Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
171/06.2TJPRT.L1-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: SEGURO DE VIDA
NULIDADE
ANULABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. O contrato de seguro de vida é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice e, nas partes omissas, pelo disposto no Código Comercial, ou, na falta de previsão deste último diploma, pelo disposto no Código Civil.
2. Configura-se como contrato a favor de terceiro contrato de seguro de vida por via do qual a seguradora assumiu perante o tomador do seguro a obrigação de prestar a uma instituição de crédito determinada quantia.
3. De acordo com o art. 429.º do Código Comercial, é nulo o contrato de seguro celebrado com base em declarações inexactas ou reticentes, desde que possam ter influência na existência ou condições do contrato. Trata-se, no entanto, do vício da anulabilidade, ou nulidade relativa.
4. Não estabelece, a lei, tipicamente, sanção para os comportamentos abusivos de direito, que não são casos de falta de direito, mas antes devem ser configurados como violação do dever jurídico de não actuar em abuso do direito de que se é titular.
5. Enquanto o contrato não estiver cumprido pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via da acção como por via da excepção. É o que resulta do disposto no art. 287º, nº 2 do CCivil.
(sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I - Relatório
J, A e R, instauraram a presente acção declarativa de condenação, sob forma sumária, nos juízos cíveis do Porto, contra G, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes a quantia de 8.638,39, acrescida de juros desde a data de citação.

Tendo sido regularmente citada, a R. impugna vários dos factos alegados e arguiu a sua ilegitimidade para os presentes autos.
Na sua resposta, vieram os AA. requerer ainda a intervenção principal provocada da C, LTD.

A intervenção foi admitida tendo a chamada sido devidamente citada e contestado, arguindo a incompetência territorial do tribunal e alegando essencialmente que a doença da qual a contraente terá falecido já se verificava à data da subscrição do contrato de seguro e que tal implica a sua exclusão contratual, nos termos das condições gerais da apólice de seguro e a nulidade do contrato de seguro por a falecida ter ocultado a doença de que padecia e conduziu ao seu falecimento, bem como o facto de seguir tratamento regular para essa doença.

Declarada a incompetência territorial do Tribunal Cível do Porto foram os autos remetidos ao 6º Juízo Cível de Lisboa.
Resolvidas algumas questões prévias, foi realizada Audiência Preliminar, na qual se indeferiu a ilegitimidade arguida pela R. e, após os debates a que se refere o artigo 508.°-A, do Código do processo Civil, elaborou-se despacho saneador, no qual se organizou a matéria assente e controvertida, não tendo o mesmo sido objecto de quaisquer reclamações.
Finda a fase instrutória, procedeu-se a julgamento com a observância do formalismo legal, tendo o tribunal respondido à matéria de facto da forma exarada no despacho constante dos autos. Deste despacho não houve reclamações.
Foi proferida sentença que julgou a julgo a acção globalmente improcedente, por não provada, e consequentemente absolveu ambas as Rés, G, S. A., e "C", LTD, do pedido efectuado pelos AA.

Inconformados, apelaram os AA. da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. Através da assinatura do contrato de mútuo, que se destinou a financiar a aquisição da viatura Toyota, matrícula OV, R aderiu ao seguro de plano vida, subscrito entre a Ré GE, S.A., na qualidade de tomadora do seguro e a Ré C, Ltd, na qualidade de seguradora.
2. As condições de ilegibilidade, garantias e exclusões do seguro, foram contratadas entre a GE e a C.
3. A Combined, quando aceitou a adesão ao seguro de R, enviou-lhe o certificado de seguro junto a fls. 87.
4. A R não prestou falsas declarações à seguradora, ao não indicar que em 21.08.2001 lhe foi diagnosticado carciomatose peritoneal cuja biópsia confirmou tratar-se de metástese de carcinoma.
5. Pois foram-lhe solicitados documentos por parte da seguradora tendo aquela enviado uma declaração da entidade patronal e recibo de vencimento, onde consta que à data da celebração do contrato de seguro encontrava-se de baixa médica, conforme doc. fls. 13 e 14.
6. Não pode a seguradora prevalecer-se do facto de uma determinada doença apresentar, quando diagnosticada, um determinado estado evolutivo, a partir do momento em que sabe que a pessoa segurada está de baixa médica e aceita celebrar o contrato de seguro sem submeter a interessada a exame médico e sem lhe solicitar informações tidas por pertinentes.
7. A não indicação à seguradora por parte da segurada que em 21.08.2001 lhe foi diagnosticado carciomatose peritoneal é motivo para a seguradora invocar a nulidade do contrato, nos termos do art. 429º do CCom, sendo o vício da anulabilidade sanada mediante confirmação.
8. De todo o modo sempre teria caducado o direito da seguradora invocar tal vício, atento o nº 1 do art. 281º do CCivil, na medida em que decorreu mais de um ano desde a cessação do vício que eventualmente podia servir de fundamento à anulabilidade do contrato (desde a data que a seguradora recebeu a declaração da entidade patronal da tomadora e o recibo de vencimento onde menciona que se encontrava de baixa médica e aceitou celebrar o contrato de seguro).
9. Por isso integra abuso de direito a invocação da nulidade ou anulabilidade do contrato de seguro, com base nas declarações inexactas prestadas pelo tomador aquendo da celebração do contrato, feita apenas quando confrontada, já depois de verificada a morte, com a exigência do segurado do pagamento da indemnização estipulada.

Contra-alegaram as Rés para concluir que a sentença recorrida decidiu acertadamente, estando reunidos os pressupostos fácticos para aplicação do Artigo 429° do Código Comercial, a saber: a declaração inexacta ou a omissão de factos, o conhecimento e consciência de tais inexactidões ou omissões pela segurada e a susceptibilidade de estas influírem na decisão da seguradora em contratar o seguro.
Mais consta do certificado de seguro que “Em todas as garantias não estão cobertas as situações pré-existentes ao contrato de financiamento". Assim, mesmo a admitir-se que o seguro fosse válido, não estaria coberto o sinistro, uma vez que a morte da segurada se deveu a doença pré-existente ao contrato de seguro.
Não merece, por isso, qualquer censura ou reforma a sentença recorrida, que fez correcta aplicação da lei aos factos provados, ao julgar reunidos os pressupostos para aplicação do Artigo 429° do Código Comercial e, em consequência, declarar o contrato de seguro anulado.

Corridos os Vistos legais,
                                   Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, as questões cuja resolução está em causa são as seguintes:
- se o contrato de seguro de vida discutido nos autos, é valido ou inválido.
- se, confirmada a invalidade, a conduta da Ré Seguradora, ao invocar a “nulidade” do contrato integra a figura do abuso de direito.
- se caducou o direito da seguradora invocar a anulabilidade,
tudo com vista a determinar se a Ré Seguradora está investida na obrigação de pagar o capital seguro ainda em dívida.

            II – Fundamentação
            A) Factos provados
            Da matéria dada como assente e das ulteriores respostas dadas à base instrutória resultaram provados os seguintes factos:
1. Foi celebrado entre a Ré "GE" e R, em 26/02/2004, o contrato de mútuo junto a fls. 18 que se destinou a financiar a aquisição da viatura "Toyot Yaris" de matrícula OV.
2. Através da assinatura do contrato de mútuo referido em A), R aderiu a um seguro de plano Vida regulado pela Apólice de Seguro de Grupo n° 0000. A subscrita entre a Ré, G, IFIC, na qualidade de tomadora do seguro, e a Ré-interveniente na qualidade de seguradora.
3. As condições de elegibilidade, garantias e exclusões do seguro foram contratadas entre a Ré e a Ré-interveniente.
4. Os prémios de seguro a pagar pelos segurados foram estabelecido pela seguradora na condição dos segurados preencherem as condições de elegibilidade – boa saúde à data de adesão e inexistência de controlo médico regular.
5. De acordo com a cláusula 11° do contrato referido em A), foi comunicado aos mutuários que apenas poderiam aderir ao seguro referido em B) se à data da celebração do contrato gozassem de boa saúde e não estivessem sob controlo médico regular devido a acidente ou doença.
6. R faleceu em 19/05/2005.
7. De acordo com o que consta no certificado de óbito junto a fls. 27, R faleceu de carcinoma ovário com metáteses pulmonares e carcinomatose peritoneal, e o tempo aproximado entre o início da doença e a morte, terá sido de 14 meses.
8. O A. J enviou à Ré-interveniente a participação de sinistro vida junta a fls. 25 que contém um relatório médico subscrito pela Dr. L, do qual consta, nomeadamente: "2. Diagnóstico preciso da causa da morte: Carcinoma ovárico com metástases pulmunares e carcinomatose peritoneal Manifestações: ascite, dispneia, dores, emagrecimento data em que ocorreram: progressivas data de diagnóstico: Março de 2004".
9. Em 10/11/2005, os AA. enviaram à Ré-interveniente um relatório médico do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil datado de 15/09/2005, cuja cópia consta de fls. 92, do qual consta que R "realizou fora do IPO uma colecistectomia laparoscópia tendo-se detectado no acto cirúrgico um processo de carcinomatose peritoneal cuja biopsia confirmou metástase de carcinoma. Nessa altura e após estudos cuidadosos chegou-se à conclusão de que a carcinomatose era provavelmente de origem ovárica (...)".
10. Os Autores enviaram ainda á Ré-interveniente a declaração assinada pelo médico Dr. J, que consta de fls. 95.
11. A pedido da Interveniente, o Mandatário dos AA. enviou-lhe a declaração do Hospital Veneranda Ordem Terceira de São Francisco, que se encontra a fls. 98, que refere que Regina Freitas esteve internada para efectuar intervenção cirúrgica em 21/09/2001.
12. Por carta datada de 15/12/2005, cuja cópia se encontra a fls. 29, a Interveniente comunicou ao 1° Autor que "após análise deste processo, verificamos que à data de inicio do contrato a Pessoa Segura não se encontrava de boa saúde, pelo que ão haverá lugar a qualquer indemnização".
13. À data do óbito referido na alínea F), encontrava-se em dívida à R. por conta do contrato referido em A) a quantia de 7.052,70.
14. Os Autores continuam a proceder ao pagamento das prestações mensais do contrato de mútuo.
15. A Ré-interveniente quando aceitou a adesão ao seguro de R enviou-lhe o certificado de seguro junto a fls. 87, donde consta nomeadamente que "em todas as garantias não estão cobertas as situações pré-existentes ao contrato de financiamento".
16. R já padecia de doença quando aderiu em 26/02/2004 ao seguro. A carcinomatose de que padecia R foi detectada em 21/09/2001, na cirurgia referida em E).
17. R à data de adesão ao seguro, já sabia que lhe tinha sido diagnosticado - em 21/09/2001 - carciomatose peritoneal cuja biopsia confirmou tratar-se de metástese de carcinoma.
18. E seguia controlo médico regular.
19. Se a Interveniente soubesse que à data de adesão R não estava de boa saúde e seguia controlo médico regular não tinha aceite a adesão ao seguro.
20. Todos os documentos solicitados pela Ré "GE" aos mutuários para a celebração do contrato de financiamento referido em A) foram por estes entregues.
21. A mutuária R remeteu à Ré "GE" os documentos junto a fls. 13 e 14 dos autos onde consta que se encontrava de baixa médica.

B) O Direito
1. Do contrato de adesão
Através da assinatura do contrato de mútuo, para aquisição de uma viatura automóvel, R aderiu, na qualidade de tomadora de seguro, em 26.2.2004, a um seguro de plano Vida regulado pela Apólice de Seguro de Grupo n.° 0000. Os prémios de seguro a pagar pelos segurados foram estabelecidos pela seguradora na condição dos segurados preencherem as condições de elegibilidade – boa saúde à data de adesão e inexistência de controlo médico regular. Da cláusula 11° do contrato consta que os mutuários apenas poderiam aderir, se à data da celebração do contrato gozassem de boa saúde e não estivessem sob controlo médico regular devido a acidente ou doença.
Dizem os Apelantes que as condições de elegibilidade das garantias e exclusões invocadas pela Ré não fazem parte do contrato pelo que não têm qualquer relevância.

1.1. O contrato de seguro em relação ao qual o segurado apenas tem a opção de aceitar ou rejeitar em bloco o conteúdo contratual que lhe é proposto, dentro do tipo contratual desejado pelas partes, exprime a estipulação de contrato de adesão.
Na situação em apreço, a Seguradora é a R. C a Tomadora do Seguro é a Ré GE e a falecida R aderiu ao seguro na qualidade de Segurada ou Pessoa Segura. A Apólice de Seguro de Grupo foi contratada entre a Tomadora GE e a Seguradora C e os mutuários assinam a proposta de contrato de mútuo com indicação que aderem ao seguro. A Seguradora quando aceita a adesão ao seguro envia para cada mutuário o certificado de seguro.
Nos termos do art. 1º do DL. 446/85, de 25.10, com a actualização prevista no DL. 220/95, de 31.9, o regime das cláusulas contratuais gerais aplica-se às cláusulas que não resultaram de prévia negociação particular, individual.
Com vista ao controlo da inclusão das referidas cláusulas gerais nos contratos singulares, a lei exige o cumprimento dos deveres de comunicação e informação das mesmas perante aquele (art. 5° do Dec. Lei n.o 446/85 de 25/10)[1]. Por sua vez, o art. 8º do DL 446/85 estabelece que a inobservância dos deveres de comunicação e de informação determina que se considerem excluídas do contrato as referidas cláusulas gerais.

1.2. No caso dos autos, porém, não assiste razão aos Recorrentes, no que tange à exclusão das clásulas em causa.
Por um lado, nada foi referido, na petição inicial ou na resposta à contestação, sobre o desconhecimento, só agora alegado, de determinadas cláusulas, sendo certo que em sede de recurso não podem ser conhecidos e apreciados factos novos.
Com efeito, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. São meios para obter o reexame de questões já eficazmente submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida – em termos processuais idóneos, ou como tal acolhidos – ao exame do tribunal de que se recorre[2].
Ademais, decorre do ponto 5 dos factos provados, que as condições de elegibilidade das garantias e exclusões invocadas, foram comunicadas à mutuária. Ora, os Apelantes não atacaram a decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente o ponto 5º dos factos provados, sobre os quais deve recair a solução de direito.
Assim sendo, ter-se-á como assente que, de acordo com a cláusula 11ª, do contrato, foi comunicado, além do mais que a mutuária apenas podia aderir ao seguro se à data da celebração do contrato gozasse de boa saúde e não estivesse sob controlo médico regular devido a acidente ou doença. Logo, a mutuária teve conhecimento de que, para a seguradora, o estado de saúde da aderente era essencial à vontade de contratar.

2. Da invalidade do contrato: declarações inexactas
Os AA., aqui Apelantes continuam a defender não haver fundamento para a anulação do contrato de seguro porquanto a falecida Regina não prestou falsas declarações ao omitir que, em 21.08.2001, lhe foi diagnosticado carciomatose peritoneal cuja biópsia confirmou tratar-se de metástese de carcinoma, já que enviou à seguradora uma declaração da entidade patronal e recibo de vencimento, onde consta que à data da celebração do contrato de seguro se encontrava de baixa médica. No entendimento dos Apelantes, admitindo que a seguradora possa invocar a anulabilidade do contrato, nos termos do art. 429º do CCom, este vício está sanado mediante confirmação, nessas condições, não estando a seguradora dispensada de procurar averiguar o motivo de baixa médica da tomadora.

2.1. Não se questiona estarmos perante um contrato de seguro de vida, verdadeiro contrato a favor de terceiro, tendo como tomador/promissário a falecida Regina, como promitente a Ré Seguradora e como beneficiário o Banco mutuante, agora substituído pelos AA..
Também não está em causa a aplicabilidade do regime previsto no art. 429º C. Comercial quanto à existência de omissões ou reticências susceptíveis de determinarem a invalidade do contrato de seguro, invalidade que hoje é geralmente qualificada como anulabilidade e sujeita ao respectivo regime legal, como se refere no acórdão recorrido.
De acordo com o artigo 429.º do Código Comercial[3], “toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado, ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, tornam o seguro nulo.”
Não obstante a terminologia legal, a doutrina e a jurisprudência[4] vêm assinalando que a natureza particular dos interesses em jogo e a inexistência de violação de qualquer norma imperativa determinam que deva ser a anulabilidade a consequência ou a sanção ligada à emissão de declarações inexactas ou reticentes do segurado, susceptíveis de influírem na existência ou condições do contrato de seguro.
Como refere o acórdão do STJ de 02 de Dezembro de 2008[5] o “acenado novo regime (Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril) já consagra, expressamente, a anulabilidade do contrato de seguro, embora limitando-a ao incumprimento doloso (artigo 25.º, n.º1) dos deveres de declaração exacta. Será igualmente anulável o contrato, mas num prazo restrito, ou convalidado ou alterado por declaração do segurador se o incumprimento for negligente (artigo 26.º, n.º 1), tendo este, se entretanto ocorrer o sinistro a faculdade de reduzir a cobertura ou de pedir a anulação, devolvendo o prédio (n.º 4 do artigo 26.º)”.

2.2. Prevê o transcrito art. 429º do CCom, duas distintas realidades: a "declaração", que se traduz na informação dada sobre os factos ou circunstâncias nele previstas e a "reticência", que referencia a sua omissão ou ocultação.
No entanto, não é qualquer declaração inexacta ou reticente que desencadeia a possibilidade de anulação do seguro.
Como refere Cunha Gonçalves, é indispensável que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria ou teria contratado em diversas condições se as conhecesse[6]. Isto significa que apenas são relevantes as declarações inexactas ou reticentes respeitantes a factos ou circunstâncias que servem para a exacta apreciação do risco.
No que tange ao ónus da prova cabe ao segurador o ónus da prova de que o contrato não se teria realizado ou que, a realizar-se, teria tido outras condições[7].
Por outro lado, não se exigindo que o declarante tenha agido com dolo, sendo suficiente que a omissão ou a declaração inexacta se devam a culpa daquele - o que resulta do disposto no § único do citado art. 429º - é, todavia, necessário que o segurado ou o tomador tenha conhecimento dos factos ou circunstâncias inexactamente declaradas ou omitidas. A lei exige que se trate de "circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro" - só neste caso é que o seguro é anulável. E esse conhecimento deve, obviamente, reportar-se ao momento da subscrição da proposta contratual.
E como faz notar o acórdão do STJ de 30 de Outubro de 2007, já citado, “incidindo sobre a própria formação do contrato, as declarações falsas ou as omissões relevantes impedem a formação da vontade real da contraparte (seguradora), pois que essa formação assenta em factos ou circunstâncias ignoradas, por não reveladas ou deficientemente reveladas. Daí que, como resulta do preceito legal e é entendimento corrente, não é necessário que as declarações ou omissões influam efectivamente sobre a celebração ou condições contratuais fixadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato.” [8]

A sanção do artigo 429.º do Código Comercial mais não é do que a previsão de um caso de erro como vício de vontade. Neste tipo de erro não há uma desconformidade entre a declaração e a vontade real, como acontece no erro obstáculo, antes uma coincidência entre o querido e o declarado mas a declaração é consequência de uma errónea representação da realidade, pois que existe uma ignorância ou uma falsa ideia por parte do declarante, “acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado de coisas não teria querido o negócio ou, pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu.”[9].

2.3. Na situação concreta, provou-se, entre o mais que, a falecida à data de adesão ao seguro, em 26.2.2004, sabia que lhe tinha sido diagnosticado, já em 21/09/2001, carciomatose peritoneal cuja biopsia confirmou tratar-se de metástese de carcinoma, sendo certo que seguia tratamento médico regular. Também se provou que se a Interveniente soubesse que à data de adesão aquela não estava de boa saúde e seguia controlo médico regular não tinha aceite a adesão ao seguro.
Ora, como refere a sentença recorrida, “dúvidas não restam que a doença que padecia a falecida era grave e de que mesma quando celebrou o seguro já há muito que o sabia, sendo certo que efectuava tratamento regular para a mesma doença desde o seu diagnóstico, pelo que ao celebrar os contratos em causa, a falecida omitiu efectivamente factos relevantes de que tinha conhecimento, reticências essas que influenciavam determinantemente o risco”.
Deste modo estão provados, todos os pressupostos fácticos para a aplicação do Artigo 429° do Código Comercial, na redacção vigente à data da adesão ao seguro e do sinistro, o que, aliás, os próprios Recorrentes admitem.

3. Da confirmação
E o facto da falecida ter enviado todos os documentos que lhe foram solicitados para conclusão dos contratos e aí constar que se encontrava de baixa, não pode inverter a sua obrigação de, face às circunstâncias especiais referentes à sua saúde e a natureza do seguro, ter informado as Rés/Apeladas, de tal ocorrência.
Ademais, tal como resulta da própria petição inicial, foi a financeira GE que solicitou o envio da declaração da entidade patronal da mutuária, o comprovativo do IRS e a cópia do recibo de vencimento. Estava em causa a análise e concessão do crédito.
Ora, da declaração da entidade patronal enviada consta, no último parágrafo que no momento em que a declaração foi emitida, a funcionária “se encontra na situação de incapacidade temporária para o trabalho (Baixa)”[10]. Com o dito documento pretendia-se, tão só, atestar que a Mutuária era funcionária da INESC. Não se trata de documento subscrito por médico, não constando qualquer referência quer à doença quer ao período de incapacidade. E como se afirma na sentença recorrida, a baixa poderia dever-se, por exemplo, a uma simples gripe, pelo que não era exigível à Ré que, por causa disso, exigisse relatórios médicos ou concluísse que a falecida padecia de doença grave.
Para que a adesão ao contrato de seguro se concretizasse, bastava que os mutuários satisfizessem as condições de elegibilidade constantes do contrato: boa saúde à data de adesão e não estarem sob controlo médico regular devido a acidente ou doença, sendo certo que a Mutuária não ignorava que não se encontrava de boa saúde.
            Ora, o contrato de seguro é um contrato assente na boa fé pois que o segurador, quer na sua decisão de assumir os riscos quer na determinação do prémio, confia no segurado, nas informações deste na declaração inicial do risco, devendo este declarar todas as circunstâncias relativas à probabilidade do risco e à amplitude das suas consequências.
No ramo Vida a declaração do risco consistirá fundamentalmente na informação relativa ao estado de saúde da pessoa a segurar”[11].Cabe, por isso, ao segurado revelar as condições concretas sobre a sua saúde.
No caso, a Mutuária aderiu e aceitou as condições do seguro e conhecia as condições de elegibilidade/adesão para o seguro, sabendo, no entanto, ao aderir ao seguro, que não satisfazia as condições de elegibilidade ao mesmo por sofrer de doença (grave) já diagnosticada.
A Seguradora quando aceitou a adesão ao seguro e enviou à falecida segurada o certificado de seguro confiou nas declarações da Segurada, isto é, que esta preenchia as condições de elegibilidade. A Ré Seguradora não sanou mediante confirmação o acto anulável, limitando-se a aceitar o contrato de seguro porque a Segurada declarou preencher as condições e adesão ao mesmo, omitindo o diagnóstico que não podia deixar de ignorar, facto da maior relevância para a seguradora poder avaliar da natureza e extensão do risco que estava a assumir ao celebrar este tipo de seguro.
É do conhecimento geral das pessoas medianamente informadas, realidade que se tem por adquirida em conformidade com o nº 1 do art. 514º CPCivil, que a doença de que padecia implicava cuidados e tratamentos especiais e um acompanhamento médico assíduo e era suficientemente grave e melindrosa e, por isso, a falecida não a podia omitir, fazendo crer que gozava de boa saúde.
E o fornecimento destes elementos era essencial para a seguradora fazer uma avaliação do risco que iria assumir com a celebração do contrato. Tanto assim que, como ficou provado, se tivesse tido conhecimento da doença, não teria aceite a celebração do contrato de seguro.
Em suma, o tomador tem a obrigação de declarar o que deve conhecer, em termos de normalidade de vida. Omitindo a grave patologia de que sofria, a Segurada criou uma situação viciadora do circulo lógico.
Houve, portanto, declarações inexactas e omissão de elementos essenciais para apreciação do risco que a seguradora assumiu, o que acarreta, conforme decidido, a anulabilidade do contrato.

4. Do Abuso de direito
Alegam, também, os Recorrentes que a invocação da nulidade do contrato de seguro, com base nas declarações inexactas prestadas pelo tomador, feita pela seguradora apenas quando confrontada, já depois de verificada a morte, com a exigência do segurado do pagamento da indemnização estipulada, integra abuso de direito
Na figura do abuso do direito, existe um direito, que nas concretas circunstâncias em que é exercido pelo seu titular, merece reprovação no plano ético-jurídico se violar não só os princípios da boa-fé, que é exigida socialmente, mas também quando o concreto proceder colide com o fim económico e social do direito (cfr. art. 334º do Código Civil),
O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante[12].
A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou – “venire contra factum proprium”.
Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito que afectou o Autor, importa demonstrar factos, através dos quais se possa considerar que a Ré ao exercê-lo, excedeu, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que com a sua actuação, violou sérias expectativas incutidas no Autor, assim traindo o investimento na confiança, o que exprime violação da regra da boa-fé.

Porém, do que se deixou dito, a propósito da formação do contrato, resulta a sem razão dos AA.
Na verdade, a Seguradora nunca chegou a formar uma vontade de aceitação do contrato, pois que não teve oportunidade de nela considerar, emitindo a correspondente declaração negocial, os factos que lhe foram omitidos. O contrato que declarou aceitar incidia sobre objecto não coincidente com o previsto na declaração de aceitação, pois que não supunha padecer a Segurada de carcinoma.
Neste aspecto, demonstrado, como vem, que se a R. soubesse da doença de que padecia a segurada e do diagnóstico já efectuado em 2001, não teria aceite segurá-la, fere de morte qualquer pretensão que encontre suporte no equilíbrio de prestações, nas vicissitudes do desenvolvimento do contrato e na relação entre o facto omitido e a causa da morte.
Digamos que a conduta dos contraentes na formação do contrato, nomeadamente no campo boa fé das respectivas declarações contratuais, a que seguradora e tomador do seguro estão especialmente vinculados, não está demonstrada em relação à falecida, nada havendo a apontar, atenta a factualidade provada, quanto ao comportamento da Seguradora Recorrida, que tem de se presumir de boa fé.
Esse o alcance que se retira do que vem sendo afirmado, no tocante à aplicação do art. 429º C. Não ocorre, pois, a invocada excepção do abuso de direito[13].

5. Da caducidade
Alegam, ainda, os Recorentes que sempre teria caducado o direito da seguradora invocar a anulabilidade, na medida em que decorreu mais de um ano desde a cessação do vício que eventualmente podia servir de fundamento à anulabilidade do contrato (desde a data que a seguradora recebeu a declaração da entidade patronal da tomadora e o recibo de vencimento onde menciona que se encontrava de baixa médica e aceitou celebrar o contrato de seguro).
Em causa está, pois, a regra contida no nº 1 do art. 287º do CCivil.
Porém, há que ter presente o nº 2 daquele Artigo 287°, segundo o qual, enquanto “o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via da acção como por via da excepção". Na verdade, atenta a matéria provada, após o falecimento da Segurada, o Apelante e marido, informou a Recorrida do óbito para que esta assumisse o pagamento das prestações da operação financeira ainda em dívida à Ré GE. Em resposta, a Seguradora Recorrida informou que a reclamação apresentada por aquele não dava origem a indemnização, uma vez que a segurada, à data da celebração do contrato de financiamento (e portanto do seguro), já não se encontrava de boa saúde.
Donde, para efeitos do art. 287° nº 2, o negócio (contrato de seguro) não foi até hoje cumprido porque, na perspectiva da Seguradora, o óbito não deu origem ao pagamento de qualquer indemnização. Logo, o prazo de um ano referido no Artigo 287°, nº 1, não é aplicável ao caso dos autos, não tendo caducado o direito da Ré Seguradora arguir, como arguiu, a anulabilidade (ou nulidade relativa) do seguro.

Concluindo:
1. O contrato de seguro de vida é essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice e, nas partes omissas, pelo disposto no Código Comercial, ou, na falta de previsão deste último diploma, pelo disposto no Código Civil.
2. Configura-se como contrato a favor de terceiro contrato de seguro de vida por via do qual a seguradora assumiu perante o tomador do seguro a obrigação de prestar a uma instituição de crédito determinada quantia.
3. De acordo com o art. 429.º do Código Comercial, é nulo o contrato de seguro celebrado com base em declarações inexactas ou reticentes, desde que possam ter influência na existência ou condições do contrato. Trata-se, no entanto, do vício da anulabilidade, ou nulidade relativa.
4. Não estabelece, a lei, tipicamente, sanção para os comportamentos abusivos de direito, que não são casos de falta de direito, mas antes devem ser configurados como violação do dever jurídico de não actuar em abuso do direito de que se é titular.
5. Enquanto o contrato não estiver cumprido pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via da acção como por via da excepção. É o que resulta do disposto no art. 287º, nº 2 do CCivil.

IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar improcedente a apelação, assim confirmando a sentença recorrida.
            Custas pelos Apelantes.
Lisboa, 26 de Março de 2009.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
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[1] Almeida Costa e Menezes Cordeiro in "Cláusulas Contratuais Gerais, anotação ao Dec. Lei n° 446/85 de 25/10, pág. 25.
[2] Vide, por todos os Acs. do STJ de 03/11/2005 (Ferreira Girão) e de 15/12/2005 (Salvador da Costa), consultáveis em www.dgsi.pt/jstj e desta Relação, de 28.2.2008 ((Ezagüy Martins), www.dgsi.pt/jtrl.
[3] O Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que entrou em vigor em 1.1.2009, inaplicável ao caso dos autos, aprovou o novo regime jurídico do contrato de seguro. O art. 429º do CCom foi substituído pelo art. 6º, nº 2 a) do citado Decreto-Lei.
[4] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 610; Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, pág. 61. Entre outros, vide Acs. do STJ de 03.03.98 in CJSTJ VI, 1, 103 e de 30 Outubro 2007 (Alves Velho) in www.
[5] Ac. STJ de 02 de Dezembro de 2008 (Sebastião Povoas), www.dgsi.pt
[6] Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, vol. II, págs. 540-541. Igualmente, Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, pag. 65.
[7] Vasques Dinis, Contrato de Seguro, pag.. 225.
[8] Ac. STJ de 30.10.2007 (Alves Velho), www.dgsi.pt/jstj.
[9] Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, II, Reimpressão, 1992, pág. 233.
[10] Cfr. cópia de documento designado de “ Declaração”, junto a fls. 14 dos autos.
[11] José Vasques, Contrato de Seguro. Notas para uma Teoria Geral”, 1999, cit., p. 213.
[12] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536.
[13] Neste sentido o já citado Ac. STJ de 30 Outubro 2007 (Alves Velho), www.dgsi.pt