclusão do dito documento quanto ao valor da fracção autónoma em causa com referência ao ano de 2006 (€357.200,00, recorde-se) quando se verifica que, de acordo com a escritura de compra e venda relativa à mesma (cfr. fls. 10 e segs.), em Janeiro de 1999 a arguida a comprou por … 20 milhões de escudos, isto é, cerca de €100.000 – ou seja, menos de uma terça parte daquele valor em que foi avaliado no dito documento. Ou seja, e partindo naturalmente do pressuposto (que é de presumir, julga-se) de que não existiu qualquer situação de irregularidade (designadamente a nível fiscal) no que respeita ao valor pelo qual aquela fracção autónoma foi adquirida pela arguida em 1999, dificilmente se pode aceitar que a fracção autónoma em causa tenha aumentado em mais de três vezes o seu valor em apenas 7 anos. Donde não se poder dar como assente este valor do imóvel em 2006 como vinha alegado pela arguida. De todo o modo, diga-se, sempre seria essa uma circunstância algo secundária relativamente ao real valor da dita Procuração como garantia do pagamento do valor aqui em causa. Na verdade, para além de sempre se deparar a assistente com a prevalência daquelas hipotecas bancárias prévias, sendo assim altamente insegura a sua posição creditícia, acresce ainda que mesmo que por (remota) hipótese a mãe da arguida lograsse efectivar um tal negócio ao abrigo da dita procuração, sempre ficaria em posição de devedora da quantia cujo mútuo (bancário) obtivesse, e assim sujeita a todo um processo certamente oneroso (para si e enquanto tal) se tivesse de ser executada a hipoteca constituída em garantia do mesmo. Aliás, e ainda com relação à Procuração em causa, sempre poderia questionar-se da necessidade que tinha afinal a arguida de a emitir a favor de terceiros de forma a permitir a estes efectuarem um contrato de mútuo bancário com hipoteca da sua casa. É que se julga que teria sido bem mais simples, em caso de necessidade, ser a própria arguida, por si, a efectuar um tal pedido de crédito bancário e a reforçar, se necessário, as garantias sobre a fracção autónoma em causa – ainda para mais se, como alega, a mesma valia o triplo do valor garantido pelas hipotecas iniciais. Questionada a este propósito, a arguida disse que efectivamente ainda tentou, depois dos factos, obter crédito para resolver a questão, mas que, contudo "já não teve capacidade de endividamento", pois não conseguiu sequer aumentar o plafond do crédito da casa – o que desde logo reforça grandemente a estranheza acima manifestada pelo Tribunal quanto ao valor atribuído ao imóvel naquele documento “Relatório de Avaliação” junto pela arguida. Ora, se assim é, então devemos concluir que é a própria arguida quem acaba reconhecendo que nem a si própria lhe foi possível, afinal, fazer exactamente aquilo que, no seu entender, a ofendida (através da sua mãe) deveria ter feito através da dita Procuração e para se ressarcir – isto é, obter um crédito bancário mediante a garantia constituída por uma hipoteca sobre aquele imóvel. Enfim, tudo isto se crê suficiente para considerar que, na prática, tal Procuração estava longe de acautelar eficazmente o pagamento daqueles €50.000, o que a arguida bem sabia, tanto mais atenta a sua profissão de advogada que especialmente a habilitava a conhecer e a compreender essas circunstâncias – ao contrário da ofendida e seus familiares, a quem as mesmas não foram de forma nenhuma esclarecidas e elucidadas pela arguida na altura, como claramente resulta também dos seus depoimentos, quando se verifica que, perguntados, revelaram, de forma que se considera perfeitamente espontânea e sincera, não fazerem sequer ideia do que seja um contrato de mútuo ou qual o significado de uma hipoteca, quanto mais perceberem os mecanismos do seu funcionamento. E isto sendo certo não lhes ser no caso exigível que houvessem na altura procurado aconselhamento legal para o compreenderem, pelo simples e decisivo motivo de que quem lhes estava sugerindo a validade e eficácia de toda esta actuação era exactamente nada menos do que uma Advogada – mais do que isso, aliás : era a sua própria advogada! Crê-se, pois, que também estas circunstâncias são mais uma achega para demonstrar como efectivamente a arguida se aproveitou do seu ascendente profissional e da relação de confiança que o mesmo determinou na ofendida e na família desta. Já agora, e ainda a propósito de hipotecas, resulta também dos autos que no dia 19/05/2006, a arguida fez registar provisoriamente sobre a fracção autónoma em causa na Procuração uma hipoteca voluntária em favor da ofendida B..., a qual seria "para garantia do pagamento da quantia de €52.500, acrescidos de juros legais, em vigor e despesas judiciais e extra-judiciais que se fixam no montante máximo de €5.000, pelo prazo de um mês, com início no dia 22/05/2006 e termo no dia 22/06/2006". Os motivos já explanados quanto à inocuidade como garantia creditícia daquela Procuração, e da hipoteca que a mesma permitira constituir, servem também aqui para se considerar materialmente ineficaz esta suposta garantia que a arguida também invoca - sendo certo, aliás, que esta hipoteca voluntária, provisória por natureza, caducou ainda antes de a ofendida tentar meter a pagamento os cheques recebidos da arguida. Quanto ao cheque emitido pela arguida e entregue à assistente aquando do recebimento dos €50.000 como suposta garantia do ressarcimento deste valor, crê-se ser também de afastar liminarmente qualquer susceptibilidade de garantia creditícia material que o mesmo cheque pudesse ter alegadamente assumido. Na verdade, constata-se que próximo ao momento do vencimento desse primeiro cheque, emitido pelo valor de €52.500, a arguida se deslocou novamente à residência da assistente B..., solicitando-lhe que não o apresentasse a pagamento, por dificuldades entretanto surgidas ; e nessa ocasião entregou-lhe um outro cheque, no mesmo valor (€52.500), e emitido para daí a um mês (Julho de 2006), como forma de “garantir” o pagamento da quantia recebida. Porém, e mais uma vez na véspera da data aposta neste segundo cheque, a arguida entrou em contacto com B..., e invocando novamente dificuldades financeiras pediu a esta que igualmente não o apresentasse a pagamento, afirmando que enviaria um outro cheque pelo correio, no que B... acreditou, voltando aceder ao pedido da arguida. Sucede, porém, e aqui caindo por terra a hipótese de qualquer destes cheques alguma vez ter servido de efectiva garantia do que quer que fosse, que este prometido terceiro cheque nunca foi enviado pela arguida à ofendida B..., a qual também nunca mais conseguiu contactar a arguida, tendo então apresentado a pagamento o segundo dos cheques que a arguida lhe entregara, o qual não obteve pagamento por o mesmo ter sido recusado com o motivo de “cheque Revogado/Extravio” ; e tendo perante isso tentado ainda depositar o primeiro dos cheques, que também não obteve pagamento por ter sido recusado exactamente com o mesmo motivo de “cheque Revogado/Extravio” – constatando-se assim que a arguida dera entretanto indicações ao seu Banco no sentido de tais cheques não serem pagos. Ou seja, deste conjunto de factos, culminando no cancelamento dos cheques por parte da arguida, se conclui que a mesma arguida nunca teve, aliás, intenção de que tais cheques obtivessem pagamento. Senão como explicar a promessa incumprida de entrega de novo (terceiro) cheque, e o facto de a partir do pedido de não apresentação daquele segundo cheque, não mais a ofendida e seus familiares conseguirem contactar a arguida nem esta mais a ter procurado, “limitando-se” a cancelar ambos os cheques, não lhe dando mais nenhuma satisfação ou explicação quanto ao não pagamento da quantia que lhe pedira? Alegou a arguida que os pedidos de não apresentação a pagamento dos cheques foram motivados por indisponibilidade financeira, nomeadamente devido à circunstância de aquele casal F... e G..., não haver por sua vez, cumprido o que haviam combinado consigo no sentido de lhe devolverem num curto prazo os €50.000, tendo deixado de os conseguir contactar para resolver a situação. Para além de não haver ficado demonstrado nos autos que assim haja ocorrido, a verdade é que também dificilmente se poderá aceitar uma tal "causa de justificação". Primeiro, porque a ofendida sempre seria completamente alheia a qualquer acordo entre a arguida e aquele casal, sendo certo não resultar da prova produzida em audiência que o mesmo haja sido explicado à assistente e à sua família aquando do pedido dos €50.000 - ou seja, não resulta da prova produzida nos autos que aquando da conversa com vista a efectuar um tal pedido, a arguida haja explicado devidamente à ofendida que os €50.000 iriam ser, no prazo de um mês, arranjados pela dita F... e seu marido nomeadamente através de financiamento a efectuar por um irmão do G..., que tinha negócios de churrasqueiras e construção civil. Foi isto que a arguida alegou em audiência, mas dizendo também que isso foi o que ela tinha acordado com a F... e o G..., não resultando que dessa circunstância haja sido informada pormenorizadamente à assistente B.... O que bem se compreende que não haja sucedido, pois tal implicaria que a assistente tivesse naquela F... (pessoa que não conhecia) o mesmo grau de confiança que depositava na arguida, e a ofendida foi bem clara em explicitar que só entregou o dinheiro porque confiou na arguida. Depois, porque através dessa explicação a arguida vem mais uma vez pressupor uma exigência sobre o comportamento da ofendida que não tem perante o seu próprio comportamento : de facto, o que a arguida alega em sua defesa (para não ter pago aquele valor e pedido a não entrega a pagamento dos ditos cheques) é que foi enganada pelo casal F... e G..., em quem confiou, e que não mais os conseguiu contactar para reaver o dinheiro - apesar de saber onde moram desde sempre. Soa familiar, não é verdade? Ou seja, tendo o dito casal tido uma actuação -na versão da arguida, que não foi demonstrada nos autos, assinale-se bem- similar àquela que objectivamente foi a sua perante a ofendida B..., a arguida considera que foi enganada pelo mesmo casal mas já entende não ter tido qualquer comportamento reprovável perante a assistente. O grande problema da versão de defesa apresentada pela arguida, conclui-se a cada passo, é que mais do que as suas palavras falam os seus actos - e é na força probatória que emana do próprio comportamento - quase concludente - da arguida que as suas palavras acabam 'esbarrando'. Defendia ainda a arguida que apenas ordenou o cancelamento dos dois cheques (no valor de €52.500 cada um) após decorrido o respectivo prazo de apresentação a pagamento. Não é, porém, também esta circunstância que colide a consideração de que a entrega desses cheques à ofendida fez parte ainda do esquema tendente a convencê-la a largar mão daquela quantia de €50.000, concretizando-o - e isto pelo singelo motivo (novamente os actos a falarem mais alto que as palavras) de que tais cheques não foram apresentados a pagamento exactamente a pedido e solicitação da arguida junto da ofendida. Ou seja, não colhe dizer que a arguida não actuou, afinal, de má fé porque só cancelou os cheques depois do seu prazo de apresentação, uma vez que essa não apresentação foi determinada pela própria arguida, nos termos expostos. A ofendida só não apresentou os cheques a pagamento dentro do prazo legalmente previsto para o efeito porque a própria arguida lho solicitou, tendo inclusive, para conseguir que isso acontecesse – e das duas vezes – prometido à ofendida que lhe entregava cheques de substituição, o que aliás só fez uma vez. Disse ainda a arguida em audiência que mandou cancelar os cheques para evitar a sua devolução sem provisão. Nesta parte, basta considerar que é esta uma alegação que Jacques de la Palice não faria melhor, não se compreendendo em que é a mesma sequer atenua a ilicitude do seu comportamento, quando, como se disse, os cheques não foram apresentados a pagamento dentro do respectivo prazo legalmente previsto devido à actuação da própria arguida. Acresce que ao comportamento activo da arguida, concretizado nos actos que têm vindo a ser explanados, acresce depois o seu comportamento omissivo posterior aos mesmos factos. Na realidade, constata-se que após aquele segundo pedido da arguida à ofendida para que esta não apresentasse o segundo dos cheques de €52.500 a pagamento, nunca mais a arguida procurou a ofendida, “limitando-se” a cancelar ambos os cheques, não lhe dando mais nenhuma satisfação ou explicação quanto ao não pagamento da quantia que lhe pedira, a que acresce agora a consideração da circunstância de jamais lhe ter pago nem um cêntimo da quantia em causa. Na verdade, da quantia que entregou á arguida, a ofendida apenas conseguiu recuperar o valor total de €3.900, correspondente a €2.500 titulados por dois cheques (no valor de €1.250 cada um) e a um depósito bancário de €1.400 efectuado em Julho de 2006 - donde considerar-se que, em face do pagamento destes dois cheques, a ofendida acabou por sofrer um prejuízo patrimonial de €46.100 (os €50.000 entregues, deduzidos daquele valor de €3.900 que ainda recuperou). Sucede que estes dois cheques (os de €1.250 cada um) e o depósito bancário em causa, foram pela arguida entregues e efectuado, respectivamente, não depois de consumados os factos - nomeadamente não depois de cancelar aqueles outros dois cheques de €52.500 -, mas sim antes disso, e logo após o recebimento da quantia de €50.000. Ou seja, esses dois cheques no valor global de €2.500 foram entregues e pagos ainda num momento em que a arguida mantinha a ofendida na expectativa de vir a receber a integralidade do valor de que dispusera, e não já depois de concretizado esse não pagamento como forma de parcialmente a compensar nessa fase. A partir do segundo pedido de não apresentação do segundo cheque de €52.500, da promessa de envio de um novo cheque e do praticamente simultâneo depósito bancário dos €1.400, a única resposta que a ofendida e seus familiares tiveram da parte da arguida com vista à eventual resolução da questão, foi o silêncio e a inércia - só interrompidos no próprio dia designado inicialmente para a leitura do acórdão nos presentes autos, com um depósito autónomo à ordem do processo no valor de €56.022. Ou seja, a relação de confiança ("e amizade", alegava a arguida na sua contestação) justificara o pedido do favor de a ofendida entregar à arguida €50.000, mas não foi já suficiente para que a mesma arguida tenha sequer tentado debelar ou atenuar, ainda que na medida do que fosse possível, o prejuízo patrimonial que, claramente, sabia afectar a ofendida em resultado daquele seu “pedido”. Julga-se evidente que todo este comportamento, assim globalmente apreciado, denota claramente que a arguida nunca teve afinal intenção de vir a liquidar aquele valor que pediu à ofendida, e que toda a sua actuação mais não foi do que a execução de um plano arquitectado desde o início, visando obter a entrega por parte da ofendida daqueles €50.000 e depois o correspondente, e previamente delineado, não pagamento integral da mesma. E não considera o Tribunal, de todo, que seja o aludido depósito autónomo à ordem do processo no valor de €56.022 efectuado no próprio dia designado inicialmente para a leitura do acórdão nos presentes autos, isto é, inclusive já depois de produzida toda a prova em Julgamento, derradeira fase processual, que invalida coloca em causa esta conclusão. Pelo contrário. Sem prejuízo de tal depósito dever ser considerado nesta sede em termos de decisão quanto à graduação da medida concreta da reacção penal a aplicar à arguida, o depósito do valor em causa nesta fase assume para o Tribunal evidente relevo também como meio indiciário de prova e no âmbito da apreciação da globalidade do comportamento da arguida, e que é o seguinte: é que tal depósito, surgido assim de forma tão repentina e inopinada (no sentido de surgir 'secamente' como mero expediente processual nos autos, sem qualquer explicação designadamente da origem do dinheiro em causa) por parte de quem, em sede de audiência, e alguns dias antes, tanto se lamentou de não conseguir ter ainda pago a quantia que era devida à assistente e tanto procurou justificar por todas as formas esse não pagamento com inabaláveis dificuldades financeiras, tal depósito, dizia-se, só faz cair por terra tais argumentos e justificações ; afinal, não pode o Tribunal deixar de indiciariamente alicerçar a sua conclusão e firme convicção de que a arguida tinha efectivamente meios para proceder ao pagamento do valor que recebeu da assistente e que não foi devolvido a esta, e que se o não fez antes, não foi por dificuldades ou impossibilidades económicas. É, assim, fora de qualquer dúvida que a arguida conseguiu obter um enriquecimento monetário indevido à custa de um correspondente prejuízo patrimonial determinado assim na esfera da ofendida., o que logrou obter mediante um artifício traduzido nas circunstâncias agora analisada, e só o tendo conseguido exactamente por essa via. Não releva para o efeito que a arguida tenha gasto depois esse valor em benefício de terceiros, nomeadamente aquela F... e o marido G..., promitentes-compradores num contrato promessa relativo à compra de uma fracção autónoma, tendo para o efeito a arguida emitido um cheque nesse valor a favor do promitente-comprador no mesmo contrato, o qual o sacou. Foi isso que a arguida referiu e mostra-se isso mesmo indiciado também pelo depoimento da testemunha H…, o promitente-vendedor no dito contrato promessa, como acima se viu. A verdade é que o dinheiro foi entregue pela ofendida à pessoa da arguida, tendo sido convicta da sinceridade e das boas intenções desta última que isso aconteceu, sendo a arguida quem recebeu esse valor e dele imediatamente se apropriou. Se o gastou quase imediatamente e como o fez, isso já tem a ver com a forma como ela própria decidiu gerir os seus interesses e a quantia em causa. Quanto aos factos dados por assentes e relativos às condições pessoais, psicológicas e económicas da assistente B..., no que respeita designadamente à questão relativa à sua situação habitacional, resultam os mesmos dos depoimentos dos depoimentos não só da própria assistente, como das testemunhas seus familiares (a mãe e os dois irmãos) e de I..., nos termos que ficaram explanados, sendo que todos revelaram, naturalmente, um conhecimento pessoal, directo e imediato de todo esse circunstancialismo. Com base nesses depoimentos é possível concluir que designadamente a referida situação habitacional da assistente se revela manifestamente inadequada face à sua actual condição de incapacidade física - todas as testemunhas tendo aludido à circunstância de o dinheiro de que a arguida se apossou ter feito a diferença relativamente à melhoria dessa mesma situação, nos precisos termos dados por assentes. Por outro lado, se é certo, de acordo com elementares regras de experiência comum, que o acidente por si sofrido tempos antes dos factos e a incapacidade daí resultante, não hão-de, manifestamente, ter deixado de afectar gravemente a ofendida em termos psicológicos, não é menos verdade, como bem expuseram as testemunhas referidas, que a situação em causa nos autos seguramente não terá deixado de contribuir, aliás de acordo com as mesmas regras de experiência, para acentuar negativamente a fragilidade desse seu estado psíquico - considerando-se perfeitamente credível e aceitável que, por muito deprimida e triste que a assistente se sentisse por via do seu acidente e da sua incapacidade física, isso não há-de ter deixado de se acentuar com os factos dos autos, correspondentes, afinal, ao desapossamento indevido de parte substancial da quantia que visava exactamente indemnizar esses danos, e pelas mãos de uma pessoa que, em princípio, deveria merecer toda a sua confiança, por se tratar nada menos do que da sua própria advogada. A arguida A... falou das suas próprias condições pessoais e sócio-económicas, no que também foi relevante o relatório social elaborado pela DGRS e junto a fls. 539 e os depoimentos das suas testemunhas de defesa J... e E.... Atendeu-se, enfim, ao certificado de Registo Criminal junto a fl. 581. Umas palavras finais quanto em especial aos factos não provados. Como se constata, a não prova da maioria destes últimos resulta, por evidente exercício de lógica a contrario sensu, de toda a análise que fica já feita no presente segmento desta decisão - pelo que não se julgam necessárias, nessa parte, maiores considerações. Não ficou além do mais demonstrado que a assistente haja sofrido qualquer especial perturbação psicológica ao prestar declarações sobre o "extravio" dos cheques, assim como demonstrado não ficou o pagamento que alegou de emolumentos bancários dessas respectivas devoluções - a mãe da ofendida aludiu a esse pagamento, mas a verdade é que além de o mesmo não se mostrar comprovado pelo meio próprio nos autos, sempre se fica sem se saber se foi a ofendida ou terceira pessoa a suportá-lo em concreto. Também não resulta da prova produzida que a ofendida e a sua família tenham passado a viver em grandes dificuldades económicas especificamente pela falta da quantia entregue à arguida, nem que tenha sido por causa disso que passou a apresentar menos força para viver do que anteriormente - sem prejuízo de quanto se demonstro relativamente às melhorias das condições de vida da ofendida que a quantia aqui em causa poderia ter acrescidamente proporcionado, e que eram um seu claro direito. A mãe da ofendida esclareceu que não se encontra desempregada. Desconhece-se, como já se assinalou, se existiram ou não quaisquer outros relacionamentos, designadamente a nível patrimonial, entre a arguida e aquele casal F... e G.... De todo o modo, resultando provado, pelas próprias declarações da arguida para elaboração do seu relatório social (cujo teor fáctico não foi por ela questionado em audiência), que aufere cerca de €3.500,00 de rendimento mensal e poderá ainda resgatar cerca de €80.000,00 em certificados de aforro, crê-se manifesto que não terá sido esse eventual corte de relacionamento nem quaisquer dificuldades financeiras a justificar o não pagamento da quantia devida à assistente. A demonstrá-lo, aliás, e como já acima se assinalou, o depósito autónomo efectuado à ordem dos autos já depois de produzida toda a prova em sede de audiência final. Finalmente, em face de toda a matéria de facto que fica demonstrada, e apreciando globalmente o que da mesma resulta em termos de caracterização da personalidade da arguida, não poderia deixar o Tribunal de ter alguma cautela e reserva em caracterizar a arguida, como se faz em sede de conclusões do relatório social aludido, como uma pessoa "cumpridora das suas obrigações, bem como com valores sociais e humanos sólidos, privilegiando o sentido da palavra, numa lógica de confiança nos outros" e que denota "preocupação com o bem estar do próximo". * * * IIIº 1. De acordo com o art.428, nº1, do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”. Com a reforma do processo penal, introduzida pela Lei nº59/98, de 25-08, passou a ser possível impugnar a matéria de facto de duas formas: a já existente revista ampliada, através da invocação dos vícios decisórios do art.410, com a possibilidade de sindicar as anomalias emergentes do texto de decisão, e uma outra mais ampla e abrangente, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo a observância de certas formalidades. No caso, a recorrente lança mão a estas duas formas de impugnar a matéria de facto. 2. De forma conclusiva, nas conclusões 2º,45º,60ª,87º e 100º, a recorrente invoca os vícios do art.410, nº2, do CPP. Este preceito legal admite o alargamento dos fundamentos do recurso às hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[1]. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al.a) consiste em não bastarem os factos provados para justificarem a decisão proferida, pois, havendo factos nos autos que o tribunal não investigou, embora o pudesse ter feito e ainda ser possível apurá-los, tornam-se necessários para a decisão a proferir. Tributário do princípio acusatório, tem este vício de ser aferido em função do objecto do processo, traçado naturalmente pela acusação ou pronúncia, mas também pelos pedidos de indemnização deduzidos. Isto significa que só quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal se ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação ou dos pedidos civis, se concretizará tal vício. Assim, há que averiguar se o tribunal, cingido ao objecto do processo desenhado nos termos referidos, mas vinculado ao dever de agir oficiosamente em busca da verdade material, desenvolveu todas as diligências e indagou todos os factos postulados por esses parâmetros processuais, “concluindo-se pela verificação do mesmo quando houver factos relevantes para a decisão, cobertos pelo objecto do processo (mas não necessariamente enunciados em pormenor na peça acusatória) e que indevidamente foram descurados na investigação do tribunal criminal, que, assim, se não apetrechou com a base de facto indispensável, seja para condenar, seja para absolver»[2]. No caso, a recorrente não aponta qualquer omissão na averiguação de factos importantes para a decisão, caracterizando este vício como “…insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão da matéria de facto provada…”, o que manifestamente não integra este vício. A insuficiência das provas é relevante na referida forma mais ampla e abrangente de impugnação da matéria de facto, em que se reapreciam as provas produzidas em julgamento, garantindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas não integra este vício que, como se referiu, tem a ver com a falta de averiguação de factos e tem de resultar do texto da decisão recorrida. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al.b) respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto, ocorrendo este vício quando se dá como provado e não provado o mesmo facto. A recorrente faz referência a contradições na sua conclusão 100º, falando em contradição na apreciação da prova, que não específica, mas que manifestamente não integra este vício, que respeita a contradições da fundamentação, ou na matéria de facto. O erro notório na apreciação da prova caracteriza-se como o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta. Ocorre quando a matéria de facto sofre de uma irrazoabilidade passível de ser patente a qualquer observador comum, por se opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum[3]. No caso, a recorrente manifesta a sua discordância em relação à forma com foi apreciada a prova quanto a determinados factos concretos, alegando que a apreciação da mesma justificava decisão diversa. Contudo, não é qualquer erro na apreciação da prova que integra este vício, mas tão só o erro “notório”, que resulte do próprio texto da decisão. A recorrente defende que a prova foi incorrectamente apreciada, para o efeito apelando ao exame crítico de determinados elementos de prova que especifica, o que não pode integrar este vício que, como se referiu, tem de resultar do próprio texto da decisão, sem recurso a outros elementos, nomeadamente a reapreciação da prova produzida em audiência. Os fundamentos de recurso consagrados no citado artigo 410, nº2, constituem deficiências da decisão, e não do julgamento, assumindo-se como vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, o que no caso não se detecta, razão por que não se reconhece a verificação de nenhum dos vícios apontados pela recorrente. 3. A recorrente considera incorrectamente julgados determinados factos que especifica, indicando provas que, na sua perspectiva, impõem solução diversa. a) Considera a recorrente incorrectamente julgados os seguintes factos considerados como não provados, que defende sejam considerados como provados, ou pelo menos, que seja considerado como provado que foi aplicada uma taxa de juro ao capital mutuado: “… -nem que o valor de €2.500 (que acresceu no cheque emitido pela arguida aos €50.000 efectivamente recebidos) tenha sido convencionado em conjunto pela arguida e pela ofendida como juros do “empréstimo”, nem que com isso a ofendida tenha tentado obter um ganho com a celebração do “negócio”; -nem que a ofendida transformou o empréstimo feito à arguida num mútuo usurário, cobrando um juro mensal que excede em muito os juros anuais legais aplicáveis; …”. Em contrapartida defende que seja considerado como não provado o facto descrito no nº46, dos factos provados: “… 46. Foi por iniciativa da arguida que o cheque inicialmente emitido por si a favor da ofendida foi no valor de €52.500,00, fazendo-o com o pretexto de compensar a mesma ofendida pelo valor que lhe “emprestava”, permitindo-lhe assim obter um ganho com tal actuação”. Quanto às provas indicadas pela recorrente, os documentos enunciados na conclusão 26ª não contrariam o considerado provado, antes o corroborando, nomeadamente os cheques emitidos, datas e respectivos valores, nos termos considerados assentes. Indica a recorrente, ainda, o depoimento das testemunhas D... e C... (conclusão 27ª). A D..., irmã da assistente, no decurso do seu depoimento afirmou que a arguida passou dois cheques de €1250 “…que seria para o primeiro mês de Junho de juros e efectivamente pagou”. A C..., mãe da assistente, referiu que esta emprestou €50.000 à arguida, para serem devolvidos no prazo de um mês, tendo esta oferecido um juro de €2.500, declarando de forma expressa “…foi ela quem ofereceu porque eu não sabia quanto é que ….”. Estes depoimentos só confirmam o sentido da decisão recorrida. Nenhuma destas testemunhas refere que a quantia que ultrapassava o valor entregue pela assistente resultou de uma exigência desta, sendo a testemunha C... clara ao afirmar que foi a arguida quem ofereceu essa quantia. Esta versão, de não se tratar de uma exigência da assistente, mas de um acto da arguida, é compatível com o facto da arguida ter prometido devolver a quantia em causa no prazo de um mês e existir uma relação de confiança da assistente e família para com a arguida, ou mesmo de consideração para com esta, pelo êxito conseguido na acção que a mesma patrocinou e que permitiu à assistente receber quantia monetária assinalável a título de indemnização. A expressão “juros” é um conceito de direito, que foi usada pela testemunha D..., naturalmente sem rigor jurídico, mas com o significado comum de compensação ou vantagem por um empréstimo ou depósito. Assim, não se pode censurar a opção do tribunal recorrido ao usar a expressão “compensar” no nº46 dos factos provados. Também não merece censura o decidido quanto àqueles factos não provados, pois da prova indicada não resulta que tenha existido acordo quanto a juros, ou tentativa da assistente em obter ganho, tudo apontando para iniciativa da arguida na obtenção do dinheiro e na atribuição de uma compensação à assistente, nenhum elemento de prova apontando, ainda, para ter sido a assistente a exigir uma taxa que pudesse vir a ser classificada de usurária. b) Defende a recorrente que o seguinte facto não provado seja considerado como provado: “… - nem que o bem imóvel em causa na Procuração entregue pela arguida à ofendida tivesse à data (Maio de 2006) um valor estimado de aproximadamente € 350.000,00, nem que o valor de tal imóvel à data garantia plenamente o valor mutuado. …”. Apela a recorrente ao Relatório de Avaliação junto a fls.671 e segs. Este documento foi tido em conta pelo tribunal recorrido, que o valorou de acordo com o art.127, CPP, ponderando a sua natureza de documento particular, elaborado a pedido da arguida e no seu exclusivo interesse. Apela a recorrente ao valor médio do m2 na zona, indicado pelo INE. Não se desconhecendo que a zona do imóvel é das mais nobres da cidade de Lisboa, não pode deixar de ser tido em conta que tais valores são indicativos e médios, não dispensando avaliação concreta do imóvel. Não aceitando o tribunal recorrido que o imóvel tenha tido uma valorização de cerca de 3 vezes no período de sete anos, considerando o valor da aquisição, alega a recorrente que este foi superior ao que consta da escritura. Não se excluindo esta hipótese (é a própria arguida, advogada de profissão, quem afirma que tal procedimento era comum, o que, num país com elevados índices de fuga ao fisco, não pode ser excluído), a verdade é que tal aquisição por valor superior ao declarado na escritura só tem apoio probatório nas declarações da própria arguida, oportunisticamente interessada nessa versão. Quanto ao facto do imóvel garantir plenamente o valor mutuado, estando o mesmo onerado com duas hipotecas para garantia de valor total superior a €125.000, não se sabendo o seu valor exacto, não é possível afirmar aquela garantia plena, com segurança. Assim, perante estes elementos de prova, aceita-se a decisão do tribunal recorrido em relação àquele facto não provado impugnado, o que, naturalmente, não constitui prova do contrário, ou seja que o imóvel não tenha valor suficiente para assegurar a satisfação dos créditos garantidos pelas hipotecas registadas e garantir o crédito da assistente. c) Impugna a recorrente, ainda, o seguinte facto considerado como não provado: “… - nem que por tal motivo a arguida não tinha meios para restituir à assistente a mesma quantia. ….”. Em relação a este facto, indica a recorrente o depoimento das testemunhas J..., E... e declarações da arguida. A testemunha J..., empregada da arguida, referiu que o pagamento por esta à assistente está dependente de uma partilha extra-judicial com os irmãos “…que não está a ser nada fácil…”. A testemunha E..., amigo da arguida, referiu saber de problemas de partilhas da arguida com irmãos e que ainda não terá tido capacidade financeira de liquidar a dívida dos autos. A arguida corroborou as declarações destas testemunhas. Exercendo a arguida a profissão de advogada, no que aufere o rendimento mensal de cerca de €3.500,00, não pode a demora na resolução de uma partilha justificar, só por si, a falta de meios da arguida para restituir, ao longo dos vários anos entretanto decorridos, a quantia em causa à assistente. d) Impugna a recorrente, também, os factos considerados provados sob os nºs5,28,29,31 e 33, com o seguinte teor: “… 5. Sabendo o montante que a ofendida B... recebera, e a auréola de confiança que junto da mesma criara e que surgira em torno da relação entre constituinte e mandatária, tratou a arguida de se locupletar à custa da B..., … 28. Agiu a arguida com o intuito de obter proventos económicos a que sabia não ter direito, o que conseguiu e sabia alcançar a custa do empobrecimento da B... 29. Mais sabendo que aquela ofendida apenas lhe disponibilizava a quantia supra referida por força da confiança que a arguida lhe merecia, em face nomeadamente da confiança que existe entre constituinte e mandatária, e que sabia reforçar com os documentos que lhe entregava para garantia do pagamento - o que, tudo, não passou do que de um mero esquema criado para se locupletar à custa da B..., … 31. Agiu a arguida com a vontade livre e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida por lei. … 33. Conseguindo obter para si, e como era seu intuito, uma vantagem económica indevida correspondente a esse mesmo valor. …”. Alega a recorrente que não foi produzida prova que permita considerar estes factos como provados. Analisada toda a prova produzida em audiência, nomeadamente as declarações da própria arguida, parte destes factos impugnados não merecem reparo. Assim, é inequívoco que entre arguida e assistente se estabeleceu uma relação de confiança, que podemos qualificar como normal, fruto do patrocínio pela primeira de uma causa da segunda, que terminou com a atribuição a esta de uma indemnização, no valor de €150.000. Seguro é também que a ofendida só disponibilizou à arguida a quantia por esta pedida, por força daquela relação de confiança (é o que resulta das declarações da assistente e do depoimento das testemunhas familiares desta). Que a arguida agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão. Que obteve uma vantagem económica, correspondente à disponibilidade do valor que lhe foi entregue, resulta das suas próprias declarações e está conforme às regras da experiência comum. Merecedor de controvérsia, em relação aos factos impugnados, será saber se a arguida tratou “…de se locupletar à custa da B...…”, se agiu sabendo que não tinha direito à quantia recebida, se tudo “…não passou do que de um mero esquema criado para se locupletar à custa da B...”, se agiu sabendo que a sua conduta era proibida por lei e conseguiu obter vantagem económica indevida. Para o efeito terá a prova de ser analisada com referência ao momento da entrega pela assistente dos €50.000 à arguida, pois se a vontade da arguida se alterou em momento posterior já não interessará para os autos, atento o crime que constitui o seu objecto. Na verdade, a estar em causa um vulgar mútuo, não existiria no momento da sua conclusão intenção da mutuária se locupletar à custa do outro contraente, nem se poderá afirmar que não tinha direito à quantia recebida, uma vez que esta está justificada por um contrato, nem se pode considerar que tenha agido contra a lei ou obtendo vantagem indevida, pois nesse caso toda a actuação está justificada pela liberdade contratual própria das relações obrigacionais. Quanto ao “…locupletar à custa da B...…”. A atitude da arguida, considerada assente no nº6 dos factos provados, de se apresentar na residência da assistente chorosa, justificando a necessidade urgente de dinheiro, só por si, não permite concluir que a mesma estava já com intenção de não cumprir o que prometia à assistente e que pretendia locupletar-se à custa da mesma, pois quem encontrando-se em situação de grande necessidade pede com intenção de cumprir pode exteriorizar seriamente os seus sentimentos, chorando em casa de quem sabe ter disponibilidades para a ajudar. Permite a prova produzida concluir com segurança que a arguida chorava para convencer a assistente já sabendo que não cumpriria o que prometia à mesma? O tribunal recorrido formou a sua convicção nesse sentido ponderando o comportamento da arguida globalmente considerado (in fine de fls.30 do acórdão recorrido). Nesse âmbito, analisa o tribunal recorrido a entrega pela arguida de uma procuração à mãe da assistente, pela qual concedia a poderes para em seu (da arguida) nome celebrar escritura publica de mútuo com hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma correspondente à própria habitação da arguida (e sita no …º andar do nº… da Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa), para garantia do valor recebido acrescido de juros. Refere o acórdão recorrido que tal imóvel já se encontrava onerado com duas hipotecas que garantiam empréstimos bancários que a arguida contraíra para aquisição do mesmo e para realização de obras, no valor global de cerca de €130.000, razão por que “…dificilmente alguma entidade bancária aceitaria celebrar tal negócio quando o imóvel em causa já se encontrava onerado com outras garantias reais decorrentes das primeiras hipotecas referenciadas, e que sempre teriam prevalência legal…”. Se a mãe da assistente tinha dificuldade em obter um empréstimo bancário garantido por uma hipoteca constituída com aquela procuração, podia usar esta como documento autêntico comprovando o crédito para com a arguida. Aliás, foi a própria arguida que em 19Maio.06, registou provisoriamente sobre a referida fracção uma hipoteca voluntária em favor da ofendida B... "para garantia do pagamento da quantia de €52.500, acrescidos de juros legais, em vigor e despesas judiciais e extra-judiciais que se fixam no montante máximo de €5.000, pelo prazo de um mês, com início no dia 22/05/2006 e termo no dia 22/06/2006", assim constituindo uma garantia real a favor da assistente. É certo que não se provou que o valor do imóvel fosse o indicado pela arguida e que o mesmo fosse suficiente para garantir o pagamento dos créditos garantidos pelas hipotecas já registadas e o crédito da assistente. Contudo, também não está provado o contrário, de modo a concluir-se que ao entregar a procuração à assistente, ou ao registar a mencionada hipoteca voluntária, aquela já sabia que a obrigação assumida não iria ser cumprida, voluntária ou coercivamente. De facto, passados cerca de seis anos sobre a entrega da procuração, não há notícia nos autos de estarem em mora os créditos garantidos pelas hipotecas já então registadas, de modo a tornar inequívoco que a entrega daquela procuração não era reveladora de intenção séria de cumprir a obrigação assumida para com a assistente. Acresce que a autora exercia e continua a exercer a actividade de advogada, daí retirando os rendimentos considerados provados no nº53 dos factos provados, o que é compatível com vontade de consolidação do património pessoal, garantia de todos os credores. É que a dita procuração mesmo que não fosse adequada a garantir a satisfação do crédito com a venda do imóvel, constituía um meio de prova plena da dívida, com força suficiente para executar o património da devedora. Não se compreende como é que a arguida, se no momento já estava com intenção de não pagar à assistente, coloca na mão desta um documento com o valor da dita procuração e regista a hipoteca a que se refere o nº48 dos factos provados. Depois desses actos e ao longo destes seis anos não tomou a arguida qualquer atitude negativa em relação ao seu património (não satisfazendo os créditos que oneravam o imóvel, ou não angariando pelo trabalho meios de riqueza) que permitam acreditar que a mesma considerava na altura a procuração como um instrumento sem valor para a assistente. Quando se tem a intenção de não cumprir não se dão armas aos credores, dito de outro modo, se a intenção da arguida era não pagar, não entregava à credora um documento que permitia a constituição de uma garantia real, que constituía título executivo e não administrava o seu património de modo a conservá-lo, antes o tentava dissipar, nomeadamente permitindo que fossem executadas as hipotecas já constituídas sobre o imóvel. O que interessa neste momento, ao contrário do que afirma o acórdão recorrido, repete-se, não é saber se a procuração acautela suficientemente o pagamento dos €50.000, mas antes se naquele momento a arguida tinha já a intenção de não cumprir a obrigação que assumia para com a assistente e a entrega da procuração, pelo que se referiu, contraria essa conclusão. Além da procuração, quando recebeu da assistente o cheque no valor de €50.000 (19Maio06), a arguida entregou a esta um cheque no valor de €52.500,00, emitido à ordem da mesma, com data de 19/06/2006 e mais dois cheques, ambos no valor de €1.250,00 cada e com data de 19/06/2006. No dia 18Junho06 (véspera da data aposta naqueles cheques), a arguida deslocou-se à residência da B..., solicitando-lhe que não apresentasse a pagamento o cheque no valor de €52.500, com data de 19/07/2006. Se a arguida em 19Maio06 já tivesse intenção de não cumprir as obrigações que estava a assumir, teria procurado a assistente em 18Junho06, para alterar as datas de cumprimento? Não parece lógico. A sua intenção de se locupletar à custa da assistente estaria consumada, não existindo, nessa hipótese, qualquer razão para a procurar de novo. A arguida, no entanto, volta a contactar a assistente em 18Julho06 (véspera da data aposta no cheque anterior), invocando novamente dificuldades financeiras pediu a esta que não apresentasse o cheque a pagamento, afirmando que enviaria um novo cheque pelo correio, o que a assistente aceita. Em 20Julho06, a arguida depositou a quantia de €1.400 na conta bancária da assistente. Aceitando a versão da acusação, também este depósito não se apresenta lógico. Se desde o início a intenção da arguida era não cumprir as obrigações assumidas, não existiria razão para este depósito em 20Julho, que parece ter o significado de compensação da assistente por ter disponibilizado o dinheiro à arguida. Em 4Out.06, perante a falta de contactos da arguida, a assistente apresenta a pagamento os cheques que tinha em seu poder, os dois no valor de €1.250 foram pagos, mas os emitidos no valor de €52.500 foram devolvidos com a referência de “cheque Revogado/Extravio”, tendo a arguida solicitado nessa data o não pagamento do cheque nº...86, por motivos de “revogação” (doc. de fls.236). É inquestionável que a partir de certa altura a arguida se colocou em situação de incumprimento, contudo, os elementos disponíveis não permitem concluir que ela em 19Maio06 já tinha intenção de não cumprir. Ao contrário do que afirma o acórdão recorrido, os descritos factos só permitem concluir que a arguida a partir de certa altura se colocou em incumprimento e não que ela nunca teve a intenção de cumprir, pois nesta hipótese não se compreenderia a sua atitude de colocar nas mãos da assistente a mencionada procuração, a realização do registo provisório mencionado no nº48 dos factos provados, assim como o facto de procurar a assistente solicitando alteração das datas acordadas para pagamento, entregando numa das ocasiões novo cheque e compensando-a financeiramente quando, a existir intenção inicial de não cumprir, não a voltaria a procurar. Em conclusão, decide-se alterar os referidos factos provados, que passam a ter a seguinte redacção: “… 5. Sabendo o montante que a ofendida B... recebera, e a auréola de confiança que junto da mesma criara e que surgira em torno da relação entre constituinte e mandatária, a arguida procurou obter desta a quantia de €50.000; … 28. Agiu a arguida com o intuito de obter a disponibilidade da quantia de €50.000; 29. Mais sabendo que aquela ofendida apenas lhe disponibilizava a quantia supra referida por força da confiança que a arguida lhe merecia, em face nomeadamente da confiança que existe entre constituinte e mandatária, e que sabia reforçar com os documentos que lhe entregava para garantia do pagamento; … 31. Agiu a arguida com a vontade livre e consciente. … 33. Conseguindo obter para si, e como era seu intuito, uma vantagem económica correspondente à disponibilidade desse mesmo valor. …”. Adiciona-se aos não provados, os seguintes factos: “… - que a arguida tenha tratado de se locupletar à custa da B...; - que a arguida tenha agido com intenção de obter proventos económicos a que sabia não ter direito e com intenção de o alcançar à custa do empobrecimento da B... - que tudo não passou de um mero esquema criado para se locupletar à custa da B...; - que a arguida tenha agido sabendo ser a sua conduta proibida por lei; - que a arguida tenha agido com intuito de obter vantagem económica indevida; …”. e) No nº49 dos factos provados foi considerado provado que a hipoteca mencionada alínea anterior dos factos provados extinguiu-se por caducidade em 06/08/2006. Contudo, como refere a recorrente na sua conclusão 56º, do documento autêntico de fls.669 e segs. resulta que tal caducidade ocorreu, apenas, em 6Ago.2009, lapso manifesto que se rectifica, devendo ler-se, no nº49º dos factos provados, 6Ago.2009 onde está escrito 06/08/2006. 4. A arguida foi condenada como autora material de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts.217,nº1, 218, nº2, al.a, e 202, al.b, do Código Penal. Pratica o crime de burla: “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”. Da redacção do preceito incriminador, resulta que este tipo legal caracteriza-se pela disposição patrimonial, determinada por erro ou engano astuciosamente provocado, com intenção do agente obter enriquecimento ilegítimo para si ou para terceiro. No comércio jurídico, a falta de cumprimento de obrigações assumidas é uma situação frequente, que não pode ser confundida com um crime de burla, embora um vulgar contrato possa ser usado para encobrir e concretizar este crime. Ao concluir um acordo, um contraente pode assumir uma obrigação de pagamento que no momento não está em condições de cumprir, mas que pensa conseguir satisfazer em momento posterior, o que não constitui crime, mesmo que as expectativas desse contraente se venham a frustrar e ele se veja colocado em situação de incumprimento. Para que uma situação desta natureza possa configurar um crime de burla é necessário que, no momento da celebração do contrato, o agente tenha já a intenção de não cumprir, servindo-se do contrato, apenas, para levar o ofendido à disposição patrimonial. Vejamos, então, se ocorrem no caso concreto os vários elementos caracterizadores deste crime: A astúcia: Usa o preceito incriminador a expressão “factos que astuciosamente provocou”, desse modo unificando os vários modos de cometimento da burla. Na sua formulação comum, a astúcia corresponde à habilidade para enganar, ao estratagema, ardil, maquinação. Para caracterizar a conduta astuciosa, não bastará qualquer mentira: terá de haver uma actuação sofisticada, um artifício ou mentira envolta num enredo que dê substrato à realidade apresentada. A astúcia caracteriza-se pelo seu recorte objectivo, que haverá de ser reconstituído a partir de actos materiais que a revelem e não por referência a estados de espírito ao nível da motivação do agente, i. é, não basta que a atitude psicológica do agente seja astuciosa, é necessário antes que seja a conduta exterior deste que revele um quid de astúcia. Por outro lado, para que um facto seja astucioso não basta qualquer mentira. É necessário um “especial requinte fraudulento” ou de uma “mentira qualificada”. Neste sentido, Fernanda Palma/Rui Pereira concluem que “é este o entendimento que garante a plena observância do princípio da legalidade, uma vez que «astúcia» significa, como se viu, «manha» ou «ardil»[4]. No caso, a arguida, sabendo que a assistente tinha disponibilidades financeiras, resultantes da indemnização que recebera e aproveitando a relação de confiança criada pela sua intervenção nesse processo como mandatária da mesma, apresentou-se na casa da assistente chorosa, pedindo-lhe a quantia de €50.000,00, afirmando que de momento não dispunha desse montante e sem o qual uma cliente sua, que então a acompanhava e de quem era fiadora, perderia um bem de elevado valor. O que temos por assente é que a arguida pretendia obter da assistente aquela quantia, não sendo de excluir alguma encenação, com o choro e o drama anunciado (perda de um bem de elevado valor). Contudo, mesmo que algum exagero tenha havido da parte da arguida para convencer a assistente a lhe emprestar o dinheiro, essa atitude só por si não preenche a astúcia própria da burla. Na concretização de negócios jurídicos é admissível alguma mentira como forma de convencer o outro contraente, nomeadamente através do chamado dolus bonus, a que se refere o art.253, nº2, do CC, constituído por sugestões ou artifícios usuais para levar àquele convencimento, no caso o choro e o anúncio da perda de um bem de elevado valor, quando não está demonstrado que tenha existido tentativa de renegociação das cláusulas do contrato-promessa a que se destinaria o dinheiro pedido. Apesar da imoralidade que pode acompanhar a celebração de certos negócios, nomeadamente o aproveitamento pelo advogado do conhecimento que tem dos meios de fortuna adquiridos pelo cliente, ou o ascendente que sobre este tem por ter conseguido êxito no processo em que o representou, deixando o cliente quase que em posição de não poder recusar um pedido, não é de excluir a suficiência da análise do caso à luz do dolo civil, afastando-se o criminal. Este só se ajusta à fattispecie penal quando o agente, pelo recurso à mentira, à maquinação, no intuito de prejudicar o burlado ou terceiro, usa de astúcia, enquanto instrumento de deslocação patrimonial indevida. A astúcia é, materialmente, algo mais que aquela mentira; é um plus que lhe acresce e que lhe empresta, sob a forma de cenário criado, uma mise-en-scène, que tem por fim dar crédito à mentira e inevitavelmente enganar[5]. No caso, mesmo admitindo que o choro da arguida e o drama por ela anunciado tenha servido para convencer a assistente, não ocorre a mise-en-scène, que tem por fim enganar, pois nada permite afirmar que a arguida no momento não tivesse intenção de cumprir. Erro ou engano. Para a burla ser punível, será também necessário que a vítima tenha sido induzida em erro ou engano. Mas não basta qualquer engano: é necessário que ele tenha sido provocado astuciosamente pelo agente. Ora, quer o erro, quer o engano, traduzem uma ideia de falsa representação da realidade, que levam o burlado a representar mentalmente os factos que lhe são apresentados por forma diversa da que eles tomam, agindo o enganado, por se encontrar falsamente convencido da realidade. No caso, a assistente agiu convencida que a arguida iria restituir a quantia em causa no prazo combinado. Tal não veio a acontecer, é esse o engano que se tem por verificado no caso. Contudo, não está demonstrado que esse erro tenha sido provocado por astúcia da arguida, uma vez que não está demonstrada a sua intenção inicial de não cumprir, nem excluída a possibilidade de o incumprimento ter surgido posteriormente à conclusão do acordo e contra o que era o desejo da arguida. Prática de actos pela vítima do engano. Outro dos elementos objectivos previstos para a perfeição da burla, é a prática de actos pela vítima, que haverão de ser aqueles que o agente nela determinou. Este tipo de ilícito não se consuma pois, com a prática de actos pelo agente, é também necessário que a vítima colabore, participe e pratique os actos predefinidos pelo burlão, sendo o enganado, o “protagonista da sua desgraça” e sem o que, o crime ficará no estádio da tentativa. No caso, a assistente praticou o acto, entregou €50.000 à arguida. Prejuízo patrimonial. O objecto do crime é o património do lesado, sendo este património que o agente agride com a sua conduta. A burla é um crime de dano e contra o património, porque à sua realização típica, é essencial o conceito de prejuízo patrimonial. O bem jurídico tutelado é o património em geral, no seu sentido económico-jurídico, incluindo a soma dos valores económicos e jurídicos protegidos, entendendo-se a determinação do valor do prejuízo do burlado pelo valor do dano provocado no momento da prática do facto. Não havendo prejuízo, poderá haver burla, mas só na forma tentada. No caso, esse prejuízo ocorreu, a assistente não obteve a devolução do dinheiro quando esperava recebê-lo. Conduta Dolosa. O crime de burla apenas pode ser cometido dolosamente e em qualquer das modalidades de dolo (art.13 do C.P.). Faltando uma previsão da punibilidade da negligência, o crime de burla é necessariamente doloso. O dolo abarcará todos os elementos da actividade do burlão: a actividade astuciosa, a indução da vitima em erro ou engano, a determinação desta à pratica de actos e o prejuízo patrimonial causado[6]. No caso, não estando provado que a arguida no momento em que convenceu a assistente a lhe entregar os €50.000, já sabia que não iria cumprir o prometido, ou seja, já sabia que a assistente estava a agir em erro (pensando que iria receber de volta aquela quantia na data prometida) e que ao prometer pagar na data combinada, assim como ao entregar a procuração e documentos estava a agir com astúcia, falta o dolo necessário ao preenchimento do tipo. Reconhece-se que, em determinadas hipóteses, a linha divisória entre a burla e o simples ilícito civil não é fácil de estabelecer, devendo ser determinada com recurso a diversos índices[7]. Assim, haverá burla: - quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; - quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto; - quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; - quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; - quando há uma impossibilidade de se reparar o dano; - quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio. No caso, não se verifica nenhum destes índices: -não está demonstrado o propósito inicial da arguida em não devolver a quantia pedida à assistente; -não se verifica um dano social, com violação do mínimo ético, pois a legislação civil prevê mecanismos de cumprimento coercivo das obrigações e reparação dos danos decorrentes da mora; -o incumprimento e mora verificados, são equiparadas a situações frequentemente ocorridas em muitas relações contratuais, não representando uma violação da ordem jurídica fora do comum, para o que a lei civil prevê mecanismos próprios, não considerando a lei, nem a consciência comum, como adequada uma pena criminal para estas situações; -considerando os documentos entregues à ofendida (procuração, registo provisório de hipoteca sobre imóvel no centro de Lisboa, cheques para pagamento da quantia pedida e compensação pelo empréstimo), não é caso de manifesta perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; -não há impossibilidade de reparar o dano, uma vez que não está demonstrado que o património da arguida, apesar de onerado, não seja suficiente para garantir o crédito da assistente e aquela exerce actividade profissional susceptível de gerar rendimentos suficientes para o cumprimento das obrigações que assumiu; -a arguida beneficiou da disponibilidade do dinheiro, mas assumiu a obrigação de o devolver e de compensar a assistente, o que afasta a ideia de um lucro ilícito, diferente do lucro próprio de quem obtém a disponibilidade de um empréstimo financeiro. Em conclusão, não estando provados factos integradores da astúcia, nem do elemento subjectivo do crime de burla, impõe-se a absolvição da arguida. A absolvição, não obsta à condenação da arguida em indemnização civil. Contudo, como decidiu o Assento do STJ, de 17-06-99[8], “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art.377, nº1, do CPP, ou seja, absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual”. Ora, face à matéria de facto provada, é manifesto que os danos da demandante resultam do incumprimento contratual por parte da arguida, ou seja, têm como fonte a responsabilidade contratual desta, o que obsta à fixação de indemnização para sua reparação neste processo crime. * * * IVº DECISÃO: Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em dar provimento ao recurso, decidindo: a) Alterar matéria de facto nos sobreditos termos; b) Absolver a arguida da acusação e do pedido de indemnização civil; c) Condena-se a assistente em 3UCs de taxa de justiça. Lisboa, 24 de Abril de 2012 Relator: Relator: Vieira Lamim; Adjunto: Adjunto: Artur Vargues; ----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol.III, pág.339/340. [2] Ac. da Rel. do Porto de 6/11/1996, proferido no Proc. nº 9640709 e relatado pelo então Desembargador PEREIRA MADEIRA (cujo sumário pode ser consultado no site htpp//www.dgsi.pt). [3] Neste sentido, Ac. do S.T.J. de 06-04-00, no B.M.J. nº496, pág.169. [4] O crime de Burla no Código Penal de 1982-95, RFDUL, Vol. XXXV, Lex, 1994, p. 322. [5] Neste sentido, Ac. do STJ de 17Jan.07, proferido no Pº nº3152/06 - 3.ª Secção, Relator Armindo Monteiro, sumário acessível em www.stj.pt. [6] Nesse sentido, também Fernanda Palma/Rui Pereira, ob. cit. p. 331. [7] Neste sentido, Ac. do S.T.J. de 3Fev05, Pº nº4745/04 - 5.ª Secção, Relator Cons. Simas Santos, sumário acessível em www.stj.pt. [8] Boletim do Ministério da Justiça nº488, pág.49. |