Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
68/07-9
Relator: GILBERTO CUNHA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: 1. No estado actual de elevada sinistralidade rodoviária, o fenómeno da criminalidade estradal no nosso país, designadamente ao nível da prática de homicídio com negligência grosseira, como é o caso, as exigências de prevenção geral sob a forma contrafática da confiança da comunidade na norma violada são extremamente acentuadas e que o arguido com o seu comportamento temerário revelou uma personalidade pouco preocupada com a preservação de bens jurídicos fundamentais dos outros e com potencial de perigosidade, o que adicionado às duas condenações que veio a sofrer posteriormente à prática destes factos, pelos crimes de tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida (está actualmente a cumprir pena de prisão) não permitem que se formule um juízo de prognose favorável.
2. No enquadramento factual supra descrito, a supressão do direito à vida não pode deixar de demandar intervenção vigorosa do direito penal, não garantindo a suspensão da execução da pena a emenda cívica, a interiorização pelo arguido das consequências dos efeitos gravosos da sua condução e o sentimento da comunidade de reprovação social do crime seria seriamente posto em causa.
3. Havendo culpa grave ou grosseira e exclusiva em caso de homicídio negligente por acidente de viação (como é o caso), impõe-se a aplicação de pena de prisão que não deve ser suspensa na sua execução, salvo se concorrerem razões especiais, que aqui, perante a factualidade sedimentada e atrás transcrita, também não se descortinam.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No processo comum nº379/02.0PCRGR, actualmente do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada, o arguido J., devidamente identificado nos autos, sob acusação do Ministério Público foi pronunciado e submetido a julgamento perante tribunal singular, vindo por sentença de 31/5/2006, proferida na sequência do reenvio para novo julgamento determinado pelo douto acórdão desta Relação de 13/7/2005, a ser decidido, para além do mais, o seguinte:
- Absolver o arguido da prática da contra-ordenação prevista no art.38º, nº1 do Código da Estrada;
- Condenar o arguido pela autoria material de um crime de homicídio com negligência grosseira, pp. pelas disposições conjugadas dos arts.137º, nº1 e 69º, nº1, al.b) do Código Penal, na pena de dois (2) anos de prisão e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de um (1) ano e seis (6) meses, ao qual será deduzido o tempo em que estiver privado da liberdade;
- Nos termos dos arts.122º, nºs 4 e 5 e 130º, nº1, al.a), do C. Estrada foram declarados caducos os títulos de condução de que o arguido é titular.

Recurso.
Inconformado com esta decisão, o arguido interpôs o presente recurso, restrito à pena de prisão aplicada, pugnando pela sua redução e pela suspensão da sua execução, rematando a respectiva fundamentação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1) A pena aplicada ao ora recorrente de dois anos de prisão afigura-se-nos desproporcionada, quer se considerem os imperativos de prevenção geral, especial ou retributivos, em violação do disposto nos artigos 40°, n°1, 70° e 71° do Código Processo Penal. E isto porque,
2) sendo o ideal a atingir pelo nosso ordenamento jurídico penal o da ressocialização do arguido, sendo o arguido jovem, tendo confessado os factos e sobretudo primário a douta sentença pecou por encerrar "summa jus, summa injura"( justiça exagerada é exagerada justiça).
3) A meritíssima juiz a quo ao não se ter pronunciado pela possibilidade de suspensão de execução da pena aplicada ao arguido violou o disposto no art.50° n°1 do Código Penal.
4) Desta forma, a douta sentença violou o disposto nos arts.40° n°1, art.50°, art.70°, art.71° todos do Código Penal, e art.27° n°1 da Constituição da República Portuguesa, pois deveria ter sido aplicado ao recorrente uma pena de prisão suspensa na sua execução em detrimento de uma pena de prisão efectiva, assim se acautelando de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, bem como se poria em prática o verdadeiro espírito e imperativo do sistema jurídico-penal português e que é o da ressocialização e reintegração do delinquente.

Admitido o recurso contra-motivou o Ministério Público pugnando pela sua improcedência e consequente confirmação da sentença impugnada.
Nesta Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a audiência.
Cumpre agora apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

Na 1ª Instância foram dados com provados os seguintes factos:
No dia 10 de Novembro de 2002, pelas 16h30m, o arguido, J. circulava pela estrada que liga Ponta Delgada a Ribeira Grande, e neste mesmo sentido, a tripular o motociclo de matrícula … TZ, marca K., com 600 cm 3 e 140 cv, capaz de acelerar dos 0 aos 100 Km/h em 2,5 segundos. Aquela via constituiu o trajecto mais curto e de melhor piso para, a partir de Ponta Delgada, se chegar à Ribeira Grande e daí a Porto Formoso.
Nesse dia estava bom tempo e o piso da via seco.
No seu trajecto J., depois de haver passado pelo entroncamento da estrada para o Pico da Pedra, teve de fazer uma curva para a direita onde se encontra um sinal vertical que impunha como limite máximo de velocidade 80Km/h, ao qual se segue um troço rectilíneo com várias centenas de metros de comprimento. Nele não existia qualquer obstáculo que impedisse abrangê-lo em toda a sua extensão, com a vista.
Do lado esquerdo desse troço e a cerca de 200 m da curva a que se fez referência, considerado o sentido de marcha do veículo, existem dois estabelecimentos em que se exerce a actividade comercial, um da sociedade "J.M.Mont’talverne e Filhos, L.da" e o outro que usa a designação de "Big Mix". Ambos dispõem de zonas de estacionamento para clientes diante das frontarias que estão voltadas para a via. O acesso a essas zonas de estacionamento, a partir da curva da estrada, fazia-se, à data dos factos, por uma entrada que dista cerca de 200 m da referida curva. O chamado "Big Mix" abre aos domingos e as pessoas a ele se deslocam em passeio para apreciar os produtos à venda. Aquele dia foi o dia da inauguração desse estabelecimento.
J. já tinha transitado por esta via várias vezes, conduzindo veículos ou como passageiro, desde que chegou à ilha de São Miguel, proveniente dos EUA, cerca de dois anos antes da data do acidente. Dispõe de carta de condução de motociclos desde 18 de Abril de 2002 e de automóveis ligeiros desde 20 de Junho de 2002.
O dito motociclo tinha sido adquirido pelo arguido cerca de seis (6) meses antes do referido acidente.
Na execução do percurso que empreendeu o arguido, depois de descrever a curva de que se falou, deparou com uma fila de trânsito formada por três ou quatro automóveis, entre eles um veículo ligeiro, um veículo de carga (carrinha de caixa aberta) e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … JI, este tripulado por L., que a encabeçava. A distância a que cada um dos veículos circulava relativamente ao que imediatamente o precedia era o equivalente ao cumprimento de um veículo de dimensão pequena. À medida que se aproximava da entrada para o estacionamento dos indicados edifícios, a fila de trânsito ia gradualmente reduzindo a velocidade de que ia animada. Essa fila acompanhava a redução de velocidade que a condutora L. fazia para poder virar à esquerda, para o "Big Mix", estando esta com os sinais de mudança de direcção para esquerda accionados, sinalização esta que se tinha iniciado numa altura em que a condutora, L., ainda quando rolava na estrada - Ponta Delgada/Ribeira Grande - enquanto esteve parada aguardando a passagem de outra viatura, no sentido Ribeira Grande - Ponta Delgada, a fim de posteriormente mudar de direcção para a esquerda.
Chegado à cauda da fila, o arguido não se conformou com o ter de seguir à velocidade que ela levava e antes de iniciar a manobra de ultrapassagem não parou atrás da fila de trânsito. Sem procurar saber da razão da reduzida velocidade a que o trânsito progredia, e confiante de que não daria causa a acidente, decidiu ultrapassar os veículos que iam à sua frente e assim acelerou o seu motociclo, fazendo-o avançar de sopetão e tomou a faixa da esquerda, imprimindo-lhe velocidade cada vez maior e superior a 80 Km/hora. Nada havia na via que o impedisse de aperceber-se dos sinais que fossem feitos pelos outros veículos para indicar manobras que quisessem executar, mormente a partir do momento em que tomou a faixa da esquerda para fazer a ultrapassagem.
Apesar de tudo o arguido não se apercebeu do sinal "pisca" efectuado pela condutora do veículo, L., embora admita que a referida condutora tenha sinalizado a manobra de mudança de direcção para a esquerda com os piscas do lado esquerdo da sua viatura.
Na emergência L. já executava manobra de mudança de direcção para a respectiva esquerda, a dirigir o seu veículo para a entrada da zona de estacionamento do referido "Big Mix". E quando, no seu andamento ocupava a faixa esquerda e a parte frontal da sua viatura já tinha passado a linha que separa a faixa de rodagem da berma, a parte frontal do motociclo do arguido foi embater na parte lateral esquerda do automóvel JI, sensivelmente no alinhamento com o banco da condutora. Com a força do embate o automóvel deslocou-se lateralmente cerca de 5 metros, embateu no lancil e capotou no sentido Ponta Delgada - Ribeira Grande. A via no local tem cerca de 6,80 m de largura, é muito movimentada e encontrava-se à data do acidente com muito trânsito.
Com o embate o TZ foi projectado, saltando sobre o JI, e foi imobilizar-se a alguns metros do local onde se imobilizou aquele primeiro, na berma esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.
Como consequência do embate, resultaram para L., laceração da pia-mater com hemorragia subaracnoideia localizada na fossa posterior; sufusão hemorrágica de todo o tronco cerebral e sufusão difusa da base do crânio; fractura dos 1°, 2° e 8° arcos costais direitos e dos 3° e 6° esquerdos; hematoma de epicárdio junto ao ápice cardíaco; hemotórax esquerdo (de 100 cm3) e direito (de 900 cm 3); laceração da aorta, na transição aorta ascendente; hemoperitoneu (de 400 cm3); fractura do baço; para além de outra de menor relevo, lesões de que resultou anemia aguda e, por via dela, a morte da condutora L..
O automóvel por seu lado, sofreu o afundamento das portas laterais esquerdas e direitas, de toda a chaparia de ambos os lados e do tejadilho, torção do chassis, das jantes e dos bancos, para além de outras peças.
O arguido é solteiro, tem 31 anos de idade, emigrou para os EUA quando tinha pouco mais de 1 ano de idade e regressou há cerca de 6 anos. Desempenhava, antes do acidente, a profissão de carpinteiro e de monitor de musculação. Desde o acidente, na sequência do qual sofreu lesões que demandaram, para consolidação, cerca de 8 meses, está inactivo. Uma dessas lesões determinou que ficasse com uma deficiência no braço direito, que ficou semi-inerte. Não obstante, desenvolvia actividades como a condução de automóveis até à altura em que iniciou o cumprimento de pena de prisão à ordem de outro processo-crime. É a sua mãe, que reside nos EUA, quem providencia pelo sustento dele enviando-lhe dinheiro.
O arguido já respondeu e foi condenado, em 01/07/2003, pela prática, em 15/03/2003, dos crimes de tráfico de estupefacientes e de posse de arma proibida, pelos quais foi punido com pena de prisão suspensa na sua execução, e, em 10/10/2005, pela prática, em 13/01/2005, por crime de tráfico de estupefacientes, tendo sido punido com pena de prisão efectiva que está a cumprir.
Foram dados como não provados os seguintes factos:
Que o troço de estrada referido em B tenha 500 metros;
Que ao longo de 27 anos o arguido tenha circulado pela via onde ocorreu o acidente;
Que soubesse que o estabelecimento "Big Mix" houvesse aberto as suas portas ao público no dia do acidente, sendo frequentado por pessoas ao Domingo;
Que na sequência do embate o JI se houvesse deslocado 7,70 metros, deixando um rasto de chapa equivalente, no solo;
Que na sequência do embate no automóvel JI o motociclo TZ se houvesse imobilizado a 4 metros daquele automóvel;
Que não seja possível recuperar o JI para a função a que estava adstrito e para que tinha sido construído.
O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção da seguinte forma:
(…)
O tribunal “a quo” procedeu à subsunção legal da factualidade supra descrita, à escolha e determinação da medida da pena do seguinte modo:
Vem imputado ao arguido um crime de homicídio com negligência grosseira pp. pelo artigo 137°, n°1 e 2 do C.P. A punição a título negligente de um determinado crime descrito na parte especial do C.P convoca obrigatoriamente o julgador, na sua função de dizer o direito do caso, à consideração da definição legal de negligência consagrada na parte geral daquele mesmo Código, no artigo 15°. Da leitura dessa definição ressalta imediatamente, como pedra de toque do delito negligente e tronco comum às diversas modalidades de comportamento negligente, o conceito de cuidado, conceito esse que importa precisar, ainda que de forma breve e necessariamente lacunosa, por forma a torná-lo prático-operativo. E, abreviando caminho, trata-se ali, a nosso ver, de conceito a um tempo objectivo e normativo: objectivo, porque se refere ao cuidado que um homem medianamente diligente da área de actuação do agente assumiria no caso concreto; normativo, porque supõe a comparação entre esse cuidado objectivo e o cuidado que o agente efectivamente assumiu naquele caso.
E a densificação daquela dimensão objectiva irá buscar-se, no caso vertente, às normas de cuidado estradal, que justamente por o serem, vêm formuladas na lei como sendo aquelas que se impõem ao tal homem medianamente diligente, prudente e inteligente. E, chegados aqui, afigura-se-nos notório que o arguido violou três delas: a que impõe àquele que pretende efectuar uma ultrapassagem o certificar-se de que o pode fazer sem colidir com veículo que transite no mesmo sentido e de que a faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização daquela manobra em segurança - artigo 38°, n°1 e n°2 al. a) do C.E; a que impunha, no local, um limite máximo de velocidade de 80 Km/h - artigo 28°, n°1 al. b) do C.E; e, enfim, a que impõe aos condutores o dever de regularem a velocidade de modo a que, atendendo a «circunstâncias relevantes», possam, «em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente» - artigo 24°, n°1 do C.E, norma que não deixa de ter aplicação no caso de existir limite objectivo de velocidade, como resulta do n°1 do artigo 27° do C.E.
Sendo esses, no essencial, os deveres objectivos de cuidado impostos ao arguido importa cotejar o concreto comportamento dele com o legalmente determinado, densificando-se, agora, a dimensão normativa do conceito. Do resultado, nascerá a conclusão da ocorrência ou não de violação do dever de cuidado. Ora, como se apurou, o arguido ao chegar junto da fila de trânsito encabeçada pela vítima não abrandou tomando o fim da fila e ponderando, com o tempo devido, sobre a possibilidade e oportunidade de efectuar a manobra de ultrapassagem sem criar perigo ou dano para terceiro. Avistou, é certo, a fila de trânsito, isso é inequívoco, mas não curou de tentar perceber a razão da existência dela, antes continuando o seu sentido de marcha, e em força, com velocidade excessiva, atitude que veio dar em que se positivasse em nefasto dano o perigo que justamente pretende esconjurar-se com o respeito das supra citadas normas do C.E - é dizer, actuou em violação de dever objectivo de cuidado e o dano sobrevindo não só não ocorreria sem a conduta dele, contrária ao devido, como é tipicamente decorrente do incremento de risco gerado por ela. Numa palavra, o dano morte verificado é «obra» do arguido.
E o não se haver apercebido da manobra da vítima e da sinalização dela em nada pode afastar, longe disso, a conclusão de que violou, e violou ostensivamente, aquelas sobreditas regras. Com efeito, e desde logo, ele não se apercebeu da referida manobra e da sinalização dela, é certo - mas isso sucedeu por acto próprio, porque não parou quando devia, porque não reflectiu como devia, sendo que se o fizesse nada o impediria de se aperceber da dita manobra e dos perigos que uma ultrapassagem, naquelas circunstâncias, necessariamente acarretaria, pois provou-se que nada havia na estrada que o impedisse de ficar ciente da possibilidade da referida manobra da vítima ou de outro condutor que nas mesmas circunstâncias se encontrasse. E, perguntar-se-á, qual a circunstância ou circunstâncias que impunham ao arguido, de um ponto de vista objectivo, aquela reflexão? Para nós a resposta é óbvia. Em poucas áreas da actividade humana os gestos têm um valor de comunicação tão evidente e tão preciso como no âmbito da circulação rodoviária. Concretizando: a presença da fila de automóveis em marcha lenta, ou quase parados, não terá significado algum no contexto em que circulava o arguido, que avistou a referida fila e naquelas condições de progressão? Não será esse um «sinal» inequívoco de que alguém pretende mudar de direcção ou ao menos que um qualquer obstáculo impede um ritmo de marcha mais acelerado? E esse «sinal» não deverá ser apreendido pelo homem medianamente diligente, impelindo-o à reflexão e a certificar-se do que se passa e até a parar, se necessário (artigo 38°, n°1 e n°2 al. a), do C.E), ou, ao menos, a condicionar a velocidade de acordo com aquela «circunstância relevante» do trânsito rodoviário, como o impõe o artigo 24°, n°1 do C.E? Estamos certos que ninguém ensaiará negá-lo.
Ao fim e ao cabo a conduta empreendida pelo arguido e dada como provada situa-se claramente para além dos limites de um simplista conduta negligente, muito para lá da normal falta do cuidado devido.
No caso vertente, o arguido ao conduzir naquelas circunstâncias apuradas e dadas como provadas, violou grosseiramente os deveres de cuidado a que estava obrigado, quer por ter imprimido ao motociclo velocidade superior a 80 Km/horas, sem qualquer motivo e necessidade para tal - tanto mais que, como se referiu, os veículos que se propôs ultrapassar estavam parados ou praticamente parados - quer pelo número de veículos que teve necessidade de ir ultrapassando, quer porque a via por onde circulava trata-se de um troço com muito trânsito de veículos motorizados, a qualquer hora do dia e mesmo ao fim de semana, porquanto ser a via principal de ligação entre as cidades de Ponta Delgada e Ribeira Grande.
O que vale por dizer que o arguido bem podia ter efectuado, como efectuou, a ultrapassagem a velocidade reduzida, uma vez que as viaturas que ultrapassou estavam paradas ou praticamente paradas.
Se assim tivesse procedido certamente que o arguido teria podido, a tempo, avistar a manobra de mudança de direcção da viatura da vítima e, assim, parar o seu motociclo evitando a colisão e, mesmo que assim não sucedesse, seguramente, que os danos e consequências derivados da colisão seriam muitíssimo menores; aliás, provavelmente o arguido até teria podido evitar a colisão desviando-se e contornando o veículo da vítima.
Como da mesma forma estamos seguros de que não existem quaisquer razões, que demonstradas não foram, para concluir que o arguido não tenha capacidade para se determinar com o apelo daquelas normas que violou em momento de fraqueza; breve, que não tenha capacidade individual para se portar, no caso concreto, como um homem medianamente prudente. E, mais ainda, estamos em crer que aquele supra referido «sinal» tem um valor comunicante tal, de chamada de atenção para as também acima aludidas normas de cuidado estradal, que deverá ser apreendido não só pelo homem medianamente diligente mas, inclusive, por aquele que nem o chega a ser. Ou dito de outra forma, para nos fazermos entender, o perigo de ocorrência de dano que infelizmente veio a verificar-se era, em face da conduta do arguido vista numa perspectiva ex ante, de tal monta, de tal plausibilidade, que não pode deixar de apontar-se o seu comportamento como sendo portador de um estigma de ilicitude especialmente intensa e indiciadora de uma atitude pessoal de especial ligeireza e leviandade perante a situação de facto que se lhe antepôs e perante as normas de cuidado que lhe permitiriam lidar com ela em segurança. Vale por dizer, sem necessidade de adicional miudeza de esclarecimentos, o arguido matou a vítima com negligência grosseira e, como tal, fez-se autor do crime pp. pelo artigo 137°, n°1 e 2 do C.P.
E não cabe dizer, contra o que se veio de referir, que o facto de o arguido haver obrado com negligência inconsciente é sinal de uma negligência «menos grave» enquanto tipo de culpa ou sequer que é uma modalidade de comportamento negligente incompatível com a noção de negligência grosseira. É que não só o conceito de negligência grosseira, que traduz uma ilicitude e uma culpa intensificadas, é compatível com qualquer das modalidades de negligência delineadas na parte geral do C.P [artigo 15°, al.a) e b)], como até podemos alvitrar que o facto de o arguido haver agido, nas circunstâncias concretas do caso que nos ocupa (perante as quais mesmo um homem minimamente diligente ter-se-ia tomado de cuidados), com negligência inconsciente é indício de uma atitude interna, de um modo-de-ser especialmente leviano ou ligeiro no que concerne aos bens jurídicos alheios.
Por fim, para fechar a parte desta sentença dedicada à qualificação jurídica do comportamento do arguido, cumpre deixar claro que ele tão só aparentemente se fez autor da contra-ordenação que lhe é imputada. É que, em bom rigor, aquela não pode deixar de ser tida como «causal» do dano morte sobrevindo, este elemento do tipo objectivo do crime de homicídio pelo qual vai condenado. E assim, não pode deixar de considerar-se que esse ilícito penal consome o ilícito contra-ordenacional, intercedendo entre ambos um mero concurso aparente de infracções, com óbvia prevalência do crime (artigo 136°, n°1 do C.E).
A conduta do arguido é punível com pena de prisão de 1 mês a 5 anos de prisão -artigo 41°, n°1 e 137°, n°2 do C.P.
Importa ponderar, como agravante da responsabilidade a assacar-lhe, a significativa intensidade da negligência dele, dentro das hipóteses cogitáveis de negligência grosseira, plasmando um grau de culpa sensível, o modo brutal da «agressão» (as aspas pretendem enfatizar que não se trata, apesar de tudo, de acto doloso) à vítima, que sofreu traumatismos múltiplos, cranianos e torácicos, que lhe determinaram a morte, e o dano causado no carro em que ela se fazia transportar, tudo moderado por uma certa «compensação» de males resultante do facto de, ele próprio, haver sofrido dano físico significativo e decorrente do embate, decide-se condená-lo na pena de dois anos de prisão.
Não pode e não deve deixar de explicar-se a razão pela qual se entende hão dever suspender-se a pena supra alcançada. Em primeiro lugar, não deve perder-se de vista que se alguma franja do fenómeno criminal dos crimes contra a vida reclama especial consideração de exigências de prevenção geral sob a forma de afirmação contrafáctica da confiança da comunidade nas normas que proíbem atentados ao bem jurídico vida e até (porque ter medo das palavras?) sob a forma de prevenção geral negativa, de intimidação dessa mesma comunidade mediante a punição do prevaricador, essa franja do fenómeno criminal é, dizia-se, a dos ilícitos criminais cometidos no contexto da circulação rodoviária e, especialmente, a respeitante aos homicídios cometidos nessas circunstâncias por negligência e mais ainda quando se trata de negligência grosseira. E essa afirmação não é obviamente gratuita, antes se louvando da constatação empírica de uma elevadíssima prevalência desse tipo de crimes, especialmente entre nós, dos quais resultam terríveis dramas familiares e, de forma mais difusa, encargos elevadíssimos para o Estado, quer para o sistema de segurança social, quer para o sistema de saúde, ambos pagos, e cada vez com mais sacrifício, por cada um de nós. De todo o modo, a possibilidade de um cidadão ser morto ou ferido por negligência é cerca de 10 vezes superior àquela de um cidadão ser morto ou ferido vítima de acto doloso (assim, muito recentemente, Maria Joana de Castro Oliveira, A Imputação Objectiva na Perspectiva do Homicídio Negligente, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.178). Quer dizer, se nos podemos congratular com uma baixa taxa de homicídios dolosos, não se deve esquecer que o homicídio negligente, tendo-se tornado num «fenómeno maciço» (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, artigo 137°, § 1), demanda, por isso mesmo, maiores atenções do ponto de vista preventivo. Ele é, na verdade, um fenómeno imanente à chamada «sociedade do risco», não na vertente tecnológica dela, porventura mais conhecida, mas no sentido de que a «"criminalidade de massas" determina que o "outro" se mostre muitas vezes precisamente, antes de mais, como um risco» (Jesús-Maria Silva Sánchez, La Expansión del Derecho Penal - Aspectos de Ia Politica Criminal en Ias Sociedades Postindustriales, 2ª Ed., Madrid: Civitas, 2001, p. 31). Tudo para dizer que casos como o dos autos reclamam inequivocamente, ao menos do ponto de vista preventivo geral, no estado actual do fenómeno da criminalidade estradal no nosso país, que pode ser representado por um cortejo de mortos, feridos e estropiados, uma resposta firme, sem grandes contemplações - resposta que só pode ser adequadamente veiculada pela pena de prisão, que de resto é a prevista para o homicídio com negligência grosseira.
É óbvio que ao que acabou de se dizer não pode assinalar-se, de modo algum, um valor absoluto: quer porque isso seria encarreirar num discurso de «lei e ordem», avesso à nossa tradição jurídico-cultural, quer porque isso seria funcionalizar o indivíduo à ideia de prevenção criminal. Ou, vistas as coisas por outro prisma, sempre que o ideal de ressocialização do delinquente (ou, para sermos mais realistas, de não dessocialização dele) reclamar, no caso concreto, o afastamento da pena privativa da liberdade, deve esta ceder e assim sobrelevar aquele ideal - é o que pode extrair-se de normas com especial valor político-criminal como as que constam dos artigos 40°, n°1 e 70° do C.P. O ponto está em concluir-se se aquele mesmo ideal não reclamará, aqui, a pena de prisão e sobre se a negativa não implicará, do mesmo passo, irremediável prejuízo das sobreditas exigências de prevenção geral. É que vamos ver.
Desde logo, tenha-se em atenção para o facto de ser o próprio legislador que comina para punição do crime em causa, tão só, a título principal, a pena de prisão. Pelo contrário, tem que demonstrar-se, antes, no contexto de um ilícito que é punido a título principal com pena de prisão, e apenas com pena de prisão, que as condições económicas e sociais do arguido, enfim as condições pessoais dele (por exemplo, de entre muitas outras cogitáveis e com relevância, o ser o sustento de família, o ter clara estabilidade profissional, o haver praticado actos objectivos e inequívocos de arrependimento ou reparação moral, etc.), desaconselham aquela sanção extrema. E a esse respeito apenas se apurou que o arguido é solteiro, que regressou a esta ilha após haver passado a maior parte da sua vida nos EUA, que ficou gravemente ferido na sequência do acidente, só a ele imputável, e que desde então não trabalha (sendo sustentado pela mãe, que vive nos EUA) apesar de desenvolver actividades como a condução automóvel.
Contra essa opção milita antes a consideração de que a negligência por que o arguido pautou o seu comportamento é indiciadora de uma personalidade pouco preocupada (para não dizer indiferente) com a preservação dos bens jurídicos fundamentais dos outros (e, de resto, com os seus, o que já não será relevante do ponto de vista que nos ocupa), e assim com potencial de perigosidade, que tem de reflectir-se, necessariamente, na opção pela pena de prisão; pena essa que é reclamada do ponto de vista da socialização dele e que, a não ser aplicada, implicará, do mesmo passo, intolerável frustração das exigências de prevenção geral, acima assinaladas. Ou, traduzindo o que se disse em linguagem mais escorreita: como é que os concidadãos do arguido verão a aplicação de uma pena de prisão suspensa a um caso com a gravidade do que aqui se cura? Não serão levados a pensar, compreensivelmente, que um indivíduo, fazendo da estrada uma pista de motociclismo, e em profundo desprezo pela vida de outrem, ceifou-a sem apelo nem agravo? Com a única consequência de receber uma advertência solene e sem ter que reparar, sequer, o mal causado (reparação que aqui não é pedida, mas decerto o será em acção autónoma em função dos valores decerto peticionados e contra uma mais que certa companhia de seguros)? E, não sendo a ideia que os concidadãos do arguido fazem da justiça deste caso o critério da decisão que proferiremos, não deverá ela ser levada em conta, precisamente pela janela das exigências de prevenção geral, nomeadamente a positiva, acima referidas? É óbvio que sim. E é por tudo isso que a prisão se justifica.
Acresce ainda que, depois da prática do crime de homicídio, por negligência grosseira, em 10/11/2002, o arguido veio a ser condenado, por duas vezes, pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida, condutas essas, ocorridas em 13/05//2003 e em 13/01/2005, pelas quais foi punido com pena de prisão suspensa na sua execução, em 01/07/2003, e com pena de prisão efectiva, em 10/10/2005.
Ora, esta conduta do arguido posterior ao crime de homicídio negligente, seguramente que pesa desfavoravelmente, impedindo que se possa elaborar um juízo de prognose social favorável ao ponto de não ser possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Pelo que não se mostram preenchidos, "in casu", todos os pressupostos exigidos pelo art. 50°, n°1, do C. Penal, tal instituto da suspensão da execução da pena de prisão não é aplicável ao caso "sub-judice".
À pena de prisão supra determinada acrescerá a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pp. pelo artigo 69°, n°1 al. b) do C.P. Na verdade, o crime de homicídio negligente, como aliás o crime de homicídio doloso, é um crime de «execução livre», no sentido de que pode ser levado a efeito por qualquer meio, assim dispensando o legislador tutela acrescida à vida, enquanto bem supremo. Isso quer dizer, reversamente, que não existe (mas já existiu) um tipo de crime de homicídio negligente cometido no exercício da condução de veículo, pelo que a utilização deste, não sendo elemento do tipo objectivo de ilícito, facilitou «de forma relevante», no contexto do caso concreto, a prática do crime. Isso é de meridiana clareza. E assim, ponderando tudo o que se ponderou a propósito das exigências de prevenção que o caso reclama, entende-se condenar o arguido, ainda, na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de um ano e seis meses, período ao qual será deduzido o tempo em que o arguido estiver privado da liberdade (n°6 da citada norma).
Para além das penas sobreditas, importa ainda atentar que ambos os títulos de condução do arguido, de motociclos e de automóveis ligeiros, eram provisórios, no sentido de que só se converteriam em definitos após dois anos de validade se, nesse período, não fosse instaurado ao arguido processo por crime a que fosse aplicável a pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado - artigos 122°, n°4 e 5 e 130°, n°1 al. a) do C.E. Não se trata aqui, como se explicitou no Ac. n°461/2000, 25.10.2000, do Tribunal Constitucional (DR II - Série, n°276, de 29.11.2000, pp. 19 300 ss.), de efeito automático da condenação, este ilegítimo, mas antes de «requisito negativo da obtenção de carta».
Ora, o processo foi instaurado (em 11.11.2002) naquele período de dois anos e o arguido foi condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados. Do que resulta que os títulos de condução de que era titular caducaram, à luz do já citado artigo 130°, n°1 al. a) do C.E.

Apreciando

Poderes de cognição deste tribunal. Objecto do recurso. Questões a examinar.
Os poderes cognitivos deste Tribunal conformam-se à revisão da matéria de direito, quer por que não se alega nem ex officio se vislumbra qualquer dos vícios elencados no nº2 do art.410º, do CPP, quer por que o recorrente também centra a sua dissidência relativamente ao julgado em matéria de direito, assim demarcando o objecto do recurso (art.412º, nº1, do CPP), tendo-se por definitiva a decisão proferida na 1ª Instância sobre a matéria de facto.
Nestes termos, tendo em consideração, conforme jurisprudência unânime, que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da correspondente motivação, as questões a examinar e que reclamam solução consistem em saber:
- Se a pena de prisão aplicada ao recorrente é exagerada, excessiva e desproporcionada, impondo-se a sua redução; e
- Verificar se ao contrário do decidido na 1ª Instância, estão reunidos os pressupostos para o arguido beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão.

Examinemos pela ordem indicada as questões acabadas de enunciar.

Da medida da pena de prisão.
Efectuada a qualificação jurídica da materialidade supra descrita, que não é posta em crise e por isso não faz parte do objecto do recurso, e visto o crime em causa – homicídio com negligência grosseira - ser abstractamente punível com a pena de um (1) mês a cinco (5) anos de prisão, pelo qual o arguido foi condenado em dois (2) anos de prisão, vejamos se esta pena é excessiva e desproporcionada em face das circunstâncias concretas apuradas, pois que, estando nos termos supra descritos, definitivamente fixada a matéria de facto, só a esta nos podemos ater, não podendo ser consideradas e valoradas circunstâncias e factos que nela não se contenham.
Como é sobejamente sabido, em sede de dosimetria da pena relevam os arts.40º e 71º do C. Penal, nos termos dos quais a determinação concreta da pena dentro dos limites da lei, far-se- à em função da culpa do agente e tendo em conta também as exigências de prevenção.
Culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (ou de determinação concreta da pena). – Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime”, pag.274.

As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Se é certo que a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (art.40º nº2, do C. Penal), “ a medida da pena há-de primordialmente ser dada pela medida da necessidade da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Aqui a protecção dos bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção ou mesmo reforço da vigência da norma infringida. Até ao máximo conseguido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos que deve determinar a medida da pena –F. Dias, Ob. Cit.pag. 227.
Estão aqui em causa exigências de prevenção geral positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida. Estas exigências não permitem que a pena baixe do quantum indispensável para que se não ponha irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade da norma violada e, por essa via, o sentimento de confiança e segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais. Ob.cit.pag.242 e ss.
No dizer da Prof. Fernanda Palma, “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, in Jornadas sobre a revisão do Código Penal (1998), AAFDL, pp.25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal” (2000), Almedina (32/33) «A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda a prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.
Revertendo ao caso em apreciação, em face dos referidos ditames e das circunstâncias relevantes apuradas na 1ª Instância, salvo o devido respeito, afigura-se-nos ligeiramente excessiva e desproporcionada a pena de prisão aplicada ao arguido/recorrente, justificando-se a sua redução.
Com efeito, o grau de ilicitude do facto é acentuado, dado o desvalor da acção, traduzido no tipo de comportamento estradal adoptado pelo arguido e a gravidade do facto, ao nível do bem jurídico directamente afectado, que foi causa directa e necessária da morte de uma pessoa.
Em sede de culpa, a conduta do arguido/recorrente justifica uma censura ético-jurídica, já que podia e devia ter agido de outro modo, sendo intensa a negligência.
Se bem que à data dos factos o arguido não registasse qualquer condenação, o certo é que pouco depois veio a sofrer duas condenações por tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida.
Sobre as sua condições pessoais sabe-se que é solteiro, regressou aos Açores após haver passado a maior parte da sua vida nos EUA e que desde o acidente não trabalha sendo sustentado pela sua mãe que vive nesse país.
São elevadas as necessidades de prevenção geral dado os elevados índices de sinistralidade com que se defronta o nosso país e que determinam a adopção de medidas susceptíveis de desincentivarem a prática de infracções que, pela sua gravidade, põem em causa a integridade física e a vida de todos os utentes das estradas nacionais.
O arguido confessou parcialmente os factos.
Considerando a moldura penal do crime e ponderando nestas circunstâncias examinadas na sua globalidade, entendemos, com o merecido respeito, que se justifica ser reduzida para um (1) ano e seis (6) meses a pena de prisão fixada na sentença recorrida, que nesta medida se nos afigura mais ajustada à culpa do arguido e satisfaz plenamente às exigências reclamadas pela prevenção especial, que se prende com a capacidade do arguido se deixar influenciar pela pena que lhe é imposta e pela prevenção geral positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à norma violada.
Da suspensão da execução da pena.
O Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, pp.331, define a suspensão da execução da pena como «a mais importante das penas de substituição», não apenas pela frequência com que é aplicada mas também pelo lato âmbito de aplicação que comporta.
Para a sua aplicação, a lei (art.50º, do CP), exige a verificação de um requisito objectivo – condenação em pena de prisão não superior a 3 anos – e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político – criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
Trata-se, neste caso, da alcançar a socialização, prevenindo a reincidência.
Nos termos do nº1 do citado art.50º, do C.P, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Neste âmbito sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.
Estão aqui em questão, não considerações sobre a culpa mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
Depois de se optar por uma pena detentiva não superior a 3 anos, há que determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada.
E aqui a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto - prevenção do cometimento de novos crimes, deve negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.
Convém ainda ter na devida conta que “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização – a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pois, estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise” (ob. citada, pag.344).
Em jeito de remate dir-se-á que se é certo que a socialização do arguido deve ser uma preocupação sempre presente na aplicação de qualquer que seja a pena, ela não é, ao invés do que transparece da motivação do recurso, o objectivo primeiro nessa delicada tarefa, pois há limites inultrapassáveis que importa observar: a socialização não pode sobrelevar a prevenção.
Na verdade, como salienta a Prof. Anabela Rodrigues, Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 12, nº2, pag.182, embora como pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
Descendo ao caso em apreciação, defende o recorrente que a ameaça da pena realiza de forma adequada as finalidades da punição, não sendo de aplicar a pena de prisão efectiva ao recorrente, o qual confessou os factos (como já atrás dissemos apenas parcialmente) e à data da prática destes factos não averbava antecedentes criminais.
A respeito da não suspensão da pena de prisão, o tribunal recorrido entendeu que no estado actual de elevada sinistralidade rodoviária, o fenómeno da criminalidade estradal no nosso país, designadamente ao nível da prática de homicídio com negligência grosseira, como é o caso, as exigências de prevenção geral sob a forma contrafática da confiança da comunidade na norma violada são extremamente acentuadas e que o arguido com o seu comportamento temerário revelou uma personalidade pouco preocupada com a preservação de bens jurídicos fundamentais dos outros e com potencial de perigosidade, o que adicionado às duas condenações que veio a sofrer posteriormente à prática destes factos, pelos crimes de tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida (está actualmente a cumprir pena de prisão) não permitem que se formule um juízo de prognose favorável.
E assim é efectivamente, pelo que desde já se antecipa, que neste conspecto não nos merece qualquer reparo a decisão tomada sobre a não suspensão da pena de prisão que por isso entendemos que deve ser mantida.
Na verdade, a acentuada exigência reclamada pela exigência de prevenção geral, nos termos supramencionados e o focado prognóstico desfavorável que o arguido suscita, impedem que a sua pretensão de suspensão da pena de prisão possa ser acolhida, pois não assegura as finalidades da punição.
Se bem que não se ignore que a pena de prisão por curto período é contestada por algumas correntes de opinião, o certo é que relativamente a certos delinquentes que atentam contra valores fundamentais de subsistência comunitária, contra regras de observância genérica, não se antevê outra alternativa, constituindo a prisão um mal necessário.
È que no enquadramento factual supra descrito, a supressão do direito à vida não pode deixar de demandar intervenção vigorosa do direito penal, não garantindo a suspensão da execução da pena a emenda cívica, a interiorização pelo arguido das consequências dos efeitos gravosos da sua condução e o sentimento da comunidade de reprovação social do crime seria seriamente posto em causa, e contrariaria a orientação jurisprudencial que vem fazendo vencimento no sentido de que havendo culpa grave ou grosseira e exclusiva em caso de homicídio negligente por acidente de viação (como é o caso), impõe-se a aplicação de pena de prisão que não deve ser suspensa na sua execução, salvo se concorrerem razões especiais, que aqui, perante a factualidade sedimentada e atrás transcrita, também não se descortinam.
Neste sentido, entre muito outros e por mais recente, pode ver-se o acórdão do STJ de 25/1/2006, in C J, Acórdãos do STJ, Ano XIV, tomo 1, pags.173 a 176 e a jurisprudência nele mencionada a este propósito.
Pelo exposto e nos termos sobreditos, deverá conceder provimento parcial ao recurso.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos concede-se provimento parcial ao recurso e consequentemente reduz-se a pena principal para um (1) ano e seis (6) meses de prisão, mantendo-se quanto ao mais a douta sentença recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s [arts.513º, nº1 e 514º, nº1 do CPP; 82º, nº1 e 87º, nº1, al.b) do CCJ].