Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA LUISA GERALDES | ||
Descritores: | DIREITO DE PROPRIEDADE REGISTO PRESUNÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/19/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Tendo a A. invocado como fundamento do reconhecimento do seu direito de propriedade, numa acção de reivindicação, que o referido imóvel estava inscrito no registo em seu nome, direito que obteve depois de outorgada escritura de justificação notarial com invocação da usucapião como forma de aquisição originária do direito de propriedade, passou a beneficiar da presunção da titularidade que decorre do art. 7º do Cód. de Registo Predial, ficando a A. dispensada da prova dos factos de que decorre a aquisição originária ou mesmo a aquisição derivada do direito de propriedade. 2. Tal presunção é directamente oponível não apenas a qualquer pessoa que se arrogue, sobre o mesmo prédio, a titularidade do mesmo direito, como a quem, como a R., apenas invoca a existência de um direito de arrendamento. (ALG) | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I – 1. E…, Lda. veio intentar acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra: J…, Lda. Pedindo o reconhecimento do direito de propriedade de um prédio que a Ré ocupa. Alega, em síntese que, é proprietária do prédio urbano que identifica nos autos, inscrito na matriz sob o artigo…, e descrito na Conservatória do Registo Predial do …sob o nº…, que se acha registado a seu favor pela inscrição G…, Ap. …. Parte desse prédio está ocupada com uma oficina de bate-chapas pertença da Ré, localizada no rés-do-chão, desconhecendo a Autora a que título a R. ocupou essa parte do prédio, sendo certo que nunca o deu de arrendamento. Conclui pedindo que a acção seja julgada provada e procedente e a R. condenada a reconhecer o direito de propriedade da A. e a desocupar imediatamente a parte do prédio que ocupa, entregando-o completamente livre e desocupado. 2. Citada a Ré, deduziu oposição, invocando, em síntese, que: - não se encontra no local a título precário mas por força de um contrato de trespasse levado a cabo com a sociedade “B…” que era então arrendatária, trespasse celebrado com a sociedade Ré quando esta ainda possuía a anterior designação social – “R…, Lda.”; - e sempre efectuou o pagamento da renda a um indivíduo que se apresentava como proprietário do prédio. Formulou pedido reconvencional pedindo a condenação da A. a reconhecer a sua qualidade de inquilina e o respectivo direito de arrendamento sobre o rés-do-chão do prédio em causa, bem como que sejam considerados válidos e subsistentes os depósitos das rendas efectuados pela Ré. 3. A Autora apresentou resposta onde impugna os factos e a pretensão reconvencional. Argumenta, em síntese, que nunca foi celebrado qualquer contrato de arrendamento entre a A. e a Ré, quer com a actual, quer com a anterior denominação social de “R…, Lda.”, tal como também nunca existiu nenhum arrendamento celebrado entre a A. e a referida sociedade “B…, Lda.”, pelo que não compreende como é que esta sociedade pode ter transmitido por trespasse à Ré aquilo que não existia. Acresce que, ao contrário do que a Ré afirma, não há qualquer prova do pagamento de rendas. Por fim, mesmo a existir qualquer arrendamento, sempre teria de ser decretada a resolução desse contrato com base na falta de comunicação ao senhorio ou com base na falta de pagamento de rendas. Conclui pedindo que seja julgada improcedente a reconvenção. 4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Tribunal “a quo” proferiu sentença com o seguinte conteúdo: a) Julgou improcedente o pedido reconvencional; b) Julgou a acção totalmente procedente e condenou a Ré a reconhecer o direito de propriedade da A., bem como a desocupar imediatamente a parte do prédio aqui em causa, com a sua entrega à A. completamente livre e desocupada. 5. Inconformada a Ré Apelou tendo formulado as seguintes conclusões: A. A prova produzida não permite concluir que a A. é proprietária do prédio reivindicado, mas tão só que se diz proprietária desse prédio, pelo que deverão ser alteradas nesse sentido as respostas aos arts 1°, da petição, e arc. 17°, da Réplica. B. Assentando a propriedade na presunção decorrente do registo, este não é oponível à R. porque a escritura de justificação notarial que lhe serviu de suporte é falsa. C. Com efeito, a matéria provada não permite concluir que a A. exerceu posse sobre o prédio reivindicado que justificasse o usucapião. D. Nunca teve o seu domínio, não mostrou possibilidade física desse exercício, não se comportou como se fosse proprietária, nem foi aceite ou reconhecida como tal quer pelos sócios da R., quer por todos que por ali lidavam ou nisso pudessem ter interesse. E. Antes pelo contrário, sempre foi F… que se apresentou como proprietário do prédio, sendo reconhecido como tal por todos os que nisso pudessem ter interesse, incluindo a própria R. e seus gerentes, perante quem se apresentava como dono e senhorio, ocupando ele próprio, uma parte do mesmo e usufruindo dos seus rendimentos. F. Assim, a A. nunca exerceu sobre o prédio os poderes materiais, nem provou a possibilidade física desse exercício, nem mostrou a intenção de exercer esse domínio de facto. G. A escritura de justificação notarial é por isso falsa porque não são verdadeiros os pressupostos em que se apoia, pelo que o seu registo é ineficaz em relação à R. H. Ficando provado um contrato de arrendamento do rés-do-chão a favor da R., não ficou provado que F…, que sempre se apresentou e comportou como senhorio, não agia no interesse próprio ou de terceiros. I. A A. não cumpriu as exigências impostas pelo art. 171º do Cod. Soc. Com. J. A sentença recorrida viola o disposto nos arts 342º, 347º, 1250º, 1259º, 1260º a 1263°, 1287° e 1296°, todos do CC, arts. 171° e 525°, do Cod. Soc. Com., e arts. 653º, n°4 e 668º, alíneas c) e d), do CPC. K. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a R. do pedido ou, quando assim se não entenda, ser a sentença declarada nula e sem efeito. 6. Foram apresentadas contra-alegações pela A. com o teor de fls. 229 e segts., pugnando pela confirmação da sentença recorrida 7. Corridos os Vistos legais, Cumpre Apreciar e Decidir. II – Os Factos: - Foram julgados provados na 1ª instância os seguintes factos: 1. A A. é proprietária do prédio urbano à Rua…, nº … e…, freguesia do…, …, inscrito na matriz sob o artigo…, descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o nº…, onde se acha registada a seu favor pela inscrição G …, Ap. …. 2. Parte do referido prédio encontra-se ocupada com uma oficina de bate chapas pertença da Ré, localizada no rés-do-chão, com frente para a estrada J…; 3. A A. até determinada altura desconhecia a que título a R. ocupou essa parte do prédio, uma vez que os representantes da A. raramente o visitam por não manterem qualquer actividade no local; 4. Por escritura celebrada em 5.12.1977, foi constituída a sociedade R…, Lda. tendo como objecto a indústria de reparação de automóveis e quaisquer outras actividades cujo exercício fosse deliberado em Assembleia-geral, sendo o capital social de 400.000$00; 5. Tal designação social veio a ser alterada para J…, Lda. (nome da Ré) e, por escritura de 14.09.1992, foi também alterada a gerência que passou a ser exercida pelos únicos sócios A… e J… que sempre mantiveram esta qualidade desde a sua constituição; 6. Por escritura celebrada em 6.12.1977, a sociedade, então ainda com a designação de R…, Lda., adquiriu por trespasse, incluindo o direito ao arrendamento, à sociedade B…, Lda., em liquidação, o estabelecimento ou oficina de reparação de automóveis, instalada em todo o rés-do-chão, com o nº .., de polícia, para a Rua Dr. …do prédio urbano a esta Rua e Rua…, nºs … e …, inscrito na matriz sob o artigo … 7. Assim, a Ré, ainda com a designação anterior, é inquilina do objecto arrendado, sem interrupção ou quebra de continuidade, desde 6.12.1977; 8. Desde que a Ré adquiriu o estabelecimento, sempre se apresentou como senhorio, e como tal sempre foi reconhecido por todos, incluindo outros inquilinos do mesmo prédio, um tal F… que então tinha residência no…, …, que por vezes até se alojava em andar superior do prédio; 9. Como as rendas eram pagas no próprio locado, era ali que o aludido senhorio se deslocava para recebê-las, emitindo e assinando os recibos correspondentes; 10. Nem sempre o fazia com regularidade mensal, pelo que rendas eram pagas quando aparecia recebendo então os meses vencidos; 11. Era com ele que a gerência da sociedade resolvia as questões relacionadas com o locado, nomeadamente actualização de rendas, obras ou reparações e todas as questões relativas ao arrendamento; 12. A partir de Fevereiro de 1993, o senhorio deixou de aparecer no locado para cobrança das rendas, constando que tinha adoecido; 13. Porque a sociedade não recebeu instruções do senhorio quanto ao pagamento das rendas, nem apareceu outra pessoa legitimada para recebê-las, passou a fazer o seu depósito liberatório em nome do mesmo senhorio na Caixa Geral de Depósitos, o que ainda acontece; 14. Nunca a Ré vez alguma tomou conhecimento de que o locado é pertença da A. ou esta alguma vez se assumiu, perante aquela, como senhorio ou proprietária do prédio; 15. Por isso, desde o trespasse, tanto a Ré, como os seus gerentes, sempre estiveram convencidos de que o senhorio, tal como se intitulava, era o aludido F…, reconhecendo-o e tratando-o como tal, à vista de todos sem que alguém suscitasse dúvidas ou reparos, porque era essa a sua convicção e de todos aqueles que por ali lidavam ou nisso pudesse ter interesse; 16. A propriedade de que a A. se arroga foi adquirida por usucapião, mediante escritura celebrada em 5.07.95; 17. A A. já intentou acção idêntica contra o sócio da Ré, A… (Proc. 2622/04.1 TBFUN, do 3' juízo cível do Tribunal do Funchal); 18. O prédio estava descrito na Conservatória do Registo Predial do …sob o nº…, a fls…., vº, do L° B-9, onde estava inscrito a favor de B…solteiro, sob o nº …., a fls. …, vº, do L°… (docs. 3 e 9); 19. Nem mesmo depois de a A. conhecer a qualidade de inquilina da Ré passou a referi-la como tal, persistindo no pedido de reconhecimento da propriedade e entrega da parte arrendada, omitindo qualquer referência ao arrendamento; 20. Não há qualquer arrendamento celebrado entre a A. e a Ré – sociedade J…, Lda., – anteriormente designada de R…, Lda. 21. Tal como também não houve nenhum arrendamento celebrado entre a A. e a sociedade B…, Lda. 22. O R. considerava como senhorio do espaço ocupado F…; 23. F… não era o proprietário do imóvel; 24. Conforme resulta da escritura de justificação a A. adquiriu a propriedade do prédio em 1965, através de compra não titulada a J…. 25. A A. utilizava o prédio, desde a compra não titulada, para depósito de materiais e para efectuar pequenas reparações. 26. Da certidão de registo apresentada pela Ré, como documento 9, resulta ser a inscrição a favor de B… provisória. III – Enquadramento Fáctico-Jurídico: 1. Estamos perante uma acção de reivindicação, a que foi acoplada, por força da contestação oferecida pela Ré, a formulação de um pedido reconvencional. Como causa de pedir da reivindicação alegou a A. a aquisição do seu direito de propriedade por usucapião, demonstrando tal aquisição pela escritura de justificação notarial que celebrou. Por seu lado, a R., para impedir a satisfação da pretensão reivindicatória, veio alegar que é arrendatária do prédio e que será detentora dessa qualidade por força de um trespasse que celebrou com uma terceira sociedade. Seja qual for a perspectiva em que se encare o objecto do processo, sempre se revela importante para a integração de uma e de outra das pretensões, a apreciação da matéria de facto provada nos presentes autos. Todavia, na decisão da matéria de facto que foi proferida – sem que se efectuasse o devido saneamento – não foi feita a integral eliminação daquilo que, relativamente a cada uma das pretensões, integra matéria de direito e que, consequente e naturalmente, não pode ser considerada como integrante dos factos provados De outro modo, a partir da simples leitura da “matéria de facto” tal como foi delimitada na sentença, partiríamos, sem quaisquer dúvidas e sem qualquer necessidade de qualificação ou subsunção jurídica, para a afirmação do resultado, numa ilegítima inversão das regras processuais dominantes no nosso ordenamento jurídico. Far-se-á, pois, a referida eliminação do que, atento o objecto da acção e da reconvenção, é matéria de direito, nos termos do art. 646º, nº 4, do CPC, integrando a matéria de facto com o circunstancialismo fáctico provado e com os documentos juntos aos autos. Deste modo, se dá igualmente satisfação à impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela R., na primeira alínea das suas conclusões, pois que, em lugar da afirmação da existência do direito de propriedade, nos termos que resultaram provados, na 1ª instância, e em que se limitaram a efectuar a reprodução integral do art. 1º da petição inicial, nos precisos termos em que foi redigido, se opta pela transcrição do que decorre da certidão do registo predial depois de ter sido outorgada a escritura de habilitação notarial, elementos devidamente documentados nos autos e a que o citado art. 1º da petição faz referência, tendo sido transcrito, nesses termos, e como nº 1 dos factos provados e referidos supra, em ponto anterior. Proceder-se-á igualmente à ordenação lógica e cronológica da matéria de facto, tendente a facilitar o julgamento da causa. Destarte, temos que: 2. Matéria de facto provada e a considerar: 1. Está inscrita a favor da A. a propriedade do prédio urbano à R…., nºs … e…, Freguesia do …, …, inscrito na matriz sob o art. nº…, descrito CRP do …sob o nº…, onde se acha registada a seu favor pela inscrição G …, Ap. … (art. 1º da petição, em conjugação com a certidão de registo predial de fls. 3 e 4); 2. Tal propriedade foi inscrita (provisoriamente, por dúvidas) com base na escritura de justificação notarial celebrada pela A. em 5-7-95, indicando-se como “causa: usucapião”, tendo sido posteriormente, em 7-11-95, averbada a conversão em definitivo, com indicação de: “aquisição” (doc. fls. 4); 3. O prédio estava descrito na CRP do …sob o nº…., a fls…., vº, do L° – …, onde foi inscrito provisoriamente a favor de B…., solteiro, sob…, a fls. …, vº, do L° …; 4. Da certidão de registo apresentada pela R., como documento nº 9, resulta ser a inscrição a favor de B… provisória, “por lhe ter sido cedido o direito de opção para a compra da referida F…” (F… Limitada, situada no referido prédio)” (fls. 41 e docs. 3 e 9); 5. Conforme resulta da escritura de justificação notarial, a A. adquiriu a propriedade do prédio em 1965, através de compra não titulada a J… (art. 17º da resposta, em conjugação com a escritura de justificação notarial de fls. 35 e segs.); 6. Refere-se textualmente em tal escritura, além do mais, que se tratava de “prédio ainda não descrito na Conservatória do Registo Predial do …l” e que “o identificado imóvel veio à posse da sua representada por compra, não titulada, a que a mesma procedeu, no ano de 1965, a J… ou J… e mulher V…., que foram residentes no sítio da…, …., e desde a data desse ajuste até ao presente, sem qualquer interrupção, a sociedade se tem mantido na posse do prédio, que ao longo dos anos vem utilizando como garagem e como oficina de reparação das suas viaturas, procedendo às obras de conservação e de reparação de que o edifício careceu, pagando em seu próprio nome as respectivas contribuições e impostos, sendo publicamente conhecida e considerada como legítima possuidora do imóvel, sem oposição de ninguém, na convicção de exercer um direito próprio e de não prejudicar direito de outrem, sendo, assim, a sua posse pacífica, contínua e pública exercida por mais de 20 anos, pelo que, embora sem dispor de título formal, adquiriu o prédio por usucapião” (doc. nº 8, de fls. 36 e 37, apresentado pela Ré); 7. A A. utilizava o prédio desde a compra não titulada para depósito de materiais e para efectuar pequenas reparações; 8. Por escritura celebrada em 5-12-77, foi constituída a sociedade “R…., Lda.”, tendo como objecto a indústria de reparação de automóveis e quaisquer outras actividades cujo exercício fosse deliberado pela Assembleia-geral, sendo o capita1 social de 400.000$00 (doc. nº 1, de fls. 17 e segs., apresentado pela Ré); 9. Tal designação social veio a ser alterada para “J…, Lda.”, e, por escritura de 14-9-92, foi também alterada a gerência que passou ser exercida pelos únicos sócios A… e J… que sempre mantiveram esta qualidade desde a sua constituição (doc. nº 2, de fls. 22 e segs.); 10. Por escritura celebrada em 6-12-77, a sociedade, então ainda com a designação de “R…., Lda.”, celebrou com a sociedade “B…, Lda.”, escritura pública, onde foi declarado que lhe adquiria por trespasse, incluindo o direito ao arrendamento, o estabelecimento ou oficina de reparação de automóveis, instalada em todo o r/c, com o nº…, para a R. Dr. J… do prédio urbano a esta Rua e R…., n°s … e …, inscrito na matriz sob o art. nº …. (doc. nº 3, fls. 26 e segs., apresentado pela Ré); 11. Diz-se concretamente em tal escritura que o trespasse incluía “o direito ao arrendamento que vem existindo em forma verbal e não titulado, por facto imputável ao senhorio …” (fls. 28); 12. Parte do prédio referido em 1.) encontra-se ocupada com uma oficina de bate-chapas pertença da R., localizada no r/c, com frente para a estrada denominada J….; 13. Assim, a Ré, ainda com a designação anterior, é inquilina do objecto arrendado, sem interrupção ou quebra de continuidade, desde 6-12-77; 14. Desde que a Ré adquiriu o estabelecimento, um tal F…, que então tinha residência no…., …, que por vezes até se alojava em andar superior do prédio, sempre se apresentou como senhorio e como tal sempre foi reconhecido por todos, incluindo outros inquilinos do mesmo prédio; 15. Como as rendas eram pagas no próprio locado, era ali que o aludido F… se deslocava para recebê-las, emitindo e assinando os correspondentes recibos; 16. Nem sempre o fazia com regularidade mensal, pelo que as rendas eram pagas quando aparecia recebendo então os meses vencidos; 17. Era com ele que a gerência da sociedade Ré resolvia as questões relacionadas com o locado, nomeadamente actualização de rendas, obras ou reparações e todas as questões relativas ao arrendamento; 18. A partir de Fevereiro de 1993, F… deixou de aparecer no locado para cobrança das rendas, constando que tinha adoecido; 19. Porque a sociedade (Ré) não recebeu instruções do F… quanto ao pagamento das rendas, nem apareceu outra pessoa legitimada para recebê-las, passou a fazer o seu depósito liberatório em nome do mesmo senhorio na Caixa Geral de Depósitos, o que ainda acontece; 20. Nunca a R., vez alguma, tomou conhecimento de que o locado é pertença da A. ou esta alguma vez se assumiu, perante aquela, como senhorio ou proprietária do prédio; 21. Por isso, desde o trespasse, tanto a R. como os seus gerentes sempre estiveram convencidos de que o senhorio, tal como se intitulava, era o aludido F…, reconhecendo-o e tratando-o como tal, à vista de todos sem que alguém suscitasse dúvidas ou reparos, porque era essa a sua convicção e de todos aqueles que por ali lidavam ou nisso pudessem ter interesse; 22. A R. considerava como senhorio do espaço ocupado F…; 23. F… não era o proprietário do imóvel; 24. Não há qualquer arrendamento celebrado entre a A. e a sociedade Ré “J…, Lda.”, anteriormente designada de “R…, Lda.”; 25. Tal como, também não houve nenhum arrendamento celebrado entre a A. e a sociedade “B…, Lda.”; 26. A A. até determinada altura desconhecia a que título a R. ocupou essa parte do prédio, uma vez que os representantes da A. raramente o visitam por não manterem qualquer actividade no local; 27. A A. já intentou acção idêntica contra o sócio da R., A…. (Proc. 2622/04.1 TFUN, do 3° Juízo Cível do Tribunal do Funchal); 28. Nem mesmo depois de a A. conhecer a qualidade de inquilina da Ré passou a referi-la como tal, persistindo no pedido de reconhecimento da propriedade e entrega da parte arrendada, omitindo qualquer referência ao arrendamento. 3. O Direito: 3.1. Suscita a Apelante o alegado incumprimento pela A. do disposto no art. 171º do CSC que se reporta às menções que devem ser feitas em actos externos da sociedade. Não se entende a que propósito vem invocar tal preceito, nem qual o efeito que dele pretende extrair. O que é relevante é que nem a fase de recurso é ajustada à colocação dessa questão, nem da invocação do preceito se extrai qualquer efeito que colida com o que foi decidido na 1ª instância quanto ao objecto da acção. 3.2. Quanto à acção de reivindicação: 3.2.1. Nos termos do art. 1311º do CC todo o proprietário tem o direito de obter o reconhecimento judicial do seu direito de propriedade e a entrega do respectivo objecto, a qual apenas será vedada se o possuidor ou detentor comprovar a existência de um título que legitima a detenção. A acção de reivindicação, como acção real, supõe a alegação e prova da causa de aquisição do direito. Uma vez provada a existência do direito real absoluto, o mesmo impõe-se a terceiros pelo seu carácter absoluto e pelo inerente direito de sequela. No caso concreto, a A. invocou como fundamento do reconhecimento do seu direito de propriedade o facto de este estar inscrito no registo em seu nome. E na verdade, foi depois de ter outorgado escritura de justificação notarial, com invocação da usucapião como forma de aquisição originária do direito de propriedade que a A. almejou a inscrição a seu favor desse direito. A partir desse momento, passou a beneficiar da presunção da titularidade que decorre do art. 7º do Cód. de Registo Predial, ficando a A. dispensada da prova de factos de que decorre a aquisição originária ou mesmo a aquisição derivada. Tal presunção é directamente oponível não apenas a qualquer pessoa que sobre o mesmo prédio se arrogue a titularidade do mesmo direito, como a quem, como a R., apenas invoca a existência de um direito de arrendamento. Tendo em conta os efeitos jurídicos que decorrem daquele mecanismo jurídico, passou a recair sobre a R. a prova de factos conducentes à improcedência total ou parcial da acção. A improcedência total da acção derivaria, por exemplo, da alegação e prova de factos reveladores da inexistência do direito de propriedade na esfera jurídica da A. Já a improcedência parcial poderia ser decorrência da prova de factos que, sem colidirem com o direito de propriedade na esfera da A., impedissem a sua condenação na entrega, mediante a prova da existência de um título justificativo da ocupação que fosse oponível à A. Ora, nenhuma das situações se verifica, como melhor se explicitará. 3.2.2. Invocou a R. que a A. não é titular do direito de propriedade e que a escritura de justificação notarial está eivada de falsidade, porquanto os factos nela referidos não terão ocorrido. Todavia, nada do que a R. alegou coloca em crise o referido direito de propriedade. O facto de a A. nunca se ter apresentado perante a R. como proprietária do prédio não colide com a existência desse direito na esfera jurídica da A., pois que a R. apenas ocupa uma parte do prédio, sendo que a justificação judicial abarcou todo o prédio inscrito na matriz. Acresce que a Ré, para além de não indicar quem efectivamente seja o verdadeiro proprietário, não conseguiu elidir a presunção que decorre do facto – material e jurídico – que se encontra devidamente registado na respectiva Conservatória. É certo que se provou que durante um determinado período de tempo se considerou como proprietário do prédio um outro indivíduo (F….) a que a Ré fez pagamentos por conta da ocupação. Mas nem sequer foi possível dar como assente que tal indivíduo fosse efectivamente o proprietário do prédio, pelo que, todo o relacionamento que entre ambos existiu não retirou à A. qualquer direito que esta detivesse sobre o bem em causa, nem atribuiu à R. qualquer direito passível de ser invocado perante a A. O que é relevante, por ter sido levado ao registo predial, é a presunção da titularidade do direito de propriedade de que a A. passou a beneficiar, na sequência da outorga e apresentação da escritura de justificação notarial. Escritura esta que não se mostra impugnada por quem detinha legitimidade para o efeito, ou seja, por quem porventura se arrogasse a titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo prédio, em oposição ao direito que a A. justificou notarialmente, nos termos do art. 101º do Cód. de Notariado. Tão pouco se mostra provado nos autos a falsidade de qualquer um dos documentos apresentados. 3.2.3. Invocou, por outro lado, a R., nos articulados e como defesa da sua pretensão que, é titular de um direito ao arrendamento, o que, por um lado, impediria a sua condenação na restituição do prédio e, por outro, justificaria o pedido reconvencional de reconhecimento da existência de um contrato de arrendamento comercial. Decorre, no entanto, da matéria de facto provada que não foi outorgado, nem entre a R. ou sua antecessora, nem com a A. ou seus antecessores, qualquer contrato de arrendamento. Se acaso tivesse sido celebrado, por quem detinha legitimidade, um contrato de arrendamento, a posição de locador transmitir-se-ia com a posterior transmissão ou aquisição originária do direito de propriedade por parte da A., nos termos do art. 1057º do CC. Porém, a esse respeito apenas se provou que, em 1977, a antecessora da R. celebrou com uma outra sociedade uma escritura de trespasse, onde se reportava também a transmissão do direito ao arrendamento sobre o prédio. Contudo, não se provou que a trespassante detivesse sobre o referido imóvel a posição de arrendatária, sendo certo que só esta posição legitimaria a sua transmissão juntamente com o trespasse do estabelecimento comercial. Só assim, e nessa eventualidade, se poderia concluir que o trespasse operado teria produzido os seus efeitos na esfera jurídica do proprietário, continuando a vincular a A. em nome de quem o prédio se encontra actualmente registado. 3.2.4. Provou-se ainda, por outro lado, que a R. considerava como proprietário e como senhorio do prédio um tal F…., a quem efectuou pagamentos de quantias por conta da ocupação, recebendo deste os correspondentes recibos de quitação. Em abstracto, embora nada se refira a tal propósito em concreto, esta alegação da R. parece inserir-se numa pretensa invocação da usucapião como causa de aquisição do direito ao arrendamento. É, pois, nessa perspectiva que agora será analisada. Todavia, tal enquadramento jurídico defronta-se, in casu, com dificuldades de tal monta, de ordem material ou formal, que também não determina o efeito impeditivo pretendido, nem pode servir para corroborar qualquer pretensão expendida nesse sentido, em abstracto, pela Ré. Na verdade, a admissibilidade da usucapião em matéria de aquisição do direito ao arrendamento pressupunha, em primeiro lugar, que se aceitasse a qualificação do direito de arrendamento como direito real. Ora, esta não é a tese que prevalece, sendo recusada pela doutrina por argumentos de ordem sistemática ligados maxime à tradicional inserção da matéria do arrendamento no Livro que no Código Civil trata do Direito das Obrigações e não dos Direitos Reais. Ainda que se possa dizer que alguma doutrina não afaste tal qualificação, o entendimento mais corrente e maioritário vai no sentido da qualificação do direito de arrendamento como direito pessoal de gozo, apesar de, em determinados aspectos, recolher do regime dos direitos reais algumas das suas características, como aquela que decorre do art. 1056º do CC. De todo o modo, ainda que porventura se assumisse a qualificação do direito de arrendamento como direito real de gozo, passível de ser adquirido por usucapião, o certo é que a R. não procedeu à invocação dessa forma de aquisição, como o impunha o art. 303º do CC, ex vi art. 1292º do CC. Além disso, sempre seria necessário invocar os termos em que a “posse” referente a um tal direito de arrendamento tinha sido exercida, sendo imprescindível, por exemplo, a alegação e prova do quantitativo da contraprestação periódica suportada pela R., o que igualmente não foi alegado ou provado pela R. 3.2.5. Por fim, aqueles que admitem a invocação da usucapião como forma de aquisição do direito de arrendamento (cf. Henrique Mesquita, in “Obrigações Reais e Ónus Reais”, pág. 184) circunscrevem-na a situações de invalidade formal do título e não, como teria de ocorrer no caso, a situações de ausência de direito de propriedade. Ou seja, a invocação da usucapião funcionaria para suprir situações de nulidade do contrato por vício de forma e não de realização de contratos de arrendamento a non domino. 3.2.6. Ora, como bem o evidenciam os factos provados, o indivíduo a quem a R. realizou pagamentos e que se apresentava como proprietário nunca foi titular do direito de propriedade, inviabilizando qualquer eventual possibilidade que se pudesse aventar relativamente àquela forma de aquisição. Em suma, seja qual for o ângulo de apreciação da questão, sempre se deve concluir que, não tendo sido celebrado pela R. ou sua antecessora qualquer contrato de arrendamento com a A. ou sua antecessora, inexiste qualquer caminho que nos conduza à verificação de uma situação jurídica que se traduza na existência na esfera jurídica da R. de um direito de arrendamento invocável perante a A. 3.2.7. Tudo isto para concluir de vez que a R. não cumpriu o ónus de prova relativamente aos factos susceptíveis de inviabilizar o reconhecimento do direito de propriedade da Autora ou de impedir a procedência do pedido de condenação na entrega do prédio que ocupa. 3.3. Quanto ao pedido reconvencional: O que anteriormente se disse revela a manifesta improcedência do pedido reconvencional deduzido pela Ré. Os factos apurados mostram-se insuficientes para se poder concluir que a R. tem a posição de arrendatária em face da A. e de modo que impeça a sua condenação na restituição do prédio de que a A. é proprietária. Ao invés, a matéria de facto revela que a A., por si ou através da trespassante, não celebrou com a A. ou com os seus antecessores qualquer contrato de arrendamento, levando, por isso, à improcedência da reconvenção. 4. Improcede, assim, a Apelação e confirma-se, com os presentes fundamentos, a sentença recorrida que julgou procedente a acção e improcedente a reconvenção. IV – Em Conclusão: 1. Tendo a A. invocado como fundamento do reconhecimento do seu direito de propriedade, numa acção de reivindicação, que o referido imóvel estava inscrito no registo em seu nome, direito que obteve depois de outorgada escritura de justificação notarial com invocação da usucapião como forma de aquisição originária do direito de propriedade, passou a beneficiar da presunção da titularidade que decorre do art. 7º do Cód. de Registo Predial, ficando a A. dispensada da prova dos factos de que decorre a aquisição originária ou mesmo a aquisição derivada do direito de propriedade. 2. Tal presunção é directamente oponível não apenas a qualquer pessoa que se arrogue, sobre o mesmo prédio, a titularidade do mesmo direito, como a quem, como a R., apenas invoca a existência de um direito de arrendamento. V – Decisão: - Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação, mantendo-se a sentença recorrida, com os presentes fundamentos. - Custas da Apelação a cargo da R. Lisboa, 19 de Junho de 2008. Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora) António Manuel Valente Ilídio Sacarrão Martins |