Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1353/09.0TJLSB.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL
REVELIA
EFEITO COMINATÓRIO PLENO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Com o artigo 2.º do regime anexo ao DL 269/98, de 1 de Setembro, não se quis ressuscitar o efeito cominatório pleno.
II. Se, na ausência de contestação do réu, a inspecção da petição inicial conduzir o magistrado à convicção de que o autor não tem o direito que se arroga, impõe-se que julgue improcedente o pedido, independentemente de serem em teoria possíveis para o caso outras construções jurídicas.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
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Bs, S. A. instaurou a presente acção especial contra G pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de Euros 11 526,25, bem como a quantia de Euros 1 285,43, de juros vencidos até 23 de Junho de 2009, mais a importância de Euros 51,42 de imposto de selo sobre esses juros vencidos, mais os juros que à taxa de 19,57%, se vencerem, sobre o dito montante de Euros 11 526,25, desde 24 de Junho de 2009 até integral e efectivo pagamento e o imposto de selo sobre os juros vincendos.
Regularmente citada a Ré não contestou.
Atenta a falta de contestação da Ré, e nos termos do disposto nos artigos
484.º, ex vi do artigo 463.º, e 784.º do CPC, foram reconhecidos os factos descritos na petição inicial.
Foi proferida decisão final que julgou parcialmente procedente a acção e,
consequentemente:
a) condenou a Ré a pagar à Autora uma quantia a liquidar em execução de
sentença, correspondente às prestações de capital não pagas, acrescidas de
juros à taxa de 15,57%, vencidos e vincendos a que acresce o imposto de selo respectivo, até integral pagamento, levando-se em consideração o montante de 1.379,60 (Mil trezentos e setenta e nove euros e sessenta cêntimos) recebidos pelo autor.
b) no mais, julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Inconformado, interpôs o Autor competente recurso, cuja minuta concluiu nos seguintes termos:
«1. Atenta a natureza do processo em causa – processo especial – e o facto de a R regularmente citada não ter contestado, deveria o Senhor Juiz a quo ter de imediato conferido força executiva à petição inicial, não havendo assim necessidade, sequer, de se pronunciar sobre quaisquer outras questões.
2. Aliás, neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu recente Acórdão da 2ª Secção, Processo 153/08.0TJLSB-L1 onde se refere que:
“Não tendo o Apelado, C contestado, apesar de citado pessoalmente, o tribunal recorrido, deveria limitar-se a conferir força
executiva à petição, nos termos do art. 2º, do Regime dos Procedimentos a que se refere o artigo 1º do diploma preambular do Decreto-Lei nº 269/98, de 01-09, e não a analisar, quanto a um dos réus, da viabilidade do pedido, uma vez que este não era manifestamente improcedente (isto é, ostensiva, indiscutível, irrefutável).
Concluindo, nos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de
obrigações emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00, se o réu citado pessoalmente, não contestar, o juiz apenas poderá deixar de conferir força executiva à petição, para além da verificação evidente de excepções dilatórias, quando a falta de fundamento do pedido for manifesta, por não ser possível nenhuma outra construção jurídica. (sublinhados nossos)
3. Termos em que deve conceder-se provimento ao presente recurso, e, por via dele, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por acórdão que condene a R., ora recorrida, na totalidade do pedido, como é de inteira.
J U S T I Ç A»
Não foram apresentadas contra-alegações.
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A única questão a decidir neste recurso consiste em saber se estão verificados os pressupostos que permitem ao juiz no processo especial do DL n.º 269/98, em caso de revelia da ré, proferir sentença, com parcial absolvição da demandada do pedido, ou se, ao invés, o juiz deveria, sem mais, ter conferido força executiva à petição inicial, nos termos artigo 2.º do Regime anexo ao referido DL.
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Os enunciados de dados de facto relevantes são os constantes da petição inicial e que o primeiro grau reconheceu assentes nos termos sobreditos.
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A imagem monolítica do processo ordinário não tem, como nunca teve, qualquer correspondência com a realidade.
Ao longo das últimas décadas, por toda a Europa, o legislador ampliou de forma significativa a «flora processual», ao ponto de se poder perguntar se o processo de cognição plena não se terá transformado já numa forma residual no sistema de tutela dos direitos globalmente entendida.
De entre os novos mecanismos surgidos, destacam-se, entre nós, os processos especiais do DL n.º 269/98, de 1 de Setembro, designadamente a acção declarativa especial a que se reportam estes autos.
Para a compreensão e decisão cabal do presente recurso, importa pôr em destaque alguns tópicos:
i) O Código de Processo Civil de 1876 adoptou uma classificação bipartida de ritos processuais: o processo era ordinário ou especial.
ii) Prevaleceu então a ideia de que o valor da causa não devia influir na forma do processo.
iii) Todavia, aquela divisão bipartida não demorou muito a ser posta em causa.
iv) Diversas exigências de ordem prática, que agora não importa explicitar, estiveram na origem do Decreto N.º 3, de 29 de Maio de 1907, que foi o responsável pela introdução do processo sumário no nosso ordenamento moderno.
v) Este diploma propôs-se «organizar um processo novo em que a necessidade de averiguar a verdade se concilia com a indispensável celeridade, simplicidade e economia dos meios para a alcançar» (cfr. Relatório preambular).
vi) No processo ordinário, a falta de oposição do réu não dispensava, em regra, o autor de fazer a prova das suas alegações, correndo a causa sem necessidade de qualquer intimação pessoal (artigo 200.º).
vii) A partir de 1907, com a acção declarativa para as acções de pequeno valor, a falta de impugnação operava o efeito cominatório pleno, sendo o réu revel condenado definitivamente no pedido (artigo 4.º).
viii) Ulteriormente, em 1932, o Decreto n.º 21 287, de 26 de Maio, criou uma outra forma de processo comum, o sumaríssimo, também com efeito cominatório pleno.
ix) Os efeitos da falta de contestação por parte do réu em situação de revelia operante, no processo sumário e sumaríssimo, conservaram-se no Código de Processo Civil de 39.
x) O artigo 784.º dispunha, para o processo sumário, que se o réu não contestasse, a regra era ser condenado definitivamente no pedido.
xi) A cominação não operava, no entanto:
- quando a vontade das partes fosse ineficaz para produzir o efeito jurídico que se pretendia obter;
- quando a petição fosse inepta;
- quando fosse manifesta a incompetência absoluta do tribunal, a falta de
personalidade ou capacidade judiciária ou a legitimidade das partes;
- quando a acção não estivesse em tempo;
- quando se reconhecesse que o autor pretendia realizar um fim proibido
por lei.
xii) Para o processo sumaríssimo regia o artigo 799.º que consagrava, mutatis mutandis, o mesmo regime, visto que mandava observar o disposto
no artigo 784.º e seu parágrafo.
xii) A revisão de 61 deixou praticamente incólume este regime só objecto de verdadeira e profunda modificação com a reforma de 95/96.
xiii) Durante décadas o processo ordinário e o sumário foram cominatórios, mas ao passo que a cominação no ordinário era semi-plena (só em relação aos factos), no sumário era plena (quanto aos factos e quanto ao direito).
xiv) O cominatório pleno foi, desde sempre, objecto de críticas.
xv) A Gazeta da Relação de Lisboa (Ano 20.º: 730), por exemplo, criticou o artigo 4.º do Decreto para cobrança de pequenas dívidas «porque, segundo se deduz dos termos imperativos do decreto, o juiz terá de condenar sempre, sem discutir a legitimidade das partes, nem a competência do juízo, nem a propriedade do processo, nem qualquer nulidade insuprível deste», ficando drasticamente diminuídos os direitos de defesa em caso de inconcludência da petição inicial.
xvi) Algumas destas críticas foram acolhidas, como vimos, em sucessivas reformas, sem se abandonar, porém, o cominatório pleno, nas formas sumária e sumaríssima, do processo comum.
xvii) Aquando da elaboração do Código de Processo de 39 a questão voltou a ser discutida.
O Ministro da Justiça, Manuel Rodrigues, questionou se não seria de adoptar também o semi-pleno para as acções sumárias, porquanto não encontrava razão suficiente para a distinção, com base na diferença do valor da acção.
José Alberto dos Reis observou: «Na verdade, se a natureza das causas é a mesma, divergindo unicamente quanto ao valor, mal se compreende que num caso, porque o valor excede certo limite, a falta de oposição tenha como consequência somente a confissão dos factos e que noutro caso, porque o valor está dentro do limite fixado, a falta de oposição importe a condenação imediata do réu no pedido, isto é, a confissão dos factos e do direito.
Intervém aqui, não o critério jurídico, mas o critério político. As razões de conveniência que levam a acelerar o processo sumário, levam igualmente a atribuir à falta de contestação efeitos mais enérgicos. E como o sistema funciona há 30 anos em Portugal sem perturbações nem protestos, julgo que convém ser mantido.
Assim o entendeu a Comissão Revisora» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, Vol VI, 1981:452).
xviii) A reforma de 95/96 aboliu as cominações plenas. Passou a aplicar-se ao processo sumário e sumaríssimo o cominatório semi-pleno, com as especialidades constantes dos artigos 784.º e 795.º do CPC.
xix) Outras das inovações importantes introduzidas pela Reforma de 95/96 foi a restrição da intervenção liminar do juiz, através da regra da oficiosidade das diligências destinadas à citação (artigo 234.º CPC).
xx) Para além dos amplos poderes conferidos ao juiz, como centro da arquitectura processual, o Decreto n.º 12.353, de 22 de Setembro de 1926, tinha consignado, no artigo 2.º, o princípio do indeferimento liminar da petição inicial para os casos de ineptidão, incompetência em razão da matéria, impropriedade do meio empregado e inviabilidade evidente da acção.
xxi) O indeferimento liminar manteve-se no Código de 39 (artigo 491.º), na reforma de 61 (artigo 474.º) e está previsto no actual artigo 234.º -A.
xxii) A intervenção liminar do juiz é hoje excepcional (artigos 234.º e 239.º CPC);
xxiii) O indeferimento liminar tem sido equacionado como um corolário do princípio da economia processual;
xxiv) Um dos fundamentos do indeferimento liminar é a manifesta improcedência do pedido;
xxv) Trata-se, neste caso, de um julgamento antecipado do mérito da causa;
xxvi) Compreende-se assim muito bem, conforme se sustenta, entre outros, no Ac. RE, de 02.10.86, CJ , T 4:283, que «o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será de proferir se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido» (no mesmo sentido, entre muitos outros, Ac RP, de 15.10.81, BMJ 301:336, Ac RE, de 24.10.85, CJ, T 4: 302; Ac. STJ, de 05.03.87, BMJ 365:562 e Ac. RC, de 31.03.87, BMJ 415: 736).
xxvii) Ou, conforme dizia Alberto dos Reis «o juiz só deve indeferir a petição inicial (…) quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é,
quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial.
O caso típico é o de a simples inspecção da petição inicial habilitar o magistrado a emitir, com segurança e consciência, este juízo: o autor não tem o direito que se arroga» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol II, op. cit: 385).
Ora, sendo assim as coisas, estamos agora habilitados a decidir com segurança o caso sujeito.
Dispõe o artigo 2.º do Regime anexo ao DL 269/98 que «se o réu, citado pessoalmente, não contestar, o juiz, com valor de decisão condenatória, limitar-se-á a conferir força executiva à petição, a não ser que ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente».
A acção declarativa especial prevista no DL 269/98 inspirou-se no modelo do processo sumaríssimo, mas não se confunde com ele. Mesmo a inexistirem divergências, que as há, a regra seria sempre o cominatório semi-pleno.
A interpretação do citado artigo 2.º não é pacífica, como resulta dos Acórdãos citados pelo recorrente.
Parece-nos, no entanto, ser legítimo assumir, como ponto firme que, como refere Lebre de Freitas, não se quis com tal formulação normativa ressuscitar o efeito cominatório pleno, eliminado pela reforma 95/96, relativamente aos processos sumários e sumaríssimos. Se assim fosse tal iria ao arrepio do sentido de todas as mais recentes reformas do processo civil e seria de supor uma tomada de posição mais clara do legislador.
«O juiz não é dispensado da operação de subsunção, não podendo atribuir força executiva a petições iniciais inconcludentes: a procedência ou improcedência do pedido é sempre manifesta, uma vez que só perante a petição inicial há que verificar se ocorre» (A Acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, Coimbra, 2000: 322, nota 31).
A nosso ver, um dos equívocos em que ocorre a posição sustentada pelo recorrente deriva do facto de o legislador ter transposto para a fase final do procedimento um conceito que também utiliza para o juiz poder no liminar sindicar a viabilidade da acção e a jugular.
Ora, facilmente se compreende que as cautelas que se devem colocar na fase liminar da acção e mesmo no julgamento antecipado da lide no saneador, perante várias soluções plausíveis da questão de direito, não se coloquem, ou não se coloquem da mesma maneira, na fase final da lide.
Nesta fase o juiz tem de ser assertivo e confrontar a causa de pedir e o pedido envolvidos na acção com o direito substantivo.
Se a simples inspecção da petição inicial conduzir o magistrado à convicção de que o autor não tem o direito que se arroga, impõe-se que julgue improcedente o pedido, independentemente de serem em teoria possíveis para o caso outras construções jurídicas.
Foi o que se passou nos presentes autos em que estava em causa a capitalização de juros e que o primeiro grau arredou, seguindo de resto a orientação consagrada no Acórdão Uniformizador do STJ de 7/2009, de 25 de Março (DR, 1.ª Série, de 5 de Maio de 2009).
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Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação, e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 21 de Janeiro de 2010

Luís Correia de Mendonça
Carlos Marinho
Caetano Duarte