Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5572/06-5
Relator: SIMÕES DE CARVALHO
Descritores: COMISSÃO POR OMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1. Na comissão por omissão, a definição da posição de garante decorre da valoração global das circunstâncias em que tem lugar a omissão que permitem constatar que o agente não levou a cabo uma actuação que traduzia as expectativas sociais no caso concreto, tendo em conta a posição particular que ocupava em relação aos bens jurídicos.
2. De todo o modo, não se tendo apurado que o arguido soubesse ou sequer conhecesse o estado em que ficara colocado e instalado o esquentador, designadamente por, em situações anteriores, terem surgido episódios que o levassem a considerar que algo não estaria correctamente efectuado, não se afigura, também, de acordo com a normalidade da vida, expectar que o serviço desempenhado não tivesse sido o pretendido pelo próprio e, muito menos, assacar-lhe o resultado pela manutenção de uma fonte de perigo que este desconhecia, fazendo-se apelo a uma esbatida relação de proximidade entre o arguido e o bem jurídico protegido, baseada em nada mais do que na simples circunstância de ser ele quem disso exclusivamente retirava vantagens.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

No processo comum colectivo n.º 353/03.9GASSB do Tribunal Judicial de Sesimbra, por acórdão de 07-03-2006 (cfr. 595 a 623), no que agora interessa, foi decidido:

«Termos em que, considerando todo o exposto, decide este Colectivo de Juízes, em nome do povo:
I – Quanto à acção penal:
1- Julgar a acusação improcedente por não provada, absolvendo o arguido J., da prática dos ilícitos que lhe vinham imputados.
2- Tributação a cargo do assistente em taxa de justiça, de acordo com o preceituado no art. 515° n° l, al. a) do Código de Processo Penal, sem prejuízo do apoio beneficiário de que beneficia.
II – Quanto ao enxerto cível:
1- Ao abrigo das regras legais supra enunciadas, julgando-se os formulados pedidos de indemnização civil pelos Assistente e Demandante M.S.. e pelo Instituto de Solidariedade Social improcedentes por não provados, deles se absolvem o arguido e ora demandado.
2- As custas cíveis serão pagas pelos demandantes, sem prejuízo da isenção de que goza o CNP e do benefício do apoio judiciário de que goza o Assistente.
Notifique e Deposite o presente Acórdão.»

O Mº Pº não aceitou esta decisão e dela recorreu (cfr. fls. 629 a 647), extraindo da motivação as seguintes conclusões:

(…)

Admitido o recurso (cfr. fls. 673), e efectuadas as necessárias notificações, nem o arguido nem o assistente apresentaram qualquer resposta.

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista no processo (cfr. fls. 1119), relegando o seu parecer para audiência.

Proferido o despacho preliminar e não havendo quaisquer questões a decidir em conferência, prosseguiram os autos, após os vistos dos Exm.ºs Desembargadores Adjuntos, para julgamento em audiência, nos termos dos Art.ºs 419º e 421º do C.P.Penal.

Realizado o julgamento com observância do formalismo legal, cumpre agora apreciar e decidir.
*

O objecto do recurso, em face das conclusões da respectiva motivação, reporta-se às seguintes questões restritas à parte crime:
1 - Possível existência do vício previsto no Art.º 410°, n.° 2, alínea a) do C.P.Penal;
2 - Eventual violação do consagrado no Art.° 410°, n.° 2, alínea b) do C.P.Penal;
3 - Suposta ocorrência do vício estatuído no Art.° 410°, n.° 2, alínea c) do C.P.Penal;
4 - Pretenso desrespeito pelas normas vertidas nos Art.ºs 10º e 137º do C Penal, bem como no Art.º 13º do Decreto-Lei n.º 521/99 de 10 de Dezembro e nos pontos 1, 5, 6 e 7 da Portaria n.º 987/93 de 6 de Outubro, o que se revela susceptível de considerar pacífica a posição de garante do arguido no que diz respeito ao caso em apreciação.
Quanto à parte cível, tem, pois, de se entender que o acórdão recorrido já transitou em julgado, porque os demandantes não interpuseram recurso.

No que ora interessa, é do seguinte teor o acórdão em causa:

«II – Fundamentação de Facto
A) Factos Provados
Com relevância para a decisão de mérito, considera o Tribunal assentes os seguintes factos:
1) O arguido é proprietário do estabelecimento comercial de cafetaria e pastelaria denominado "O A.".
2) Na qualidade de proprietário daquele estabelecimento comercial, acordou por intermédio de sua esposa com T. que esta procederia à limpeza da aludida pastelaria, o que faria todas as quartas-feiras, dia de encerramento, para descanso, do aludido estabelecimento, ajustando o início do trabalho para dia 10 de Setembro de 2003.
3) No dia 09 de Setembro de 2003, terça-feira, cerca da 19.00 - 19.30, o arguido procedeu à entrega das chaves da referida pastelaria, a T..
4) Nesse mesmo dia 09 de Setembro, a hora não concretamente apurada, mas sempre depois das 20.00 horas e antes das 23.00 horas, a T., munida das respectivas chaves, deslocou-se à pastelaria "O A.", com o objectivo de proceder à limpeza da mesma.
5) Àquela hora a pastelaria encontrava-se encerrada e a T. fazia-se acompanhar da sua filha L.S..
6) Era o seu primeiro dia de trabalho.
7) Ao chegarem à pastelaria entraram no seu interior, a T. fechou a porta à chave e iniciou a limpeza da mesma.
8) Naquele estabelecimento existia um esquentador de marca Vulcano, com 14 anos de idade, que o arguido mandou instalar por um técnico do estabelecimento onde foi adquirido.
9) Que, durante esse período, não foi submetido a qualquer acção de manutenção ou de limpeza.
10) O referido esquentador não dispunha de conduta de evacuação/ventilação que permitisse a saída para o exterior do gás tóxico – monóxido de carbono (CO) libertado pela combustão do gás butano proveniente do funcionamento daquele esquentador.
11) Dado não ter sido realizado o orifício para a evacuação do gás tóxico na respectiva conduta.
12) O esquentador encontrava-se ligado através de uma conduta de evacuação à conduta de extracção da hotte, encontrando-se a ligação da conduta de evacuação ao próprio esquentador, como a ligação da conduta de evacuação à extracção da hotte, realizada com fita de alumínio.
13) Não existia qualquer tipo de ligação entre a conduta de evacuação do esquentador e a conduta de evacuação proveniente da hotte.
14) Igualmente o sistema de extracção de fumos e cheiros (ventax) encontrava-se avariado.
15) No exterior da pastelaria "O A.", mais concretamente, na parte inferior da montra, existiu, em tempos, uma grelha de ventilação directa para o interior daquele estabelecimento que se encontrava obstruída com tijolos e azulejos.
16) T. fechou a porta da pastelaria e colocou em funcionamento o aludido esquentador, tendo ligado a torneira da água quente.
17) Porque a conduta de evacuação do esquentador não se encontrava ligada à conduta da extracção da hotte, os gases provenientes da combustão ficaram acumulados, quer no interior da conduta, quer no interior na câmara de combustão do esquentador, provocando, desta forma, uma combustão imperfeita, que originou uma concentração no ar de monóxido de carbono.
18) Que em consequência, se concentrou no sangue da T., numa percentagem de 58,4%.
19) O que lhe provocou directa e necessariamente a morte por intoxicação por monóxido de carbono.
20) Provocou ainda uma concentração de monóxido no sangue da L.S. numa percentagem de 58,5 %.
21) O que também lhe causou directa e necessariamente a morte por intoxicação de monóxido de carbono.
22) Resultado que foi agravado pela circunstância do estabelecimento possuir reduzidas dimensões - cerca de 30 m2 - e as suas janelas e portas se encontrarem fechadas.
23) Posteriormente a esta ocorrência, o arguido substituiu o esquentador a gás por um termo-acumulador eléctrico, tendo sido restabelecida a ventilação directa.
24) Após realizar esta substituição, colocou no lixo o esquentador a gás, o que impossibilitou que durante a investigação fossem obtidos os valores exactos de monóxido de carbono provenientes da combustão feita pelo esquentador.
25) O arguido também instalou um sistema de extracção de fumos e gases de combustão.
26) O arguido não informou T. do constante de 10) a 13), por desconhecimento dessa situação.
27) M.S. na qualidade de filho de T. foi instituído seu único herdeiro.
28) T. e LS. constituíam o núcleo familiar do assistente e mantinham entre todos uma relação caracterizada pelo apoio, afecto e grande proximidade.
29) A quem o falecimento da mãe e irmã provocou enorme sofrimento, que o fizeram mergulhar em depressão.
30) O assistente, era já na data dos factos, órfão de pai, pescador de profissão, que falecera no mar na sequência de um naufrágio.
31) Na sequência do falecimento deste familiar, o assistente sujeitou-se a acompanhamento médico - foro psicológico - e medicação, o que manteve após o decesso de sua mãe e irmã.
32) Em consequência do falecimento da mãe e irmã, o assistente refugiou-se por uns tempos, em casa de familiares, onde permaneceu.
33) T. era uma mulher saudável, trabalhava para o seu próprio sustento, de seus filhos e da casa.
34) Nascera em 06 de Junho de 1961, na freguesia de Santiago, concelho de Sesimbra. 35) LS nasceu em 28 de Junho de 1994.
36) Em 25/03/2005, a Companhia de Seguros Império Bonança emitiu em nome da falecida o recibo de fls. 577 referente ao prémio comercial pelo seguro de riscos múltiplos-habitação, no valor de 101,17 euros.
37) Em Setembro de 2003 venceu-se o imposto municipal sobre imóvel, no valor de 173,53 euros.
38) A Caixa Geral de Depósitos liquidou em 24.08.2005, as prestações referentes a amortização e juros, em nome de T., no montante de 212,53 euros.
39) Em nome de R. S foi lançada a tarifa de conservação de esgotos, para o ano de 2003, no montante de 122,73.
40) A falecida T. apresentou no ano de 2002 rendimentos brutos de 2.250,45 euros.
41) Com base no falecimento de T., em 09 de Setembro de 2003, o assistente requereu ao Centro Nacional de Pensões as prestações por morte, as quais lhe foram deferidas por aquela instituição.
42) Em consequência, o CNP pagou ao requerente M S, a título de subsidio por morte e pensões de sobrevivência desde Outubro de 2003 até ao mês de Agosto de 2004, o montante global de euros 4.704,32 (3.412,25 euros de subsidio por morte 1.292,07 euros de pensões de sobrevivência).
43) A falecida T. não informou o arguido que iria deslocar-se ao estabelecimento no dia 09 de Setembro de 2003, nem lhe solicitou autorização para o efeito, não o informando igualmente que se faria acompanhar da sua filha L.S.
44) Em 28 de Dezembro de 1989, o Governo Civil de Setúbal concedeu ao arguido, por alvará, a licença de abertura do café-pastelaria “O A.”, que desde essa data passou a explorá-lo.
45) Anteriormente à data referida em 35), funcionava no local uma lavandaria.
46) O arguido contratou terceiros com vista à realização de obras no local que o adaptassem para o ramo que passou então a explorar.
47) Na data referida em 2), o arguido não confeccionava comida na pastelaria.
48) Nunca tivera, ou quaisquer das funcionárias que trabalharam no estabelecimento, qualquer problema originado pelo esquentador e estava crente que a instalação do mesmo havia sido correctamente efectuada.
49) O arguido ficou transtornado psicologicamente com o decesso de T. e da filha desta, L.S.
50) S., médica em exercício de funções no Hospital Garcia da Orta, declarou em 14 de Outubro de 2003, que o arguido "padece de um quadro sintomático compatível com Depressão Reactiva Grave, fazendo medicação adequada à sua situação clínica".
51) A reabertura da pastelaria, após o sucedido, ficou condicionada à colocação de um sistema adequado para extracção de gases e ventilação, o que determinou o arguido a proceder nos moldes assinalados em 23) e 25).
52) O arguido não foi alertado que não poderia proceder como referido em 24), designadamente por estar em curso uma investigação criminal.
53) No dia dos factos, o arguido deslocou-se ao estabelecimento, cerca das 23.30, para retirar alimentos crus da arca frigorífica, tendo então deparado com a presença de agentes de autoridade e ainda de R.L junto do café.
54) O arguido é pessoa estimada entre os seus amigos e tido por correcto e leal.
55) É casado, tem 3 filhos, continua a explorar a pastelaria, retirando diariamente a quantia de 25/30 euros que destina ao sustento da casa.
56) Possui a 4ª classe de escolaridade e a esposa é doméstica.
57) Reside em casa camarária, de que paga a renda de 85 euros.
58) Despende cerca de 140 euros com o ATL de uma filha.
59) Não tem averbada qualquer condenação.
Factos Não Provados:
Nada mais se provou, para além dos factos acima enunciados com interesse para a decisão da causa, dos factos articulados na acusação, na petição do pedido cível e nas contestações do arguido e ora demandado, designadamente que:
a) Que no dia 09 de Setembro de 2003, aquando da chegada de T.e sua filha L.S. à pastelaria, já tivesse anoitecido.
b) Que, devido a esse facto - ter anoitecido - a T. tivesse fechado a porta da pastelaria ou porque se encontrasse sozinha com a filha.
c) Que o esquentador não possuísse válvula de segurança e que desse facto o arguido tivesse conhecimento.
d) Que o arguido soubesse do referido em 10 a 13), e nem fosse do seu conhecimento que o referido em 15) permitia o retrocesso dos gases tóxicos da combustão e nem que estes se tivessem verificado, por força do referido em 15).
e) Que a falta de manutenção do esquentador ou a existência de ventax avariada tivessem ocasionado ou contribuído para o falecimento das vítimas.
f) Que aquando da realização das limpezas, a mulher do arguido ou a anterior empregada procedessem às tarefas de limpeza do café, com as janelas e porta abertas.
g) Que o funcionamento do esquentador accionado pela falecida T. servisse o objectivo de lavar a loiça que se encontrava no lavatório do balcão de atendimento ao público.
h) Que a falta de manutenção do equipamento tivesse dado origem à concentração no ar de monóxido de carbono.
i) Que o arguido soubesse que não existia qualquer sistema de ventilação e de evacuação de gases tóxicos emitidos em consequência da combustão efectuada pelo esquentador e nem que a instalação deste não estivesse perfeita.
j) Que o arguido tivesse conhecimento que o esquentador não podia funcionar com as janelas e portas fechadas, com vista a possibilitar a circulação do ar e saída dos gases tóxicos.
k) Que o arguido deveria ter actuado de forma diferente, por forma a evitar a morte de T.e de sua filha L.S, e nem que soubesse a sua conduta proibida e punida por lei.
l) Que a morte de T. e de sua filha tenha sido lenta, dolorosa, atrozmente sofrida e angustiante para aquelas.
m) Que o assistente haja padecido, na sequência do falecimento, de dor física.
n) Que se encontrasse, na data da formulação do pedido de indemnização civil, a recuperar do estado depressivo assinalado em 29).
o) Que tivesse deixado de sair de casa, de conviver com pessoas de sua idade, quer com a própria família, designadamente avó, tias e primos;
p) Que enquanto refugiado em casa nos moldes assinalados em 32) tenha dormido todo o tempo que era possível.
q) Que à data dos factos contasse com 22 anos de idade.
r) Que à data dos factos, o assistente se preparasse para retomar os seus estudos, que pretendesse concluir o 12º ano de idade no ano lectivo de 2003-2004 e nem que esta resolução tivesse sido tomada por insistência da falecida T..
s) Que esta tivesse sido quem custeou os tratamentos de psicanálise e medicação prestados ao Assistente.
t) Que o esquentador tivesse sido adquirido na "Casa do Duque";
u) Que a aquisição do estabelecimento pelo arguido tenha ocorrido por força do trespasse.
*
Deixa-se consignado que o Tribunal não fez alusão aos artigos 15°, 25.º, in fine, 34.º, da acusação e aos artigos 40.°, 41.º, 42.º, 43.º, 47.º, 48.º, (1a parte), 56.º, do pedido de indemnização civil formulado pelo Assistente e bem assim ao que consta da contestação crime e cível, por entender que os mesmos se reportam a matéria de natureza conclusiva ou de mera impugnação, nem a todos os que representam a alegação duplicada do mesmo facto já considerado no elenco dos provados ou não provados.

II – Fundamentação da Motivação de Facto:
(…)

IV- Fundamentação de Direito
A qualificação jurídica penal.
Vem o arguido acusado pela prática de dois crimes de homicídio sob a forma negligente, ilícito p. e p. pelo art. l37° n° l e 2 do Código Penal.
No entanto, no caso em análise, a imputação que é feita ao arguido, está dependente da comissão dos imputados ilícitos por omissão.
Na arquitectura do crime - entendido este como o comportamento humano, típico, ilícito e culposo - a conduta, enquanto negação de valores ou interesses de uma dada Comunidade pode exprimir-se de uma forma positiva – o fazer – ou de uma forma negativa – o não fazer.
Dito de outra forma, com a acção "viola-se a norma jurídica fazendo o que a lei proíbe". Com a omissão "viola-se a norma jurídica, não fazendo o que a lei manda que se faça".
Estruturado para a comissão do ilícito por via da acção, dispõe o normativo contido no citado art. 137°.
1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.
A par da previsão contida nos art. 131° e seguintes do CP, o art. 137º consagra igualmente a protecção jurídico-penal da vida humana, pois a acção de matar, neste tipo penal, pressupõe a supressão da vida de outrem, quer se traduza numa acção, - utilização de um meio idóneo a produzir directamente a morte - quer se consubstancie numa mera omissão - falta de actuação capaz de evitar o efeito letal.
Assim, para além dos demais elementos que integram o tipo objectivo, da verificação do nexo de causalidade, exige o dispositivo legal em análise que o elemento subjectivo se encontre verificado sob a forma negligente.
Na base da distinção que é feita, costuma apreciar-se a culpa sob a forma consciente e inconsciente.
Na primeira, o agente prevê a possibilidade da ocorrência da morte da vítima ou o perigo dela ocorrer acreditando, contudo, que a sua perícia a evitará.
Isto é, a morte é prevista, mas levianamente, espera-se que não ocorra ou tenha lugar, dado que, não assumindo o agente o risco da produção do evento danoso, confia em que ele não se produz, quando era legítimo e normal que não fosse tão confiado.
Deste modo, a culpabilidade afirma-se quando o sujeito no caso concreto, tendo a possibilidade de agir de acordo com o direito, não o faz, o que vale por dizer, que não observou a diligência pessoal possível para evitar o resultado danoso.
Por sua vez, a negligência diz-se inconsciente quando o agente não prevê a consequência de determinada conduta que ele próprio empreendeu, sendo certo que tal resultado se afigurava meramente previsível.
A culpabilidade é decorrência da previsibilidade subjectiva e objectiva que no momento da conduta era acessível ao agente, enquanto capacidade de reacção de um homem normal na previsão daquele resultado antijurídico.
Efectivamente, citando Nelson Hungria (Anot. ao Cód. Penal Brasileiro, p. 185 e ss.) «é previsível o facto cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum, podendo ser exigida ao homem normal e comum, entendido este como a personificação do bom senso e do equilíbrio moral, recondutor ao justo ponto da equidistância entre os extremos do pêndulo da evolução humana».
A par do referido, integra ainda a conduta típica, a violação do dever objectivo de cuidado ou dever de diligência, aferida pelos padrões do homem médio, a que o agente estava obrigado e de que era capaz para evitar a produção do evento lesivo.
*
No entanto, o tipo de crime que agora nos ocupa, admite a sua imputação, pela via omissiva.
A lei penal refere que, quando o tipo compreende o chamado evento ou resultado – a morte, no homicídio – o facto abrange, não só, a acção como também a omissão adequadas à sua produção.
Encontra-se consagrada a omissão imprópria no art. 10.º n° l do Código Penal.
Por via deste artigo, equiparou o legislador a acção à omissão, por um lado.
E por outro, deixou consignado que a ligação da conduta ao resultado tem de ser vista em termos de causalidade adequada, de harmonia com a qual, a causa de determinado resultado é a que for adequada ou idónea para o produzir, "segundo as máximas da experiência ou da normalidade do acontecer" - vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-03-2003, relatado pelo Senhor Conselheiro Leal Henriques, in http// www.dgsi.pt.
No entanto, esta regra não é absoluta, comportando, por isso restrições.
A equiparação, desde logo, não se efectivará se outra for a intenção ou sentido da lei, ou quando sobre o emitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado decorrente da sua omissão.
Trata-se de uma restrição de reconhecido melindre, uma vez que a própria lei, não nos indica qual a fonte concreta do dever jurídico (defende a doutrina que a posição de garante pode emergir da lei, do contrato, da situação concreta criada - ingerência -, a trindade tradicional – vide Teresa P. Beleza, Direito Penal, II volume, AAFDL, 545) e nem quando se pode afirmar que, existindo esse dever, o omitente está pessoalmente obrigado a evitar o resultado.
De todo o modo, sem que se imponha aludir a toda a prelecção doutrinária, que a este propósito das fontes obrigacionais tem sido suscitada, diremos que muito mais do que fundada na responsabilidade por uma fonte de perigo, a posição de garante que sempre assistia ao arguido se funda na lei.
E para isso basta-nos atentar no regulamentado no Decreto Lei n° 441/1991, de 14.11 – art. 8º nº 2 al. c) – que assim rege, definindo as obrigações do empregador, "assegurar que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos nos locais de trabalho não constituam risco para a saúde dos trabalhadores", devendo ainda quanto a esta matéria ser considerado o regulamentado na Norma Portuguesa, 1037-1 de 2002, relativamente às condutas de evacuação, de ligação e respectiva montagem.
Não nos atrevemos a assentar a posição, no contrato firmado com a falecida T., porque esse formalmente não o temos demonstrado ou caracterizado com a suficiência que se impõe nos autos, para que a ele possamos aludir ou nele fundar a posição de garante.
E também, não o podemos fundar, com a convicção que se impõe, na ingerência, esta entendida, em sentido geral, como qualquer situação em que uma pessoa criou uma situação de perigo e por isso mesmo tem depois a obrigação de evitar que esse perigo se transforme em resultado, na medida em que cremos que a situação de perigo criada, reportada à inadequada extracção de gases provenientes do esquentador, não pode ser associada ao arguido, que providenciou, aquando da remodelação ou conversão do estabelecimento em pastelaria, pela colocação do esquentador, tendo para o efeito contratado os serviços de uma empresa, de Sesimbra, que procedeu à respectiva instalação e ligação das tubagens e condutas de extracção do esquentador, confiando integralmente na boa execução do serviço que solicitou a terceiros e não lhe sendo exigível que da boa execução suspeitasse.
Não afastamos, pois, postas as coisas nestes termos, que o resultado típico tem, antes de tudo, de considerar-se objectivamente imputável e portanto, objectivamente ilícito.
Ora, sem mais, e sem que se tenha apurado em julgamento que o arguido G. soubesse ou conhecesse o estado em que ficara colocado e instalado o esquentador, mormente por, em quadros anteriores, terem surgido episódios que o levassem a considerar que algo não estaria correctamente efectuado, não se afigura de acordo com a normalidade da vida, expectar que o serviço desempenhado não tenha sido o pretendido pelo próprio e muito menos assacar-lhe o resultado pela manutenção de uma fonte de perigo que este desconhecia.
Na verdade, interrogamo-nos quantos esquentadores terão assim sido montados e instalados na Vila de Sesimbra, sem que os responsáveis pela sua instalação tenham prestado contas à justiça.
Resta-nos, no entanto, convocar a questão, com base nas considerações supra tecidas, aquando da apreciação da matéria de facto: deverá o arguido ser responsabilizado pela omissão da limpeza (manutenção) do esquentador, enquanto aparelho usado esporadicamente no estabelecimento comercial, e pela tapagem ou obstrução da grelha de ventilação existente no estabelecimento, aquando das obras realizadas para a mudança de ramo, por manter ele próprio esta posição que o obriga a evitar a produção do resultado danoso, fundando-se tal obrigação na lei ou, com base na categoria encontrada pelo Professor Figueiredo Dias, no dever de fiscalização das fontes de perigo no âmbito de domínio próprio?
Numa primeira abordagem, diríamos que em ambas se funda a posição de domínio fáctico absoluto.
No que respeita ao fundado dever na lei, damos por reproduzidas as considerações que supra fizemos.
No que respeita ao dever fundado na fiscalização das fontes de perigo no âmbito do domínio próprio, devemos recordar que o seu fundamento material reside, grosso modo, na expectativa comunitária. Isto é, esta - a Comunidade - tem de poder confiar que quem exerce um poder de disposição sobre um âmbito de domínio ou sobre um lugar determinado, que se encontram acessíveis a outras pessoas, deve também dominar os riscos que para estas podem resultar de estados ou de situações perigosas.
Porém, a verificação do ilícito não se basta, como o avançamos, com a demonstração desta posição de garante.
Por essa razão, adiantamos desde já que a resposta à questão colocada não pode ser outra que negativa, sendo que a mesma depende da resposta que haja de ser dada quanto à questão da verificação do nexo causal, que, como resulta da factualidade, não resultou provado.
Vejamos.
Apesar de entendermos que esta posição de garante, resulta demonstrada, no caso dos autos, uma coisa, porém, é certa.
O primeiro degrau da imputação objectiva – o da pura causalidade – nos crimes impróprios de omissão, terá de assentar nos mesmos pressupostos que gerem a causalidade na acção, sob pena de violação do princípio da tipicidade.
Significa isto que, invertendo-se o juízo de imputação, (que o julgador tem de averiguar, estribado na matéria de facto), para atribuir o resultado morte, no caso ao arguido, haverá que saber se a actuação a que estava obrigado era ou não era adequada para evitar o resultado.
Isto é, como o escreve Teresa Beleza, in loc. cit., a pag. 551 "não se põe a questão em termos de saber se a acção que a pessoa não praticou, era adequada a provocar um resultado, mas se não, necessariamente o resultado não desaparecia, ou em termos de adequação, se a actuação que a pessoa podia e devia ter, era adequada, isto é, em termos de experiência comum, era previsível que evitasse um certo resultado."
Defendendo a Teoria do Incremento do Risco, como o escreve o Professor Figueiredo Dias em Direito Penal, Coimbra Editora, Titulo IV, Os crimes de Omissão, pags. 695 a 697 "o degrau da adequação – como sabemos de natureza eminentemente típico-normativa – só poderá ser cumprido com apelo á idoneidade não do comportamento eventualmente levado a cabo, mas do comportamento esperado ou devido para obstar à verificação do resultado. Deste modo, o problema da imputação objectiva do resultado típico só poderá em definitivo ser solucionado no seio da chamada conexão do risco: a acção esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico".
No caso dos autos, tudo deverá depender, de saber se, a omissão da limpeza (manutenção) do esquentador, enquanto aparelho usado esporadicamente no estabelecimento comercial, a omissão de eliminação da tapagem ou obstrução da grelha de ventilação existente no estabelecimento, aquando das obras realizadas para a mudança de ramo e a omissão de colocação de uma ventax em estado funcional, poderia ter oferecido às vitimas a possibilidade de se manterem vivas: se sim, o nexo de imputação objectiva deverá ser afirmado; se a dúvida permanecer, ele deverá ser negado (in dubio pro reo).
Entendemos, que a dúvida manteve-se.
Ora, o que de facto, de objectivo se apurou aponta para a falta de preenchimento desse elemento típico – o nexo causal – de que dependia a verificação dos ilícitos.
E assim sendo, haverá pois, obedecendo aos princípios enunciados e ao princípio da tipicidade, que concluir pela absolvição do arguido.
V – Quanto ao enxerto civil
Dispõe o art. 129º do Cod. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Assim, nos termos dos arts. 71º e 74º do CPP o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime pode ser deduzido no processo penal respectivo, pelo lesado, entendendo-se corno tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime.
Nesses moldes, ainda que enxertado no processo penal, ao pedido de indemnização civil são aplacadas as regras substantivas que dispõem acerca da responsabilidade civil, pelo que, neste campo tem completa aplicação o disposto no art. 483º do CC.
Prevê tal normativo que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
Encontramo-nos, portanto, no domínio da responsabilidade civil extra-contratual e subjectiva, exigindo-se a culpa do autor da lesão na prática do facto.
Deste modo, para que o agente seja obrigado a reparar certo dano, exige-se que se encontrem cumulativamente verificados determinados requisitos, a saber:
- um facto voluntário e controlável pela vontade humana,
- a ilicitude do facto,
- a culpa, sob a forma de dolo ou negligência do autor do facto,
- o dano,
- um nexo de causalidade entre o facto e o dano sofrido pelo lesado.
A este propósito, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Acórdão 7/99 que uniformizou jurisprudência, - publicado no DR, 1ª série-A, n° 179, de 03.08.1999 "se em processo penal for deduzido pedido de indemnização civil, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377.º n° 1 do Código do Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extra-contratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual".
Como já se deixou dito, perante os factos acima provados, torna-se manifesta a falta dos pressupostos de onde decorre ou se funda a responsabilidade de indemnizar, mormente a ilicitude, a culpa e nos termos expostos, quanto às restantes omissões imputadas ao arguido de onde poderia derivar a obrigação de indemnizar, o nexo causal que permite a imputação do dano ao demandado.
Por outro lado, não deixaremos de o dizer, ainda que assim não fosse, o que só academicamente se concebe, o assistente Luís Silva estriba o seu pedido, sem que introduza factualidade que componha a causa de pedir.
O que determinaria que, em grande parte, o pedido tivesse de improceder.
No mais, e em face do exposto e nos termos sobreditos, falecem na totalidade, os pedidos de indemnização civil deduzidos nos autos, devendo, ser retirada a necessária consequência jurídica. …».

E, por isso, foi proferida a decisão que se deixou transcrita no início do presente acórdão.

Vejamos:

O âmbito dos recursos delimita-se pelas conclusões da motivação em que se resumem as razões do pedido. Sendo as conclusões proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Edição de 1981, Pág. 359).
(…)

Relativamente à segunda questão, importa, desde logo, salientar que a contradição insanável mencionada no Art.º 410º, n.º 2, alínea b) do C.P.Penal só acontece quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação constante do texto da decisão recorrida justifica uma decisão oposta ou quando existe colisão entre os fundamentos invocados.
Neste âmbito, verifica-se que a decisão recorrida espelha uma fundamentação escorreita e lógica que justifica plenamente a decisão tomada.
Desde logo, pelo correcto e abundante exame crítico da prova produzida em audiência que foi feito no acórdão sub judice, sem que se consiga vislumbrar qualquer contradição nos termos supra mencionados.
É que o ter-se dado como assente que, no exterior da pastelaria "O A.", mais concretamente, na parte inferior da montra, existiu, em tempos, uma grelha de ventilação directa para o interior daquele estabelecimento que se encontrava obstruída com tijolos e azulejos não é, de modo algum, incompatível com a circunstância do arguido ter referido saber da existência de uma grelha que ficara obstruída em data anterior à exploração de tal estabelecimento, conforme se exarou na fundamentação da motivação de facto do aresto recorrido.
E nem mesmo se vislumbra sequer que se possa pretender ser inconciliável com essas asserções a referência, em sede de fundamentação de direito, que o bloqueamento da grelha de ventilação teve lugar aquando das obras realizadas para a mudança de ramo, dado que o arguido só iniciou a exploração do café-pastelaria em causa necessariamente após a conclusão das mesmas, o que terá ocorrido, de acordo com o que já se deixou expendido supra, por volta do dia 28-12-1989.
Depois, não se pode deixar de salientar que a suscitada inconcatenabilidade entre os pontos 44 e 45 da matéria fáctica dada como assente é meramente virtual, uma vez que resulta de um manifesto lapso material que urge rectificar.
O que decorre, desde logo, da constatação da data mencionada no ponto 35 da sobredita matéria se reportar ao nascimento da vítima L.S. (28-06-1994).
Afigura-se-nos, pois, ser evidente que tal acontecimento nada tem a ver com a data em que uma lavandaria deixou de funcionar no local onde o arguido, subsequentemente, passou a explorar o café-pastelaria “O A.”.
E, deste modo, não pode senão extrapolar-se que a referência que se pretende efectivar no ponto 45, apenas pode respeitar à data constante do ponto imediatamente precedente (28-12-1989).
Também, não nos parece existir qualquer incongruência entre o ter-se dado como provado que, na altura do evento sub judice, o arguido não confeccionava comida na pastelaria (ponto 47) e a circunstância de, no dia dos factos, o mesmo se ter deslocado ao estabelecimento, cerca das 23 h. 30 m., para retirar alimentos crus da arca frigorífica (ponto 53).
Sendo certo que, para tal, basta ter em conta que o arguido refere, nas suas declarações, que não se confeccionava comida na pastelaria e que apenas passou pelo estabelecimento, naquele momento, para ir buscar uns salgados, a fim de a sua mulher, MG, poder concretizar uma encomenda que tinha para o dia seguinte - 4ª feira -, altura da semana em que habitualmente folgavam, o que foi inequivocamente confirmado por esta.
O que só pode levar a crer que tais salgados – alimentos crus – se destinavam a ser confeccionados fora do sobredito local.
Por outro lado, não se consegue vislumbrar como é que se torna possível, legitimamente, defender, sem margem para qualquer dúvida, que se confeccionava comida na pastelaria, quando o arguido, tal como acertadamente consta da fundamentação da motivação de facto da decisão em crise, se limitou a dizer que o esquentador era apenas utilizado por períodos curtos de 15 a 30 minutos, os necessários e indispensáveis para realizar a limpeza do estabelecimento e a lavagem de objectos utilizados, mormente uma fritadeira, esclarecendo que nem sequer o mesmo era usado para facilitar a água quente, já que no estabelecimento não era confeccionada comida e portanto, não havia necessidade de proceder à lavagem da loiça com água aquecida.
De igual modo, não se constata existir qualquer contradição entre o teor dos pontos 24 e 52 da matéria fáctica dada como provada.
E dizemos isto porque se, de certo, o arguido não foi avisado, por quem de direito, que se encontrava em curso uma investigação criminal, inexiste motivo para se concluir, sem mais, ser inaceitável assentar-se que o arguido não sabia que lhe estava vedado desfazer-se do controverso esquentador.
Aliás, perante as específicas características da ocorrência, nem sequer nos repugna que este possa não ter apreendido, de imediato, que estava em causa a prática daquilo que, de acordo com o senso comum, se qualifica como um crime, pese embora a circunstância de, alguns dias depois, ter sido ordenado o encerramento do estabelecimento pela I.G.T., organismo que, também vulgarmente, não se associa à investigação de tal tipo de ilícitos.
Finalmente, torna-se forçoso fazer sobressair, ainda, que, apesar do arguido referir ter conhecimento da existência de uma grelha que ficara obstruída em data anterior à exploração do estabelecimento, alegando todavia, desconhecer, que esta tapagem impedisse a saída dos gases tóxicos, tal não é, de modo algum, incompaginável com a circunstância de se ter dado como não provado, conforme decorre da respectiva alínea i), que o arguido soubesse que não existia qualquer sistema de ventilação e de evacuação de gases tóxicos emitidos em consequência da combustão efectuada pelo esquentador e nem que a instalação deste não estivesse perfeita.
Por conseguinte, ao contrário do pretendido pelo Digno recorrente, não se verifica, in casu, a existência de qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Quanto à terceira questão, importa, de imediato, salientar que, na verdade, “...o erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410º, n.° 2, al. c), do CPP, como se vem reafirmando constantemente, não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente e só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. ...” (cfr. Acórdão do S.T.J. de 24-03-1999, Proc. n.° 176/99 – 3.ª Secção).
Mais, “o erro notório na apreciação da prova, nas condições em que se encontra legalmente previsto e balizado, é, de natureza ou por definição, intrínseco da decisão recorrida, e não deve obter raízes no exterior da mesma.” (cfr. Acórdão do S.T.J. de 11-06-1992, BMJ 418-478).
E “...existe erro notório na apreciação da prova quando esse erro é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.
...Serão, portanto, casos de erro notório na apreciação da prova aquele em que um acórdão recorrido menciona que o arguido estava às 10 horas de um dia em Coimbra e às 10 horas e 30 minutos desse mesmo dia em Lisboa e aquele em que se diga que o arguido deu um tiro procurando atingir o coração da vítima, que efectivamente atingiu e esfacelou, mas que não houve da sua parte intenção de matar.” (cfr. Maia Gonçalves, C.P.P. Anotado, 1992, pág. 568).
Cabe salientar que “a discordância com a decisão do tribunal recorrido no que respeita à forma como este teria apreciado a prova produzida em audiência de julgamento, não constitui o vício do erro notório na apreciação da prova” (cfr. Acórdão do S.T.J. de 11-07-1991, Proc. 41953 - ponto I do sumário, in Base de Dados respectiva).
Também tal vício não se mostra revelado face ao teor da decisão recorrida e, do mesmo modo, quanto à existência do mesmo, não assiste razão ao Digno recorrente ao apontá-lo, como o faz nas conclusões transcritas.
Na realidade, entendemos que este “ficciona” a existência de erro notório na apreciação da prova no acórdão em crise, porque afere essa existência pela matéria alegada na motivação do recurso, sem correspondência, aliás, nos factos apurados e consoante o foram.
É que, em primeiro lugar, apesar de se nos afigurar, também, que uma pessoa, mesmo sem quaisquer habilitações específicas, deva saber que a função de uma grelha, aberta directamente para o exterior, é a de permitir a circulação de ar, certo é que não fica, por efeito imediato disso, excluída a possibilidade de que os gases tóxicos resultantes da combustão proveniente do funcionamento do esquentador se tivessem escoado por outra via, caso a instalação da respectiva conduta de evacuação/ventilação tivesse sido efectuada de forma correcta.
Ora, conforme acertadamente se considerou na decisão impugnada, constata-se que não se logrou apurar que o arguido soubesse do estado em que se encontravam as condutas que permitiam a saída de gases resultantes da combustão feita pelo esquentador.
Tendo ele confiado em técnicos especializados (terceiros) para a instalação que pretendia, não era suposto que o mesmo, dentro do padrão normal de exigibilidade, desconfiasse sequer que os orifícios onde desembocavam as tubagens não tinham sido abertos, impedindo, assim, a normal extracção e saída dos gases.
Isto tanto mais que, ao longo de 14 anos, não detectara nunca qualquer problema com o funcionamento do esquentador, sendo certo, por outro lado, que do mesmo fazia pouco uso.
Aliás, neste sentido, torna-se necessário fazer apelo ao depoimento do Inspector de Trabalho, V M., que referiu, de forma expressa, que só por mera intuição encontrou a sobredita deficiência inegavelmente causadora da morte das ofendidas.
Portanto, também a nós não nos causa nenhum tipo de perplexidade a circunstância de, ao detectar a ligação da tubagem com fita de alumínio usualmente utilizada para garantir ou evitar a fuga dos gases, e bem colocada no dizer da testemunha a que acabou de se aludir, o arguido ainda mais tivesse considerado que a saída dos gases estava acautelada.
Daí que, não tendo ficado demonstrado, em sede de audiência de julgamento, que o arguido tivesse conhecimento dos factos dados como fixados nos pontos 10 a 13, se impunha, de imediato, excluir a verificação, a qualquer título, da negligência, conforme bem se entendeu no aresto em crise.
É, também, um facto inalienável que a impossibilidade de terem sido realizados testes ao esquentador (por este ter sido colocado no lixo), mormente para o apuramento de outros valores, maxime a medição dos gases concretamente expelidos pela combustão provocada pelo esquentador em funcionamento, acarretou a ausência da prova relativamente ao nexo de causalidade entre as omissões restantes que vem imputadas ao arguido - omissão de manutenção do esquentador, em 14 anos, omissão de substituição da ventax para extrair fumos e cheiros e omissão de remoção de azulejos e tijolos da grelha de ventilação -, e o facto danoso.
No entanto, em nosso entender, nunca se poderia assegurar, para além de qualquer dúvida, que, mesmo que o arguido tivesse procedido à limpeza do aparelho, o resultado não se verificaria.
Deixariam, eventualmente, os gases de retroceder, não obstante manter-se a falta de orifícios destinados à sua passagem para o exterior do estabelecimento?
Ou sequer seria possível admitir-se que a regular extracção de fumos e cheiros pela ventax, em regular estado de funcionamento, permitiria a extracção dos gases, quando esta se destina, de forma particular, à extracção de outras substâncias não gasosas?
Mais ainda, se estivesse desobstruída a grelha, seria legitimamente expectável que o resultado não teria ocorrido?
Também nós entendemos que, perante a prova produzida, não se pode responder de forma terminantemente positiva a estas questões, já que persistirá sempre uma margem de dúvida razoável no que diz respeito à sua apreciação.
Pelo que, importa, sem mais, sufragar a aplicação do princípio in dubio pro reo, uma vez que se verifica existir um non liquet em questão de prova que tem necessariamente de ser valorado a favor do arguido.
Deste modo, ao contrário do sustentado, não se vislumbra a ocorrência de qualquer erro notório na apreciação da prova.
E constatando-se inexistir qualquer dos vícios previstos no Art.º 410º, n.º 2 do C.P.Penal, é de concluir, também, não haver lugar ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do Art.º 426°, n.º l do mesmo Código.

Finalmente, apreciando a derradeira questão, impõe-se, desde logo, afirmar que se revelam fundamentais na identificação das razões materiais que inspiram o tipo comissivo por omissão (Art.º 10º do C. Penal), e que, por isso, são também sinal da existência de uma posição de garante do sujeito, a lei, a comunidade de vida (abrangendo hipóteses de relação sentimental ou afectiva e de vida em comum), a assunção fáctica de deveres de protecção (a substituir o vínculo contratualmente fundado), o domínio da coisa por princípio não perigosa (se bem que, na verdade, se trate mais propriamente de responsabilidade por uma esfera de domínio), a ingerência (relacionada com a responsabilidade por fontes de perigo), mas a que se podem ainda fazer acrescer as comunidades de risco e a responsabilidade por factos cometidos por terceiros (no âmbito familiar ou profissional).
Não fica deste modo comprometido o significado essencial do princípio da legalidade, uma vez que este princípio se cumpre sempre que as valorações do julgador se mantêm dentro do espaço que corresponde ao tipo de ilícito, e, se o que define o núcleo desse ilícito ao nível dos crimes de omissão impura é a violação pelo destinatário da norma jurídica de particulares deveres de solidariedade e de entre ajuda que o tornam pessoalmente responsável pelo resultado, é aí que se deve ir buscar também o sentido da posição de garante e a sua afirmação no caso concreto.
Tendo em conta que, onde o dever de solidariedade já não é particular, como onde, referindo-nos à posição de Jakobs (normativismo), o risco já não é especial, se pode começar a colocar, precisamente aí, em crise o significado do mesmo princípio, tal como o salienta Figueiredo Dias, in Presupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa, Jornadas de Direito Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Fase I, Edição do C.E.J., 1983, Pág. 55, ao alertar contra o perigo do alargamento excessivo destas exigências de solidariedade (cfr. Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria, A Adequação Social da Conduta no Direito Penal ou o Valor dos Sentidos Sociais na Interpretação da Lei Penal, Edição das Publicações Universidade Católica – 2005, Pág. 1107 e segs.).
Aliás, torna-se, de imediato, importante referir que, em nosso entendimento, a definição da posição de garante decorre da valoração global das circunstâncias em que tem lugar a omissão que permitem constatar que o agente não levou a cabo uma actuação que traduzia as expectativas sociais no caso concreto, tendo em conta a posição particular que ocupava em relação aos bens jurídicos.
E dizemos isto porque é manifesto que a imagem que o tipo descreve, e que o julgador reconstrói, corresponde a uma omissão agravada, a uma particular exigibilidade da conduta, que pode não se deixar afirmar em relação à tutela de todos e quaisquer bens jurídicos.
Neste sentido, ao contrário do sustentado pelo Digno recorrente, não se nos afigura estar, in casu, assente, de forma pacífica, a posição de garante do arguido, adveniente quer de imposição expressa da lei, por forca do Art.º 13º do Dcreto-Lei n.º 521/99 de 10 de Dezembro e dos pontos n.ºs 1, 5, 6 e 7 da Portaria n.º 987/93 de 6 de Outubro, quer decorrente da relação de proximidade entre o arguido e o bem jurídico protegido.
É que, prima facie, inexistem dúvidas que, assumindo o teor dos sobreditos normativos carácter essencialmente programático, resulta óbvio que dos mesmos apenas podem resultar deveres jurídicos gerais (de cautela) e que, como tal, não se reportam a um qualquer dever particular ou mesmo especial, esse sim susceptível de tornar o arguido pessoalmente responsável pelo resultado ocorrido.
Não se pode olvidar que se trata de garantir o difícil equilíbrio entre uma perspectiva liberal da omissão e um entendimento próprio de um Estado de direito social que tutela valores de solidariedade e de entre ajuda entre as pessoas, mas que, sobretudo, se interpretado de uma forma mais lata, corre sérios riscos de desembocar em formas de autoritarismo onde não se coloquem limites à incriminação por omissão (cfr. Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria, Obra Citada, Pág. 1122)
De todo o modo, subsequentemente, impõe-se reiterar que não se apurou que o arguido soubesse ou sequer conhecesse o estado em que ficara colocado e instalado o esquentador, designadamente por, em situações anteriores, terem surgido episódios que o levassem a considerar que algo não estaria correctamente efectuado.
Daí que não se nos afigura, também, de acordo com a normalidade da vida, expectar que o serviço desempenhado não tivesse sido o pretendido pelo próprio e, muito menos, assacar-lhe o resultado pela manutenção de uma fonte de perigo que este desconhecia, fazendo-se apelo a uma esbatida relação de proximidade entre o arguido e o bem jurídico protegido, baseada em nada mais do que na simples circunstância de ser ele quem disso exclusivamente retirava vantagens.
Além disso, perante tudo o que já se expendeu, não se pode, de forma legítima, pretender, em nossa opinião, que o arguido conscientemente pautou o seu comportamento por inobservância de procedimentos mínimos, elementares, esperáveis de qualquer cidadão que ocupasse o seu lugar.
Até porque da ausência de acções de revisões técnicas ao equipamento, durante todo o tempo em que o mesmo explorou o «café» (14 anos), não se pode directamente extrapolar que um universo de pessoas foi deixado exposto à protecção divina.
E que, ainda para mais, tenha desprezado comportamentos que, enquanto estabelecido e por ter criado, também, relação de trabalho, lhe competia efectivar.
Como, de igual modo, não se vislumbra poder, validamente, afirmar-se que o arguido eliminou integralmente a funcionalidade da grelha de ventilação directa e do aparelho exaustor, mantendo aquela tapada e o segundo avariado.
Por outro lado, não restam dúvidas de que o primeiro degrau da imputação objectiva (o da pura causalidade), nos crimes impróprios de omissão, terá de assentar nos mesmos pressupostos que gerem a causalidade na acção, sob pena de violação do princípio da tipicidade.
O que só pode querer significar que, invertendo-se o juízo de imputação (que o julgador tem de averiguar, estribado na matéria de facto), para atribuir o resultado morte, se terá que determinar se a actuação a que o arguido estava obrigado era ou não adequada para evitar o resultado.
Não se põe, desta forma, a questão sequer em termos de saber se a acção que a pessoa não praticou, era adequada a provocar um resultado, mas se (e por um raciocínio hipotético imaginarmos presente a actuação que a pessoa não teve), necessariamente o mesmo não desaparecia, ou, em termos de adequação, se a actuação que a pessoa podia e devia ter, era adequada, isto é, em termos de experiência comum, era previsível que evitasse um certo resultado (cfr. Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, 2º Volume, Edição da AAFDL, Pág. 551).
Assim, nestes termos, de acordo com a teoria do incremento do risco, o necessário degrau da adequação – como já referimos de natureza eminentemente típico-normativa – só poderá ser cumprido com apelo á idoneidade não do comportamento eventualmente levado a cabo, mas do comportamento esperado ou devido para obstar à verificação do resultado.
Deste modo, o problema da imputação objectiva do resultado típico à omissão só poderá ser em definitivo solucionado - no seio da chamada “conexão do risco”: a acção esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Edição de 2004, Pág. 694).
Pelo que, conforme acertadamente se deixou expendido na decisão em crise, tal nexo nunca poderia ter sido terminantemente afirmado no caso dos autos.
O que, assim, decorre da circunstância de, desde logo, não se poder assegurar que o suprimento da omissão de eliminação da tapagem ou obstrução da grelha de ventilação existente no estabelecimento, aquando das obras realizadas para a mudança de ramo, bem como da omissão de colocação de uma ventax em estado funcional, poderia ter oferecido às vítimas a possibilidade de se manterem vivas.
Falta, pois, o preenchimento desse elemento típico – o nexo causal – de que, nomeadamente, dependia a verificação dos ilícitos.
De todo o modo, impõe-se salientar que a omissão tem, além disso, de ser culposa (cfr. Teresa Pizarro Beleza, Obra Citada, Pág. 552).
Ora, como não se verifica, in casu, qualquer decorrência de previsibilidade que, no momento da conduta, fosse acessível ao agente, enquanto capacidade de reacção de um homem normal na previsão daquele resultado antijurídico, mais nada nos resta, também, senão afirmar que se encontra arredado o sempre necessário elemento do tipo subjectivo.
E daí que, muito menos, se possa pretender que o mesmo, ao abster-se de pretensas acções «salvadoras» que lhe eram dirigidas, tenha exteriorizado uma culpa, próxima do dolo eventual, tão temerária até que o legislador a penaliza, acrescidamente, na punição (cfr. Art.º 137º, n.º 2 do C. Penal).
Do que ora vem de se expender, decorre, igualmente nesta parte, não merecer provimento o presente recurso, na medida em que inexiste violação de qualquer disposição legal e, muito menos, das que na respectiva motivação foram mencionadas.

Pelo exposto, acordam os juízes em negar provimento ao recurso, confirmando, na sua plenitude, a decisão recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 15/05/2007

Simões de Carvalho
Margarida Bacelar
Agostinho Torres