Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
555/15.5SDLSB.L1-3
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: NE BIS IN IDEM
PERDA A FAVOR DO ESTADO
ESTUPEFACIENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:

1. Por força do princípio ne bis in idem, o arguido por crime de tráfico de estupefacientes não pode ser condenado autonomamente pela prática de factos ocorridos num dia compreendido no período de actividade delituosa da mesma natureza, englobando o mesmo tipo de produto estupefaciente e praticado no mesmo espaço geográfico, que foi globalmente apreciada noutro processo onde já ocorreu condenação transitada em julgado.

2. Não tendo ficado estabelecido que a quantia apreendida era o provento da venda de estupefacientes e não podendo o tribunal de recurso estabelecer essa presunção, tal facto isolado não permite que se declare o perdimento da quantia a favor do Estado.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido NBP, solteiro, pedreiro, natural da freguesia de --------------, concelho de Lisboa, nascido a 19/10/1974, filho de RP e de MBP, residente na Rua -------------------, em Lisboa, actualmente, recluso no Estabelecimento Prisional de Caxias, foi julgado e condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A anexa ao mesmo diploma legal na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Foi declarada perdida a favor do Estado a heroína e a quantia monetária apreendida ao arguido NBP (artigo 35.º n.º 2 do Decreto Lei n.º 15/93, de 21/01).

Nos mesmos autos, o co-arguido AL foi absolvido da prática do crime de tráfico de estupefacientes em co-autoria material, pelo qual havia sido pronunciado.


*

Inconformado, o arguido NBP recorreu, apresentando a seguinte síntese conclusiva:

1. O Tribunal Recorrido, ao julgar e condenar o Recorrente pela prática dos factos em apreciação nos presentes autos, exerce duplamente o poder punitivo pela mesma factualidade.

2. Com efeito, o Recorrente foi condenado nos presentes autos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, cujos factos ocorreram em 13 de Junho de 2015.

3. Contudo, o Recorrente, no âmbito do processo n.º 82/15.0JELSB, o qual correu termos na Comarca de Lisboa, Inst. Central, 1.ª Secção Criminal, J16, foi igualmente julgado e condenado em pena de prisão por um crime de tráfico de estupefacientes, imputando-se-lhe neste processo a prática de vários actos delituosos, entre Março de 2015 até ao dia 05 de Agosto de 2015.

4. Ora, encontrando-se em ambos os processos a apreciação de factos imputados ao Recorrente relacionados com a prática do crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo art.º 21.° do Dec-Lei 15/93; existindo uma relação de contemporaneidade entre eles; existindo uma coincidência espacial em ambos os processos (Lisboa, Rua --------- (zona da Av. ------- e Rua -----)); encontrando-se ambos os processos a ser tramitados na mesma secção do DIAP e pela mesma magistrada do Ministério Público, sendo certo que existem inúmeras referências dos presentes autos no processo 82/15.0JELSB; e estando perante uma única resolução criminosa, a qual é manifesta, nenhuma razão objectiva ou subjectiva existe para que o Recorrente seja julgado e condenado em processos distintos.

5. Assim, a decisão recorrida violou o princípio do non bis in idem, previsto no art.º 29.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e, consequentemente, deverá o Recorrente ser absolvido nos presentes autos.

Caso assim se não entenda, embora sem conceder, sempre se dirá

6. O acórdão recorrido padece do vício previsto no art.º 410.°, n.º 2, al. a) do C.P.P., nomeadamente, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

7. Pois, o Tribunal a quo declarou perdida a favor do Estado a quantia de € 385,00 apreendida ao Recorrente, sem que da matéria de facto provada resulte que o aludido montante é produto da actividade delituosa em apreciação nos presentes autos.

8. Ora, a perda de quaisquer bens apreendidos é apenas uma consequência jurídica dos factos provados e na ausência destes, como acontece in casu, não podia o Tribunal recorrido decidir como decidiu.

9. Pelo que não deverá ser declarada perdida a favor do Estado a quantia monetária apreendida ao Recorrente.

10. Por último, entende o Recorrente que os factos provados constantes no Acórdão recorrido são enquadráveis na previsão legal constante do art.º 25.° al. a) do DL n.º 15/93 e não apenas no art.° 21.°, pelo qual o Recorrente foi condenado.

11. Na verdade, estamos perante um caso de pequeno tráfico, bem distante dos casos que envolvem grandes narcotraficantes ou tráfico de grande ou médio vulto.

12. Sendo que a pretensão do legislador ao criar o normativo previsto no art.º 25.° al. a) do DL 15/93, de 22.01, foi precisamente o de consagrar na lei tal distinção, como resulta da Nota Justificativa da Proposta de Lei enviada à Assembleia da República.

13. Assim, no limite, deveria o Recorrente ter sido condenado pela prática do crime previsto no citado art.º 25.° al. a) do Dec-Lei 15/93 de 22 de Fevereiro em pena que, a nosso ver, não deveria, nem deverá ultrapassar os 2 anos de prisão.

14. Pena essa que, atendendo às circunstâncias da prática dos factos, entendemos dever ser suspensa na sua execução, nos termos do disposto no art.° 50.° n.° 1 do Cód. Penal.

15. Ao decidir como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto nos art.ºs 21.° e 25.°, n.º 1 do D.L.15/93, de 22.01, 50.° e 71.°, ambos do Código Penal, 410.°, n.º 2, al. a) do CPP e 29.°, n.º 5 da CRP.

Nestes termos e sempre sem olvidar o douto suprimento de V. Ex.e-, Venerandos Desembargadores, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser o acórdão recorrido substituído por outro que absolva o Recorrente ou, no limite, condene o mesmo pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo art.º 25.º do D.L.15/93, de 22/01, em pena de prisão não superior a 2 anos e suspensa na sua execução por igual período, como é de elementar JUSTIÇA!

Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, concluindo pela procedência parcial do recurso, dizendo, em síntese, não se verificar o pressuposto do caso julgado, ou seja, o trânsito em julgado da decisão, pelo que não se pode concluir pela existência da excepção do caso julgado por violação do ne bis in idem; inexistir insuficiência da matéria de facto para declarar a perda a favor do Estado da quantia de 385,00 Euros apreendida porquanto, tendo ficado provado que o Recorrente destinava a heroína que detinha à venda, é de presumir, face às regras de experiência comum, que a quantia fosse proveniente da venda da droga; e, aceitando que se verifica a diminuição da ilicitude que o art.º 25.º al. a) considera, porém, que a pena deve ser fixada em medida próxima do limite máximo, nos termos fixados pelo Acórdão e nunca em dois anos de prisão, suspensa na sua execução como pretendido.


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O recurso foi admitido.

O Recorrente declarou pretender a realização da audiência especificando pretender ver debatidas todas as questões colocadas à apreciação.

Em exame preliminar o relator consignou que o recurso devia ser julgado em conferência porquanto:

Apesar do Recorrente manifestar o propósito de que o recurso seja decidido em audiência, fundamenta esse pedido de forma genérica “a fim de ver debatidas todas as questões ora colocadas à apreciação”, não requerendo a renovação da prova nem procedendo à especificação dos “pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos” como lhe impõe o art. 411º nº 5 do Código de Processo Penal. Efectivamente, essa referência genérica a “todas as questões” não cumpre a obrigação de especificação exigida pela lei. Por isso, por falta de fundamentação, tendo em atenção que servindo a audiência exactamente para debater esses pontos ou para a renovação da prova, não sendo indicado quais os pontos concretos a debater nem sendo requerida a renovação da prova, a realização de audiência se torna um acto inútil, o acórdão será proferido em conferência, sendo a adequação deste procedimento decidido definitivamente no acórdão a proferir.

A exigência de especificação – concretização – de cada um dos pontos a debater encontra suporte em várias decisões desta Relação, tendo em atenção que esta leitura restritiva se impõe pela circunstância do legislador ter considerado a audiência como «acto processual supérfluo», pois «a experiência demonstrou constituírem pura repetição das motivações» (ver a motivação da proposta de lei 109/X), procurando imprimir celeridade processual e, ponderando que a audiência já constituía um direito renunciável, o legislador consagrou a audiência no tribunal de recurso como uma excepção Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa desta 3ª secção no proc. 51/15.0YUSTR.L1 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, pg. 1118. .

Assim, in casu não se justifica a realização de audiência.


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Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal).

II – FUNDAMENTAÇÃO

As relações reconhecem de facto e de direito (art. 428º do Código de Processo Penal) e, no caso, não foi interposto recurso sobre a matéria de facto.

É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal).


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Sintetizando, são as seguintes as questões a decidir:

1. Violação do princípio ne bis in idem;

2. Perdimento da quantia apreendida;

3. Qualificação jurídica (tráfico de menor gravidade);

4. Medida da pena e suspensão da sua execução.


***

Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada:

MATÉRIA DE FACTO PROVADA

De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 13 de Junho de 2015, pelas 16 horas e 45 minutos, os arguidos AL e NBP encontravam-se no interior do veículo automóvel, de matrícula XX-XX-XX, marca Citroen, modelo Berlingo, de cor branca, a circular no cruzamento entre a Rua Maria Pia e a Rua Guilherme Anjos, nesta cidade de Lisboa.

2. O arguido AL seguia no lugar do condutor, e o arguido NBP, no lugar de pendura.

3. Ao aperceberem-se da presença dos agentes policiais naquele local, o arguido AL efectuou manobra de marcha atrás.

4. Acto contínuo, o arguido NBP saiu do veículo automóvel e, apeado, colocou-se em fuga, no sentido descente da Rua Guilherme Anjos.

5. Durante a fuga, o arguido NBP atirou para o solo:

- dois pequenos sacos contendo, no total 50 embalagens de heroína, com o peso bruto de 25,414 gramas, tendo a amostra cofre o peso liquido de 23,317 gramas, embalagens estas que foram apreendidas pelos agentes da Polícia de Segurança Pública.

6. Submetidos a revista pessoal, foi ainda encontrado na posse do arguido AL a quantia monetária de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros).

7. Na posse do arguido NBP a quantia monetária de € 385,00 (trezentos e oitenta e cinco euros).

8. A heroína apreendida era pertença do arguido NBP.

9. O arguido NBP conhecia a características e natureza estupefaciente do produto que detinha e destinava-o a ceder a terceiros, mediante contrapartida monetária, realizando mais-valias.

10. Agiu, assim, o arguido NBP, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.

(…)

21. Com 17 anos foi condenado a uma pena de prisão de 10 anos e 6 meses de prisão, saiu aos 5/6 da pena com 25 anos.

22. Reingressou ao agregado dos pais, que foram realojados em 1999, no Bairro Social -------------, na morada constante dos autos, e começou a trabalhar com o pai da distribuição de jornais, mas por pouco tempo.

23. Passados 8 meses em liberdade, viria, uma vez mais, a ser condenado a uma pena de prisão de 4 anos e 9 meses, saiu em termo de pena do Estabelecimento Prisional de Lisboa em 2008, regressando novamente ao agregado dos pais.

(…)

38. O arguido NBP tem os seguintes antecedentes criminais:

- por acórdão de 25/03/1993, proferido no âmbito do processo n.º 200/92 da 1.ª Secção do 3.º Juízo Criminal de Lisboa, foi condenado na pena única de 8 anos e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio, p. e p., no artigo 131.º do Código Penal e de um crime de burla, p. e p., no artigo 313.º do Código Penal, por factos ocorridos a 12/02/1992;

- por acórdão de 31/05/1994, proferido no âmbito do processo n.º 386/93 da 2.ª Secção da 3.ª Vara Criminal de Lisboa, foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de roubo, p. e p., no artigo 306.º n.º 1 e n.º 3 alíneas a) e s) do Código Penal, por factos ocorridos a 14/11/1991 e, em cúmulo jurídico com a pena imposta no processo n.º 200/92 foi condenado na pena única de 10 anos e 6 meses de prisão;

- por despacho de 13/07/2000 proferido no âmbito do processo n.º 1816/00-S do 2.º Juízo do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa foi concedida ao arguido liberdade condicional;

- por despacho de 16/12/2002, foi revogada ao arguido a liberdade condicional;

- por acórdão de 22/10/2001, transitado em julgado a 06/01/2001, proferido no âmbito do processo n.º 123/01.9SCLSB da 1.ª Secção da 4.ª Vara Criminal de Lisboa, foi condenado na pena de 4 anos e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01;

- por despacho de 22/02/2006, proferido no âmbito do processo n.º 123/01.9SCLSB da 1.ª Secção da 4.ª Vara Criminal de Lisboa, foi declarada extinta a pena por cumprimento referido ao termo de 02/02/2006;

- por sentença de 28/07/2014, transitada em julgado a 30/09/2014, proferida no âmbito do processo 135/14.2SCLSB da Secção de Pequena Criminalidade da Instância Local do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa, foi condenado na pena de 50 horas de trabalho comunitário, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p., no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01.

MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

De relevante para a discussão da causa não ficaram provados os seguintes factos:

1. Desde, pelo menos Junho de 2013, que os arguidos AL e NBP se vêm dedicando, mediante plano previamente elaborado, em conjugação de esforços e vontades entre si, à venda de heroína, a terceiros, com o intuito de obterem proventos económicos

2. A heroína apreendida era pertença do arguido AL e destina-se a ser, pelos arguidos AL e NBP, comercializada em conjunto e em comunhão de esforços.

3. O arguido AL conhecia as características e natureza estupefaciente do produto que detinha e destinava-a a ceder a terceiros, mediante contrapartida monetária, realizando mais-valias.

4. Agiram, assim, os arguidos AL e NBP, em comunhão e conjugação de esforços, de forma concertada, livre, voluntária e conscientemente.

5. O arguido AL agiu, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.

Sobre o perdimento da quantia apreendida, o acórdão recorrido afirma:

DA PERDA

Por a heroína e as quantias monetárias apreendidas ao arguido NBP eira ser destinada à prática de crime ou produto da prática do mesmo deverão ser declarada perdida a favor do Estado, de acordo com o preceituado no artigo 35.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 21/01.


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O acórdão proferido no proc. 82/15.0JELSB, transitado em julgado em 2.12.2016 assentou nos seguintes factos provados (com pertinência para a questão da violação do princípio ne bis in idem):

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. Desde, pelo menos, Março de 2015 e até ao dia 05 de Agosto de 2015, data em que foi detido e sujeito a prisão preventiva, que o arguido NBP, conhecido por "Néné" e por "Gordo", se vinha dedicando à venda de heroína, de cocaína e de canabis a terceiros, mediante contrapartida económica, em Lisboa.

2. No desenrolar desta actividade, e nesse período, o arguido NBP abasteceu de heroína, de cocaína e de canabis indivíduos que se dedicam, igualmente, à comercialização destes produtos, redistribuindo-os por terceiros, entre eles, o arguido MD, que, igualmente, se vinha dedicando à referida actividade de venda das referidas substâncias, desde, pelo menos, Dezembro de 2014 até ao dia 13 de Julho de 2015, data em que foi detido e sujeito a prisão preventiva.

3. Estas vendas levadas a cabo pelo arguido MD eram efectuadas quer no interior da sua residência, sita na Av. --------------, em Lisboa, quer nos seus arredores.

4. Quando o arguido MD necessitava dos referidos produtos para vender aos clientes que possuía, solicitava-os ao arguido NBP, agendando com este, telefonicamente, encontro, apenas para esse fim.

5. Para se abastecer de heroína, cocaína e canabis, o arguido MD deslocava-se para uma das residências que estavam na disponibilidade do arguido NBP, designadamente para a habitação sita na Rua S ----------- em Lisboa. ou para a residência sita na Rua Q -------------------. em Lisboa, ou para as imediações das mesmas.

6. Durante o referido período de tempo, os arguidos não exerceram qualquer actividade profissional lícita, vivendo exclusivamente dos rendimentos que auferiam com o exercícío da aludida actividade.

7. Por força desta actividade os arguidos utilizaram vários cartões telefónicos. e nas conversas mantidas durante os contactos telefónicos acordavam entre si. e com os respectivos clientes detalhes relativos às transacções dos aludidos produtos. Nomeadamente, quantidades, preços, locais, horas de entrega e qualidade do produto.

(…)

9. Entre outros, foram utilizados pelo arguido NBP os cartões telefónicos com os n.ºs 96--------9 e 96----------6.

10. Nos supra mencionados contactos, os arguidos utilizavam, entre si, e com os seus interlocutores/clientes, uma linguagem codificada para marcar encontros, que se destinavam à transacção dos produtos que efectuavam, bem como para se referirem às quantidades e à qualidade dos mesmos.

11. Os arguidos e os seus interlocutores utilizaram. a título de exemplo. as seguintes expressões: "integral", "tens aquilo que preciso?", "20 para já e depois mais logo 20 ou 25", "dois pacotes", "quantas chaves de fendas precisas?", "café com natas", "levar um coelho dos gordos", "ferramentas", "chaves de bocas", "raquetes", "crianças", "adultos", "bebés crus", "professor" para, conforme referido, se referirem a cocaína e heroína e marcarem os encontros para a sua transacção.

12. No dia 13 de Julho de 2015. pelas 11h46, IC, consumidora de heroína, telefonou ao arguido MD, pedindo-lhe para ir ao seu encontro, para que este lhe pudesse ceder aquele produto, para seu consumo, referindo-se ao mesmo de forma codificada, dizendo que queria "3 ou 4 refeições ".

13. Pedido esse a que o arguido MD acedeu.

(…)

15. Pelas 12h33, o arguido MD saiu da sua residência, deslocou-se à viatura motorizada, de matrícula QQ-QQ-QQ e efectuou uma chamada telefónica para o arguido NBP, com o propósito de ir ao encontro daquele, para se abastecer de heroína.

16. Pelas 12h38, o arguido MD colocou o veículo motorizado em marcha, e subiu pela Av. Das Forças Armadas.

17. Pelas 12h55, o arguido MD efectuou nova chamada telefónica para o arguido NBP, informou-o que já lá estava e disse-lhe que queria "um roquete dos grandes", referindo-se, de forma codificada, a heroína.

18. Pelas 13h19, o arguido MD regressou à sua residência, parqueando o motociclo em frente à mesma.

19. Nessa altura, foi abordado e revistado por Inspectores da PJ, que encontraram na sua posse e apreenderam:

- 1 (uma) embalagem em plástico de cor transparente contendo no seu interior 25 (vinte e cinco) embalagens em plástico transparente, vulgo panfletos, contendo no seu interior Heroína. com o peso de 12.718 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 11.653 gramas;

- 1 (uma) embalagem em plástico transparente, vulgo panfleto, contendo no seu interior Cocaína [cloridrato], com o peso de 0.341 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 0.274 gramas;

(…)

21. No dia 05 de Agosto de 2015, o arguido NBP tinha no interior da sua residência, sita Rua S-----------------, em Lisboa:

- 181 embalagens contendo Heroína, com o peso de 42,155 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 36.887 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 26.5%. o que equivale a 97 doses de consumo diário;

- 128 embalagens de Cocaína [cloridrato], com o peso de 14.291 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 10.684 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 37.2%. o que equivale a 19 doses de consumo diário;

- 6 embalagens de Cocaína (cloridrato), com o peso de 27.536 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 26.800 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 17,4%, o que equivale a 23 doses de consumo diário;

- 1 embalagem de Cocaína [cloridrato), com o peso de 102.010 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 100.830 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 39,4%, o que equivale a 198 doses de consumo diário;

- 5 (cinco) balanças digitais, de precisão;

- Um moinho eléctrico. da marca "Selecline";

- 7 pilhas alcalinas, compatíveis com as balanças acima referidas;

- 10 (dez) máscaras descartáveis anti-poeira da marca 3M, novas, e duas usadas;

- Diversos pedaços/cantos de sacos de plástico transparentes;

- 07 embalagens em plástico transparentes, contendo no seu interior, cada uma, 1000 (mil) sacos de plástico transparentes de dimensões 150X250mm, num total de 7.000 (sete mil) sacos;

- Uma embalagem em plástico idêntica à supra descrita, aberta, contendo no seu interior sacos de plástico transparentes de dimensões 150X250mm;

- 7 (sete) batas protectoras de cor verde com a Ref. 665.610.606;

- A quantia monetária de € 9.050,00 (nove mil e cinquenta euros), em notas do Banco Central Europeu;

- Dois cartões de segurança da "Vodafone";

- Um pedaço de cartão de segurança com o código PIN 4236 e PUK 12132961;

- Uma pen de banda larga de internet móvel da "Vodafone";

- Uma pen drive da marca "Kingston", com a capacidade de 2GB;

- 1 (um) computador portátil da marca Toshiba, modelo PSU9RK - 00H007, com o n.º de série 1A021716R, de cores branco e preto;

- 1 (um) telemóvel dual SIM da marca Nokia, modelo 107, de cor preta, com os IMEI's 352378/06/03724617 e 352378/06/037247/5 e respectiva bateria, contendo no seu interior o cartão SIM da operadora TMN (actual MEO) com a referência 0000519983942;

- 1 (um) telemóvel da marca Samsung, modelo GT-EI200I, de cores branco e preto, com o IMEI n.º 356893/061705107/6 e respectiva bateria, contendo no seu interior o cartão SIM da operadora MEO com a referência 0000592917676;

- Uma televisão da marca "Crown", de 22 polegadas;

- 9 embalagens contendo Heroína, com o peso de 1840,900 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 4,841 gramas e o remanescente 1824,500 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 26.8%, o que equivale a 4903 doses de consumo diário;

- 30 embalagens de cafeína e paracetamol, com o peso de 2948,100 gramas;

- 6 embalagens contendo Heroína, com o peso de 3202,900 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 7,480 gramas e o remanescente 2959,600 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 46.9%. o que equivale a 13916 doses de consumo diário;

- 2 embalagens contendo Heroína, com o peso de 2061,800 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 4,831 gramas e o remanescente 1957,100 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 54.0%. o que equivale a 10597 doses de consumo diário;

- 1 embalagem contendo Heroína, com o peso de 489.600 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 9,353 gramas e o remanescente 479,200 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 54.7%. o que equivale a 2672 doses de consumo diário;

- Dois pequenos pedaços de Canabis (resina), com o peso de 0,610 gramas, tendo a amostra cofre o peso líquido de 0,293 gramas e o remanescente 479,200 gramas, produto esse que apresentava um grau de pureza de 12.5%, o que equivale a 1 dose de consumo diário.

22. Pelas 15h45 do mesmo dia 05 de Agosto, o arguido NBP, tinha ainda, na sua residência sita na Q---------------. em Lisboa:

- A quantia monetária de € 2.200,00 (dois mil e duzentos euros), em notas do Banco Central Europeu;

- Diversos cantos de sacos de plástico transparentes;

- 1 (um) telemóvel da marca Samsung, modelo GT 19060/DS, com os IMEIS 359444/05/413505/5 e 359445/05/413505/2;

- 1 (um) telemóvel da marca Nokia, modelo 520, com o IMEI 358995055424476;

- 1 (um) telemóvel da marca Nokia, de cor preta, sem IMEI visível;

- 1 (uma) torre de computador com o número de série 505094005;

- 1 (uma) embalagem em plástico transparente, contendo Amido e açúcares, com o peso de 1.017 gramas (conforme resultado de exame laboratorial de fls. 1059. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

23. A heroína e cocaína apreendidas ao arguido MD, tinham sido adquiridas por este ao arguido NBP, da forma supra descrita, e destinavam-se a serem vendidos a terceiros.

24. A heroína, cocaína, LSD, Anfetamina, Metadona e canabis apreendidas no interior das residências e na posse dos arguidos eram o remanescente de outras quantidades não apuradas daquelas substâncias e destinavam-se à venda a terceiros.

25. As quantias monetárias e objectos apreendidos aos arguidos tinham sido obtidos com os proventos da actividade de venda de estupefacientes.

26. Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos eram por estes usados nos contactos necessários à comercialização dos referidos produtos. e tinham sido adquiridos com proventos daí resultantes.

27. As balanças de precisão, o moinho, o amido, a cafeína, o paracetamol, o bicarbonato de sódio, o rolo de sacos de plástico, os pedaços/cantos de sacos de plástico transparentes, as embalagens em plástico transparentes, destinavam-se a serem usados pelos arguidos. Respectivamente, na pesagem, para moer, no corte/divisão e no acondicionamento/ embalamento dos produtos que comercializavam, da forma descrita.

28. Os arguidos conheciam a natureza estupefaciente dos produtos que detinham e comercializavam, conforme atrás descrito, e destinavam-nos à venda a terceiros, em comunhão e conjugação de esforços.

29. Ambos os arguidos sabiam que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei.

30. Os arguidos agiram de forma concertada, livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.

E a seguinte motivação cuja transcrição também se mostra pertinente:

(…) a convicção sobre a conduta do arguido NBP, considerada provada, resultou, no tocante à sua ligação com o arguido MD, da apreciação que acima se realizou mas igualmente do que se apreendeu nas habitações que se encontravam na sua disponibilidade. A este propósito importará deixar absolutamente claro que nenhuma dúvida existe sobre a circunstância do arguido usar duas habitações, uma sita na Rua S -----------------, em Lisboa, e a outra, onde habita também a sua família mais próxima, sita na Rua Q ----------------. em Lisboa. A morada da Rua da Q----------- (variando o lado do andar - X.° esquerdo ou direito) é a que surge indicada como habitação do arguido nos registos policiais municipais, dos serviços prisionais e ainda dos serviços de identificação civil (fls. 146/149. 198/199.216 e 239/243). Já que a morada supra referida e sita na Rua S --------------- era também habitação do arguido NBP e estava na sua disponibilidade resulta: da intercepção telefónica correspondente à sessão 187 do alvo 7---0 (telemóvel com o número 96---------6. usado pelo arguido NBP), ouvida em audiência de julgamento, em que se ouve, distintamente, o arguido NBP a encomendar uma pizza, em ligação para uma loja da "Telepizza", pretendendo indicar a morada onde deveria ser entregue a pizza que encomendava e perante alguma hesitação sua. a interlocutora, que aceitava a encomenda, indica a morada da Rua S ------------- esquerdo, Lisboa - certamente porque o arguido já antes teria utilizado o mesmo serviço e o seu contacto teria ficado registado - procedendo o arguido à confirmação daquela morada como sendo aquela em que estava a habitar e onde deveria ser entregue a pizza (vide ainda fls. 426/430 e 443/445); da circunstância da testemunha AS (pessoa que trata do edifício Rua S ------------- esquerdo. Lisboa. tendo-se identificado como genro do anterior proprietário e marido da actual proprietária, mais declarando ser quem procede à manutenção do prédio e que trata dos assuntos referentes aos arrendamentos das habitações nele existentes há mais de dois anos) ter identificado peremptoriamente o arguido NBP (em audiência de julgamento. como já havia feito na fase de inquérito em diligência de reconhecimento pessoal, realizado em total conformidade com o disposto no art. 147.° do Código de Processo Penal- fls. 732/734) como uma das duas pessoas que habitavam a morada em causa há mais de um ano, sendo ainda quem mais frequentemente lhe pagava a renda; da circunstância de ter sido apreendido ao arguido NBP, na morada em causa, o telemóvel com o IMEI 3--------------7. interceptado ao NBP desde 27 de Julho de 2015, e que deu origem ao Alvo 7------------0 (dr. fIs. 481/484); da circunstância do arguido NBP ter sido abordado pelos inspectores da Polícia Judiciária à saída daquela morada, de manhã, à hora, de acordo com as rotinas que evidenciou durante o período em que foi alvo da investigação conduzida na fase de inquérito (de que deu clara nota a inspectora MJM e que se percebem nas transcrições das intercepções correspondentes às sessões 461, 463, 469 e 471 do alvo 74455040), em que normalmente acordava e algum tempo depois saía de casa; à circunstância, evidenciada à saciedade pelas intercepções das comunicações mantidas entre os arguidos, que o arguido NBP tinha dois lugares diferentes (um em baixo. próximo da habitação da sua família, e outro em cima. próximo da habitação que usava na Rua S ----------) em que poderia estar e transaccionar o produto estupefaciente; e, por fim, do relato que os inspectores MF, TC e MJM fizeram dos termos em que decorreu a diligência de busca à residência em apreço, referindo, com relevo, ter sido o próprio arguido, de forma concludente, a indicar o local onde, dentro da residência, se encontrava acondicionado o produto estupefaciente.

Ora, a quantidade de produto estupefaciente (heroína e cocaína) apreendidas na morada do arguido NBP sita na Rua S -----------, bem como a quantidade do "produto de corte" e os demais instrumentos (vulgarmente utilizados. como resulta das mais elementares regras de experiência comum aplicadas a esta actividade. para proceder ao "corte" e acondicionamento individual das doses de heroína e cocaína destinadas à venda a terceiros consumidores) - tal como consta dos autos de apreensão juntos a fls. 481/484 e 514/515, tendo a natureza dos produtos sido comprovada pelos exames toxicológicos de fls. 1042/1043 e 1059 -, não permitem qualquer dúvida sobre a actividade de tráfico do arguido NBP.

Ficou também claro, em face da prova produzida, que o NBP não vendia produto estupefaciente apenas ao arguido MD, procedendo a essa venda a outros, entre os quais se conta a testemunha PV, que o confirmou, afirmando que se deslocava de Sesimbra, duas ou três vezes por semana (levando outros consumidores consigo) a Lisboa, para comprar heroína e cocaína ao arguido NBP (a quem apenas conhecia por "Néné"], mais esclarecendo que contactava com este por via do telemóvel e procedia às respectivas encomendas por linguagem codificada (explanando no seu depoimento a que correspondiam os termos cifrados que eram usados nessas comunicações). Esta testemunha confirmou que enviou as comunicações interceptadas a que correspondem as sessões 53 e 71 do alvo 74812040. E, em tudo idênticas a estas comunicações, interceptaram-se as correspondentes às sessões 14, 15, 94, 117, 208, 350, 368, 586, 588, 604, 1219, 1243 e 1252, mantidas com interlocutores diversos do arguido MD e da testemunha PV.

Firmou-se igualmente a convicção segura de que os bens e quantias apreendidos aos arguidos, que não os produtos estupefacientes e produtos de corte, tinham relação directa com a actividade de tráfico que desenvolviam, destinando-se a operacionalizá-la ou provindo dela, tendo presente a intensidade e exclusividade (tal como resulta da análise global, à luz das regras da experiência, das transcrições das intercepções de comunicações. dos depoimentos dos inspectores que realizaram a investigação. do relato das testemunhas consumidoras de estupefaciente sobre a assiduidade com que procuravam os arguidos, bem como da quantidade de estupefaciente que negociavam – em especial o arguido NBP – e do número de destinatários, acrescendo, no caso do arguido MD. a aceitação de pagamentos em "género". de que será exemplo o equipamento electrónico que havia sido subtraído à testemunha FG. nos termos em que esta deu nota no seu depoimento, e que foi encontrado e apreendido na habitação deste arguido, bem como de toda a restante panóplia de objectos ali apreendidos) com que os arguidos se dedicaram a tal actividade durante o período considerado nos factos provados.


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1.Violação do princípio ne bis in idem

Com a entrada em vigor do actual Código de Processo Penal que não regula a excepção do caso julgado surgiram duas correntes jurisprudenciais. A que considerava aplicáveis os princípios do Código de Processo Penal de 1929 e a que resolvia os problemas suscitados com base as normas de processo civil Sobre a questão, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.1995, no proc. 044385, disponível no site da dgsi.pt e de 4.2.2012, na CJ Ano XII, tomo 1, pg. 202.. Actualmente autonomiza-se o princípio ne bis in idem perante o caso julgado, como parece impor o confronto entre o n.º 5 e o n.º 6 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa (cfr. também o art 4.º nº 1 do Protocolo n° 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais “(Direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez) - 1. Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado”.). Essa autonomização já era visível no acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 15/2009, no qual, para se avaliar da compatibilidade do regime instituído pelo art. 371.º-A com o princípio ne bis in idem, se distingue entre uma dimensão objectiva e subjectiva do caso julgado. A dimensão objectiva pretende proteger «a segurança e a certeza da decisão judicial, a intangibilidade do definitivamente decidido pelo tribunal», enquanto, na vertente subjectiva, está em causa a «protecção do condenado, defendendo-o contra a possibilidade de repetição arbitrário do julgamento, com dupla punição pelo mesmo crime ou condenação após um julgamento absolutório». Ocorreu uma mutação histórica deste princípio que passou de pressuposto processual a princípio estruturante do Estado e deste a direito fundamental. Dessa forma a proibição acabou por ganhar uma dimensão individual que no início se encontrava relativamente diluída no objectivo de garantir a integridade do caso julgado: a de protecção do cidadão contra o excesso punitivo do Estado Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto, Objecto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado, FDL, 2001, pg. 21..

Enquanto o caso julgado visa responder a exigências de certeza e segurança jurídicas, traduzidas na necessidade de o processo ter um fim, e que só poderão ser satisfeitas se a decisão que lhe puser termo for definitiva, o ne bis in idem, por seu lado, tem por ratio a garantia da paz jurídica do cidadão, traduzindo-se numa limitação dos ius puniendi estatal, ao impedir a repetição de um processo contra a mesma pessoa Sobre esta questão, Do caso julgado à definitividade da sentença penal, em http://www.fd.lisboa.ucp.pt..

Por isso, pode-se afirmar que “transcendendo a sua dimensão processual, a proibição do duplo julgamento pelos mesmos factos faz que o conjunto das garantias básicas que rodeiam a pessoa ao longo do processo penal se complemente com o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva” Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.4.2011, no proc. 250/06.6PCLRS.L1-3, disponível no site da DGSI. , conferindo-lhe uma dimensão material e constitucional que ultrapassa a mera perspectiva formal da existência de trânsito em julgado própria da apreciação do caso julgado e pode abarcar também a litispendência Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto, ob. cit, pg. 17..

«A doutrina aponta três vectores da identidade do facto que devem ser tipos em conta, a saber: a identidade do agente, a identidade do facto legalmente descrito e a identidade de bem jurídico agredido. Agente, facto e bem jurídico são os três crivos de identificação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo.

Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é distinto de outro facto submetido, anteriormente ou concomitantemente, a outro processo.

Os três crivos de identidade do facto atrás avançados (agente, facto e bem jurídico) correspondem ao núcleo mais consensual que sobre a matéria se encontra na doutrina. A sua explicitação analítica pode trazer mais alguns elementos que contribuem para tornar mais precisa a comparação entre os factos cuja identidade ou dissemelhança se pretende afirmar» Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto, ob. cit, pg. 25..

Essa identidade pode ser total ou parcial, podendo ocorrer, designadamente, uma relação de consunção: “a identidade do facto pode aferir-se em função das suas componentes básicas ou acessórias, como sejam a identidade de conduta, a identidade de objecto visado por essa conduta, a identidade de consequências (isto é, de resultados tipificados pelo legislador) e a identidade do título de imputação subjectiva. A identidade do facto assim aferida pode ser total ou parcial, consoante se verifique uma correspondência exacta entre todos os elementos da comparação ou apenas entre alguns. O que permite, por seu turno, ponderar as relações de concurso determinadas pela regra lógica da identidade: quando a previsão de um facto abarcar integralmente a previsão doutro facto e a operação não for reversível, teremos uma relação de consunção, em que o primeiro facto consome o segundo” Teresa Pizarro Beleza e Frederico da Costa Pinto, ob. cit, pg. 26. .

Da profusa e pertinente jurisprudência citada pelo Recorrente escolhemos, tal como o Digno Magistrado do Ministério Público na sua resposta, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.6.1998, na CJSTJ, Tomo 3, pg. 167:

“O crime de tráfico de estupefacientes é um crime exaurido no sentido de que a condenação de alguém pela prática desse crime, referida a um determinado período, corresponde a uma apreciação global da actividade delituosa durante esse período, independentemente da falta de consideração de algum ou alguns factos parcelares praticados nessa época. Outros factos desse crime, praticados durante esse período, apesar de não conhecidos ou considerados na condenação anterior estão abrangidos pelo caso julgado que ele formou”.

Para concluirmos que, por força do princípio ne bis in idem o Recorrente tem de ser absolvido da prática do crime em que foi condenado nos presentes autos, porquanto a conduta agora em apreciação é um facto parcelar que integra a actividade delituosa apreciada no proc. 82/15.0JELSB, com decisão já transitada em jugado.

Senão vejamos, concretizando:

Existe identidade de agente (o arguido é o mesmo) e de bem jurídico (o crime é o mesmo).

O facto legalmente descrito nos presentes autos é a posse de 23,317 gramas de heroína, para ser cedida a terceiros mediante contrapartida económica, no dia 13 de Junho de 2015, pelas 16 horas e 45 minutos, no interior de veículo automóvel a circular no cruzamento entre a Rua ----------- e a Rua ----------------, em Lisboa. No proc. 82/15.0JELSB, o facto legalmente descrito é a dedicação à venda de heroína, cocaína e cannabis a terceiros mediante contrapartida económica, desde Março de 2015 até 5.8.2015, em Lisboa, abastecendo indivíduos que também se dedicavam à comercialização desses produtos e tendo consigo nas residências de que tinha a disponibilidade, ambas em Lisboa, no dia 5.8.2015, mais de 7 kg de heroína, de 140 gramas de cocaína e de 11.000 € em dinheiro. Da motivação da decisão de facto decorre que o arguido por vezes se deslocava na cidade de Lisboa para entregar substâncias estupefacientes. Conclui-se que existe identidade parcial do facto legalmente descrito, de tal forma que se pode concluir como no citado acórdão que no proc. 82/15.0JELSB procedeu-se a uma apreciação global da actividade delituosa durante esse período, independentemente da falta de consideração de algum ou alguns factos parcelares praticados nessa época. Outros factos desse crime, praticados durante esse período, como os agora em apreciação, apesar de não conhecidos ou considerados naquela condenação anterior estão abrangidos pelo caso julgado formado.

Com estes fundamentos, por força do princípio ne bis in idem, tem o Recorrente de ser absolvido da prática do crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi julgado nos presentes autos.

2. Perdimento da quantia apreendida

Também em relação a esta questão tem o Recorrente razão. Ficou provado que na sua posse estava a quantia monetária de € 385,00. Porém, não ficou provado nenhum facto que permita estabelecer a proveniência ilícita dessa quantia.

Nos termos do nº 1 do art. 35º do Decreto-Lei 15/93 de 21.1 Artigo 35.º “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”. Porém, não é estabelecida qualquer presunção legal, nem a sentença recorrida fundamenta a razão porque a quantia apreendida deve ser declarada perdida a favor do Estado.

Pretende o Digno Magistrado do Ministério Público na sua resposta que se estabeleça agora a presunção, “face às regras da experiência comum, que a quantia fosse proveniente da venda de droga”. Apesar dessa presunção poder ter sido estabelecida, o tribunal a quo optou por nada dizer, não cumprindo a este tribunal suprir essa eventual lacuna. Cremos que, na senda do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.4.2008, no proc. 07P4197, disponível no site da dgsi.pt, se deve considerar que houve uma mera “imputação genérica” pelo que “falece qualquer base para aplicação do disposto no art. 35.º do DL 15/93, pois a declaração de perda teria subjacente unicamente a prova da anterior conduta imputada de modo difuso, incerto e vago, sendo que neste particular o acórdão nada justificou”, não sendo de considerar a emergência da “nulidade por inobservância do disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP, que aqui não é de considerar em função do afastamento da dita imputação genérica em que se ancorou a declaração deste efeito da condenação”.

Consequentemente, importa nessa parte revogar a decisão recorrida, não declarando o perdimento dos € 385,00.

3 e 4. Demais questões

Face ao supra decidido está prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas à apreciação deste tribunal.


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Em síntese:

1. Por força do princípio ne bis in idem, o arguido por crime de tráfico de estupefacientes não pode ser condenado autonomamente pela prática de factos ocorridos num dia compreendido no período de actividade delituosa da mesma natureza, englobando o mesmo tipo de produto estupefaciente e praticado no mesmo espaço geográfico, que foi globalmente apreciada noutro processo onde já ocorreu condenação transitada em julgado.

2. Não tendo ficado estabelecido que a quantia apreendida era o provento da venda de estupefacientes e não podendo o tribunal de recurso estabelecer essa presunção, tal facto isolado não permite que se declare o perdimento da quantia a favor do Estado.

III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido NBP e, consequentemente:

Por força do princípio ne bis in idem, por força da condenação já transitada em julgado no proc. 82/15.0JELSB, revogar a decisão condenatória e absolver o arguido da prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-A anexa ao mesmo diploma legal pelo qual foi condenado pelo tribunal a quo na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;

Revogar a decisão de perdimento na parte em que declara perdida a favor do Estado a quantia monetária apreendida ao arguido NBP.

Sem custas.


Lisboa, 22 de Fevereiro de 2017
(elaborado, rubricado e revisto pelo relator
e assinado por este e pela Ex.ma Adjunta)

(Jorge Raposo)

(Margarida Ramos de Almeida)